O documento descreve a história da companhia de teatro Pé de Vento, que há mais de 30 anos adapta obras literárias para o palco. A companhia se concentra em usar textos e autores portugueses e trabalha em estreita colaboração com escritores como Manuel António Pina, Álvaro Magalhães e Teresa Rita Lopes. O encenador João Luiz destaca a importância de preservar a palavra e a língua portuguesa no teatro.
1. miúdos
Pé de Vento
Dos livros para o palco
Retiram um texto de um livro que não foi escrito para teatro e dramatizam-no
ou então pedem a um autor que crie uma narrativa sobre um tema. Depois,
levam-nos ao palco. E funciona. Os escritores mais cúmplices com a companhia
Pé de Vento são Manuel António Pina, Álvaro Magalhães e Teresa Rita Lopes. “Têm
uma escrita poética”, diz João Luiz, o encenador. Porque a palavra é que conta.
Texto Rita Pimenta
2. O
escritor Manuel ideia um bocado anárquica”. E O Senhor do Seu Nariz (Edições
António Pina esse espírito mantém-se. ASA), “aqui houve cortes,
lembra-se de ter “Se continuamos aqui há 30 mas não senti falta de nada”.
participado na anos, eles ficam satisfeitos e Também na adaptação deste
escolha do nome voltam, é porque alguma coisa último (que vai estar em cena
da companhia se passou. Começamos a ter no mês de Junho na Biblioteca
de teatro Pé de Vento, há mais adultos, que assistiram aos Municipal do Porto) o escritor
de 30 anos. “Ao volante de uma nossos espectáculos quando não sentiu desconforto. “Nem
velha Diane branca”, como tinham dez anos, a trazer agora sempre gosto do resultado. Às
escreveu no livro Memória dos as suas crianças ao teatro”, diz, vezes, incomoda-me escutar as
Dezoito Anos. “A meu lado vão satisfeito, o encenador. minhas imperfeições. Mas hoje
a Maria João [Reynaud] e o João não me senti incomodado”,
Luiz. Falamos os três de sonhos O teatro conta histórias disse depois de assistir à
e de coisas irreais. O resto é Conseguiram manter o núcleo representação do seu texto
confuso. Acho que é de noite. fundador e também a filosofia no 2.º Encontro de Literatura Manuel
Acho que seguimos, lentamente
e sem destino, pela Estrada
que desde logo norteou o
projecto: “Fazer espectáculos a
Infanto-Juvenil da Sociedade
Portuguesa de Autores.
António Pina
Marginal do Porto para Entre- partir de um escritor. Eu sou dos O também autor de O Limpa- foi o primeiro
os-Rios. (...) Lembro-me de que, que sempre gostaram da língua Palavras e Outros Poemas (que
de súbito, no interior da Diane, portuguesa e sempre acharam integrou a Lista de Honra do escritor a ser
nós pronunciámos finalmente o
nome. E logo o reconhecemos,
que o teatro conta histórias.”
O primeiro autor a ser
Prémio de Hans Christian
Andersen, em 2002) diz à
encenado pela
e logo o sonho a si mesmo nele
se reconheceu. E, nomeado,
encenado foi justamente Manuel
António Pina, agora Prémio
Pública: “Eu queria era ser companhia
poeta, mas a Ilse Losa disse-me
começou assim a ter vida própria Camões. “Escritor-poeta a que se que eu tinha uma voz apropriada Pé de Vento, há
e distinta.” Estava encontrado o
Pé de Vento.
foram juntando outros com uma
escrita irmã. Sempre em língua
para jovens. O Pina também e...”
Acabou por sê-lo. Poeta. mais de 30 anos
Desde então, este grupo do Por- portuguesa. Trabalhando em João Luiz fala dos dois
to encena peças que podem ser Portugal, acho que devemos usar escritores: “Eles são diferentes.
vistas por públicos de todas as originais portugueses”, defende Com o Manuel António Pina, as
idades. “Um pouco como quando João Luiz. coisas nascem feitas. No dia em
se chegava ao terreiro da aldeia: Um dos escritores que se lhe que escrever, está feito e não
tanto viam as crianças como os juntaram foi Álvaro Magalhães, se consegue mexer. O Álvaro é
adultos. O avô levava o neto pela que disse divertido no mesmo diferente, faz uma escrita para
mão”, lembrou o encenador da encontro: “O encenador do Pé depois se tirar um quadro.”
companhia, João Luiz, à Pública, de Vento obriga-nos a trabalhar. Tudo numa parceria de
em Abril, no encontro de literatura Às vezes, zango-me, porque ele respeito, cumplicidade
infanto-juvenil Palavras Para Que corta isto e aquilo, parece que e amizade. “Há
Vos Quero, na Biblioteca Almeida quer cortar tudo. Mas depois uma grande
Garrett, no Porto. verifico que ele tinha razão...” confiança. Mesmo
No entanto, há um grupo fiel e Exercício do contraditório: se discordamos,
regular de espectadores que vem “Nessa transposição, posso cortar sabem que, no final, não saiu
sobretudo das escolas. Miúdos, palavras... e digo que vou cortar e o essencial do texto nem as
portanto. No início do projecto, o tenho mesmo de cortar. Porque, ideias, nem a linguagem.”
encenador dizia: “Naquela altura às tantas, não é visível. ‘Teatro só Para assinalar os 30 anos de
[1978], havia uma lacuna no teatro visto, contado ninguém acredita.’ trabalho de Manuel António
em Portugal: não havia quem fi- Mas há um grande respeito entre Pina com o grupo, o autor
zesse espectáculos para a infância a escrita e o teatro.” escreveu História do
e juventude. Aí surgiu-me a ideia Álvaro Magalhães dá dois Sábio Fechado na Sua
de fundar um grupo que baseas- exemplos distintos sobre o que Biblioteca. A estreia
se a sua acção nesse campo.” E sente perante a encenação das foi em 2008 e, no ano
assim fez. suas obras: o livro O Rapaz do seguinte, a Assírio & Alvim
A designação “quer dizer Espelho — O Melhor Conto do publicou o texto com ilustrações Ilustrações de João Fazenda
exactamente o que diz. Chegar Jovem Hans Christian Andersen de Ilda David’. para o livro O Senhor do Seu
a qualquer lado e fazer um ‘pé (Texto Editores) “tem excesso A escritora Teresa Rita Lopes Nariz e Outras Histórias, texto
de vento’ é desestabilizar a de texto narrativo, se calhar faz igualmente parte da história de Álvaro Magalhães (Edições
formalidade, transmitir uma devíamos ter cortado mais”, e da companhia, “também tem c ASA, 2010)
3. miúdos
DR
Patrícia Queirós interpreta
O Senhor do Seu Nariz.
Encenação de João Luiz,
cenografia de João Calvário,
figurinos de Susanne Rösler e
música de Blandino
uma escrita poética, veja-se o ou de mudança de ares... valor”. E aposta no teatro
texto Andando, Andando ou a Fizemos Jorge de Sena, O “como um dos veículos para
Asa e a Casa”, diz o encenador. E Físico Prodigioso. Mas mesmo isso”. Considera que “a oratória
recorda divertido como de início assim é para ‘pegar’ nos 10- está cada vez mais distante e
lhe enviava os manuscritos: 12 anos e dizer que funciona. árida” e lamenta nem sequer
“Assim com uma letrinha... vinha Para perceberem que a escrita se conseguir escutar um bom
num envelope. Era uma cartinha fantástica de Jorge de Sena não sermão. “É uma infelicidade.
que eu recebia. Aqui vai o texto.” é um monstro… Aquela poesia Antigamente, se uma pessoa
Já encenaram livros de no meio, aquele balanço, tudo tinha saudades de ouvir alguém
Gonçalo M. Tavares, O Sr. aquilo é um esquema popular, pregar, podia ir a uma igreja.
Juarroz e O Sr. Valéry (Caminho). matemático e medieval. Tem Mesmo que não se acreditasse,
“Foram verdadeiros buracos muito de canção de amigo. Mas é ouvia-se uma boa prédica.”
“Cada vez é mais financeiros”, lamenta. “São preciso ir lá buscá-lo”. Tem pena de que se tenha
bons espectáculos, adorei perdido a prática da leitura em
importante fazê-los, mas o Gonçalo é Não carregar as palavras voz alta. “Se fizermos a história
reencontrar a muito pouco conhecido pelos
professores, e tivemos pouca
O que une o trabalho dos
autores que escolhem é a língua,
das comunidades de leitura,
vemos que antigamente se lia
palavra e o seu procura do nosso público fiel.” “aquela plataforma da língua uns bocados de livros. Agora, as
Susanne Rösler, figurinista, portuguesa que atravessa a pessoas lêem em casa e depois
valor. O teatro explica que as peças do Pé escrita de muitos escritores, discutem. Estamos a distanciar-
pode ajudar de Vento são normalmente
representadas no Teatro da
do Padre António Vieira a
Fernando Pessoa”.
nos da audição da palavra. Nós
vemos hoje o que é a pobreza da
nisso”, diz Vilarinha: “Durante a semana,
actuamos para grupos,
Para João Luiz, “a palavra é
que conta, não precisamos de
comunicação e do vocabulário. É
fundamental voltar a encontrar
João Luiz sobretudo escolas. Divulgamos a carregar. Todas as palavras isso. Mas o teatro vai lá chegar.” E
os espectáculos logo no início suportam uma graça e uma através da literatura.
do ano lectivo. Mas também desgraça e portanto cada “O pretexto e o texto, há que
fazemos divulgação para o um recebe-a da maneira que buscá-los na literatura. Textos
público em geral.” Algumas lhe der jeito”. Desta forma, escorreitos, só no osso, sem
encenações prestam-se a acredita que “é possível um gordura. Com um esqueleto, de
itinerâncias, “mas agora diálogo diferente. Desde que forma a que se possa pôr alguma
é muito mais difícil, nós queiramos ser emissores coisinha à volta”, conclui.
as câmaras pedem e digamos: ‘Agora ponha- Para o ano, está prometido
menos”. lhe a carga que quiser, a sua novo texto de Manuel António
Embora actuem história, o seu afecto’”. Pina. Em Outubro, no Teatro
sobretudo para um Para o encenador, “hoje é da Vilarinha, haverá uma
público infanto- cada vez mais importante, “ensalada” de textos de Gil
juvenil, por vezes devido ao isolamento e ao Vicente. Para todos e em voz
saem desse desmembramento de alguns alta. a
universo “por sectores da sociedade,
necessidade artística reencontrar a palavra e o seu rpimenta@publico.pt