A entrevista discute a importância da atenção primária em saúde, os resultados de uma pesquisa sobre a implementação da Estratégia Saúde da Família em quatro cidades brasileiras e os desafios para a consolidação de um modelo integral de atenção primária no Brasil.
1. Atenção Primária em Saúde promove
impactos positivos sobre a situação de saúde
Uma questão fundamental para que a unidade saúde da família se torne um serviço de procura regular, um serviço que
as pessoas usam para atenção à saúde, seja como prevenção, cuidado, acompanhamento, tratamento e reabilitação, é que
ela não atenda somente os grupos prioritários, mas a toda a população. A fala da pesquisadora do Núcleo de Estudos
Político-Sociais em Saúde e coordenadora do estudo que analisou a implementação da ESF em quatro grandes centros
urbanos, Ligia Giovanella, retrata algumas necessidades do programa de atenção primária em saúde (APS) adotado pelo
Brasil. Em entrevista ao Informe ENSP, a pesquisadora comentou a nova abordagem da APS no Brasil e na América
Latina após a década de 80, os resultados da pesquisa realizada nas capitais e faz um alerta: quase não temos
profissionais formados para a atenção primária no Brasil. A inserção e qualificação dos recursos humanos é fundamental
para o programa. Leia a entrevista.
Informe ENSP: A Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde de 1978, que culminou com a
Declaração de Alma Ata, reforçou a ideia da saúde como um direito humano fundamental e enfatizou a
importância dos cuidados primários em saúde. Fale um pouco da importância da atenção primária em saúde
(APS).
Ligia Giovanella: Comparações internacionais mostram que uma robusta atenção primária em saúde, com serviços de
primeiro contato integrados à rede assistencial, com oferta integral de ações e estabelecimento de vínculo longitudinal
promove impactos positivos sobre a situação de saúde e produz ganhos de eficiência. No entanto, na América Latina
(AL) após a Alma Ata, a APS teve uma abordagem mais seletiva da atenção, com oferta restrita de ações focalizada em
grupos populacionais marginalizados de baixa renda, incrementando as desigualdades em saúde. Na AL, uma
abordagem seletiva de atenção primária tornou-se hegemônica no contexto das estratégias macroeconômicas de ajustes
estruturais dos anos 1980. Porém, essa tendência vem mudando de alguns anos para cá.
Informe ENSP: Que mudanças são essas? Quais fatores têm influenciado?
Ligia Giovanella: Essa situação vem se modificando pelo próprio contexto político atual da América Latina com os
governos de centro-esquerda. Diversos países vêm desenvolvendo políticas que visam fortalecer a atenção primária em
saúde como estratégia para melhor organizar o sistema de serviços de saúde e promover a equidade. Além disso, temos
as iniciativas de renovação da APS da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e da Organização Mundial de
Saúde (OMS), que lançou o informe Atenção Primária mais necessária do que nunca, em 2008. O relatório tem por
tema a renovação da atenção primária em saúde como coordenadora de uma resposta integral em todos os níveis de
atenção não sendo mais um programa pobre para pobres e integrando um conjunto de reformas para a garantia de
cobertura universal.
Informe ENSP: Quais diferenças você elege como principais se compararmos a nova concepção de APS com o
modelo adotado pós anos 1980?
Ligia Giovanella: As primeiras tentativas de implementação da APS traziam um modelo que visava ao acesso a um
pacote básico de intervenções em saúde e a medicamentos essenciais para as populações rurais pobres, enquanto, hoje
em dia, a preocupação é com a transformação e regulamentação dos sistemas de saúde existentes, com o objetivo de
acesso universal e da proteção social da saúde. Além disso, antes havia uma concentração em saúde materno infantil, e
atualmente o modelo visa à saúde de todos os membros de uma comunidade. Antes se considerava a APS como uma
atenção barata, de poucos recursos. Hoje se reconhece a atenção primária como a alternativa mais eficiente que requer
importantes investimentos.
Informe ENSP: O Brasil vem acompanhando todas essas mudanças?
Ligia Giovanella: No Brasil, desde meados da década de 1990, uma nova abordagem em atenção primária em saúde
vem sendo fortemente induzida pelo governo federal: o Programa Saúde da Família (PSF). Inicialmente implantado
como programa seletivo e focalizado, o PSF foi assumido na Política Nacional de Atenção Básica em Saúde de 2006
como estratégia para reorientação do modelo assistencial na atenção básica, passando a incorporar os atributos de uma
APS integral. Indução financeira federal sustentada impulsionou a gradual difusão da Estratégia Saúde da Família
(ESF). Estima-se uma cobertura atual (2009) de cerca de 50% da população nacional com 30 mil equipes de saúde da
família implantadas no território nacional. Portanto, avaliar o nosso modelo é uma questão muito importante para
fortalecermos o Sistema Único de Saúde. Foi nesse contexto que nós do Nupes/Daps/ENSP (Maria Helena Mendonça,
2. Sarah Escorel e eu), com financiamento do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde, coordenamos um
grupo de pesquisa que avaliou a implementação da Estratégia Saúde da Família em quatro grandes capitais durante o
ano de 2008. Analisamos os municípios de Aracaju, Florianópolis, Belo Horizonte e Vitória e tínhamos como eixo
principal de avaliação as estratégias da gestão municipal de saúde para a integração da rede assistencial e a
intersetorialidade. A integração ao sistema é condição para se contrapor a uma concepção seletiva da atenção primária
em saúde como programa paralelo, com cesta restrita de serviços de baixa qualidade, dirigido aos pobres. Por sua vez, a
atuação intersetorial é condição para que a atenção primária não se restrinja ao primeiro nível, mas seja base e
referência para toda a atenção, contemplando aspectos biológicos, psicológicos e, principalmente, sociais, além de
incidir sobre problemas coletivos nos diversos níveis de determinação dos processos saúde-enfermidade, promovendo a
saúde.
Informe ENSP: Como a pesquisa foi desenvolvida?
Ligia Giovanella: As experiências e a avaliação dos usuários foram coletadas por meio de inquérito de base domiciliar
em amostra representativa de famílias cadastradas. Foram realizadas entrevistas com 3.311 famílias (Aracaju 800, Belo
Horizonte 900, Florianópolis 789, Vitória 822). Estudos transversais com amostras de profissionais das equipes de
Saúde da Família (ESF) permitiram examinar as experiências e perspectivas de médicos (224), enfermeiros (261),
auxiliares de enfermagem (264) e agentes comunitários de saúde (587). O total de 1.336 profissionais respondeu aos
questionários. O trabalho de campo, realizado entre maio e setembro de 2008, incluiu ainda entrevistas com gestores e
gerentes da SMS e outras secretarias. Organizamos nossos relatórios em quatro estudos de caso que abordaram a
caracterização sociodemográfica e sanitária dos municípios; as características de vulnerabilidade das famílias adscritas;
o contexto político institucional de implementação e consolidação da Saúde da Família (SF); a gestão do trabalho em
Saúde da Família; a organização do processo de trabalho e práticas assistenciais das ESFs; o Conhecimento e uso da SF;
a posição da Estratégia Saúde da Família na rede assistencial; a integração da ESF à rede de serviços de saúde; a
coordenação dos cuidados; a intersetorialidade; o acompanhamento das famílias e dos grupos prioritários; a avaliação
das famílias; e os fatores facilitadores e limitantes da consolidação da ESF em grandes centros urbanos. Ao final desses
resultados, discutimos quais seriam os fatores facilitadores da consolidação da estratégia nesses centros urbanos.
Informe ENSP: Comente os principais resultados.
Ligia Giovanella: No contexto político institucional, a continuidade de mandatos de gestores municipais engajados no
desenvolvimento de políticas públicas de corte social, a prioridade conferida pelo Executivo municipal à saúde e o
legado institucional na gestão do SUS sobressaem entre os fatores que facilitam ou condicionam a consolidação da
Estratégia Saúde da Família. Nas cidades estudadas, a substituição de modelo assistencial implicou na implantação de
diversas ESFs nos centros de saúde preexistentes (3 a 7 ESF por centro de saúde) promovendo a reorganização interna
dessas unidades, com a manutenção de profissionais médicos das especialidades básicas, outros serviços, pessoal
administrativo e gerência profissional, como apoio às equipes. Essa estratégia facilita a constituição da Unidade de
Saúde da Família (USF) como porta de entrada e serviço de procura regular.
Informe ENSP: E com relação ao eixo da integração, que foi uma das bases do estudo?
Ligia Giovanella: Para analisar o eixo da integração, pensamos na posição da ESF na rede assistencial. Analisamos se
existe um serviço de procura regular, se esses serviços são a porta de entrada preferencial do sistema, os mecanismos de
integração da rede assistencial, se ela garante acesso aos diversos níveis de atenção, conforme as necessidades, e outro
fator que é a disponibilidade de informações para a continuidade da atenção. A expansão de cobertura da Estratégia
Saúde da Família obriga a reorganização da rede assistencial para garantir o acesso integral. Observa-se intensificação
dos processos regulatórios pelas SMS, embora ainda seja necessário adequado monitoramento com o estabelecimento
de metas de desempenho e definição de indicadores para o acompanhamento das filas de espera e garantias de acesso.
Nas cidades estudadas, as Unidades de Saúde da Família estão se tornando a porta preferencial do sistema e se
responsabilizando pelos agendamentos dos encaminhamentos para atenção especializada. Contudo, os profissionais
pesquisados estimam elevados tempos de espera. Tempo médio de espera para consultas especializadas de 3 meses a
mais foi estimado por 82% dos médicos entrevistados em Florianópolis, 61% em Belo Horizonte, 45% em Aracaju e
34% em Vitória, por exemplo. A implantação do sistema informatizado de marcação e regulação de consultas e exames
especializados (SISREG) facilita a integração do sistema ao possibilitar a marcação on-line de procedimentos no
próprio centro de saúde, permite dimensionar o tamanho das filas de espera, viabiliza avaliar as especialidades com
maior demanda, monitorar as faltas às consultas marcadas e a definição de prioridades clínicas, constituindo importante
instrumento de planejamento em diversos níveis de gestão. E três das quatro cidades possuíam o sistema. A
implementação de uma estratégia de atenção primária integral implica na resposta aos problemas de saúde menos
frequentes, com a constituição da porta de entrada preferencial em serviços de atenção básica e a coordenação dos
cuidados nos demais níveis de atenção. Nesse sentido, os esforços dos gestores e os resultados encontrados na
integração da Saúde da Família à rede assistencial apontam para a sua potencialidade como estratégia de atenção
primária integral. Essa perspectiva, contudo, deve ser monitorada, e outras investigações precisam ser desenvolvidas,
considerando as diversas dimensões da integração e a perspectiva dos usuários.
3. Informe ENSP: E sobre a intersetorialidade?
Ligia Giovanella: Bom, no campo da intersetorialidade, se a atenção primária deve ter como prioridade a promoção da
saúde, isso significa que ela tem de intervir nos determinantes sociais, com iniciativas de articulação com diversos
setores e em vários níveis. Ações intersetoriais envolvendo tanto os diversos setores governamentais como também as
organizações da sociedade civil contribuem para maximizar o uso dos recursos e, consequentemente, potencializam o
alcance da eficácia e efetividade das intervenções públicas. As experiências de atuação intersetorial foram mais
diversificadas abrangendo desde ações específicas, como grupos de trabalho para a acompanhamento das
condicionalidades do Bolsa Família, até a constituição de câmaras territoriais integrando todos os órgãos de políticas
públicas atuantes em uma região da cidade à intervenção integrada do governo municipal. Observa-se também que a
ação comunitária das ESF precisa ser fortalecida. Nesse aspecto vimos, de fato, que as equipes de PSF incorporaram
novas práticas comunitárias e assistenciais. O agente comunitário de saúde seria o agente facilitador para a identificação
de problemas coletivos e para a mobilização comunitária. Dois terços dos ACS, em três das cidades, realizam
rotineiramente levantamento de necessidade da população em saneamento e meio ambiente por exemplo. Reuniões da
comunidade são realizadas por 25% a 58% dos profissionais de nível superior. As visitas domiciliares são uma
realidade. Desenvolvidas pelos Agentes de Saúde e pelos outros profissionais da equipe foram incorporadas como
atividade rotineira. Atividades de grupo com pacientes das unidades têm sido uma ação regular também.
Informe ENSP: O que você tem a falar sobre o atendimento pelo programa nas unidades de saúde?
Ligia Giovanella: Uma questão fundamental para que a unidade saúde da família se torne um serviço de procura
regular, o serviço que as pessoas usam para atenção à saúde, seja como prevenção, cuidado, acompanhamento,
tratamento e reabilitação, é que ela não atenda somente os grupos prioritários, mas a toda a população. Que dê respostas
não só à demanda programada e atenda também à demanda espontânea, os casos agudos oportunamente. A questão de
articular essas duas demandas é fundamental. O informe da OMS mostra que se consegue fazer uma atenção integral e
trabalhar melhor com os grupos prioritários no momento em que você, no atendimento à própria demanda espontânea,
vai incorporando um conjunto de ações preventivas de promoção de saúde e identificando os grupos de risco,
agendando e estruturando melhor a demanda. As estratégias para atendimento à demanda espontânea, articuladas às
ações programáticas da demanda organizada, por meio do acolhimento e do atendimento diário facilitam a constituição
da USF como serviço de procura regular e porta de entrada preferencial do sistema de saúde, deslocando a demanda dos
serviços de emergência hospitalar e de atenção especializada.
Informe ENSP: Como está a situação atual da pesquisa?
Ligia Giovanella: Nós apresentamos os dados e discutimos os resultados com o MS. Após isso, completamos os
relatórios, enviamos para as cidades e, agora, estamos elaborando artigos com análises mais específicas dos resultados.
Além disso, estamos fazendo apresentações nas próprias cidades. No segundo semestre do ano passado, fizemos em
Aracaju e Florianópolis. Agora, no dia 2 de fevereiro, faremos a apresentação em BH e estamos agendando Vitória. O
momento é de fazer uma análise mais apurada dos resultados para publicação de artigos. Além disso, vamos elaborar
sumários executivos com a síntese de alguns resultados selecionados para distribuir entre os gestores. O capítulo final
de cada relatório foi denominado Fatores Facilitadores e Limitantes da Implementação da Estratégia Saúde da Família
para a Integração à Rede Assistencial, a Coordenação dos Cuidados e a Atuação Intersetorial. A análise articulada desses
resultados nos permitiu verificar os fatores que vão condicionar a consolidação da Saúde da Família em grandes centros
urbanos e permitir recomendar algumas coisas em termos de políticas públicas.
Informe ENSP: Encontraram alguma resistência para a realização da pesquisa?
Ligia Giovanella: Uma pesquisa com trabalho de campo desta envergadura sempre apresenta alguma dificuldade.
Tivemos dificuldades em localizar famílias em áreas periféricas e de violência urbana, e alguma resistência por parte
dos médicos das equipes. Tivemos alguma dificuldade de retorno dos questionários.
Informe ENSP: Qual avaliação final você faz?
Ligia Giovanella: As cidades analisadas possuem uma cobertura de mais de 60% do Saúde da Família. Portanto, trata-
se de casos distintos da maioria dos grandes centros urbanos, que possuem em geral uma baixa cobertura do SF. Os
resultados são diversificados. É possível dizer que integração e intersetorialidade são desafios que permanecem na
consolidação da Estratégia saúde da família. São observados avanços quando comparados com resultados de outra
pesquisa que fizemos em 2002; contudo, ainda há muito caminho a percorrer para garantia de atenção integral. Também
quando você alcança elevadas coberturas assistenciais em grandes centros, você precisa ter novas estratégias. O serviço
passa a atender pessoas e cobrir áreas de classe média, e isso requer rever dinâmicas de visitas e atividades do agente de
saúde. Por outro lado, ainda temos uma disputa de modelos assistenciais na atenção básica, como ocorre no Rio de
Janeiro por exemplo. Na cidade observa-se uma implementação muito lenta da Saúde da Família por parte do
município, enquanto o estado instala UPAs. Sem dúvida reconhecemos a insuficiência de oferta de serviços de atenção
4. básica no Rio. É necessário garantir pronto-atendimento nas 24 horas, mas não deveria haver competição entre os
modelos. É necessário construir complementaridades. Os serviços devem se articular. Em geral, nos países com atenção
primaria bem desenvolvida, os serviços de pronto atendimento iniciam o seu funcionamento ao final da tarde, após o
fechamento dos centros de saúde. Estabelecem-se também metas de desempenho de tempos de espera para consulta
com o generalista de 24 ou 48 horas no máximo. Também detectamos problemas em relação aos recursos humanos.
Outra questão fundamental é a inserção e qualificação dos recursos humanos. Os gestores das cidades estudadas têm
buscado equacionar com a realização de concurso público e efetivação dos profissionais das ESF, o que tem reduzido a
rotatividade. Por outro lado, quase não temos profissionais formados para a atenção primária no Brasil. A formação
ocorre no mesmo tempo da implementação. Em algumas cidades, houve o esforço de qualificar os profissionais, mas a
grande questão do momento, uma unanimidade entre os gestores entrevistados, é a qualificação desses profissionais. Foi
uma super experiência de pesquisa. Agora, estamos fazendo análises específicas para um bom uso do grande número de
dados coletados e alcançar uma boa difusão. Foi uma pesquisa cara; portanto, temos de trabalhar bem e difundir os
resultados de várias maneiras. Os estudos de caso identificaram fatores limitantes mas também práticas exitosas que,
quem sabe, possam inspirar outros gestores e subsidiar estratégias para a melhoria da atenção à saúde.
Entrevista do boletim Informe Ensp, edição 25/01/2010
Publicada originalmente em:
http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/19999