1. Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho
Autor: Fernando Hernández
Editora Artmed, 1998, Porto Alegre
_______________
Introdução
Como assinala o autor nas primeiras linhas da sua introdução, este livro foi escrito
à partir de sua estada no Brasil em 1997 (convidado pelo programa de pós-graduação da
Universidade de Minas Gerais) visando atender “nossas” carência de informações de seu
tema. Assim, podemos dizer que Fernando Hernández nos oferece um grande resumo de
suas preocupações, seus fundamentos teórico-filosóficos, e de sua experiência, de quase
uma década, como assessor de currículo, em escolas de Barcelona, onde se
desenvolviam propostas pedagógicas de organização do currículo por projetos de
trabalho.
Desta forma, este livro é, ao mesmo tempo, introdutório, pela sua abrangência,
reflexivo, pela ponderação teórica e, ainda, exemplar, pela descrição de um conjunto
significativos de projetos de trabalho vivenciados por alunos da educação infantil ao
ensino médio, que ao final do livro são detalhadamente relatados.
É importante também assinalar que Fernando Hernández, a partir de seu contato
com a realidade educacional brasileira, sublinha, logo na introdução da obra, um alerta
singular: “tudo o que vai ser tratado aqui é um luxo e uma sofisticação se não for
produzida uma mudança prévia na Escola. Refiro-me à mudança no reconhecimento
social da importância do trabalho docente, às condições materiais das Escolas e ao
salário dos professores.” Assim reconhece o quanto será difícil para nós pensarmos em
mudanças na organização do currículo, do tempo das aulas, nos meios de aprendizagem,
diante de carências materiais tão sérias quanto as que rondam a estrutura das Escolas no
Brasil e o rendimento dos professores.
As mudanças na educação propostas por Hernández pressupõem a restituição do
significado da Escola como “lugar de aprender” e a valorização do professor como
“educador e pesquisador do ensino”.
Convite à transgressão
Transgredir em nosso “Aurélio” significa passar além, atravessar, mas também,
desobedecer e infringir regras.
Neste livro, Fernando Hernández nos convida a 3 transgressões: a primeira é mais
obvia, a segunda é surpreendente para a maior parte dos educadores brasileiros, e a
terceira é esperada. Vamos enunciá-las:
Primeiro, Hernändez descreve: “este livro pretende transgredir a visão de
educação escolar baseada nos conteúdos apresentados como objetos estáveis e
universais.” De modo oposto, em sua proposta de organização dos conteúdos por
projetos de trabalho, o conhecimento se apresenta como “realidades socialmente
construídas” que são revividas no desenvolvimento dos projetos. Como poderíamos
esperar de uma proposta de vanguarda. Assim, Hernández declara sua crítica e intenção
de superação do que conhecemos como “ensino tradicional”, onde se supõe que os
conhecimentos são transmitidos pelo professor e memorizados pelos alunos.
Em segundo lugar, e o que pode causar alguma surpresa, é sua intenção de
transgressão da “visão de aprendizagem vinculada ao desenvolvimento conhecida como
construtivismo”, não por sua inadequação, como alerta o autor, mas pela simplificação e
2. redução dos processos que se realizam na relação ensino-aprendizagem a uma
seqüência de habilidades cerebrais que possibilitam a aprendizagem e que até certo
ponto, independem da ação da escola. Para Hernández, as noções conhecidas no âmbito
do construtivismo não dão conta dos valores promovidos ou excluídos pela Escola e pelo
professor, não tratam da relação de poder que a Escola veicula, nem do papel da
afetividade na aprendizagem, e menos ainda do processo de formação da identidade do
educando , do qual a realidade escolar participa. Muito mais preocupado com estes
aspectos, Hernández irá valorizá-los na justificativa de sua proposta educacional.
Em terceiro lugar, o autor nos propõe a transgressão da “divisão dos conteúdos do
currículo escolar em disciplinas”. Seu trabalho pretende superar as intenções didáticas
das experiências multidisciplinares onde um mesmo tema é tratado por diferentes
professores, para a defesa de uma filosofia transdisciplinar, que implicará numa mudança
da organização da gestão do tempo e do espaço na Escola.
Em conjunto, as suas transgressões alertam para a necessidade da Escola
atualizar-se de acordo com as necessidades do século XXI, desamarrando-se das raízes
do século XVII nas quais foi formulada.
A Globalização como conceito chave
Noção central de sua reflexão teórico-filosófica, para Fernando Hernández a
globalização pode ser pensada em três eixos :
Como forma de sabedoria: neste sentido, globalizar significa aprender a
estabelecer relações, ou seja, exercitar a capacidade humana de realizar
processos de explorar a busca de conexões e interpretações do real.
Como noção epistemológica: aqui a globalização corresponde a
problematização da divisão do conhecimento em diferentes disciplinas, a partir
do reconhecimento da multidimensionalidade dos fenômenos e a intenção de
resgatar a compreensão da realidade em sua totalidade.
Como concepção de currículo: pressupõe a orientação do ensino de modo a
relacionar o “conteúdo” escolar com situações da vida cotidiana. Dos alunos e
professores, tendo por objetivo estabelecer conexões que desenvolvam uma
visão de mundo capaz de operar os fenômenos em sua complexidade e não só
em sua singularidade.
A reunião destes três eixos de aplicação da noção de globalização se apresenta
como fundamentos filosóficos da proposta de Fernando Hernández de
reformulação da organização da escola.
Porque mudar?
As mudanças implicadas na aplicação da proposta de organização do
currículo por projetos de trabalho visam atender a superação de tensões e conflitos
na relação Escola e Sociedade, ou ensino e educando, evidenciadas e
denunciadas em todo o planeta.
Com efeito, Hernández assinala uma série de mudanças, sobretudo aquelas
que atingem a velocidade e a quantidade de informações que um indivíduo é
exposto ou tem acesso hoje, diante das transformações tecnológicas assistidas ,
bem como do tratamento destas informações por poucas agências de notícias que
são responsáveis pela sua divulgação planetária, ao lado de novos padrões de
valores patrocinados pela mídia publicitária e cultural, que oferecem um contexto
de (sobre)vivência muito diferenciado daquele no qual a escola foi inventada no
século XVII.
3. Assim encaminha-nos à conclusão de que a função social da Escola, quer
dizer, as condições sociais que definiram a sua fundação e organização estão
completamente alteradas.: não cabe mais à escola a exclusividade na função de
divulgação do conhecimento científico.
Outra contradição apontada por Fernando Hernández é a constatação de
que diante da velocidade acelerada das transformações tecno-científicas, os
conteúdos administrados nas diferentes disciplinas escolares não acompanham as
qualidades exigidas nos perfis profissionais do mercado de trabalho. Se uma das
funções da escola seria a de preparar profissionais para a sociedade é preciso
desenvolver a atualização dos objetivos educacionais ao conjunto dos atributos
demandados pelas profissões modernas, não apenas no nível das informações,
saberes e aptidões adquiridas , mas sobretudo, nas habilidades atitudinais que as
condições de trabalho modernas reclamam. (Aqui, para conferir lastro aos seus
questionamentos, Hernández se utiliza de informes da Comissão da UNESCO
sobre educação.)
O autor levanta ainda questionamentos internos ao cotidiano da escola nos
quais evidenciam-se outras tensões, por exemplo, se nos perguntarmos “com que
função determinadas disciplinas entram no currículo e outras não? Com que
freqüência os professores conquistam a participação ativa dos alunos? O que eles
aprendem deles mesmos e do mundo mais próximo que os rodeia? Em que
atividades exercitam a compreensão de conexões, ou seja, quando exercitam suas
capacidades de relacionar diferentes contextos? “
Consciente das diferentes propostas educacionais já formuladas e operadas
que tiveram por preocupação, por um lado a necessidade de ensinar à relacionar
e, por outro, a pesquisa a partir de problemas relacionados à vida real e próxima
dos alunos, Hernandez situa a sua proposta de organização do currículo por
projetos de trabalho ou como “redenomina” ao longo do livro: “currículo integrado
de caráter transdiciplinar”: ela pretende organizar o conhecimento escolar a partir
de grandes temas-problema que permitem não só explorar campos do saber
tradicionalmente fora da escola, mas também ensinar aos alunos uma série de
estratégias de busca, ordenação, análise, interpretação e representação da
informação que lhes permitirá explorar outros temas e questões de forma mais ou
menos autônoma”.
Contrário a apreensão do conhecimento de uma maneira fragmentária , a
organização do conhecimento num currículo integrado teria por finalidade o ensino
e o exercício da interpretação por meio de aprendizagem através de pesquisas.
Para traçar um paralelo entre o ensino disciplinar e o transdiciplinar,
Hernández apresenta-nos o seguinte quadro:
Centrado nas matérias Problemas transdisciplinares
Conceitos disciplinares Temas ou problemas
Objetivos e metas curriculares Perguntas e pesquisas
Conhecimento estandardizado Conhecimento construído
Unidades centradas nas disciplinas Unidades centradas em temas
Lições Projetos
Estudo individual Estudo em grupo de Projetos
Livros-texto Fontes diversas
Centrado na Escola Centrado no mundo real
O conhecimento tem sentido O conhecimento em função da
por si mesmo pesquisa
Avaliação mediante provas Avaliação mediante portfólios
4. Professor especialista Professor facilitador.
A transdisciplinariedade vinculada à proposta de currículo por projetos de trabalho
implica sobretudo, numa mudança nos limites de tempo, na gestão dos espaços e na
disponibilidade de continuar aprendendo por parte dos docentes.
É claro que o autor não defende que os projetos de trabalho solucionam todas as
tensões apontadas no sistema de ensino, mas Fernando Hernández registra que os
“projetos” podem desenvolver capacitações que respondem às necessidades do mundo
do trabalho e da vida nas sociedades modernas. Assim constata que “os projetos”
podem:
a) favorecer a construção da subjetividade negando assim que a função da escola
seja apenas ensinar conteúdos;
b) aproximar os conteúdos à vida prática dos alunos;
c) aprender a dialogar com vários fatores de um fenômeno.
Estas condições de aprendizado desenvolvem capacidades que , estas sim, são
demandas atuais das relações na sociedade e no trabalho, tais como:
1) autonomia: iniciativa de pesquisa;
2) criatividade: utilização original de recursos para a compreensão e construção;
3) capacidade analítica: diagnóstico de situações
4) capacidade de síntese: experiência em lidar com a integração de diferentes
disciplinas;
5) poder de decisão: pela possibilidade de exercício de escolhas.
Tendo apresentado suas justificativas e possibilidades, resta ao autor nos
esclarecer no que consiste realmente um projeto de trabalho.
O que é um Projeto de trabalho?
Hernández inicia o mapeamento desta resposta apontando o que “os projetos” têm
em comum com outras estratégias de ensino, como o trabalho com os centros de
interesse ou os estudos de meio, seriam os seguintes pontos :
vão além dos limites escolares;
implicam a realização de atividades práticas;
os temas selecionados são apropriados aos interesses e ao estado de
desenvolvimento dos alunos;
são realizadas experiências de primeira mão como visitas , presença de convidados
na sala de aula;
deve ser feito algum tipo de pesquisa;
necessita-se trabalhar com estratégias de busca , ordenação e estudo de diferentes
fontes de informação;
implicam atividades individuais, grupais e de classe em relação às diferentes
habilidades e conceitos que são aprendidos.
Diante destas identidades, muitos educadores pensam estar trabalhando com
“projetos”, ou que este seria um outro nome para o que estejam aplicando em suas
5. aulas, no entanto há um diferencial que corresponde exatamente a uma determinada
seqüência de passos que conferem a qualidade de um trabalho por projetos, qual seja:
1. parte-se de um tema ou de um problema negociado com a turma;
2. inicia-se um processo de pesquisa;
3. buscam-se e selecionam-se fontes de informação;
4. estabelecem-se critérios de ordenação e de interpretação das fontes;
5. recolhem-se novas dúvidas e perguntas;
6. estabelecem-se relações com outros problemas;
7. representa-se o processo de elaboração do conhecimento que foi conseguido;
8. recapitula-se (avalia-se) o que aprendeu;
9. conecta-se com um novo tema ou problema.
Hernández acredita que participando de um projeto de trabalho, os estudantes
vivenciam um processo de pesquisa que tem sentido para eles, porque podem participar
ativamente do processo de produção do conhecimento que vai além do currículo básico e
que nunca a reduz.
Outro ponto significativo apontado por Hernández é a mudança no papel do
professor que se desvencilha da função de centralizador do conhecimento e das
diretrizes do aprendizado para a função de facilitador, que responde pela problematização
do conhecimento. Indicando pistas de pesquisa e não respostas sistemáticas.
Enriquecendo o debate proposto neste livro, o autor nos apresenta o relato de
diferentes projetos de trabalho, aplicados às primeiras turmas da educação infantil até as
séries finais do ensino médio, cuja leitura nos esclarecem ainda mais a prática desta
proposta pedagógica tão singular e atraente, mas ainda assustadora para muitos
educadores.