Literaturas africanas contemporâneas: o texto lendo o contexto.
Professor Viegas Fernandes da Costa
ppt da palestra proferida aos professores do SESI / Blumenau em 24/07/2014.
8. Características Gerais
A África possui uma rica e variada literatura.
Sua literatura escrita esteve sempre em débito com a literatura oral,
na qual se incluem os contos populares, cujos personagens mais
famosos são a tartaruga, a lebre e a aranha, difundidos por todo o
continente e também no Caribe, Estados Unidos e Brasil, como
resultado do tráfico de escravos africanos (é o caso, por exemplo, do
jabuti que aparece nas Histórias de Tia Nastáscia, escritas por
Monteiro Lobato em 1937).
A primeira literatura escrita aparece no norte da África e apresenta
fortes vínculos com as literaturas latina e árabe.
9. A categorização de José Endoença Martins
ARIEL COLONIZADO
CALIBÃ NACIONALISTA
EXU CRIOULIZAÇÃO
11. José Eduardo Agualusa nasceu em Angola
(1960). Estudou Silvicultura e Agronomia em
Lisboa. Seus livros estão traduzidos em 25
idiomas.
Escreveu várias peças de teatro: "Geração W",
"Aquela Mulher", "Chovem amores na Rua do
Matador" e "A Caixa Preta", estas duas últimas
juntamente com Mia Couto.
Beneficiou de três bolsas de criação literária: a
primeira, concedida pelo Centro Nacional de
Cultura em 1997 para escrever “Nação Crioula”, a
segunda em 2000, concedida pela Fundação
Oriente, que lhe permitiu visitar Goa durante 3
meses e na sequência da qual escreveu “Um
estranho em Goa”, e a terceira em 2001,
concedida pela instituição alemã Deutscher
Akademischer Austauschdienst. Graças a esta
bolsa viveu um ano em Berlim, e foi lá que
escreveu “O Ano em que Zumbi tomou o Rio”. No
início de 2009 a convite da Fundação Holandesa
para a Literatura, passou dois meses em
Amsterdam na Residência para Escritores, onde
acabou de escrever o romance, “Barroco Tropical”.
12. José Eduardo Agualusa. Estação das Chuvas.
Lisboa: Dom Quixote, 1996.
Falas da personagem Lídia ao Narrador.
“... a poesia surgiu entre a juventude como o mais óbvio caminho de
afirmação cultural: ‘tiravam-nos tudo, a dignidade, as terras, os
homens. E no fim o próprio rosto. (...) Tiravam-nos todo o passado e
nós olhávamos em volta e não éramos capazes de compreender o
mundo. Então começamos a escrever poesia. A poesia era o
destino irreparável, naquela época, para um estudante angolano.
(...) Os jovens poetas tinham a consciência do seu papel
messiânico. ‘Escrevíamos para a história’.”
13. Sobre o calibanesco personagem Antoine
Ninganessa:
“estava sempre a dizer que as pessoas deviam deixar de
imitar os brancos e ninguém devia vestir calças ou camisas,
ninguém devia comer em pratos de alumínio, ninguém podia
utilizar papel higiênico. As vezes exaltava-se e gritava que era
preciso fazer tudo ao contrário dos portugueses. E então ele
dava o exemplo e começava a andar para trás, como um
caranguejo, ou sentava-se numa cadeira com as pernas
dobradas ao contrário e virava a cabeça para as costas e
falava não pela boca mas pelo ânus”.
14. José João Craveirinha nasceu em
1922 em Maputo, e faleceu em 2006.
Iniciou a sua carreira como jornalista no
"O Brado Africano", e colaborou com
diversos órgãos de imprensa em
Moçambique. Teve um papel importante
na vida da Associação Africana a partir
dos anos 50. Grande parte da sua
poesia ainda se mantém dispersa na
imprensa, não tendo sido incluída nos
livros que publicou até à data. Outra
parte permanece inédita. Esteve preso
pela Pide, de 1965 a 1969, na célebre
Cela 1. Tem muitas obras publicadas,
sendo considerado um dos grandes
poetas de África e da Língua
Portuguesa.
15. Depoimento autobiográfico, Janeiro de 1977:
"Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me
Sontinho, diminutivo de Sonto. Pela parte da minha mãe, claro. Por parte do meu
pai fiquei José. Aonde? Na Av. do Zichacha entre o Alto Maé e como quem vai
para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres. Nasci a segunda vez
quando me fizeram descobrir que era mulato. A seguir fui nascendo à medida
das circunstancias impostas pelos outros. Quando o meu pai foi de vez, tive
outro pai: o seu irmão. E a partir de cada nascimento eu tinha a felicidade de ver
um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em
termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe:
Moçambique. A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe negra.
Nasci ainda mais uma vez no jornal "O Brado Africano". No mesmo em que
também nasceram Rui de Noronha e Noemia de Sousa. Muito desporto marcou-
me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à
exaustão. Temperado por tudo isso. Talvez por causa do meu pai, mais
agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a
sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por
causa da minha mãe só resignação. Uma luta incessante comigo próprio.
Autodidacta. Minha grande aventura: ser pai. Depois eu casado. Mas casado
quando quis. E como quis. Escrever poemas, o meu refúgio, o meu país
também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse país,
muitas vezes altas horas da noite."
16. José Craveirinha.
Grito Negro
Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.
Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão,
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder sim;
queimar tudo com a força da minha combustão.
17. Eu sou carvão;
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão,
até não ser mais a tua mina, patrão.
Eu sou carvão.
Tenho que arder
Queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu sou o teu carvão, patrão.
18. Mia Couto nasceu em 1955, na
Beira, Moçambique. É biólogo,
jornalista e autor de mais de trinta
livros, entre prosa e poesia. Seu
romanceTerra sonâmbula é
considerado um dos dez melhores
livros africanos do século XX.
Recebeu uma série de prêmios
literários e, em 2013, foi vencedor
do Prêmio Camões, o mais
prestigioso da língua portuguesa. É
membro correspondente da
Academia Brasileira de Letras.
19. Mia Couto. Venenos de Deus, remédios do
Diabo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
Trecho de uma conversa entre o arielista
Bartolomeu Sozinho e Sidónio:
“ – A propósito da língua, sabe uma coisa, Doutor
Sidonho? Eu já estou a desmulatar.
E exibe a língua, olhos cerrados, boca escancarada.
(...) a mucosa está coberta de fungos, formando
uma placa esbranquiçada.
– Quais fungos? – reage Bartolomeu. Eu estou é a
ficar branco de língua, deve ser porque só falo
português (...)” (p. 110-111).
20. Paulina Chiziane nasceu em 1955 e cresceu nos
subúrbios da cidade de Maputo. Nasceu numa família
protestante onde se falavam as
línguas Chope e Ronga. Aprendeu a língua
portuguesa na escola de uma missão católica.
Começou os estudos de Linguística na Universidade
Eduardo Mondlane sem, porém, ter concluído o curso.
Participou da cena política de Moçambique como
membro da Frelimo (Frente de Libertação de
Moçambique), na qual militou durante a juventude. A
escritora declarou, numa entrevista, ter apreendido a
arte da militância na Frelimo. Deixou de se envolver na
política para se dedicar à escrita e publicação das suas
obras. Entre as razões da sua escolha estava a
desilusão com as diretivas políticas do partido Frelimo
pós-independência e em relação à falta de liberdade
econômica da mulher.
Iniciou a sua atividade literária em 1984, com contos
publicados na imprensa moçambicana. Com o seu
primeiro livro, Balada de Amor ao Vento, editado em
1990, tornou-se a primeira mulher moçambicana a
publicar um romance.
21. Paulina Chiziane. Niketche: uma história de
poligamia. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
“Desperto na vã esperança de receber uma mão cheia de carinho,
mas o sol deixou-me e partiu. O meu amor é fugidio como a
sombra do sol. Sou uma mulher derrotada, tenho as asas
quebradas. Derrotada? Não, nunca combati. Depus as armas muito
antes de as empunhar, sempre me entreguei nas mãos da vida. Do
destino. Nunca mexi nenhum dedo para que as coisas corressem
de acordo com os meus desejos. Mas será que algum dia tive
desejos?
A minha vida é um rio morto. No meu rio as águas pararam no
tempo e aguardam que o destino traga a força do vento. No meu
rio, os antepassados não dançam batuque nas noites de lua. Sou
um rio sem alma, não sei se a perdi e nem sei se alguma vez tive
uma. Sou um ser perdido, encerrado na solidão mortal.
22. Meu Deus, ajuda-me a descobrir a alma e a força do meu rio. Para
fazer a água correr, os moinhos girar, a natureza vibrar. Para trazer
ao meu leito a luz de todas as estrelas do firmamento e deixar o arco-
íris mergulhar-me em toda a sua imensidão.
Sou um rio. Os rios contornam todos os obstáculos. Quero libertar a
raiva de todos os anos de silêncio. Quero explodir com o vento e
trazer de volta o fogo para o meu leito, hoje quero existir.”
23. John Maxwell Coetzee nasceu na Cidade do Cabo
em 1940. Estudou na sua cidade natal até
completar dois bacharelatos, um em língua
inglesa e outro em matemática. Os
anos 1962/65 foram passados na Inglaterra,
trabalhando como programador de computadores.
Em 1968 Coetzee completou o
seu doutoramento em linguística das línguas
germânicas na Universidade do Texas, em Austin,
com uma tese sobre os primeiros trabalhos
de Samuel Beckett. Em 2002 emigrou para
a Austrália e ensina na Universidade de Adelaide.
A sua carreira literária no campo da ficção começou
em 1969, mas o seu primeiro livro, Dusklands, só
foi publicado na África do Sul em 1974. Recebeu
vários prêmios e foi o primeiro a receber o Booker
Prize por duas vezes: primeiro por Life & Times of
Michael K em 1983 e por Disgrace, em 1999. Em
2003 recebeu o Nobel de Literatura.
24. J. M. COETZEE. À Espera dos Bárbaros. São Paulo: Best Seller,
1980.
Há uma época do ano, sabe, em que os nômades nos visitam para
comerciar. Pois bem: visite o mercado então e verifique quem
costuma ser roubado no peso das mercadorias, quem costuma ser
enganado e maltratado, quem sofre ameaças. Verifique quem é
obrigado a deixar suas mulheres no campo, por temor a que sejam
insultadas pelos soldados. Veja quem são os bêbados jogados nas
sarjetas, e veja quem os trata a pontapés. Contra esse desprezo
pelos bárbaros, esse desprezo que é capaz o mais humilde
estalajadeiro, o mais pobre camponês, é que me venho debatendo,
como juiz, há vinte anos. Como erradicar os conflitos, particularmente
se se trata de conflitos fundados em nada mais substancial que a
diferença de comportamento à mesa ou a forma particular de suas
pálpebras?
25. Depois dos pés, começo a lhe lavar as pernas. Para tanto, ela tem de
ficar de pé na bacia, apoiando-se em meu ombro. De alto a baixo,
corro as mãos por suas pernas, do tornozelo até os joelhos, atrás e
na frente, apertando-as, acariciando-as, modelando-as. São curtas e
robustas, a barriga da perna é forte
Quanto a mim, ante seus olhos cegos, no íntimo calor do quarto,
posso me despir sem embaraço, desnudando minhas pernas finas,
meu sexo flácido, minha barriga, meu débil peito de velho, a pele
avermelhada de minha garganta.