1. “Regresso às fragas” de Miguel Torga, Diário VI
1
5
10
Regresso às fragas de onde me roubaram.
Ah! minha serra, minha dura infância!
Como os rijos carvalhos me acenaram,
Mal eu surgi, cansado, na distância!
Cantava cada fonte à sua porta:
O poeta voltou!
Atrás ia ficando a terra morta
Dos versos que o desterro esfarelou.
Depois o céu abriu-se num sorriso,
E eu deitei-me no colo dos penedos
A contar aventuras e segredos
Aos deuses do meu velho paraíso.
Sentimentos dominantes do sujeito poético:
Cansado (v.4)
Alegre, feliz, satisfeito, eufórico.
Relação entre poeta e natureza é de intimidade e de afectividade.
Donde a importância do campo lexical que se refere à terra
A quantidade e variedade de vocábulos e expressões que descrevem a terra tornam esse o
campo lexical mais importante do texto, quase saturando o discurso poético. Assim:
As referências directas são "fragas", "minha serra", "terra morta", «colo dos penedos";
Há outras referências:metonímica – "minha dura infância"; metafórica –
«meu velho paraíso";
As referências "rijos carvalhos" e "cada fonte" indicam, por sua vez, realidades
indissociáveis da terra.
Donde o simbolismo metafórico dos elementos naturais, como:
O carvalho, instrumento de comunicação entre a terra (os homens) e o céu (Deus);
A fonte, símbolo de maternidade, nas culturas tradicionais é a origem da vida,
do renascimento, do poder e da felicidade.
Assim sendo, o regresso à terra-mãe equivale à recuperação de forças,fazendo-
o feliz, satisfeito como se estivesse no paraíso. A sua terra é o seu céu (terra como expressão de
céu).
Tal como Anteu que recebia energia e forças da sua mãe terra, assim é o poeta que ao
contactar com a sua terra restabelece a sua força anímica.
Modos pelos quais o Eu alude à sua infância:
As fragas "de onde me roubaram" (v.1) são metonímias da infância do Eu, como o
segundo verso confirma "Ah! minha serra, minha dura infância";
O aceno dos carvalhos metaforiza o reviver da infância que este regresso proporciona
ao Eu;
O sorriso aberto do céu (v. 9) e o "colo doa penedos" (v. 10), por sua vez, metaforizam
a dimensão maternal da terra – dimensão que se harmoniza com a temática da infância;
"dura infância" (v. 2), no entanto, remete para um aspecto menos agradável da
rememoração.
Traços que definem esse Eu como poeta
Este Eu que regressa é caracterizado como poeta:
2. “Regresso às fragas” de Miguel Torga, Diário VI
2
Primeiro, por intermédio da personificação de "cada fonte", que canta "O poeta voltou"
(v. 6);
Depois, também na segunda estrofe (v. 8-9), pela referência aos "versos" esfarelados
sobre “a terra morta”, assim definida como aquela que, não sendo a terra natal, é, pois, o
"desterro";
Finalmente, a própria actividade a que o Eu se entrega quando regressa ao seu "paraíso"
(v. 12), o "contar aventuras e segredos" (v. 11), é uma atividade que envolve palavras,
comunicação verbal, o que vem amplificar a imagem de poeta que nele a serra
reconhece.
Reflexos no plano morfossintáctico:
Adjectivação utilizada (rijos, cansado, morta, velho) serve para reforçar a ideia
de austeridade da vida;
Tipo de frase exclamativo nos versos 2-6
a demonstrar o gosto na chegada do sujeito poético à sua terra;
Tipo de frase declarativo no resto do poema a demonstrar com mais calma o que foi faz
er.
Reflexos no plano semântico:
Personificação dos carvalhos e das fontes para dar conta do bem estar do sujeito poético
na sua terra (v. 3 e 5);
Repetição do pronome possessivo «minha» a reforçar o apego do sujeito poético
à sua terra de origem e o facto
de não se importar de dizer que aquele espaço é seupor natureza.
Reflexos no plano fónico:
Assonância do som nasal nos primeiros cinco versos condizente com um primeiro mom
ento ainda cansa;
Aliteração fonema /t/ (v. 5-8)
a cadenciar a frase ao gozo e entusiasmo que a visão da terra proporciona;
Assonância de sons semiabertos /i/ e /e/ em harmonia com o som fechado /o/
a traduzir uma relaxação feliz no acto de invocar coisas da terra.
Integração no universo poético de Miguel Torga
A poesia da Miguel Torga está ligada ao canto da terra dura e bravia (que, aliás, se associa,
na biografia do autor, a Trás-os-Montes) e dos seus valores de Integridade,
sobriedade e grandeza.
Assim, este poema remete para veios temáticos importantes em Miguel Torga, como:
O canto das coisas elementares;
A religiosidade própria do sentimento telúrico;
A apologia da terra firma e das raízes que nela se cravam;
O canto do mundo agrário, da experiência da pobreza e do esforço.