2. O ESTILO
tradição e ruptura
Waldo Motta começa a publicar em fins dos anos 1980 – sua obra se filia três correntes modernas
tradição erudita linhas de vanguarda poesia marginal
sonetos Modernismo poesia engajada
décimas [primeira geração] gay
odes coloquialismo afro [poesia religiosa e social]
gestas poema minuto termos chulos
Segundo Iumna Simon, Motta dá um tratamento elevado ao q a sociedade considera baixo, menor
homossexualismo partes baixas do corpo termos de calão
Sempre fui considerado um poeta indecente, obsceno. Isto porque eu sempre misturei baixo calão com alto calão.
Palavras difíceis, eruditas com palavras sujas, enlameadas, gosmentas. E não só por esta mistura de registros, também
pela temática. Eu sempre me assumi como homossexual, não é uma palavra da qual eu goste, mas não tenho outra. E
sempre fui muito místico. Logo, nas minhas pesquisas, estudos, aquilo que para muita gente não tem nada a ver eu
descobri que tem muito a ver. Sexualidade com religião. O mais chocante de tudo é que nas minhas pesquisas quanto
mais eu procuro Deus, o sagrado, eu sempre acabo chegando aos 'países baixos', a uma geografia muito interessante do
corpo humano. [Depoimento de Waldo Motta]
3. TRANSPAIXÃO
uma coletânea
Publicado pela primeira vez em 1999, Traspaixão é uma coletânea que aborda quatro poéticas:
social metafísica [existencial] metalinguística erótica
4. A POESIA SOCIAL
poesia e identidade
ILHA DAS CAIEIRAS
Sobre pernas tíbias, lembram caranguejos E dando mais corda vasto cemitério
erguidas na lama, de puãs cambaias, à imaginação, de carneiros sonsos
barracos de tábuas, jururus e sérios vejo uma horda pascendo o acérrimo
zinco e papelão em conciliábulo. de bichos apáticos, capim do abandono.
Como também vejo afogado em dores pudessem, um dia,
um curral palustre – uivos ao olvido saltar no pescoço
repleto de bois Mas bois que, cansados da grei de vampiros
a muuu-gir, coral de ser reles gado, que infesta a noite.
forma: sete quadras, redondilha menor, rimas nos versos ímpares
tema: denuncia as péssimas condições de vida dos moradores do pântano [curral palustre]
a pobreza e a exclusão social despersonalizam os moradores do mangue [zoomorfismo]
[caranguejos, bichos apáticos, carneiros sonsos, bois]
os exploradores são comparados a morcegos [metáfora]
A Ilha das Caieiras é visto como um lugar de abandono e exclusão social
5. A POESIA SOCIAL
poesia e identidade
PRECEITUÁRIO PARA RACISTAS COM RECEITA DE REBUÇADO...
Quem atiça o tição
sabe do risco que corre,
sabe que ao bulir com fogo
é arriscado se queimar, ambiguidades
é arriscado provocar
atiçar o tição: agir desrespeitosa e preconceituosamente
a ebulição de quanto
há tanto vem nos enchendo atiçar o tição: atitude que leva a uma reação intensa [pôr fogo]
o caldeirão da paciência.
engajamento
Portanto, todo cuidado
o locutor aconselha os racistas:
é pouco quando se atiça
o tição, quando se bole a demonstração de intolerância racial pode levar à sublevação
com o fogo, pelo risco
de transformar rebuçado
em ração para a racinha
ordinária dos racistas.
6. A POESIA SOCIAL
poesia e identidade
PRECEITUÁRIO PARA RACISTAS COM RECEITA DE REBUÇADO...
Quem atiça o tição
sabe muito bem do risco
de atear fogo em tudo, forma: quatro estrofes irregulares; redondilha maior
sabe que, ao provocar título: ambiguidade
a ebulição da massa
é arriscado explodir rebuçado: doce + carrasco que oculta a face + coisa boa + coisa má
o angu em todo mundo; influência africana: receita + angu
sabe que, súbito, tudo, título: ambiguidade
tudo pode ficar preto
& vermelho, como queiram, angu: prato da culinária brasileira + confusão, desordem
num belíssimo incêndio, sugestões
um incêndio inusitado.
Pois quem atiça o tição 1) preconceito racial velado;
atira mais lenha aos sonhos 2) preconceito racial gera[rá] desordem, problema, confusão.
que nos abrasam, braseiro
oculto sob o borralho
dessa vida borralheira.
7. OBSESSÃO
Não posso esconder:
– Deus é um troço
que me incomoda,
inseto algures
na noite em claro,
A POESIA METAFÍSICA
inquieta pulga poesia e reflexão
que me passeia estrofes irregulares; predomínio de tetrassílabos
fazendo cócegas. visão singular de Deus
Deus me aflige
a) está sempre por perto;
como doença
que progredisse b) perdoa, mas persegue;
secretamente. c) está associado aos seres baixos;
Deus é um bicho d) dócil e cruel;
de estimação.
Se o escorraço, e) provoca atração e repulsão do locutor.
Deus me perdoa
e volta, à-toa.
Deus me persegue
como um remorso.
8. A POESIA METAFÍSICA
poesia e reflexão
HERÓICO
Se me encontro em perigo
ao diabo e a Deus bendigo.
Na luta de mim comigo
quem me vence é meu amigo.
forma: quadra com versos heptassilábicos
tema: angústia do eu e sua relação com o sagrado
9. A POESIA METAFÍSICA
poesia e reflexão
TURBA
Quereis fugir,
ondas em pânico?
Não há onde ir.
forma: terceto com versos tetrassilábicos; concisão: diálogo com a poesia pau-brasil
tema: o eu, angustiado e sem saída; aproxima-se da poesia marginal.
10. A POESIA METALINGUÍSTICA
poesia-vida
RETROSPECTIVA
Nestes anos de poesia,
sempre a mesma cantiga,
sempre a rasgar o verbo,
as vestes da mentira.
Tudo o que consegui
foi que as pessoas de bem
ficassem de mal comigo. forma: quatro estrofes irregulares; versos livres e brancos
A meia dúzia de amigos tema: indissociação entre vida e poesia [influência anos 1970]
que tinha virou fumaça.
Tadinhos, era demais
a minha conduta oblíqua.
Destes anos de poesia,
o saldo se resume
na pedraria inútil
que me atiram,
nos rapapés e o azedume
que os meus olhos destilam.
11. A POESIA METALINGUÍSTICA
poesia-vida
HABEAS CORPUS
A poesia é meu aval, sinal na testa
– in hoc signo vinces, crachá que trago
na lapela do meu lado mais escroto.
Com ela, pinto e bordo os canecos,
viro e mexo, remexo, fecho horrores
neste reino de alimárias, só de birra,
Os cães salientes rilham os dentes,
fis-su-ra-dís-si-mos da saliva,
mas ainda que me queiram a cabeça,
por enquanto, meus bichinhos,
vão morder os beiços de cegueira
e me engolir em seco, rabinho entre as pernas.
forma: uma estrofe com doze versos; versos livres e brancos
metalinguagem: a poesia se liga ao lado mais escroto + opção gay [seleção vocabular]
metalinguagem: a poesia é o modo encontrado pelo locutor para assumir sua identidade
e provocar a sociedade careta, conservadora
12. A POESIA ERÓTICA
Deus e o Corpo
ENCANTAMENTO
Ó Deus serpentecostal
que habitais os montes gêmeos,
e fizestes do meu cu
o trono do vosso reino,
santo, santo, santo espírito
que, em amor, nos forjais,
felai-me com vossas línguas,
atiçai-me o vosso fogo,
dai-me as graças do gozo
forma: uma estrofe; redondilha maior; versos brancos
o discurso do eu-poético mistura Deus e Sexo [sagrado-profano] e celebra a homossexualidade
apropriação sarcástica do discurso religioso [fusão de campos semânticos distintos]
oração às avessas [enoja o senso comum, celebra prazer gay de existir].
13. A POESIA ERÓTICA
Deus e o Corpo
VEM COMIGO, MEU AMADO
Vem comigo, meu amado,
fervamos o leite cósmico.
Celebremos nosso gozo
no cristântrico festim.
Vem, querido, preparar
o teu mosto em meu lagar
e fazer o vinho santo.
Vem destilar a mirra
do monte dorsal e o mel
que mana da rocha viva.
forma: uma estrofe [décima]; redondilha maior; versos brancos
pastiche do discurso bíblico [Cantares, de Salomão]: versão gay
ambiguidade: o locutor cria nódulos semânticos
denotativamente eles se referem ao discurso bíblico, conotativamente remetem à prática gay.
14. A POESIA ERÓTICA
Deus e o Corpo
PELO RABO
PELO RABO
FISGUEI
LEVIATÃ
forma: haicai [diálogo com a poesia marginal]; maiúsculas [sugere destaque, grito]
ambiguidade
o locutor fisgou, pescou o monstro marinho [arpoou a cauda do monstro]
por intermédio da prática homoafetiva, o locutor pacificou a sociedade [fez o Contrato Social]
15. A POESIA ERÓTICA
Deus e o Corpo
NO CU
NO CU
DE EXU
A LUZ
forma: haicai [diálogo com a poesia marginal]; maiúsculas [sugere destaque, grito]
entrecruzamento do discurso poético com o religioso [de tradição iorubá]
Exu: orixá que propicia a comunicação, que abre [ilumina] os caminhos
fusão do sagrado e do profano; elevação de elementos baixos [cu], profanos
16. A POESIA ERÓTICA
Deus e o Corpo
FESTA DA PENHA
Em meio aos romeiros, que nem santas,
lá vai o Bicharéu rumo ao Convento.
Tanto fervor e sacrifício compensa,
no caminho a pegação é óóó-ti-ma!
forma: quadra [caráter tradicional, popular]
ambiguidades
pregação-pegação, santos-santas, Bicharéu [monte de bichas, bichas condenadas pela Igreja]
fusão do sagrado com o profano – crítica à Igreja Católica
18. BIBLIOGRAFIA
uma análise de “Transpaixão”, de Waldo Motta
Blog
overmundo.
A
poesia
desbundada
eró0ca
de
Waldo
Mo5a.
Disponível
em:
h5p://www.overmundo.com.br/overblog/a-‐desbundada-‐poesia-‐ero0co-‐mis0ca-‐de-‐waldo-‐
mo5a.
Acesso
em
12
abr.
2013.
MOTTA,
Waldo.
Transpaixão.
Vitória:
EDUFES,
2008.
SIMON,
Iumna
Maria.
Sobre
a
poesia
de
Valdo
Mo8a/Dossiê
30
anos
sem
Guimarães
Rosa.
Revista
USP,
São
Paulo,
n.
36,
,
p.
172-‐77,
dez/jan/fev
1997-‐98.