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SEGUNDO CADERNO
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QUARTA-FEIRA, 30 DE NOVEMBRO DE 2011
Tatiana Salem Levy assustadora e, pela primeira vez,
o quarto onde eu estava se
Especial para O GLOBO • LISBOA transformou no quarto de
l Fui convidada pela escritora Pessoa.
Inês Pedrosa a dormir no quarto Tremendo, o coração
de Fernando Pessoa. Como acelerado, fechei a gaveta: Será
diretora da casa que abriga parte que ele me viu fuxicando as suas
do espólio do poeta e é hoje um
centro cultural dedicado à sua A PÁGINA MÓVEL coisas? Será que faltei ao respeito
com o poeta? Que ideia, invadir a
Na cama
memória, ela inventou a sua privacidade! E se agora ele
brincadeira: escritores passam quiser se vingar, puxar meu pé à
uma noite na cama do Pessoa e noite?
depois elaboram um texto sobre Saltei para a cama, onde o
a experiência. Antes de mim, colchão novo e macio me
passaram por lá nomes como garantia certa distância do
João Gilberto Noll e valter hugo passado, e me pus a escrever o
mãe. texto prometido a Inês. Escrever
No dia marcado, fui ter à casa não me salva de nada, nunca me
com Pessoa
para encontrar Inês e Richard salvou, mas ao menos alivia.
Zenith, o mais importante Depois de cinco páginas, o medo
tradutor de Pessoa para o inglês arrefeceu.
e grande especialista da sua obra. Era hora de dormir. Mas o
Numa tasca, em meio a cabide à minha frente, com o
pataniscas de bacalhau, vinho terno de Pessoa, não me
tinto e doces d’ovos, permitiria descansar em paz.
conversamos, entre outros Desde criança tenho pânico de
assuntos, sobre o vasto material roupas penduradas pelo quarto,
inédito do poeta que, aos poucos, como se, no meio da noite, elas
virá a público. pudessem ganhar um corpo, ou
Depois do jantar, os dois me Autora de ‘A chave de casa’ e do recente ‘Dois rios’, ser vestidas por espectros.
deixaram na Rua Coelho da Levantei-me para afastá-lo
Rocha, 16 e, não sem ironia, me Tatiana Salem Levy relata a noite que passou no quarto quando ouvi passos subindo a
desejaram boa noite. escada. “É ele”, pensei. Está
Em 2009, eu havia passado
alguns meses em Lisboa, cidade
do poeta cujos 76 anos de morte são lembrados hoje vindo me buscar.
Precipitei-me à porta, enquanto
onde nasci. Embora fosse todo Fotos de Tatiana Salem Levy o som dos sapatos apenas
santo dia tomar meu pequeno- aumentava. De repente, um
almoço na Tentadora, uma homem surgiu, vindo do além. E,
pastelaria tradicional em Campo vindo do meu âmago, um berro
de Ourique, a 300 metros da Casa se concretizou: “Aaahh!!! Eu não
Fernando Pessoa, sabe-se lá por fiz nada, juro que não fiz nada!!”
que eu nunca havia estado lá. A Mas não era ele, era Vítor, o
noite do dia 9 de novembro era, segurança, que caiu na
portanto, a primeira vez que eu gargalhada diante do meu
percorria as salas do antigo desespero, levando-me a
prédio onde ele morou, hoje acompanhá-lo. Fazia tempo eu
completamente reconstruído, não ria tanto.
transformado em casa. Do Vítor, gentil, me perguntou se
original, apenas seu quarto e a eu gostaria que as luzes ficassem
ante-sala. acesas, me explicou que eu
Após percorrer o olhar pelos poderia sair e voltar à hora que
quadros espalhados nas paredes, quisesse, estava livre, a casa era
dentre os quais um enorme e minha. Chamei-o para dentro do
lindíssimo Pessoa pintado por quarto e apontei na direção do
Almada Negreiros, encontrei à cabide: “Podemos tirá-lo daqui?”
minha espera três jovens Vítor alcançou o terno de Pessoa
dispostos a recolher meu e se virou para mim, numa
depoimento para um ternura e uma cumplicidade
documentário sobre as noites comoventes: “Compreendo”, ele
organizadas por Inês. disse, e não falou mais nada,
Quando eles se preparavam levou o cabide e me deixou.
para ir embora, eu, que até então Já eram três horas, decidi
estava tranquila, convidei-os: dormir. Naquele estado
“Não querem ficar aqui, tomar um inebriado, antes de adormecer
Porto comigo?” O rapaz mais alto por completo, ainda me
e forte foi peremptório: “Eu não. perguntei se haveria mal em
Tenho medo de fantasmas.” E se levar comigo um dos inúmeros
foram. cartões de visita de Ricardo
Finalmente, éramos só nós Reis. Gostaria de ter um na
dois: eu e o quarto. Servi-me do parede do meu escritório. E,
vinho rejeitado e, aos poucos, fui assim, em meio a pensamentos
conquistando o terreno. Na mesa indecorosos, murmurando os
de cabeceira onde repousava um nomes de Reis, Campos, Caeiro,
cinzeiro com guimbas de cigarro, Soares, rezando para que não
depositei as tralhas sem as quais me assombrassem, caí no sono.
não durmo. Vesti meu pijama e E sonhei foi com Maria
tirei da bolsa a edição da Nova Bethânia. Nem meu inconsciente
Aguilar do meu poeta preferido. escaparia do clichê? Afinal, eu
Abri o livro aleatoriamente e li: estava lá quando ela recebeu a
“Minha alma procura-me/Mas eu medalha da Ordem do
ando a monte,/Oxalá que ela/ Desassossego, estive muitas
Nunca me encontre.” Oxalá que vezes na plateia enquanto ela
eu também não, pensei de recitava Campos ou Caeiro.
imediato, embora, no fundinho, Mas seria mesmo meu
não quisesse nada além disso. inconsciente? Em se tratando de
Imaginem sair de lá bradando: Bethânia, sei não... Ela apenas
“Ele apareceu!” aparecia, não fazia nada,
Mas a verdade é que era tudo majestosa e protetora, a mãe
tão artificial — o quarto feito afro-judia que eu nunca tive.
peça de museu, eu ali deitada Presente do poeta?
lendo Pessoa à espera da sua Acordei com a campainha, as
alma penada sem acreditar que faxineiras chegando. Troquei de
ela pudesse vir, o vinho do Porto, roupa, recolhi minhas coisas, a
os versos que decoravam as experiência chegava ao fim. Uma
paredes — que eu não conseguia vez na porta, recuei: talvez não
sentir medo, apenas tédio. Seria houvesse mal em levar só um
mais fácil encontrar Pessoa num cartãozinho... Abri a gaveta, a
beco de Lisboa do que ali. mesma gaveta do lado esquerdo
Então me surgiu uma ideia que eu abrira horas antes, e um
ligeiramente perversa: eu estava vazio reluzente me saltou aos
sozinha no quarto, podia olhos: onde estavam os cartões
vasculhá-lo à vontade. Comecei de visita? E o mapa astral do
pela mesa de cabeceira, passei Álvaro de Campos? Alguém os
pelo baú até chegar à cômoda teria levado? Pessoa? Vítor?
onde dizem que ele escreveu, de Bethânia? Ou será que eu ainda
pé, “O Guardador de Rebanhos”. estava sonhando?
Puxei a corrente que mantém Sem fechar a gaveta, nem pensar
afastados os visitantes, abri a em nada, com receio de que a
primeira gaveta da esquerda e dei experiência fosse uma espiral
de cara com o mapa astral de interminável, saí esbaforida, fui
Álvaro de Campos e inúmeros tomar meu batido de ananás e
cartões de visita de Ricardo Reis: comer minha torrada aparada na
“médico — clínico geral”. Num Tentadora, onde, verdadeiramente
segundo, tudo o que antes era em casa, os fantasmas não me
artificial ganhou uma realidade apavoram mais.