Com embalagem muito parecida com as de leite em pó, "composto lácteo" é promovido como opção saudável para crianças, mas contém ingredientes não recomendados, como açúcar e aditivos alimentares.
Leia a reportagem que acaba de sair na Revista do IDEC.
Em defesa do consumidor mais vulnerável: o lactente!
Prof. Marcus Renato de Carvalho
Avanços da Telemedicina em dados | Regiane Spielmann
Composto lácteo x leite em pó: entenda a diferença
1. LEBREPOR
GATO
Com embalagem muito parecida com as de leite em pó, composto
lácteo é promovido como opção saudável para crianças, mas contém
ingredientes não recomendados, como açúcar e aditivos alimentares
PESQUISA ALIMENTOS
FotosShutterstock
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REVISTA DO IDEC
2. I
magine que você está no supermercado ou na farmácia,
na seção que vende leite em pó. Ao avaliar as marcas dis-
poníveis, vê que, em algumas latas, o rótulo destaca que o
produto é fonte de cálcio, ferro e zinco, além de conter um
“mix” de vitaminas. Parece uma boa opção para crianças, certo?
No entanto, se comprar esse produto pensando que é leite,
você estará levando gato por lebre. Embora a embalagem seja
muito semelhante à do leite em pó, esse produto é, na verda-
de, um composto lácteo – mistura de leite (51% no mínimo, de
acordo com a legislação) e de ingredientes diversos, como soro
de leite, óleos vegetais, açúcar e substâncias químicas para dar
sabor, aroma, aumentar a durabilidade etc., chamadas de aditi-
vos alimentares.
Mais grave é o risco de confusão com fórmulas infantis e
fórmulas de seguimento, alimentos artificiais substitutos do
leite materno, indicados para recém-nascidos de até 6 meses
e para bebês entre 6 meses e 1 ano de idade, respectivamente.
“Embora não exista produto industrializado que se equipare
aos benefícios e à proteção à saúde da mãe e do bebê pro-
porcionados pelo aleitamento materno, as fórmulas infantis e
de seguimento são desenvolvidas para suprir as necessidades
nutricionais do bebê quando a amamentação não é possível”,
explica Rosana de Divitiis, ex-presidente e atual conselheira da
Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Ibfan,
na sigla em inglês) no Brasil.
O composto lácteo, ao contrário, não deve ser oferecido
para crianças com menos de 1 ano. Porém, a Ibfan detectou
problemas na oferta desses produtos, que podem levar o con-
sumidor a erro em relação à sua composição e para quem ele
é indicado.
Em 2017, a organização fez novamente seu monitoramento
anual do cumprimento da legislação que visa a proteger o direi-
to à amamentação no Brasil, a chamada NBCal, composta por
resoluções, portarias e pela Lei Federal no
11.265/2006, regu-
lamentada pelo Decreto no
8.552/2015. A norma reúne regras
sobre rotulagem, comercialização e publicidade de uma série de
produtos que podem atrapalhar o aleitamento materno, desde
alimentos (leites artificiais, outros produtos lácteos e papinhas,
por exemplo) a acessórios como chupetas, mamadeiras e bicos.
Das 266 infrações à legislação identificadas pela Ibfan, 46
eram relativas a compostos lácteos – 18% do total. Basicamente,
o problema diz respeito às peças promocionais, que não
apresentam a frase de advertência exigida pelo Ministério da
Saúde para alertar que o produto não substitui o aleitamento
materno e que não é indicado para determinada faixa etária. A
ausência da frase de advertência ocorre nos pontos de venda
(como supermercados e farmácias), em folhetos promocionais,
na internet e em sites e redes sociais, inclusive dos próprios
fabricantes. “A indústria utiliza as mídias sociais, onde fala dire-
Embora a aparência do pó e as em-
balagens sejam parecidas, os produtos
têm composições muito distintas, assim
como são as faixas etárias indicadas pa-
ra consumo. Entenda a diferença.
l Fórmula infantil: alimento artifi-
cial indicado para recém-nascidos e be-
bês de até 6 meses quando a amamenta-
ção não é possível ou suficiente.
l Fórmula de seguimento: alimento
artificial indicado para bebês entre 6 e
12 meses quando a amamentação não é
possível ou suficiente.
l Leite em pó: produto obtido por
desidratação do leite de vaca integral.
Deve conter somente proteínas, açúcares,
gorduras e outras substâncias minerais
próprias do leite. Não é indicado para
crianças menores de 1 ano e não substitui
o leite materno.
l Composto lácteo: produto resul-
tante da mistura de leite (no mínimo
51%) e outros ingredientes lácteos ou não
lácteos. Costuma conter açúcar e aditi-
vos alimentares. Não é indicado para
crianças menores de 1 ano e não substi-
tui o leite materno.
FÓRMULAS, LEITE EM PÓ
E COMPOSTO LÁCTEO
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Fonte: Ibfan
3. tamente com o consumidor – a maioria mães
aflitas por soluções – para alegar propriedades
nutritivas e funcionais para além daquilo que
é seguro e aceitável”, critica Divitiis. “No caso
do composto lácteo isso é bem preocupante.
Na página oficial de uma grande indústria no
Facebook há relatos de mães que oferecem o
produto para bebês desde o nascimento, por
exemplo”, completa.
BRECHAS NA LEI
A ausência de frases de advertência é a
ponta do iceberg de um problema maior: a falta
de clareza na NBCal sobre quais regras os com-
postos lácteos deveriam seguir. Indício disso
é que, após notificação da Ibfan, três grandes
fabricantes responderam discordando de que
havia irregularidade na oferta do produto,
porém utilizando argumentos diferentes.
A Danone, dona da marca Milnutri, alegou
que a exigência de frase de advertência não se
aplica ao composto lácteo, que deve cumprir
apenas as regras de rotulagem previstas no
Decreto no
8.552/2015. Já a Nestlé disse que os
produtos da linha Ninho (entre eles o composto
lácteo Ninho Fases) não estariam no escopo do
decreto porque são dirigidos a crianças acima
de 3 anos, enquanto a lei cita produtos para lac-
tentes e crianças de primeira infância. A Mead
Johnson, fabricante do Enfagrow, por sua vez,
alega que o produto “é um alimento como qual-
quer outro”, que não é destinado a uma catego-
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ria específica de consumidores e, portanto, não estaria sujeito às
restrições impostas pela legislação protetora da amamentação.
A conselheira da Ibfan destaca que, de fato, o compos-
to lácteo não está claramente descrito como um produto de
abrangência da lei – ele é enquadrado por exclusão, já que é um
produto à base de leite, mas que não é leite. “A falta de clareza
na lei e no decreto sobre o composto lácteo tem contribuído
para que os fabricantes o promovam da forma como quiserem”,
observa Divitiis.
A nutricionista e pesquisadora do Idec Laís Amaral concor-
da. “Essas brechas na lei levam a diferentes possibilidades de
interpretação pelos fabricantes, o que resulta, muitas vezes, em
rótulos e publicidades confusos e enganosos para o consumidor,
que acaba comprando o produto achando que é leite”, diz. “A
frase de advertência, da maneira como é exigida pelo decreto,
não é suficiente para esclarecer a natureza do produto para o
consumidor”, completa.
Para Divitiis, a única solução para dirimir conflitos de inter-
pretação é o composto lácteo ser inserido na norma como uma
categoria distinta, com regras específicas. Já Amaral ressalta
que, para evitar engano pelo consumidor, a norma deveria exi-
gir sua descrição de forma clara e visível na parte da frente da
embalagem. “Além disso, o ideal seria que as empresas diferen-
ciassem mais as embalagens de cada tipo de produto”, defende a
nutricionista do Idec.
PROBLEMA MUNDIAL
A confusão entre composto lácteo e leite não é de hoje. Em
2012, o Procon São Paulo abriu uma investigação sobre a atua-
ção da Nestlé na promoção do Ninho Fases após um consumidor
denunciar que a embalagem do composto era muito parecida
com a do leite da mesma marca, induzindo a erro.
PESQUISA ALIMENTOS
PARECE IGUAL, MAS NÃO É
Reprodução
4. De acordo com o Procon, o processo administrativo resultou
em multa de R$ 4,6 milhões à empresa por publicidade engano-
sa do Ninho Fases e por outras infrações. “A empresa recorreu
– nas duas instâncias às quais tem direito –, mas a multa foi
mantida e está em prazo de pagamento”, informa a assessoria
de imprensa do órgão.
A conduta da empresa também se repete em outros países.
Em dezembro passado, a Nestlé e a Gloria, outra marca mul-
tinacional de alimentos, foram multadas no Peru por vender
compostos lácteos como se fossem leite. As empresas foram
punidas com multa equivalente a US$ 4 milhões.
Além disso, em outros países, que têm regras mais frouxas
que as do Brasil, o problema envolve também a oferta de fór-
mulas lácteas dirigidas a recém-nascidos e bebês. Um relatório
divulgado em fevereiro pela organização britânica Changing
Markets Foundation faz duras críticas às estratégias de marke-
ting da Nestlé, que é líder mundial nesse segmento. A enti-
dade avaliou a oferta de 70 produtos da marca voltados para
bebês menores de 1 ano em 40 países. O documento aponta,
por exemplo, que em alguns casos, a Nestlé anuncia que suas
fórmulas são “inspiradas” ou “parecidas” com o leite materno,
associação que contraria as diretrizes da Organização Mundial
da Saúde (OMS). Esse tipo de mensagem é proibido no Brasil.
NUTRITIVO OU DESNECESSÁRIO?
As propagandas dos compostos lácteos os promovem
como um alimento nutritivo, que ajudaria no desenvolvimen-
to e aprendizado das crianças. No entanto, de acordo com
Silvia Médici Saldiva, nutricionista e pesquisadora científica do
Instituto de Saúde de São Paulo, o produto é desnecessário. “Se
a criança tiver uma alimentação saudável, ela não precisa de
nada disso. Não é preciso comprar produto industrializado, um
suposto ‘superalimento’. Quanto mais natural [a alimentação],
melhor será para a criança”, ela afirma.
A nutricionista do Idec concorda e acrescenta que o com-
posto lácteo é um produto ultraprocessado, uma formulação
criada pela indústria com ingredientes que não são adequados
para crianças, como o açúcar, que não é recomendado até os 2
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anos de idade. “O ideal é priorizar alimentos de
verdade, introduzidos corretamente e de forma
variada”, destaca Amaral.
Segundo o levantamento da Ibfan, muitos
compostos lácteos contêm maltodextrina, um
tipo de açúcar com alto índice glicêmico, ou seja,
que fornece quantidade elevada de calorias. As
instruções de uso do produto sugerem que ele
seja oferecido de duas a três vezes por dia, mas
a entidade alerta que o alto teor calórico pode
contribuir para a obesidade infantil. Caso seja
erroneamente oferecido para crianças meno-
res de 1 ano, a bomba calórica é ainda maior.
Considerando as informações nutricionais de
um composto lácteo de uma marca famosa, em
apenas 100 ml do produto diluído, um bebê de 7
a 12 meses ingere mais da metade do consumo
energético recomendado para um dia todo.
Ao comparar as informações nutricionais
desse composto lácteo com as do leite em pó da
mesma marca, a Ibfan verificou que o primei-
ro tem quase duas vezes mais açúcar, com 8,5
gramas por 100 ml, contra 4,9 g do leite. “O con-
sumo excessivo de açúcar é sabidamente preju-
dicial à saúde, especialmente de crianças. Além
da relação com sobrepeso, diabetes e cáries, o
consumo exagerado durante a infância educa
o paladar ao sabor doce, o que pode acarretar
o desenvolvimento de hábitos alimentares não
saudáveis”, alerta a nutricionista do Idec.
O CONSUMO EXAGERADO DE AÇÚCAR
DURANTE A INFÂNCIA EDUCA O PALADAR AO
SABOR DOCE E PODE ACARRETAR HÁBITOS
ALIMENTARES NÃO SAUDÁVEIS
“
Laís Amaral, nutricionista e pesquisadora do Idec
MUITO AÇÚCAR
Quantidade de açúcar em
100 ml do produto diluído
l Leite em pó
l Composto
lácteo
4,9 g
8,5 g
Fonte: Ibfan