A reestruturação da dívida externa é inevitável na Europa
1. Depois do fracasso da austeridade e da socialização dos prejuízos dos bancos
A reestruturação da dívida externa é inevitável
Por Rui Teixeira Santos1
Falhada a política de austeridade e o saneamento dos bancos com o dinheiro dos
contribuintes a Europa avança para a terceira solução: o perdão das dívidas
públicas. Neste artigo Rui Teixeira Santos adverte a Comissão Europeia a não
cometer os mesmos erros que cometeu na fracassadas medidas anteriores.
Dizer que os credores são contra a reestruturação de uma dívida é um disparate
de quem nunca trabalhou com os bancos e investidores, como acontece com os
membros do atual governo. Os investidores quando vêm em risco o seu dinheiro
são os primeiros a querer uma reestruturação da divida, a não ser que existam
preconceitos políticos, mas nesse caso os banqueiros devem ser despedidos. Os
problemas são os abusos de alguns devedores que aproveitam as evoluções
negativas para defraudar os credores, como a Alemanha fez depois da segunda
guerra mundial.
Falhada a utilização do dinheiro dos contribuintes para salvar os bancos e
falhada a política de austeridade - o aumento dos impostos e o corte na despesa
pública (que os alguns adoram, pois lhe dá mais poder para sequestrarem a
decisão pública, como explica e bem Krugman2) - resta agora o terceiro e ultimo
passo: a reestruturação das dividas públicas, numa altura em que o
endividamento privado aumentou e a dívida dos estados é absolutamente
insustentável.
Numa zona monetária em que o pânico da subida dos juros e da inflação
anularam a utilização da política monetária para atenuar os efeitos da recessão e
em que as crenças económicas entre papers sobre o terrível efeito dos défices e
os preconceitos sobre a despesa publica são mandamentos de vudu ou princípios
sagrados seguidos acriticamente por uma geração de políticos sem preparação
nem critério, provocaram um aumento de desemprego sem precedentes e a
recessão parece evidente que esse desemprego e essa recessão inviabilizaram a
recuperação do crédito das famílias e do Estado.
Tudo falhado resta agora a reestruturação das dividas, qua avançara
necessariamente depois das eleições alemãs.
1 Professor Associado de Direito e de Finanças Públicas e Coordenador Científico do Centro de
Estudos de Gestão Pública.
2 http://www.nytimes.com/2013/08/09/opinion/krugman-phony-fear-factor.html?smid=fb-
share ; Krugman começa por escrever: “We live in a golden age of economic debunkery; fallacious
doctrines have been dropping like flies. No, monetary expansion needn’t cause hyperinflation.
No, budget deficits in a depressed economy don’t cause soaring interest rates. No, slashing
spending doesn’t create jobs. No, economic growth doesn’t collapse when debt exceeds 90 per
cent of G.D.P.”.
2. Mas não deixa de ser curioso que da mesmo maneira que foram alguns pouco
rigorosos e cuidados economistas que desenharam as crenças anteriores, já a
preocupação por um controlo central começa a fazer história na Comissão
Europeia.
É, salvo melhor opinião, um erro a ideia peregrina de criar um framework para a
reestruturação das dividas dos países com dificuldade, como aconteceu com o
framework para as finanças publicas (definindo a regra do equilíbrio orçamental,
do défice zero e da dívida pública abaixo dos 60% na linha do Pacto de
Estabilidade e Crescimento, que toda a gente violou) que chegou mesmo a ser
vertido em dois tratados – o Tratado de Estabilização, Coordenação e
Governação da União Económica e Monetária (TECG) e no Tratados que cria o
Mecanismo Europeu de Estabilidade (TMEE).
Nessa linha já está a trabalhar a Comissão Europeia, influenciada por think tanks
como o Bruegel Institute3 de Bruxelas, em nossa opinião, cometendo os mesmos
erros que no registo dos TECG e do TMEE.
Convinha que a reestruturação não fosse outro cavalo de batalha ideológico para
os políticos que vão de modas e normalmente fazem disparates.
Criar um formulário geral para a reestruturação das dividas na Europa também
não parece sensato, pois cada caso é um caso e há que atender às necessidades
de emprego e crescimento de cada país.
O que pode ser justo é a aplicação da Cláusula "salvo regresso de melhor
fortuna”, como acontece nas concordatas ou acordos de credores.
Basicamente a concordata sobre a reestruturação ficaria subordinada à cláusula
"salvo regresso de melhor fortuna", que produz efeitos durante 10 anos, ficando
o Estado membro da UEM obrigado, logo que melhore de sua situação
económica, a pagar rateadamente aos credores, sem prejuízo de novos créditos
com preferência sobre eles.
A estratégia de Bruxelas de combate à crise
A crise financeira que teve inicio na década passada com os subprime no
mercado hipotecário americano e que se transformou numa crise crédito, numa
crise bancaria e numa recessão económica, para finalmente se converter numa
crise de dividas soberanas acabou por ter maior repercussão na zona euro que
noutras regiões do globo, apesar de ser uma crise global com implicações no
crescimento superiores à da segunda guerra mundial. E esta crise que se
alimenta na dinâmica de uma economia fraca, stress soberano e bancos
insustentáveis, acabou por fragmentar o mercado financeiro europeu, colocando
em causa a própria União Económica e Monetária (UEM), com os investidores
ainda a procurarem dívida soberana, mas a exigirem preços diferenciados
3 Nesse sentido ver tb o paper do Bruegel Institute em
http://www.bruegel.org/publications/publication-detail/publication/788-sovereign-debt-and-
its-restructuring-framework-in-the-euro-
area/?utm_source=Bruegel+publication+alert&utm_campaign=45227ed124-
130812_sovereign_debt&utm_medium=email&utm_term=0_1f233d52bd-45227ed124-
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3. consoante a percepção do risco das dividas publicas, da economia ou dos
bancos4.
Neste contexto a tomada de decisões rápidas através do consenso tem mostrado
limitações. Para combater a crise, a União estabeleceu em 2011 uma estratégia
com objetivos de curto prazo e de longo prazo, que levaram nomeadamente à
aprovação de dois novos tratados europeus.
No curto prazo, a União Europeia tentou reduzir a volatilidade do mercado (por
via de três programas nos Estados-Membros, a saber: (1) resgate dos Estados-
Membros com problemas económicos e financeiros. É neste contexto que se vai
estruturar o Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União
Económica e Monetária (TECG); (2) redução da incerteza ou credibilização dos
bancos da União Europeia/Euro Área, nomeadamente através de testes de stress
dos bancos, aumentos de capital e exigência de maior transparecia na contas dos
bancos; e (3) a criação de firewalls para evitar o contágio das dívidas soberanas,
nomeadamente através de mecanismos de financiamento da Europa para os
Estados-Membros com financias publicas em situação crítica. Estes mecanismos
são os do Banco Central Europeu (OMT5) e da União Europeia (através da criação
interina do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira e depois do ultimo
Tratado sobre o Mecanismo de Estabilidade Financeira (2012), a criação de uma
nova instituição europeia para apoio aos Estados-Membros com dificuldades nas
finanças públicas, o MEEF – Mecanismo Europeu de Estabilidade Financeira6,
que basicamente capta fundos no mercado financeiro o os empresta aos Estados-
Membros).
No médio/longo prazo a estratégia da União Europeia de combate à crise
financeira7 assentou em dois tipos de medidas: (1) criação e frameworks para o
ajustamento do sector público e do sector privado nos Estados-Membros; e (2) o
reforço da União Económica e Monetária, nomeadamente através da União
Bancária (UB).
A fragilidade da União Económica e Monetária decorre do fato de haver uma
política monetária comum com coordenação de políticas descentralizadas fiscais
e estruturais (e não uma política fiscal/estrutural comum, como acontece com o
federalismo fiscal americano). Como esta crise tem mostrado não foi possível
alinhar preferências comuns entre os Estados-Membros.
A União Económico e Monetária trouxe diretamente vantagens imediatas na área
macroeconómica, como na estabilidade dos preços, trouce redução dos custos de
transação e melhoria na liquidez do mercado financeiro para a Europa. Mas
4 No caso português e no decurso desta crise tem sido sobretudo a percepção do risco de
incumprimento da divida soberana que afeta o crédito à economia e a confiança nos bancos.
5 O novo programa Transações Monetárias Sem Reservas (OMT - Outright Monetary
Transactions) revelado a 12 se setembro de 2012 pelo BCE, pretendeu ser um ponto de viragem
na crise de dívida da zona euro. Mas a compra ilimitada de dívida de curto prazo pelo BCE, sujeita
a condicionalidade aplicada aos países que solicitarem suporte aos fundos de resgate, mesmo que
esterilizada (pouco mais que semântica), veio apenas mascarar as diferenças dos custos de
endividamento entre os países dentro da zona euro. E a estratégia parece não ter porta de saída,
para já.
6 É uma espécie de FMI da UE, com a diferença que o FMI se financia nos bancos centrais dos seu
sócios, enquanto o MEEF tem que ir ao mercado para se financiar.
7 Não esquecer a definição de Escanasy que uma crise financeira não se verifica quando o
mercado financeiro perde a fé em si próprio, mas quando o mercado financeira não confia que os
Estados tenham capacidade para o resgatar.
4. também indiretamente proporcionou incentivos para as reformas estruturais (a
chamada micro-convergência) no sentido da competitividade, sempre mais
difícil, porque afecta o emprego. O problema destes incentivos colaterais foi que
dada a descentralização, os custos dos ajustamentos microeconómicos ficam nos
próprios países com desequilíbrios, criando uma sensação nas populações de
fracasso na coesão e na solidariedade europeia, que Bruxelas não tem sabido
resolver e até tem agravado com a proverbial incapacidade de antecipação
política.
Os pressupostos para a construção da União Económica e Monetária tal como
estão definidos atualmente pelo Conselho Europeu são de que os Estados-
Membros vão respeitar os frameworks adoptados e nomeadamente os
estabelecidos no TECG, que a disciplina dos mercados financeiros vai ser um
incentivo à coordenação de politicas na UE, que nova arquitetura financeira
integrada vai facilitar a liquidez e que finalmente os Estados-Membros estão
disponíveis para colocarem recursos orçamentais para politicas concretas, não
só monetárias mas por exemplo ambientais ou de segurança.
Portanto, a União Europeia por um lado descartou o federalismo fiscal na
resposta à crise e optou pela coordenação intergovernamental, o que a prazo tem
consequências no modelo de específico de União que se está a construir. E por
outro lado esta abordagem moderada cria desconfianças no mercado, que pode
ter avaliações diversas da visão centralizada da burocracia europeia, o que
naturalmente levanta desconfiança adicional8
Há medida que a crise nas instituições europeias se acentua com a fragmentação
do mercado interno e aumenta a desconfiança dos povos europeus no projeto da
União Europeia e na cooperação reforçada e na coordenação política da União
Económica e Monetária, os eurocratas e a Comissão Europeia, enquanto guardiã
dos tratados, acentuam a sua defesa da especificidade da sua informal
administração europeia desconcentrada, ou seja, das entidades reguladoras
ditas, na Europa, de independentes do poder político nacional (entenda-se
dependentes do poder político europeu, com o seu método de decisão especial
assente na permanente e informal negociação no âmbito das suas associações
europeias de reguladores), onde muitas vezes se percepciona a usurpação de
poderes e competências legislativas, em clara violação do principio da separação
de poderes.
Esta evidencia esta bem patente na atuação dos bancos centrais na Europa,
durante esta crise.
Resultados decepcionantes
E os resultados estão à vista. Depois da utilização de biliões de euros para
estabilizar a banca em toda a Europa, o que se verifica é um extraordinário
8 O risco não é pago globalmente da mesma maneira nos mercados. Há muitos fatores que
concorrem para o preço e que não tem que ver com a credibilidade dos controlo centralizado,
normativo, que se pretende implementar na Europa. Os mercados valorizam muitas vezes as
oportunidades da imprevisibilidade e da criatividade, numa abordagem livre pós-moderna, que
os burocratas europeus não conseguem entender, ancorados que estão às certezas dos seus
modelos teóricos e tratados. A valorização dos junkbonds no mercado financeiro
desregulamentado da América e a percepção e ganhos futuros em mercados obrigacionistas de
alto risco são a demonstração desta afirmação.
5. aumento do risco e das imparidades devido a recessão provocada pela política de
austeridade.
A recapitalização foi um fracasso e a ideia de socializar os prejuízos e salvar
qualquer banco por causa do risco sistémico dá agora espaço para um controlo
centralizado tendo em vista a União Bancária (UB) que necessariamente só
poderá acentuar mais a desordens próprias dos estados de economia
centralizada – a sovietização da banca europeia, ao eliminar a criatividade e a
inovação acabará por fazer a Europa perder o seu lugar central no sistema
financeiro mundial.
Tendo fracassado totalmente a estratégia de recapitalização, as novas regras
sobra a falência dos bancos só veio criar nova instabilidade e afectar a confiança
no sistema financeiro europeu, onde é claro que faltam pelo menos mais 10 a 20
mil milhões de euros em capitais (mais de mil milhões podem ser necessários no
nosso sistema financeiro ainda este ano).
E no caso português a recessão não tem feito mais que aumentar o desemprego e
o endividamento das famílias e o encerramento das empresas. A vertigem da
falta de crédito para as PME tem acelerado a falência de empresas viáveis
estranguladas pela falta de liquidez.
A perseguição fiscal ao criminalizar empresários, gestores e contribuintes que
não poderem cumprir responsabilidades das empresas afasta o empreendedores
do mercado e não permite a renovação que uma política clara e assumida de
falência deveria permitir. É esse aliás, um dos segredos do sucesso do
empreendorismo americano que a Europa pequena e mesquinha não percebe,
nem mesmo diante do desastre desta grande tragédia social e política9.
Os frameworks da estratégia europeia também não funcionaram. Durão Barroso
bem pode assumir o total fracasso da política que a sua Comissão Europeia
propôs. E só por desonestidade política o não fará. A austeridade tornou-se num
factor de agravamento da crise e a recessão tornou os Orçamentos dos Estados
Membros ainda mais insustentáveis.
Todos os países europeus exportar ao mesmo tempo como única saída para o
crescimento. Mas com os seus parceiros em recessão e com a mesma estratégia
era mais que evidente que todos iriam perder, se não houvesse espaço no
terceiro mundo para acomodar a nova estratégia de rapina europeia. E como não
houve, até porque a Europa é importadora de energia, as coisas só pioraram e a
austeridade em primeiro lugar – com o corte da despesa publica, nomeadamente
das politicas de emprego por via do investimento publico – e depois a ideologia
do défice – com a correção do erro no paper dos professores de Carmen Reinhart
(University of Maryland) and Kenneth Rogoff (Harvard University)10 – acabaram
por não servir para nada, embora tenham causado o empobrecimento de
Portugal e da Grécia e a estagnação durante mais de três anos na Eurozona.
A solução da reestruturação das dívidas
9 Temos defendido a necessidade urgente de uma grande amnistia que permita o começo de um
novo ciclo e o regresso dos milhares de empreendedores que viram as suas empresas encerrar
por culpa do fisco, da Segurança Social e da austeridade.
10 http://www.forbes.com/sites/realspin/2013/04/18/that-reinhart-and-rogoff-committed-a-
spreadsheet-error-completely-misses-the-point/
6. Não deixa de ser curioso que Victor Gaspar tenha vindo admitir o fracasso11 da
estratégia que o próprio economista Kenneth Rogoff tenha avançado que
defende “desde há muito tempo o perdão parcial das dívidas soberanas, assim
como da dívida sénior da banca, de países da periferia da Europa (Grécia,
Portugal, Irlanda; Espanha) para libertar o crescimento”12.
É também dado adquirido para Rogoff e Reinhart que “é difícil o corte da despesa
em paralelo com a subida de impostos em economias de fraco crescimento e com
grande desemprego”, sublinham.
“A austeridade raramente funciona sem reformas estruturais – por exemplo,
mudanças nos impostos, regulação e reformas do mercado de trabalho – que, se
mal desenhadas, podem atingir de forma desproporcionada os mais
desfavorecidos e a classe média”, acrescentam os economistas.
“Concordamos que o crescimento num contexto de dívida pública elevada é um
objectivo esquivo. Sabemos que é difícil o corte da despesa pública em paralelo
com a subida de impostos em economias de fraco crescimento e com grande
desemprego”, dizem ainda os “pais da austeridade”, para sublinharem que
“sempre aconselharam” que se evitasse a “retirada demasiado rápida dos
estímulos orçamentais (à economia), uma posição idêntica à da maioria dos
economistas mais reputados”.
Em resumo, dizem os economistas, “muitos países estão confrontados com
dívidas soberanas muito altas, de acordo com os standards históricos”,
especialmente quando entram em jogo os serviços nacionais de saúde ou
reformas e sustentabilidade dos sistemas da segurança social”.
E falhada que foi a austeridade e a teoria dos défices excessivos (admitiam que
acima de 90% não havia crescimento o que se provou falso) por um lado, e o
resgate dos bancos por outro, dado que os prejuízos se acumulam (só no ultimo
semestre em Portugal os bancos tiveram mais de mil milhões de euros de
prejuízos13), numa UEM só resta o perdão da divida.
É o que se passará agora. Mas o drama é que Bruxelas e Durão Barroso parecem
não ter aprendido nada do fracasso da sua estratégia anterior e continuam a
pensar que uma solução global centralizada é a melhor solução para a
renegociação da divida dos Estados Membros em dificuldade.
E não é. Cada caso é um caso e por isso deve ser feito o perdão à medida das
necessidade para garantir o crescimento e o emprego na Europa. Em nome da
coesão, da equidade e da salvação da União Económica e Monetária. E no caso
português temos que começar a pensar num corte de pelo menos 50% da dívida
pública, reconduzindo aos valores anteriores à crise, um critério que não deve
ser imperativo mas que poderia ser orientador e que no caso português repunha
a dívida pública nos 60% do PIB, o que permitira então as necessárias politicas
de crescimento e emprego.
Espero que tenhamos governo para tal renegociação.
Lisboa, 12 de Agosto de 2013
11 http://www.tvi24.iol.pt/503/economia---economia/gaspar-carta-de-demissao-
tvi24/1465971-6377.html
12 http://www.publico.pt/economia/noticia/kenneth-rogoff-defende-perdao-parcial-das-
dividas-soberanas-da-periferia-europeia-1592596
13http://www.jornaldenegocios.pt/empresas/detalhe/prejuizos_dos_bancos_ascendem_a_mil_mi
lhoes_de_euros_no_semestre.html