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Fundamentos Epistemológicos da Medicina
5.3 Especificidade Científica
Luiz Salvador de Miranda Sá Jr.
Não há conhecimento ou procedimento científico sem especificidade.
Como exigência de cientificidade a especificidades se apresenta com duas
dimensões e devem ser ambas consideradas neste estudo. As duas dimensões
conceituais da especificidade são: uma ontológica e outra, gnosiológica.
Do ponto de vista ontológico: o objeto deve estar bem especificado, bem definido
e ser objetivo o objetivável.
O ponto de vista gnosiológico da especificidade significa que esse objeto deve
poder ser estudado objetivamente e isto ser comunicável (cognoscibilidade
objetiva e comunicabilidade).
Especificidade é como se denomina a qualidade daquilo que é específico.
Específico é o que se diz de algo que é próprio de uma espécie.
Espécie é a entidade singular e mais elementar de um conjunto; se refere à
natureza dos indivíduos de um conjunto homogêneo.
Espécimem é um indivíduo de uma espécie.
A especificidade factual inclui objetividade como característica essencial da
ciência e indicador de cientificidade, se refere às propriedades específicas do
objeto da ciência (o que lhe assegura caráter específico, porque a especificidade
1
de um conhecimento ou atividade científica é assegurada unicamente por seu
objeto).
Quando empregada como indicador de cientificidade, a avaliação da
especificidade inclui em sua conceituação dois aspectos essenciais inter-
complementares e inseparáveis:
a) qualquer atividade científica deve ter seu objeto bem delimitado e claramente
definido (aspecto ontológico) e
b) tal objeto da atividade científica deve poder ser estudado objetivamente
(aspecto gnosiológico).
A expressão objetividade contém dois sentidos distintos mas inter-complementares:
O primeiro, referente ao indivíduo que exerce a prática científica, de quem se deve
esperar isenção e o máximo de neutralidade ou imparcialidade em seu trabalho, o
que deve caracterizar o observador ou experimentador científico.
Em segundo lugar, trata-se da objetividade como atributo da coisa observada, do
objeto que independe do observador, a objetividade como qualidade daquilo que é
objetivo, do que existe objetivamente, e cuja existência independe do desejo ou de
qualquer outra manifestação do observador. Neste segundo sentido, a
objetividade consiste em autonomia da coisa objetiva em relação à consciência de
quem a contempla ou estuda. Em filosofia da ciência, sobretudo em teoria do
conhecimento, denomina-se objeto ao termo do conhecimento, à coisa
intencionalmente conhecida e capaz de ser matéria de um juízo. Do ponto de vista
da teoria do objeto, parte integrante da ontologia, interessam à filosofia da ciência
duas categorias de objetos: os objetos reais, os objetos ideais. Os objetos
ideais (as idéias) são inespaciais e intemporais, pois não existem no espaço ou
no tempo; correspondem aos objetos das ciências formais, como lógica, a
matemática; enquanto os objetos reais (os objetos e fenômenos da realidade,
existem independentes do sujeito) são dotados de realidade e, portanto, dotados
2
de espacialidade e temporalidade, correspondendo aos objetos das ciências
factuais.
A despeito de muitas objeções possíveis, pode-se dizer que algo é objetivo, quando
é determinado por si mesmo, tem existência independente do observador. O
conceito de realidade objetiva significa tudo que tem existência real fora da
mente de quem a contempla ou estuda; o ser concreto; o ente objetivo; tudo o que
existe no espaço e no tempo, independentemente da imaginação ou de outra
manifestação subjetiva.
Existe convergência e identidade entre os conceitos de realidade objetiva, realidade
concreta e realidade material. Em filosofia do conhecimento, a noção de real se opõe à
de ideal (o que só tem existência como dado subjetivo de alguém).
As noções de idéia, abstração e subjetividade apontam para a direção oposta da
realidade objetiva: a realidade subjetiva, que não existe a não ser como
narrativa, senão para quem a experimenta.
Embora as expressões realismo, materialismo e objetivismo (não se inventou
concretismo, a não ser na arte) tenham a mesma origem etimológica, significam
doutrinas filosóficas bastante diferentes e se enquadram em estruturas
ideológicas freqüentemente conflitantes. Disso, pode-se inferir que aqui as
expressões realismo (e materialismo) e idealismo têm significados inteiramente
diferentes daqueles com que se usam estas palavras ma linguagem comum. O
sentido moral com que se empregam, especialmente os conceitos de idealismo
e materialismo não existe na filosofia do conhecimento.
Do ponto de vista ontológico, avalia-se a cientificidade do objeto de uma ciência
factual (ou o conhecimento da realidade tido como científico) a partir de dois
dados essenciais:
a) sua objetividade e
b) sua cognoscibilidade.
3
Para isto, não pode existir conhecimento científico, investigação científica ou
procedimento científico sem objeto, com objeto mal definido ou indefinido; como
não pode haver ciência cujo objeto não possa ser estudado objetivamente. O
objeto de uma ciência ou de um procedimento científico deve ser objetivo ou
possível de ser objetivado (como acontece com os fenômenos e processos
psíquicos que se objetivam na conduta e, assim, pode ser estudados
indiretamente).
No primeiro sentido mencionado, a objetividade talvez seja o elemento mais
essencial da isenção do cientista em seu trabalho, daquilo que se denomina
perspectiva crítica da ciência. Perspectiva que, nunca será demais repetir, é
precisamente no objeto que se corporifica e se materializa a atividade científica.
Ademais, é a partir da cognoscibilidade objetiva deste objeto, da possibilidade
deste objeto ser estudado objetivamente, que se estrutura a metodologia científica
(mas não deve ser confundida como neutralidade política e moral da ciência, que é sua
perversão). Uma técnica pode ser e, até, costuma ser definida por seu método;
mas uma ciência se define sempre por seu objeto.
No segundo sentido da objetividade, a objetividade do objeto do conhecimento se
expressa por sua existência objetiva, por sua existência independente do
observador. Por isto, é da maior pertinência avaliar-se aqui algumas das questões
ontológicas acerca do objeto da Medicina e da psiquiatria, especificamente do
objeto das ciências médicas sobre o qual se apóia a Medicina e a psiquiatria.
Quando se considera a exigência ontológica e gnosiológica da especificidade, que
é expressa pela possibilidade de estudo objetivo daquele segmento da realidade,
é preciso que não se confunda realidade e concreção, nem abstração e irrealidade
porque cada um destes conceitos tem significação precisa e se refere a uma coisa
bem definida.
Nunca é ocioso repetir, também, que a realidade material se compõe de coisas
(objetos materiais) e construtos (objetos ideais tais como fenômenos, juízos,
4
fatos e acontecimentos). E não pode haver ciência ou conhecimento científico cujo
objeto seja incognoscível ou que não possa ser estudado e conhecido
objetivamente.
A Medicina tem como objeto as relações recíprocas que se estabelecem entre o
ser humano (uma coisa) e a enfermidade (um construto), o meio físico (outra
coisa) e o meio social (outro construto); levando em conta as inter-relações
mútuas que se estabelecem, de um lado, entre o indivíduo e o meio físico e, de
outro lado, entre a pessoa e o meio social. Este caráter hibrido de seu objeto
talvez seja o fundamento da maior parte dos problema ontológicos com os quais
se depara que pratica ou tem a Medicina como objeto de estudo. Esta concepção
totalizante da Medicina mostra a impossibilidade dela ser avaliada desde qualquer
ponto de vista reducionista; seja biológico-individual, psicológico-individual,
ambiental-social ou ambiental-natural. Porque cada um destes ângulos de
avaliação é uma vertente inseparável das demais na totalidade da Medicina. E
não parece ter sentido denominar a isto Medicina Integral porque,
se não for integral, não é nem deveria ser considerada como
Medicina. O que se denomina medicina integral ou medicina geral e o estudo ou
prática da medicina como uma atividade total, como uma unidade que transcende
a soma de suas especialidades.
Tanto na Psicologia Social, quanto na Psiquiatria Social nota-se grande dificuldade
para delimitar conceitualmente seus objetos, distinguindo-se das ciências
limítrofes, notadamente da Psicologia Geral, da Sociologia, da Antropologia, e este
talvez seja o principal obstáculo para sua afirmação como disciplinas científicas.
Antes de entrar na consideração de questões ontológicas mais gerais de todas as
ciências ou da mais específicas que interessam à Medicina e aos médicos, vale a
pena levantar, ainda que superficialmente, o sujeito do conhecimento e os
objetivos da Medicina, por causa da relação existente entre estes e seu objeto.
Principalmente, porque as divergências acerca destas relações constituem, senão
5
os mais importantes, ao menos os primeiros com os quais se depara quem se
inicia no estudo da teoria do conhecimento médico.
O Sujeito do Conhecimento
Todo conhecimento presume a existência de um sujeito e de um objeto daquele
processo cognitivo (quem conhece e o quê é conhecido). A noção se objeto do
conhecimento (aquilo que é conhecido) só faz sentido porque se completa na noção
que lhe é simétrica e complementar de sujeito do conhecimento (aquele que elabora e
processa o conhecimento). Isto sucede, seja conhecimento comum, seja no
conhecimento científico ou no conhecimento filosófico.
O sujeito do conhecimento, a pessoa que conhece (que em Filosofia se denomina
ser cognoscente) é a pessoa que conhece, a consciência que elabora o saber, a
subjetividade que se completa na objetividade. A participação ativa de quem está
conhecendo no processo cognitivo, seus interesses, desejos, tendências e
preferências devem ser consideradas influências na participação que, por objetiva
que tente ser, tendem a comprometer a pretendida objetividade.
Assim como a objetividade tem sentido de não-tendenciosidade e liberdade frente
ao processo de conhecer, a subjetividade sempre inclui uma conotação de
compromisso, de envolvimento, de participação do agente. A possibilidade de
conhecer do sujeito depende da possibilidade de se fazer conhecer por ele (que
caracteriza o objeto). Isto é, a possibilidade de conhecer do sujeito cognoscente,
em princípio, está subordinada às características do objeto do conhecimento.
Alguns objetos (os objetos ideais) estão sujeitos unicamente à razão. Outros,
como sucede aos objetos muito pequenos, as dimensões microscópicas do objeto,
deixam-no fora do alcance das possibilidades do sujeito, a menos, que utilize um
recurso óptico para ampliar suas possibilidades senso-perceptivas ou algum
equipamento de detecção para estender qualitativamente sua capacidade
perceptiva. A qualidade e o êxito do processo de conhecer dependem, pois, de
fatores objetivos (ligados ao objeto e independentes do sujeito) e subjetivos
6
(ligados ao sujeito e mais ou menos independentes do objeto do processo
cognitivo.
O conhecimento depende da integridade dos recursos fisiológicos, da experiência
existencial, do presente, passado e aspirações de futuro; preconceitos, interesses
e desejos do sujeito. Este envolvimento é característico do conhecimento vulgar
(que é, por definição muito vulnerável a ele) e, por isto, a metodologia científica,
exige procedimentos e recursos destinados a afastar a tendenciosidade. Tais
procedimentos constituem o núcleo da metodologia científica de investigação do
mundo. Sem perder de vista que os fatores relacionados ao objeto não são mais
ou menos importantes que os subjetivos. No plano subjetivo, os conhecimentos
que estão sendo elaborados não sofrem influência apenas dos fatores cognitivos,
mas dos afetivos e, ambos, tanto conscientes quanto inconscientes.
A influência da dimensão inconsciente, por exemplo, pode ser tida como
verdadeira e presente, ainda que não possa ser operacionalizada o empiricamente
demonstrada com os recursos metodológicos e técnicos de que se dispõe hoje.
Entretanto, a impossibilidade de operacionalizar empiricamente o conceito de
inconsciente não parece ter nada a ver com a realidade ou irrealidade da
inconsciência, mas com uma limitação do processo que usamos para estudá-la. O
simples fato de não se poder comprovar a realidade do conteúdo de um conceito
não significa que ele seja irreal. Só que sua realidade não foi comprovada. A
subjetividade, que pode ser tida como o principal atributo do sujeito, é o conceito
complementar ao de objetividade e diz respeito às manifestações da vida interior
de quem experimenta (ou vivencia) uma experiência existencial consciente ou
inconsciente. Objetividade e subjetividade são extremo apenas aparentemente
oposto de uma mesma totalidade.
Incontáveis condições podem exercer papel diretor e tendencioso na subjetividade
de quem conduz um procedimento de investigação científica; ainda que se
possam mencionar como principais os seguintes: estado das estruturas e funções
7
neuro-psicológicas; interesses materiais (prêmios, salários, contratos, aumentar a
venda de um produto, garantir contratos de investigação); orgulho e vaidade
(prestígio, influência, renome ou apenas a precisão de publicar alguma coisa por
imposição da carreira acadêmica) e, por fim, a paixão (tanto paixão pelo objeto de
estudo ou o interesse afetivo em um resultado predeterminado, quanto paixão por
si mesmo e sua produção).
No entanto, é preciso destacar que a influência da subjetividade do investigador
não se revela apenas como fator negativo para a investigação e a intervenção
científicas. Também se reconhecem entre os fatores subjetivos do processo de
conhecer algumas condições bastante positivas, indispensáveis mesmo.
Tenacidade, persistência, laboriosidade, inteligência, conhecimento prévio e
interesse, entre outras, podem ser condições subjetivas positivas importantes para
o resultado de um trabalho, ainda que não exista por si só, mas como atributos de
uma pessoa determinada.
Inter-subjetividade na Ciência
A subjetividade e a inter-sujetividade são inafastáveis da atividade científica, por
que a ciência é uma abstração, um construto subjetivo que se materializa na
atividade, inclusive ou principalmente mental, dos cientistas e em sua interação.
A troca de informações e a colaboração interpessoal, a discussão, a refutação
sistemática, a crítica (que inclui a auto-crítica) são manifestações intersubjetivas
indispensáveis ao desenvolvimento da atividade científica. As questões
relacionadas com a inter-subjetividade exercem influência na teoria do
conhecimento científico e são núcleo da comunicação do conhecimento e seu
desenvolvimento. Os fenômenos psicossociais e muitas das manifestações de
enfermidade, principalmente das enfermidades psiquiátricas, não podem ser
constatadas diretamente pelo observador (carecem de objetividade) e só podem
ser conhecidas por ele, desde que relatadas pelo paciente (fenômeno inter-
subjetivo).
8
Na atividade científica, importa refletir nas elaborações subjetivas de quem a
realiza, além de pensar no reflexo destas interações nas relações entre o sujeito e
o objeto do conhecimento e das interações entre o sujeito cognoscente e seus
eventuais interações. Nas ciências da natureza, o conhecimento se dá pela
relação entre a subjetividade e a realidade objetiva, precisando ser validadas.
Tem-se como certo que as representações subjetivas só podem ser consideradas
válidas se seu processo de validação tiver sido objetivo, se resultarem de
proposições validadas de maneira aceitável pela ciência naquele momento de seu
desenvolvimento.
Com relação à influência da objetividade e da subjetividade, existem três
tendências extremadas em filosofia da ciência: o objetivismo (que nega ou
subestima toda contribuição da subjetividade); o subjetivismo (que faz o mesmo com
relação ao que for objetivo) e a eclética que é a síntese dialética destas duas (que
trabalha com ambas as vertentes desta dicotomia, sem se deixar levar por
nenhuma delas).
Os aspectos intersubjetivos devem merecer a maior atenção por parte de quem se
preocupa em estudar a ciência filosofia do conhecimento científico. Dentre os
aspectos intersubjetivos, destacam-se os problemas da cooperação e da
comunicação científica.
Regis de Morais<$Fop. cit. p. 90.> aponta para as seguintes situações em que a
subjetividade do pesquisador influi no resultado do trabalho científico:
1. necessidade de pré-estruturas cognitivas para a adquirir novos conhecimentos;
2. necessidade de certa cultura, inclusive de conhecimentos anterior por parte do
sujeito para uma aproximação adequada dos novos fenômenos;
3. capacidade lógica para relacionar inteligentemente os dados;
9
4. necessidade de participação (engajamento, interesse, motivação) no que estiver
sendo investigado,
As relações entre o sujeito e o objeto, a objetividade e a subjetividade e o
desdobramento teórico e práticos destas relações, depende dos objetivos da ação.
É bastante diferente quando alguém pretende fazer um bom trabalho e, depois,
deseja receber por ele, do que alguém que tem o dinheiro como objetivo principal
e trabalha para atingi-lo. No primeiro caso, o trabalho é fim e, no segundo, se
reduz a um meio.
OBJETIVOS DA MEDICINA
Os objetivos ideais da Medicina como instituição social (porque existem os
pessoais de cada um de seus praticantes) dependem essencialmente de sua
identidade. Como a instituição sanitária a Medicina sintetiza diversas identidades e
qualquer uma delas pode ser confundida com ela.
Veja-se.
Na atividade social medica coexistem diversas identidades sócio-institucionais,
das quais se destacam as seguintes:
1. a identidade sócio-econômica ou laboral,
2. a identidade técnico-científica e
3. a identidade sócio-cultural, que inclui a ética.
A dimensão laboral é a que mais se destaca à primeira vista – a medicina
profissão dos médicos. A segunda vertente da identidade da Medicina, sua
dimensão técnica e científica, é a que será considerada prioritariamente no estudo
que se segue, ainda que as demais também sejam levadas em conta, ao menos
de passagem. Até porque, estas duas identidades da Medicina se superpõem, se
misturam sendo bastante comum que não possam ser diferenciadas nas situações
10
concretas senão por um exercício lógico de abstração. Contudo, ao logo de seus
muitos séculos de existência, tem sido a identidade ética que assume a primazia
sobre as demais.
Todas as culturas modernas reconhecem a Medicina como uma ocupação
especial e credora de responsabilidade social relativamente grande, como a
prática social humana reconhecida como valiosa e uma aplicação científica com
significativo compromisso ético, o que a situa como uma atividade profissional
responsável e uma atividade científica acreditada. Grande parte deste crédito
decorre da conduta de seus profissionais considerados individualmente; mas, ao
menos em parte, há de resultar do reconhecimento público de seus objetivos
institucionais.
As pessoas enfermas sempre estiveram na fonte dos propósitos da Medicina.
Desde sua origem mais remota, o principal objetivo da Medicina tem sido o
doente. Restaurar-lhe a saúde e abolir seu sofrimento foram os objetivos básicos.
Desde muito remotamente, o tratamento é considerado como sinônimo da
Medicina.
Nas as sociedades modernas, todas as dimensões da Medicina (destacando-se a
profissional e a técnico-científica) convergem para buscar como objetivo geral e
principal ajudar os enfermos através da consecução das seguintes metas
específicas:
a) conhecer os enfermos e reconhecer as enfermidades, seus condicionantes e
seus mecanismos de interação mútua;
b) prescrever e aplicar procedimentos destinados a evitar que as pessoas
enfermem;
c) desenvolver os recursos capazes de evitar a evolução das enfermidades e
desenvolver meios para cuidar e, se possível, curar os que enfermaram;
d) aliviar o sofrimento dos que padecem uma moléstia e
11
e) exercer esforços para reabilitar as pessoas afetadas por incapacidade e
invalidez determinadas por enfermidades ou traumatismos.
Em resumo: conhecer as enfermidades e os enfermos, prevenir as enfermidades e
promover a saúde, tratar e reabilitar os enfermos. Estes são os objetivos
fundamentais da Medicina em todas as culturas conhecidas.
Destes objetivos, o mais antigo e aquele que está mais profundamente encerrado
na consciência social é o tratar (curar). Desde seu início na magia, a Medicina tem
sido reconhecida como a ciência e arte de curar. Curar com o sentido de tratar.
Este tem sido sempre o objetivo mais importante da Medicina, ao qual, mais
recentemente se acrescentou o propósito de prevenir. Mas, deve-se ressaltar que,
enquanto curar é uma tarefa médica específica (ainda que não exclusiva), prevenir
tem alcance muitíssimo mais amplo e abrange muitas atividades.
Estes objetivos médicos essenciais que foram listados acima se integram em duas
práticas sanitárias distintas (geralmente realizadas por organismos sociais
diferentes): a Medicina Curativa Individual e a Medicina Preventiva Social
(conjunto indissociável de procedimentos sanitários englobados na Higiene e
Saúde Pública, na Medicina Preventiva e Social e na Saúde Coletiva). Mas,
também podem compor uma perspectiva mais abrangente e monista, sendo tidas
como um processo sanitário único que integre os procedimento de assistência
individual e os procedimentos de intervenção na coletividade; um conjunto de
intervenções que se dê como uma unidade integrada, ativa, positiva e preventiva.
Na primeira opção, imagina-se uma diferença essencial entre estas duas práticas
e suas teorias de suporte; na segunda, ambas são reconhecidas como dimensões
de uma mesma totalidade, a unidade dos aspectos preventivos e curativos na
inteireza da Medicina.
O que configura a essência da Medicina Preventiva: prevenção primária (promover a
saúde e evitar enfermidades), prevenção secundária (diagnosticar as patologias
12
com precisão e tratar o enfermo com eficácia o mais brevemente possível) e
prevenção terciária (reabilitar os prejudicados pela enfermidade).
QUESTÕES ONTOLÓGICAS GERAIS
DO CONHECIMENTO MÉDICO
A ontologia ou teoria do objeto pode ser definida como o capítulo da filosofia que
formula e desenvolve a o conhecimento sistemático do objeto material que estiver
sendo estudado em uma dada atividade cognitiva. Caracterizar bem um objeto
material de cogitação filosófica ou científica. A ontologia não estuda construtos, só
objetos concretos, materiais. Com resquício de sua origem na Metafísica, a
ontologia também pode ser definida, em sentido mais estrito, como o estudo do
ser; ou, ainda, o estudo dos entes ou a investigação sistemática do ser que estiver
sendo considerado em uma determinada investigação.
Caso se aprofunde o estudo desta disciplina filosófica, pode-se constatar que a
ontologia tanto pode ser dirigida para o estudo do serem geral (muito a gosto dos
filósofos idealistas), quanto para o estudo dos seres particulares ou, mesmo, os entes
específicos que constituem os objetos específicos de cada atividade cognitiva, os
entes específicos de cada estudo científico. De um ponto de vista estritamente
científico-natural do estudo filosófico da ciência, o momento ontológico consiste
teoria que permite caracterizar e definir o objeto de um estudo e circunscrever
seus limites o mais exatamente que for possível, distinguindo-o o mais
precisamente de tudo o mais que existe. A investigação ontológica de uma ciência
consiste na caracterização de seu objeto de investigação. Qual fração do mundo é
estudada por aquela ciência? Quais as coisas (seres ou entes) estão abrangidas
por ela?
Em filosofia, denomina-se ente, àquilo que é, em qualquer dos significados do
termo ser.Ou pode ser entendido como uma coisa existente, real. A partir de um
ponto de vista científico-natural, pode-se entender ente como uma unidade
existencial dotada de entidade definível por si mesma, dotado de status existencial
13
próprio, e de uma identidade social reconhecível por suas próprias características.
O termo apareceu da Filosofia de Heidegger, que usava o termo ente para
significar o ser que existe objetivamente, o ser concreto, uma coisa real, uma parte da
realidade. Donde se depreende a que o conceito de ente, embora tenha surgido
de um ponto de vista realista, com significado voltado para a realidade, também
pode ser empregado como conceito idealista (embora isto não seja correto, ao
contrário).
Como os filósofos idealistas religiosos necessita muito levar em conta a presença
suprema de uma divindade em suas cogitações e o conceito de ser se presta muito
para isto, servem-se dos conceitos de ser e de ente (devidamente idealizado) para
representá-la. Entretanto, em uma perspectiva ontológica e materialista do
conhecimento e por fidelidade a seu significado original, a noção de ente
corresponde a de entidade, coisa existente, parte da realidade. Desde que esse
mesmo enfoque científico-natural seja aplicado às cogitações da filosofia da
ciência, pode-se considerar a ontologia como o ramo da filosofia que estuda o ser, o
ente, o objeto que focaliza o estudo de uma ciência ou atividade científica; o ente
natural social ou humano que é objeto de estudo científico e este estudo
ontológico pode ser aplicado a qualquer tipo de investigação.
No caso presente, a perspectiva ontológica está dirigida para o objeto das ciências
médicas, em geral, e para a Medicina, em particular. Em Medicina, a noção de
ente (objeto de estudo) pode ser aplicada a dois elementos de seu objeto: o
enfermo, ente humano afetado pela enfermidade, e a enfermidade, a entidade
clínica que, afetando a pessoa, lhe confere a condição de enfermo. Pois,
enfermidade e enfermo são categorias patológicas inseparáveis. Não se pode
cogitar de uma sem considerar a outra. A enfermidade e o enfermo configuram a
dupla face do objeto da Medicina.
Para facilitar o entendimento da noção de ontologia e os conceitos derivados dela,
pode-se afirmar que a avaliação ontológica do conhecimento científico sobre
14
alguma coisa se refere ao o quê é o objeto daquela atividade cognitiva. Em filosofia
da ciência, ontologia é o estudo do ente estudado em uma atividade científica. As
questões ontológicas específicas de cada área do conhecimento científico dizem
respeito ao objeto de cada ciência em particular. A ontologia de uma ciência
encerra o estudo do objeto daquela ciência, enquanto objeto do conhecimento
científico.
Ao lado destas questões ontológicas específicas de cada ciência considerada
individualmente, existem algumas questões ontológicas que interessam a todas as
manifestações do conhecimento, embora sejam mais importantes para o
conhecimento científico. As questões ontológicas relacionadas com a
epistemologia ou teoria do conhecimento, dizem respeito ao objeto do saber: o
conhecimento-resultado. O que é o conhecimento? Como se define? Como se
estrutura?
A ontologia é o capítulo da filosofia que estuda o objeto (originalmente, do ser ou
do ente). A avaliação ontológica de um processo cognitivo é o estudo de seu
objeto que deve ser iniciado com sua delimitação. O objeto de uma ciência
qualquer deve circunscrever uma área específica e especificada de
conhecimentos definidos acerca daquela fração particular e bem delimitada do
mundo. As ciências factuais têm seus objetos na natureza, no homem ou na
sociedade.
A investigação ontológica, no sentido de caracterização científica do objeto
daquela atividade cognitiva, é sempre um momento fundamental de cada ciência,
ainda que isto nem sempre seja sabido por quem a cultiva ou nela represente um
papel. As ciências se definem sempre pelo seu objeto e cada ciência deve ter
objeto definido ao mesmo tempo que se define por este objeto. Todas. Ainda que
algumas áreas especializadas no interior de uma ciência possam, eventualmente,
serem definidas por um método, uma técnica ou, mesmo, uma filigrana técnico-
científico (como um procedimento técnico particular). Já as profissões, a despeito
15
de sua base científica, eventualmente, podem ser definidas pelo método ou pela
técnica que utilize ou mesmo por um determinado procedimento técnico.
As ciências podem ser classificadas do ponto de vista da natureza de seus
objetos. Por isto, na dependência de seu objeto de estudo, existem ciências
naturais, ciências humanas e ciências naturais. A natureza, com sentido de
universo material, abrangendo seus aspectos concretos e abstratos, objetivos e
subjetivos, se organiza em estratos diferentes de estruturação que apresentam
níveis diversos de complexidade; não sendo possível transpor os achados
referentes aos objetos e fenômenos de um estrato ou de nível para outro diverso,
ainda que se refiram a coisas ou acontecimentos que pareçam semelhantes ou
análogos, embora situados em estratos diversos da natureza.
Conhecer os estratos qualitativamente diferentes da natureza é importante porque
as leis naturais específicas, aquelas que regem determinados conjuntos de
objetos ou fenômenos da natureza, não podem ser transpostas para outros
objetos e outros fenômenos, sobretudo quando se situam em níveis diferentes da
estrutura da organização natural.
Com muito maior razão ainda, muito menos é viável transpor conhecimentos ou
métodos pertinentes às ciências da sociedade para as ciência humanas ou para
as ciências da natureza. Cada nível de organização do mundo está sujeito às suas
próprias leis que não são válidas em outro estrato que não aquele. As leis que
regem um determinado nível da natureza não são aplicáveis a outro nível da
organização natural, quanto mais a outro nível da estrutura do mundo, como a
sociedade e o pensamento.
Não são somente as ciências definidas e reconhecidas universalmente como
atividades científicas particulares que precisam ter definido seu objeto. Cada
investigação científica, por mais desprentenciosa e limitada que for, necessita ter
bem definido seu objeto de trabalho, antes de serem cogitados dos métodos. O
mesmo acontece com cada procedimento ou cada instrumento para o qual se
16
pretenda status de cientificidade. A definição do objeto de uma atividade,
instrumento ou procedimento (que deve ser a mais completa possível no momento
em que se dê) consiste no primeiro momento de declaração de sua cientificidade.
Antes de avaliar os aspectos ontológicos específicos das ciências médicas e, em
especial, da psicopatologia, por causa de sua influência na psiquiatria, deve-se
repassar, ainda que rapidamente, algumas questões ontológicas mais gerais,
porque alcançam todo conhecimento, tais como:
a) Se o mundo objetivo é real ou irreal;
b) e, sendo real, se o mundo objetivo mantém uma relação de primariedade ou de
secundariedade em relação à atividade mental, a subjetividade.
Não se deve supor que estas são apenas perguntas retóricas, elaboradas apenas
para consagrar respostas previamente conhecidas no curso de uma
argumentação ou explanação planejada. Trata-se de questões muito importantes,
fundamentais mesmo, cujas respostas irão influir em todo desenvolvimento que se
suceder a elas.
Esta questão essencial da filosofia e da ciência se consubstancia nas seguintes
perguntas: o mundo objetivo existe, é real ? A primeira e mais abrangente questão
teórica com que os seres humanos se defrontam quando pretendem conhecer o
mundo, reside em saber se este mundo é real (como crêem os realistas e
materialistas), ou uma ilusão dos sentidos (como querem os idealistas e os
fenomenistas mais extremados). Existe um mundo real? Uma realidade além de
nossas subjetividades?
E, existindo uma realidade, será uma realidade objetiva ou consistirá apenas em
uma ilusão da subjetividade? Uma realidade subjetiva. Existirá uma dimensão
objetiva e outra subjetiva da realidade? Ou existirão ambas? Estas indagações
podem parecer inúteis para os mais desavisados ou despreocupados com isto,
mas existe quem negue realidade ao mundo objetivo, de uma realidade externa a
17
nós. Os solipsistas, por exemplo, numa posição subjetivista radicalmente
extremada, negam realidade a todo o mundo objetivo; para eles, existe apenas a
subjetividade e os sentidos de quem pensa no mundo real e se convence de sua
realidade.
A doutrina solipsista (sustentada por BERKELEY e, mais radicalmente, de forma
absolutamente exagerada, por FICHTE) confundia as coisas e as percepções.
BERKELEYdizia: “ser é ser percebido”. Por isto, esta opinião torna a idéia do
conhecimento uma fatuidade e a ciência, uma completa impossibilidade. Pois
unicamente a divindade poderia conhecer. Se alguém é solipsista, há de negar
realidade ao doente e à doença, como parte de sua negação de todo o universo,
considerado, no todo ou em parte, como resultante de experiências sensoriais
ilusórias. Para os solipsistas, toda preocupação ontológica é denominada
ontologicismo, como se fora um reducionismo, uma preocupação desmedida com o
objeto; o que é bastante natural neles, vez que não aceitam a objetividade, a
existência objetiva de qualquer coisa. Devendo-se afirmar que o solipsismo
metodológico não é sempre tão radical, nem alcança a todos os objetos. Sabe-se,
por exemplo, que na natureza, as coisas em geral constituem uma realidade difícil
de ser negada porque sua objetividade é quase agressiva. Como negar um monte,
um rio, um cachorro, um estômago ou a função renal?
Já as ciências sociais e as ciências humanas lidam com realidades que são, ao
menos em grande parte, criações humanas, exigem ao menos um sujeito e
possuem alto grau de abstração. Ora, nestas condições, para os objetivistas
extremados, estas realidades são negadas. A psicologia, a psicopatologia e
grande parte da psiquiatria são alcançadas nesta situação.
Este fenômeno cognitivo mostra-se particularmente interessante quando aplicado
ao terreno da identificação das enfermidades ou entidades clínicas em psiquiatria;
principalmente pelos que negam a existência objetiva da enfermidade psiquiátrica
18
ou uma delimitação definida entre a normalidade e a patologia como facetas da
existência humana.
O solipsismo, em sua forma pura, pode estar fora de moda e, hoje, talvez não
exista senão como expressão de excentricidade para conversas eruditas para
chamar atenção no barzinho da moda. Contudo, tem muitos sucessores, nos quais
se atenuou a negação delirante do mundo, como os já mencionados
nominalismos, medieval e moderno, por exemplo, que negam realidade às
coisas e às possibilidades de conhecê-las diretamente. Mas, isto será encarado
logo adiante neste trabalho, quando se promover ao levantamento das questões
gnoseológicas. A modalidade contemporânea do solipisismo se denomina
conceitualismo, verbalismo ou positivismo lógico.
A partir dos pressupostos que dirigem este trabalho, em última análise e a
despeito de sua diversidade, o mundo material, com tudo que ele contém, deve
ser considerado como o objeto do conhecimento científico. A ciências existem
para estudar o mundo. O mundo todo através de cada aspecto particular dele.
Cada ciência se incumbe da investigação de um aspecto particular do universo da
realidade. O que vem sendo chamado realidade objetiva, mundo real ou.dos objetos
materiais.
Isto posto, tenta-se esquematizar o que se supõe saber ou o que se sabe sobre a
natureza e realidade do mundo objetivo. Desde que se considere todo o mundo
real (objetivo) como o objeto do conhecimento científico, torna-se muito importante
ao menos esboçar sua conceituação ou sua definição. Porque existem diversas
opiniões sobre o que seria a natureza essencial do aqui denominado muitas vezes
como mundo objetivo, porque está fora do sujeito cognoscente.
As diferentes opiniões sobre o mundo objetivo, se revelam nas respostas dadas às
seguintes perguntas que podem ser formuladas sobre ele:
19
1) sendo real o mundo, ele seria um universo composto só por objetos reais e
objetivos ( fossem naturais ou sociais)?
2) Ou seria um mundo povoado apenas por idéias ou outros conteúdos
subjetivos?
3) ou seria um mundo só de palavras? ou, quem sabe,
4) ou seria um mundo onde coexistissem as realidades naturais e sociais, as
idéias e as palavras? Por exemplo, onde as realidades naturais
determinassem as palavras e as idéias e que todas elas coexistissem na
realidade natural e cultural?
A partir destas questões e das possíveis respostas que provocarem, podem ser
situadas duas posições distintas acerca do conceito filosófico de realidade e de
sua relação com a subjetividade.
Tais posições são:
1. os que têm uma visão parcial e fragmentária da questão do conhecimento do
mundo e
2. os que têm uma perspectiva abrangente e globalizante (dialética, pode-se dizer)
da realidade objetiva.
Estas conclusões são possíveis porque as respostas afirmativas a qualquer uma
das três primeiras indagações configuram uma posição parcial, uma visão do
mundo reducionista. A quarta questão, quando respondida afirmativamente, indica
uma posição global, uma visão dialética do mundo e do conhecimento.
No primeiro grupo, dentre muitos outros, destacam-se os solipsistas, os
condutistas e os nominalistas pelo significado que estas posições doutrinárias
parciais sobre o conhecimento têm na filosofia da ciência atual. Pois. esta
tendências filosóficas têm exercido notável influência nas teorias da psicologia e
da Medicina.
20
Para os solipsistas, extremistas do subjetivismo, o mundo seria composto
apenas de idéias que se reduzem a existir na subjetividade do observador, sendo
incomunicável para os demais.
Para os condutistas, o extremo contrário ao sliopsismo, correspondente ao
objetivismo positivista clássico, o mundo (ao menos o mundo reconhecível pela
ciência) se limita às realidades naturais (um mundo de coisas), servindo as
palavras apenas como um exercício sempre insuficiente de revelá-las.
Já para os nominalistas, cujas posições se confundem, ora com os solipsistas,
ora com os condutistas (em sua visão parcial e mecânica do mundo), ora com os
neopositivistas, o mundo (ou, ao menos, o mundo do conhecimento) seria um
mundo unicamente habitado por palavras com significações meramente
convencionais, destinadas a simular, ao invés de reproduzir, refletir, representar
ou simbolizar a realidade objetiva. Estas visões contraditórias do mundo,
conduzem a concepções de naturezas muito diferentes e conflituosas sobre o
conhecimento.
O condutismo por causa de seu enfoque reducionista e objetivista, (com um lado
positivo, que foi ter permitido a primeira abordagem científica da psicologia,
segundo as exigências da gnosiologia moderna). O nominalismo não é apenas um
nome que evoca a lembraça de uma tendência da filosofia medieval., rebatizado
de neopositivismo e empirismo, está vivo e influi muito na teoria da psicopatologia
norte-americana, principalmente nos trabalhos de nosografia que costumam
confundir com nosologia.
Numa terceira vertente deste problema ontológico, situada no vértice das
doutrinas parciais, está a posição dialética ou integral, abraçada aqui neste
trabalho. Esta posição, aqui chamada dialética, considera o mundo em que
vivemos um mundo de coisas objetivas, porque existem independentes do homem
ou de sua consciência; apesar de que podem ser refletidas de modo regularmente
eficiente e eficaz na subjetividade de quem o estuda e isto permite que possam
21
ser comunicados a outrem pelas palavras. Existe um mundo objetivo e cada um
de nós constitui uma parte dele. Existe um mundo real objetivo, um mundo de
objetos do conhecimento em relação ao ser cognoscente (subjetivo) que o
conhece. O mundo real objetivo inclui tudo o que existe ao alcance dos sentidos
ou do intelecto, inclusive os outros sujeitos que estiverem sendo conhecidos como
objetos; e um mundo interior, o mundo das idéias do sujeito daquele
conhecimento.
A comunicação intersubjetiva intermediando as relações cognitivas, afetivas e
práticas dos homens com as coisas do mundo. Por isto, se sustenta aqui que
ambos estes fenômenos, as coisas objetivas e as idéias que as refletem, são
representadas ou simbolizadas pelas palavras que se referem a elas. As palavras
(como muitas outras ações) são os recursos pelos quais os conteúdos mentais
são objetivados e materializados. E, embora as coisas precedam as idéias e
estas, as palavras, todas habitam e convivem no mundo sendo inseparáveis na
unidade do conceito.
Neste modo particular de ver o mundo e o conhecimento, a coisa objetiva, que é o
objeto do conhecimento objetivo, deve ser considerada primária em relação à idéia
que suscita na mente e à palavra que a simboliza. A coisa que está sendo
conhecida é primária e a idéia e a palavra são secundárias. Conseqüentemente, a
idéia que reflete o objeto cognoscente, deve ser definida como um acontecimento
ou sinal secundário à coisa objetiva que é o objeto primário; e a palavra que
simboliza a ambos é o dado ou sinal terciário, o seu símbolo verbal. Mesmo
quando a coisa a conhecer é um fenômenos ou processo abstrato ou mítico, ele
se só se torna conhecido depois de objetivado verbalmente. Neste caso, a coisa a
conhecer é a idéia objetivada. E o conhecimento do mito se confunde com o
conhecimento da sua narrativa.
O nominalismo, ou conceitualismo, foi uma corrente filosófica medieval que
afirmava a existência real unicamente das coisas isoladas e suas qualidades
22
individuais e isto apenas, porque nós as convencionamos como tais. O aspecto
positivo do nominalismo (no que ele divergia dos que se denominavam realistas)
era sua negação dos universais. Os realistas afirmavam que os conceitos gerais
(brancura, bondade) existiam em algum lugar do mundo.
Os nominalistas, ao contrario, afirmavam que os conceitos gerais (então,
chamados universais) destas coisas, eram criados por nosso pensamento, eram
apenas palavras, nomes; não existiriam independentemente e não refletiriam as
propriedades e qualidades daqueles objetos ou fenômenos aos quais se referem,
tendo significado unicamente arbitrário e convencionado.
Os nominalistas e os realistas escolásticos conflitavam (e, provavelmente, cada
um deles haveria de ter alguma razão) muito radicalmente. Contudo não se deve
imaginar que os chamados realistas medievais fossem adeptos da tendência
filosófica atualmente denominada realismo (ou materialismo, o oposto de
idealismo). Não. Os filósofos católicos que se denominavam realistas na Idade
Média eram idealistas. A não ser no nome, não tinham nada de realismo. Apenas,
por influência platônica e escolástica, acreditavam na realidade, na existência real
dos universais (propriedades das coisas, com brancura, grandeza, inteligência).
Julgavam que a brancura de todas as coisas brancas existiam realmente como
essência delas
O lado negativo do nominalismo foi o fomento da identificação entre abstração (ou
subjetividade) e irrealidade. O que deu lugar ao aparecimento de diversas
doutrinas.
Entre outras, as doutrinas do rótulo e do veredito para o diagnóstico
psiquiátrico são variantes do nominalismo que, na Idade Média, era combatido
pelo realismo por sustentar exatamente o contrário. Muitas concepções
modernas sobre a psicopatologia, sobretudo as de identidade neopositivista e
empirista, como o operacionalismo, que orientaram a organização do DSM-III e da
CID/10 são sobrevivências atuais do nominalismo medieval. Diferentemente dos
23
nominalistas medievais, os neopositivistas e os empiristas não negam a existência
do mundo real; apenas afirmam ser impossível conhecê-lo além daquilo que
convencionamos saber sobre ele.
Muitas doutrinas idealistas deveriam ser denominadas verbalistas. Porque
superestimam o significado das palavras. A doutrina do rótulo, por exemplo,
nega caráter objetivo às enfermidades, especialmente, às enfermidades
psiquiátricas; sustenta não existirem os chamados doentes senão porque alguns
indivíduos foram assim rotulados; não tivessem sido e seriam sadios. Não
entendem que a noção de enfermidade é um juízo de valor relativo.
Os adeptos da doutrina do veredito também negam as doenças psiquiátricas,
tendo todos os enfermos por mentalmente sadios; a sociedade (o Estado ou a
cultura), a família ou outra instituição condena um de seus membros a bode expiatório
de suas dificuldades de adaptação e o condenado por este veredito passa a ser tido
e tratado como doente. A condição de doente, neste caso, não seria expressão de
uma situação real, mas produto de uma condenação imposta ao paciente. Ambas
as doutrinas, a do rótulo e a do veredito, expressam o ponto de vista nominalista
com relação à realidade ou à cognoscibilidade da patologia. Aida que seja
impossível diferenciar os são adeptos da teoria do rótulo porque negam as
enfermidades mentais dos que são negam as enfermidades mentais porque são
adeptos da teoria do rótulo.
O subjetivismo, como contido nas idéias de BERKELEY, de FICHT e o de
HUME, em seus aspectos originais e mais radicais, que negava a existência da
realidade objetiva, praticamente já não existe e não se reflete diretamente na
filosofia de hoje. Já algumas tendências neopositivistas, como o empirismo e o
pragmatismo, estão exercendo grande influência na psicopatologia do século
vinte, principalmente, na nosologia e na nosografia. A tendência subjetivista
moderna que mais se aproxima de suas matrizes originais (por via da supremacia
do inconsciente, é o freudismo ou psicoanálise
24
Os empirismos (inclusive o empirismo lógico) e o pragmatismo são tendências
filosóficas idealistas modernas que revivem na atualidade diversos pontos de vista
do nominalismo medieval e o conciliam com o positivismo, ao menos nos aspectos
que foram mencionados acima, porque tais aspectos refletem particularmente os
mesmos interesses ideológicos e se enquadram nos mesmos interesses sociais.
O pragmatismo e o empirismo abandonam o antigo conceito de verdade que
considera verdadeiro o que for consoante com a realidade (a concordância do
pensamento com o ser) e valoriza a atividade e a pragmaticidade, a utilidade do
conhecimento. Para eles, a verdade deixa de ser considerado como um valor
teórico e passa a ser tida uma expressão que possa ser tida como útil.
Quando alguém diz, por exemplo: "tal quadro clínico é compatível com o diagnóstico de
demência vascular”, está colocando uma diferença entre o fenômeno real (o quadro
clínico observado no doente) e a expressão que o denomina (o diagnóstico) e
estabelecendo um abismo inexistente entre a coisa e sua denominação, o material
e o ideal.
Transportado para outra situação, este estilo de ver e nominar as coisas no
mundo, principalmente as patologias, produziria frases assim: "este ser vivente,
coerente com a designação de pessoa, tem características compatíveis com o significado atribuído à
palavra mulher” ou “aquela coisa em tudo igual a um vegetal, com características análogas às
contidas no significado do termo repolho”; ou, alguém se apresentando: sou alguém que
atende a todas as características da identidade de Fulano de Tal... e quantos outros
disparates análogos que serviriam para produzir apenas divertimento, na
dependência do tempo, da paciência e da imaginação disponíveis.
O realismo metafísico, adotado pelos escolásticos medievais em seu conflito
com os nominalistas, é a corrente da filosofia que defende que as coisas existiriam
fora e independentemente da consciência do sujeito, enquanto o realismo
gnosiológico pretende que o conhecimento possa reproduzir ou refletir a realidade
e, neste caso contradita simultaneamente o nominalismo e o solipsismo.
25
Estas questões gnosiológicas gerais foram melhor vistas na primeira parte deste
capítulo, quando se tratou da construção do conhecimento e, em especial, do
conhecimento científico. Adiante, cuidar-se-á de circunscrever os elementos
conceituais mais essenciais do objeto da Psicologia, os fenômenos psíquicos.
Princípios Básicos da Ontologia Científica
Quando se estuda a ontologia geral das ciências (a ciência do objeto científico) de
um ponto de vista materialista, é necessário definir que seu objeto (o objeto da
ciência ou de todas as ciências reunidas) é o mundo material, o mundo da
realidade. O mundo da natureza (objeto das ciências biológicas), o mundo da
sociedade (objeto das ciências sociais), o mundo dos seres humanos (objeto das
ciências antropológicas) e o mundo das idéias (objetos das ciências formais), o
que configura as três grandes áreas das ciências factuais e a área das ciências
formais em que se distribuem as ciências.
Mario BUNGE, <$FBunge, M., Ciência e Desenvolvimento, Belo Horizonte, Ed.
Itatiaia/EDUSP, 1980, pp. 96 e 97.> um filósofo argentino que estudou com muito
brilho as implicações filosóficas da ciência e a dimensão filosóficas das ciências,
propõe que devam ser empregados alguns princípios fundamentais para que se
possa entender o que há de essencial na ontologia (ou metafísica) da investigação
científica em todos os momentos da história da ciência, em todas as áreas do
conhecimento científico e em todos os lugares do mundo.
Tais princípios, com algumas poucas modificações introduzidas aqui, são os
seguintes:
1. Existe um mundo exterior ao sujeito que conhece e este mundo existe, ao
menos em grande parte, independente deste sujeito.
2. O mundo é composto de coisas reais (concretas) que constituem o mundo dos
objetos de investigação científica na natureza, na sociedade e no homem (ser
natural e social).
26
3. As formas são propriedades das coisas (não existem independentes delas).
4. Os componentes do mundo se agrupam em sistemas ou em grupos de coisas
que interagem entre si e obedecem às mesmas leis.
5. Todo sistema (natural, social, lógico ou psicológico), exceto o universo, interage
em alguns aspectos com outros sistemas e está isolado de outros em outros
aspectos.
6. Todas as coisas mudam com o passar do tempo (e estas mudanças podem ser
quantitativas ou qualitativas).
7. Nada provém de nada e coisa alguma se reduz a nada.
8. Todas as coisas obedecem a leis (expressões de relações invariáveis entre
suas propriedades) que são apropriadas para cada nível de organização da
natureza ou da sociedade.
9. Há diversos tipos de lei que dependem da natureza dos objetos ou dos
fenômenos e de seu nível de organização.
10. Há diversos níveis de organização das coisas no mundo (e cada um destes
níveis de organização obedece às suas próprias leis).
ONTOLOGIA MÉDICA
A ontologia médica é o ramo da ontologia filosófica que se refere especificamente
ao estudo sistemático objeto do conhecimento médico, sua definição como objeto
do conhecimento científico. A ontologia médica promove o estudo sistemático do
objeto da Medicina e de seu conhecimento.
A Medicina pode ser definida como atividade profissional que objetiva o bem-estar
humano e a busca do conhecimento sobre a saúde e a enfermidade, atuando
através da aplicação de um conjunto de procedimentos, habilidades e
conhecimentos que devem ser fundamentalmente científicos (mas não
27
necessariamente), que são resultantes do estudo sistemático de seu objeto. Nesta
definição se situam alguns aspectos particulares da ontologia médica que devem
ser clarificados.
A Medicina é uma profissão, isto é, trata-se de uma atividade social (humana,
técno-científico e econômica) que existe para atender necessidades de indivíduos
e coletividades.
A Medicina é uma encontro humano, uma ciência e uma atividade econômica
voltada prioritária ou exclusivamente para a enfermidade ou a saúde? Para o
doente ou para a doença? Para os indivíduos ou para as coletividades? Para o
tratamento ou para a profilaxia? Destinada a quem precisa assistência médica ou
a quem pode pagar por ela? A Medicina é tudo isto simultaneamente.
Cada uma destas questões bipolarizadas, quando respondidas defendendo-se
uma das assertivas como excludente da outra, redunda em um reducionismo e
resulta na impossibilidade de conhecer a verdadeira natureza da Medicina. Pois
elas são postas de maneira maniqueísta e não correspondem à realidade dos
fatos, tais como postos na prática concreta da investigação ou da clínica médicas.
Em todas essas questões é possível e desejável que se responda afirmativamente
a ambas as alternativas porque elas não são auto excludentes. A Medicina é uma
atividade voltada para a enfermidade e para o enfermo, para a saúde e para a
doença, para os indivíduos e para as coletividades, para o tratamento e para a
profilaxia, para quem necessita dela e para quem pode pagar por seus serviços.
Nenhuma destas respostas é incompatível com a verdade e nenhuma delas obriga
à exclusão de outra.
O objeto da Medicina é uma entidade dual (homem e enfermidade), cada uma
delas bastante complexa que se concretiza em quatro planos distintos e
complexos de relações recíprocas:
primeiro, nas relações entre o enfermo e sua enfermidade;
28
segundo, nas relações recíprocas que se estabelecem entre a pessoa enferma ou
ameaçada de enfermar e a pessoa que pode ajudá-lo (o médico);
em terceiro lugar, nas relações entre a patologia que afeta ou ameaça o enfermo e
as possibilidades dos recursos técnicos de intervenção disponíveis para prevenir e
diagnosticar a condição patológica, tratar e reabilitar o enfermo;
em quarto lugar, nas relações entre o enfermo (ou pessoa ameaçada de enfermar)
e o seu ambiente físico e social. Por tudo isto, a ontologia médica é, antes de tudo,
uma antropologia (porque implica em uma concepção do homem. Uma
antropologia metafísica (voltada para o objeto) e uma antropologia dialética
(voltada para suas relações).
Duas questões ontológicas essenciais da Medicina são: a primeira é a possível
relação existente entre o enfermo e a enfermidade (duplo objeto da Medicina), e a
segunda se refere à possível natureza específica da enfermidade considerada por
si mesma e de sua história natural.
Como se há de verificar adiante, quando se estudar a comprobabilidade como
característica fundamental de cientificidade, existem dois procedimentos
metodológicos básicos para o processo de conhecer o mundo. Estudar as coisas
(sua características e atributos, sua origem suas finalidades) e estudar as relações
das coisas (a maneira pela qual estas coisas se inserem no mundo e interagem
com as demais). Estas duas atitudes metodológicas básicas de modo algum são
antagônicas ou auto excludentes. É perfeitamente possível incluir as duas no
desenvolvimento do mesmo processo cognitivo. Esta perspectiva integradora e
totalizante, aliás, parece muito mais compatível com a designação de dialética.
Antes de tudo, por sua primazia ontológica, há de se caracterizar o que é vida, por
causa de antiga ralação deste assunto com a Medicina e com os médicos.
29
A Vida
A vida é um mistério que pode ser definido, ainda que imperfeitamente, mas de
um ponto de vista materialista e prático, como uma forma especial de movimento
da matéria, qualitativamente superior aos fenômenos físicos e químicos da matéria
orgânica. Cada organismo vivo pode ser caracterizado como um sistema aberto
(dotado de unidade, totalidade e interatividade), auto-organizador (capaz de
modular seu funcionamento, inclusive seu metabolismo, em função de suas
necessidades de adaptação), auto-reparador (capaz de regeneração automática
de suas estruturas), capaz de autopoiese (direção e limites de seu crescimento) e
de reprodutibilidade (geração de organismos iguais). E, igualmente caracterizado
pela degeneração de suas estruturas e de morrer.
Existem duas concepções básicas sobre a origem da vida e de sua diversidade: o
criacionismo e o naturalismo evolucionista. A variante vitalista do
criacionismo supõe a existência de um princípio vital eterno capaz de assumir
cada uma das formas de vida existentes e ser sua característica essencial.
Quando se estuda a vida, é possível diferenciar a vida individual da atividade vital
que a anima e lhe é anterior, existindo em seus ascendentes e que prossegue em
seus descendentes. Enquanto vitalidade, a existência de cada ser vivo é extensão
da vida ou das vidas que lhe deram origem. Por isso, é impossível determinar
quando começou a vida de um ser vivo (inclusive uma pessoa), embora seja
relativamente fácil determinar onde ela termina. Isto porque é impossível precisar
o momento do início da vida de um ser vivo (animal ou vegetal) por que ela já
existia nos gametas que o originaram, na vida dos produtores destes gametas e
em todos seus antepassados.
A rigor, a vida de cada um dos seres vivos se iniciou com a vida de seu primeiro
antepassado mais remoto, muito provavelmente uma estrutura extremamente
simples, um ser vivo unicelular, originado em uma a grande matriz primitiva ou de
30
muitas outras que teriam surgido. Cada ser vivo é, de certa maneira, uma
extensão da vida de todos e de cada um dos seus incontáveis antepassados.
Também não se pode entender a vida dissociada do conceito de organismo e
este, separado do meio ambiente. Os seres vivos, inclusive o seres humanos,
mantêm constante interação com o ambiente do qual dependem e as
perturbações desta interação sempre significam um fator de risco para a saúde e
para a sobrevivência.
A vida humana, entendida como vida pessoal, resulta de uma interação
permanentemente e dinâmica entre as estruturas biológicas, o ambiente físico e o
meio social que se mantêm em permanente interação através do organismo; pois,
cada organismo humano corporifica uma vida individual, a vida de um ser humano
específico, na vida de uma pessoa. Neste plano se situa antiga responsabilidade
médica não com vida genérica, mas com a vida de cada pessoa.
O ser humano deve ser entendido como vivente de dois mundos: o mundo da
natureza e o mundo da cultura. O entendimento do organismo humano como um
sistema integrado no ambiente e de sua existência pessoal como uma
organização integrada no meio social é cientificamente correto, mas insuficiente,
suscitando grande número de indagações sobretudo éticas.
Com este sentido biológico, não se diferencia a vida de um humano da vida de
qualquer outro ser animado e isto é completamente insatisfatório para a Medicina
Os humanos parecem qualitativamente diversificados em relação aos demais
viventes e tal diferença se assenta, principalmente em sua eticidade.
Nem se pode identificar o início de uma vida humana com a fecundação,
pretextando sua relativa autonomia biológica individual. Exatamente porque isto
equivaleria e reduzir o ser humano ao seu arcabouço biológico, a sua estrutura
organísmica. (O que não tem sentido hoje, nem mesmo frente ao conceito de
morte cerebral, quanto mais diante da complexa realidade bio-psicos-social).
31
Interação e Adaptação
Como é típico dos sistemas vivos, os organismos biológicos são dotados da
possibilidade de promover a interação entre seus componentes e de mobilizar
recursos adaptativos internos e externos para assegurar sua integridade e seu
funcionamento. A adaptabilidade (interna e externa) é uma das características
mais importantes e essenciais de todos os seres vivos.
Reprodução, Regeneração e Degeneração
A reprodução (ou auto-reprodução), entendida como capacidade de um organismo
produzir outros seres da mesma espécie, também constitui atributo essencial dos
organismos viventes. Variam os mecanismos reprodutivos, a partir de dois que
são fundamentais: a reprodução sexuada e a assexuada.
Entende-se por regeneração a capacidade que têm os seres vivos de reconstituir
estruturas e funções lesadas, prejudicadas ou suprimidas. Esta função também
não é idêntica em todas as estruturas, todas as espécies ou todos os espécimes.
Degeneração
Entropia e Autopoiese
Viver e Conviver
Viver e Sobreviver
Quando se enfoca a questão da necessidade da vida, de como o viver ou seguir
vivendo; a vida como um estado particular da matéria altamente organizada e
diferenciada, a matéria viva. Devendo-se destacar que estes dois aspectos da
questão (a vitalidade e a sobrevivência|) mobilizam grande interesse,
especialmente do ponto de vista médico. Prolongar a própria vida é uma
necessidade impressa no patrimônio instintivo de todos os seres vivos conhecidos.
32
A necessidade de sobreviver, de se manter vivo, de se evadir ou de vencer as
ameaças à vida é uma característica comum a todos os seres vivos. Tanto, que é
descrita como uma propriedade da matéria viva. A necessidade de sobreviver se
evidencia em dois planos distintos: o plano individual (ontológico) e o plano da
espécie (filológico). Para um ser vivo, a necessidade de sobreviver impõe
sobreviver como ser individual, prolongando a própria vida; e sobreviver como
espécie e como estirpe, através dos descendentes por meios da reprodução.
A origem, a manutenção e o prolongamento da vida humana dependem de
incontáveis fatores individuais e sociais.
Expectativa de vida é um índice epidemiológico que expressa o período de
tempo que se espera que uma pessoa, com certa idade, viva caso se mantenham
os índices de mortalidade vigentes.
As pessoas estão morrendo cada vez mais velhas. E, dento de limites razoáveis,
quanto mais velhas, maior é sua expectativa de viver mais. O progresso da
civilização se expressa, inclusive, por aumento significativo da média de vida das
pessoas e, conseqüentemente, o aumento relativo do número de pessoas idosas
na população, fenômenos conhecido como envelhecimento populacional que
produz implicações em muitas áreas da vida social, destacando-se as implicações
médicas.
Entre as implicações médicas, destacam-se a necessidade de pessoal habilitado e
serviços capacitados para atender a este tipo de clientela que, por sua própria
condição, mobiliza mais recursos que os jovens. Além do que, aumenta o número
de aposentados e estes vivem muito mais. Como os sucessivos governos
dissiparam os recursos da previdência social, os aposentados de hoje pagam a
conta desta conduta.
Além disto, o crescimento indisciplinado das metrópoles cria imensas áreas de
moradia em condições extremamente precárias (e não apenas nas favelas e nos
conjuntos habitacionais mais pobres). A proletarização da assim chamada classe
33
média também faz crescer a montanha de pobreza (trabalhadores e funcionários
públicos que até há vinte anos se inscreviam na classe média, hoje são favelados
e muitas vezes se situam abaixo do nível de miséria).
Desde a origem da Medicina, os médicos são identificados pela população como
curadores naturais dos interesses humanos dos enfermos e guardiões da vida.
Estes compromissos se incorporaram de tal maneira à sua identidade e ao seu
papel profissional que provocam muita frustração quando são desobedecidos ou
desrespeitados.
Vida e Qualidade de Vida
A qualidade de vida se refere à vida como é vivida. A vida como mais do que
sobrevida, como possibilidade mínima de atingir seus objetivos e ter atendidas
suas necessidades mínimas; de existir com decoro (no antigo sentido hipocrático
desta expressão). A noção de vida como vitalidade se completa no conceito de vida
como qualidade de vida<D>, como vida decorosa ou bem estar. Como atributo da
existência pessoal, o que deu um sentido bastante diferente à noção de existir, de
sobreviver, de seguir vivendo. As noção de vida humana inclui hoje uma série de
condições que estão relacionadas à satisfação ou à frustração das necessidades
individuais e sociais do vivente humano, encarado (também neste aspecto) como
qualitativamente diferente dos demais seres vivos. O compromisso essencial que
os médicos mantêm tradicionalmente com a vida humana foi ampliado para conter
de novo a velha concepção hipocrática de vida digna de ser vivida, de vida
decorosa.
A noção de qualidade de vida está interligada com a noção de personalidade e com a
idéia de síntese das necessidades individuais (primárias e superiores) e sociais.
É bem verdadeiro que as noções mencionadas acima de vida média e expectativa de
vida ao nascer são cada vez mais significativas em nossa civilização, porque indicam
a qualidade de vida da população. Entretanto mais que tudo, é necessário levar
34
em conta a possibilidade de uma vida digna e decorosa (como queriam os
hipocráticos). A vida dos animais praticamente se resume à sobrevivência. Não é
(ou não deve ser) assim com os seres humanos, a despeito da realidade de
miséria e abandono em que sobrevive um contingente extremamente significativo
de nossa população.
Também mudou o procedimento para identificação da vida, quando a constatação
da morte cerebral substituiu o antigo critério de parada cárdio-respiratória como
marco clínico do fim da vida e do diagnóstico de morte. Neste caso, a troca de
critérios não corresponde apenas a uma necessidade pragmática (facilitar e
viabilizar transplantes) mas a aplicação do compromisso ético que exige valorizar
mais o vivo que o morto.
Não obstante esta situação social real, hoje, existe entre os praticantes e
pensadores da Medicina uma preocupação cada vez mais ampla e mais
significativa, que se estende para muito além do conceito simples de vida ou de
sobrevivência das funções vitais de uma pessoa; trata-se de institucionalizar o
conceito de qualidade de vida como instrumento operacional de avaliação
clínica.
Não basta que o paciente sobreviva a uma enfermidade durante um certo tempo,
cada vez mais se considera que seja necessário que disponha de possibilidades
mínimas de exercer sua vida com dignidade; não apenas de sobreviver, mas de
desfrutar a vida. Neste sentido, viver é mais que unicamente sobreviver.
Entretanto, não se pode condicionar a vida à exigência de plenitude da vida ou a
completo bem-estar.
A qualidade de vida se expressa pelo nível de bem-estar e o nível de bem-estar se
difine pela satisfação das necessidades individuais e sociais; a partir das
necessidades chamadas necessidades sociais básicas (alimentação, moradia,
vestuário, trabalho, lazer, transporte e acesso a serviços de saúde e de educação,
35
além de necessidades civis (autonomia e liberdade de expressão, participação
social, propriedade, dignidade, auto-realização e acesso aos recursos de busca da
felicidade pessoal).
A definição da qualidade de vida mínima entre os direitos sociais inalienáveis da
cidadania é um importante conceito para estabelecer os deveres estatais e um
passo importante para o desenvolvimento da civilização.
Entretanto, não basta que se escreva isto como direito nos diplomas legais, é
preciso que isto fique impresso na consciência social (afinal, a constituição já diz
que a saúde é direito de todos). A lei é letra morta se não corresponder ao desejo
da maioria da população ou dos interesses hegemônicos.
Mas a vida também tem uma dimensão ética e a vida humana uma dimensão ética
especialíssima. Desde sua origem, os médicos somos zeladores da vida. Todo
médico é um guardião da vida e do bem estar de seus pacientes e, por extensão,
das comunidades confiadas ao seu cuidado quando desempenha uma atividade
social.
Sob qualquer ponto de vista, do religioso ao materialista, toda ética da Medicina se
fundamenta em um princípio fundamental: o princípio da beneficência, que
significa não fazer mal. Principalmente aos seus pacientes. A menos que se trate
da escolha ineludível entre dois males, quando deve-se escolher o menor. Ou
quando o mal menor (como um remédio, por exemplo) for indispensável para se
contrapor ao mal maior (a enfermidade). Entretanto, deve-se advertir que esta
escolha nem sempre é fácil, principalmente na vertigem dos acontecimentos
dramáticos. os médicos experientes bem sabem o quanto a experiência dos erros
anteriores os ajudam a evitar outros no futuro. E o quanto a consciência de
princípios diretores da conduta podem auxiliar a evitar os primeiros.
Pois, os remmédios têm esta curiosa contradição, são males que podem trazer o
bem. Pois, afinal, a diferença entre um remédio e um veneno é, freqüentemente,
simplesmente uma questão de dose ou de oportunidade.
36
Uma característica universal da atividade médica, em todos os momentos
históricos, em todas as culturas é a identificação do médico como guardião da
vida<D>, como defensor dos interesses dos doentes, como promotor de bem-estar
do povo e, portanto, um agente de permanente compromisso com a melhoria da
qualidade da vida das pessoas e das comunidades. E isto não pode ser
interpretado mais ou menos ingenuamente como uma sobrevivência de seu status
sacerdotal original que os médicos possuíram por muitos séculos.
Proteger a vida não é privilégio sacerdotal, é dever de todas as pessoas e
compromisso ético com valor de princípio para todo médico que se preza; é uma
herança da melhor tradição médica de todos os tempos.
Morte. No mesmo plano se coloca a questão das relações entre a vida e a morte.
A morte é inevitável para quem vive. Todo ser que vive tem na morte seu destino.
A Medicina existe para adiar a morte, enquanto for possível garantir vida digna aos
seres humanos. Às pessoas.
Os conceitos de aborto, eutanásia e distanásia exigem a atenção do médico e
cobram dele uma decisão em muitos casos de sua clínica.
Aborto é a expulsão prematura do conteúdo do útero grávido de concepto ainda
inviável, isto é, antes da vigésima oitava semana da gestação. Quando a
interrupção da gestação se dá depois deste momento, quando o concepto pode
ser considerado viável, denomina-se parto prematuro.
Eutanásia (do grego, eu=bom + tanos=morte); morte boa, morte fácil; morte sem
dor ou sofrimento; consiste em abreviar a vida de alguém já sem esperanças de
sobreviver com o mínimo de qualidade de vida. O elemento conceitual mais
importante do conceito de eutanásia é que a autoria da decisão deve ser do
agente da eutanásia (que pode não ser médico) e assume a responsabilidade de
decidir quando alguém deve morrer ou, noutros termos, deixar de viver; a outra
qualidade essencial deste conceito é a incapacidade do enfermo decidir. Sá há
37
eutanásia se o paciente estiver incapaz; estando capaz, ou se trata de suicídio
assistido ou de homicídio.
Suicídio assistido. quando o paciente, desfrutando da integridade de sua
capacidade de decidir, decide morrer
Distanásia (do grego, dis=perturbação, dificuldade + tanos=morte); morte
perturbada, morte dificultada, quando se aplicam recursos da tecnologia médica
para ampliar a sobrevivência de alguém que não pode desfrutar a ménima
qualidade de vida e nem tem a possibilidade de vir a tê-lo. A distanásia se
configura quando são empregados recursos técnicos artificiais para manter a vida,
sem que haja ou possa haver qualquer esperança de sobrevivência digna.
No caso da eutanásia e do suicídio assistidas trata-se de duas situações,
qualitativamente diferentes, e configuram dois problemas éticos que exigem
soluções diferentes, apesar dos opositores radicais da eutanásia considerá-las
como idênticas, exigindo, ambas, as mesmas soluções.
Indivíduo, Pessoa e Sujeito
O conceito de ser humano é amplo e abrange duas noções específicas, muito
usadas por todos para referir componentes da sociedade humana e,
freqüentemente, são confundidas como se fossem uma única noção, apesar de
corresponder a coisas perfeitamente diferenciáveis: a noção de indivíduo e a idéia
de pessoa. Os conceitos de indivíduo e pessoa podem parecer idênticos, porque na
linguagem comum têm significados iguais e costumam ser usados como
sinônimos; mas são termos científicos diferentes e correspondem a dois sentidos
sócio-antropológicos e a duas realidades psicossociais distintas e definidas. O
conceito de pessoa é bastante mais amplo e contém o de indivíduo. A vida do
indivíduo começa bem antes da vida da pessoa, do início da edificação da
identidade pessoal e pode terminar bem depois (como no caso da justamente
denominada sobrevida dos descerebrados).
38
Esta distinção entre vida individual e vida pessoal parece ser um dos pontos mais
candentes da ética contemporânea. Os direitos civís, os direitos políticos e os
direitos humanos (antes chamados direitos individuais) se caracterizam como
direitos pessoais, direitos das pessoas, das personalidades.
Na linguagem científica, costuma-se denominar indivíduo a um ser diferenciado dos
demais por ter vida separada ou algumas características que o assinalem como
um ser singular; uma unidade funcional específica em relação às demais de sua
espécie. A unidade e a totalidade são as características essenciais da
individualidade. Qualquer coisa ou qualquer ser, de qualquer modalidade,
qualidade ou espécie pode ser encarado como um indivíduo. No indivíduo
coexistem e se confundem os atributos de singularidade e individualidade.
A individualidade de um ser se consubstancia em características que o
diferenciam dos outros da mesma espécie, fazendo-o, de certa forma, um ser
único em sua singularidade. Por isto, pode-se usar o termo individualidade com
sentido amplo para objetos indivisíveis (um planeta no sistema solar, uma galáxia
no universo, uma estrela na galáxia, uma laranja na laranjeira, uma formiga no
formigueiro).
Em ciência, a expressão indivíduo não tem conotação moral positiva ou negativa.
Na linguagem comum, sobretudo na imprensa de má-qualidade, a palavra indivíduo
tem conotação pejorativa, indicando depreciação. Mas, este sentido pejorativo
está inteiramente ausente do sentido com que esta palavra é usada como termo
científico nas ciências naturais e psicossociais. Já pessoa é uma noção que
transcende o conceito de indivíduo e existe para designar a entidade individual
humana completa, inclusive sua personalidade (o que inclui todos seus atributos
biológicos anatômicos e fisiológicos, psicológicos e sociais). Os traços
característicos da noção de pessoa são a personalidade e a dignidade.
A concepção de pessoa ultrapassa em todos os planos o conceito de indivíduo. Mas
esta diferença constitui, principalmente, uma diferença ética. Muito mais que uma
39
diferença antropológica ou, mais precisamente, uma diferença psicológica ou
psicossocial.
Não sendo possível que seja um diferença apenas verbal, convencionada, ideal e
sem qualquer implicação na realidade.
O termo indivíduo permite apontar qualquer ser singular em uma coletividade,
apenas um componente específico de uma coletividade, um elemento singular que
faz parte de um todo, seja a sociedade, a tribo, a manada, o cardume, a floresta, a
colônia ou qualquer outro conjunto. O indivíduo é o elemento mais simples de uma
coletividade, ainda que seja um conjunto inanimado; enquanto a pessoa é o
componente mais elementar da humanidade.
Pode se denominar pessoa ao indivíduo humano (o que se faz muito). Ainda que o
emprego da expressão indivíduo humano permita designar apenas suas
propriedades biológico-individuais, excluindo qualquer característica psicológica
ou sócio-cultural. Já a expressão pessoa humana, porque é absolutamente
pleonástica, deve ser evitada; pois, denuncia desconhecimento do significado dos
termos empregados; posto que, por mais tolerante que seja sua apreciação, não
há possibilidade de existir pessoa que não seja humana ou ser humano vivo que
não seja pessoa.<$FA maior amplitude que o termo pessoa possui é a de um
coletivo humano bem determinado e legalmente individualizado, a pessoa jurídica ou
personalidade jurídica, conceito metafórico que complementa o de pessoa física e
estes termos, sim, devem ser adjetivados.>
A Pessoa e o Sujeito
Se a pessoa pode ser definida como um indivíduo com personalidade e dignidade,
o conceito de sujeito pode ser definido como pessoa no exercício de sua vontade,
na direção de sua vida social e na construção de sua biografia. A voluntariedade
(não importando se é denominada vontade, volição, conação ou intencionalidade)
40
é a marca característica ou essencial de algo que poderia ser denominado de
sujeiticidade.
Um neologismo necessário que cabe muito bem nesta situação e em muitas
outras que devem ser cogitadas no estudo desta matéria.
Personalidade e Sujeiticidade
A noção de pessoa inclui uma referência à sua condição de ser social, um indivíduo
socializado, uma personalidade detentora de qualidade que, como se viu
anteriormente, a identificam, personalizam e dignificam. A dignidade da pessoa
tem sido um atributo sempre reconhecido nos homens de todos os tempos
civilizados e é um dado essencial não só da civilização, mas do humanismo. A
rigor, a personalidade constitui-se das características que configuram uma pessoa;
das qualidades que caracterizam uma pessoa e se diferencia da individualidade.
A noção de personalidade ultrapassa em muito o conceito de individualidade da
mesma maneira que o conceito de pessoa é muito mais amplo que o de indivíduo.
Analogamente, pode-se estabelecer a mesma relação com os conceitos de
personalidade e sujeiticidade (como se está denominando aqui a qualidade a
característica ou essencial do sujeito).
Conceito de Personalidade
A despeito de tudo, a noção de personalidade não tem conceituação pacífica e
universalmente que seja aceita por todos os estudiosos desta matéria.
Principalmente porque esta noção é muito mais antropológica e política do que
psicológica. E por isto, muito sujeita a contaminação ideológica e às influências da
visão do mundo que quem a emprega. O que não deve causar admiração a
ninguém. Poucos conceitos são tão submetidos as pressões ideológicas como
este. Nem tão influenciados pela visão de mundo.
41
Para uns, a personalidade encerra tudo o que existe na pessoa (ainda que não
sejam atributos caracteristicamente pessoais). Por isto, há quem lhe atribua a
soma de todos os traços morfológicos, fisiológicos e psicossociais d de um ser
humano. Empregam o conceito de personalidade como equivalente ao de
individualidade humana.
Outros, que confundem personalidade com sujeiticidade, pretendem-na como a
soma de todas as características psicológicas humanas e as condutas estáveis de
interação social.
Para alguns, a personalidade constitui-se da soma dos atributos psicológicos
estáveis.
Para muitos, a personalidade constitui-se das características psicológicas
notadamente humanas: a afetividade superior e a vontade.
E, por fim, há quem conceitue a personalidade como síntese dos traços
psicológicos caracteristicamente humanos e das características estáveis da forma
de uma pessoa se relacionar com as demais, com a sociedade e consigo mesma.
Englobando tudo o que é tipicamente humano (ainda que desenvolvida a partir de
características animais herdadas ao longo da trajetória evolutiva). Nesta última
perspectiva, mais consentânea com a opinião do autor deste trabalho, a
personalidade não se reduz mera soma de características, mas uma síntese de
atributos psicossociais situados na fronteira entre o psiquismo e a cultura. O
intelecto, a imaginação criadora, a atenção voluntária, a memória racional e
intencional, a afetividade superior representada pelos sentimentos, a vontade e a
capacidade de trabalho, além da possibilidade de comunicação e sociabilidade
seriam os elementos mais significativos da personalidade. Não havendo a menor
importância se ela é estudada de maneira analítica (pelos seus traços) ou sintética
(pelos tipos).
42
A noção de sujeito(caracterizada pela vontade e pela atividade voluntária) está
encerrada no conceito de pessoa, a concepção de pessoa está contida na noção de
indivíduo. Toda pessoa é um indivíduo, ainda que nem todo indivíduo seja uma
pessoa.
Além disto, a concepção de pessoa está indissoluvelmente associada à de
Homem, à concepção de ser humano (antropologia).
Todas as concepções de pessoa que podem ser identificadas em nossa cultura, e
mais as noções de de personalidade e de sujeito constituem o momento de
convergência das ciências humanas (psicológicas e antropológicas), das ciências
naturais (biologia e fisiologia) e das ciências da sociedade (sociologia, história).
Não é possível situar restritamente o eixo principal destas noções (ou de qualquer
uma delas) em quaisquer uma destas áreas particulares do conhecimento
científico. Não é possível, por exemplo, afirmar que a personalidade é uma
instância individual socialmente condicionada, ou se é uma instância social
individualmente limitada.
Dignidade Humana
A noção de dignidade humana, atributo moral associado a todo ser humano, é
importantíssima conquista ético-moral da civilização e elemento fundamental do
conceito de pessoa e sua diferenciação de indivíduo. Ao contrário da
honorabilidade, atributo pessoal que depende da conduta de quem a ostenta, a
dignidade é um valor atribuído pelos demais. Naquilo que é essencialmente ético,
considera-se a noção de pessoa como carregada pela idéia de dignidade humana
individual, mesmo quando em confronto com os interesses coletivos, o que
fundamenta a necessidade social que leva à codificação dos direitos civís e dos
direitos humanos. Enquanto o indivíduo é um componente eticamente neutro da
coletividade, a pessoa é o elemento da humanidade, premissa e resultado da
perspectiva ética.
43
Nestes termos, considera-se que a dignidade humana é apanágio das pessoas,
independente de sua origem, de sua conduta ou de seu destino. Todo ser humano
é merecedor de tratamento digno. Não importa se é rico ou pobre, não importa se
é um criminoso ou um santo, um cidadão prestante ou um criminoso. Ao menos
como princípio, todos os seres humanos são detentores de dignidade. Por isto,
existem as noções de direitos humanos e de garantias sociais.
No plano filosófico, o compromisso com a dignidade do outro é uma dimensão do
humanismo, qualquer que for o alcance que se atribua a esta expressão; no
âmbito da psicologia, deve resultar do auto-respeito, porque aqui, como em
situações análogas, a agressão a um, ameaça a todos, e os sentimentos que se
cultiva por si mesmo são dados importantes daqueles que se dedica aos demais.
Este compromisso faz da Medicina uma profissão especial por causa de seu
objeto.
O ser humano atual é o resultado de um longo processo evolutivo cujo início está
perdido no tempo, e cujas etapas intermediárias e mecanismos internos ainda não
estão muito bem estabelecidos. Nesse processo do desenvolvimento, tudo indica
que o surgimento da condição humana foi resultante da evolução das dimensões
biológica e psicossocial que, aliás, podem ser consideradas como processos
integrados de uma única totalidade que é completamente inviável sem qualquer
um deles. A dimensão biológico-individual e a dimensão psicossociocultural são
inseparáveis em cada ser humano concreto e tal divisão da totalidade humana só
pode resultar de um exercício artificial de análise.
O reconhecimento da dignidade humana é o ponto mais alto da evolução ética da
humanidade e foi sempre um pilar ético da Medicina. O processo de humanização,
ao conduzir o homem à consciência de si, da humanidade e da natureza,
possibilita-lhe entender suas relações com os demais, e indica que o ser humano
deve ser considerado muito mais, que um mecanismo natural de elevada
complexidade e excepcional rendimento, garante aos seres humanos a condição
44
de absoluta originalidade e dignidade face aos demais seres vivos. No início este
respeito foi obtido configurando-se a vida humana como atributo especial das
divindades.
Nos estudos científicos de qualquer ciência, ao menos em tese, os seres humanos
podem ser considerados como indivíduos ou como pessoas na dependência da
situação específica dessa escolha. No entanto, os fatores individuais e pessoais
hão de ser considerados, sempre, como estratos que traduzem níveis diferentes
de organização existencial e evolutiva, nem sempre distinguíveis na unidade do
humano No entanto, pode-se notar entre estes dois conceitos um elemento
diferencial claramente qualitativo.
A dignidade de seu objeto e a particularidade de sua situação de enfermidade (o
homem enfermo e com sua sobrevivência ameaçada, o ser humano sofredor)
emprestam ao exercício da Medicina e das atividades sanitárias correlatas ou
análogas, um caráter absolutamente único em sua singularidade. Muito mais ética
que técnica (ainda que, por causa disto, não deva ser menos técnica do que a
realidade lhe possibilita). Por isto, enquanto procedimento social e relação inter-
pessoal, a Medicina é uma atividade social que se distingue muito mais por sua
ética do que por sua técnica (embora esta não possa nem deva ser subestimada).
Considerando-se as três dimensões da Medicina: a ética, a técnica e a mercantil,
esta deve ser sua seqüência de prioridades.
O significado social de uma profissão sofre muita influência do valor que se atribui
ao seu objeto. A dignidade de seu objeto e sua posição singularíssima na relação
com seus clientes fazem com que as profissões incumbidas da saúde devam ser
consideradas como sendo completamente diferentes das outras atividades
profissionais. Mais que os agentes de quaisquer outras profissões, os profissionais
de saúde (e, em geral, os médicos, muito mais que os outros) lidam com três
elementos essenciais para as pessoas: sua vida, sua saúde e sua dignidade.
45
A dignidade humana não existe no éter, ela se materializa na identidade e na
personalidade de alguém real, em uma pessoa concreta. Qualquer pessoa e todas
as pessoas. A dignidade humana não deve ser considerada como apenas um
atributo genérico de todos os seres humanos, mas deve ser concretizada,
realmente, em cada ser humano individualmente como caracteriza e atributo
essencial seu.
Por isto, considera-se o altruísmo como um atributo essencial de todas as
profissões (ver o capítulo sobre os fundamentos sócio-antropológicos), mas é
particularmente importante na Medicina. Quem não gosta de gente, não deve ser
médico. Porque, a filantropia (gostar de gente, no sentido original da expressão) é
a primeira qualidade que se exige dele.
E o egoísmo (preocupação primária e particular com os próprios interesses) na
atividade do profissional de saúde, mais do que em qualquer outro, talvez seja o
fator que mais o desqualifique. O descaso com os pacientes, a falta de interesse
humano e o desinteresse tem sido impropriamente confundido com neutralidade
profissional, com não envolvimento, quando não é. O envolvimento pessoal do
profissional com o cliente (com sentido reprovável) se dá quando ele perde a
objetividade em seu desempenho técnico ou coloca outros interesses (ainda que
seja o seu próprio) acima dos interesses do paciente.
Enfermidade e Enfermo
O conhecimento das enfermidades e as relações recíprocas que as patologias
mantêm com as pessoas afetadas por elas, é objetivo cognitivo basilar da
Medicina e das ciências médicas. A Medicina existe como atividade social porque
existem pessoas que sofrem com as enfermidades, existe como atividade
científica porque estas enfermidades podem ser estudadas, conhecidas e
reconhecidas; a Medicina existe como atividade humana porque os enfermos
podem ser curados, cuidados e consolados.
46
Não se deve tentar separar os conceitos de doença e de doente, senão como um
exercício intelectual, porque são conceitos que se referem a duas coisas
completamente inseparáveis na realidade.
A despeito disto, é bastante comum que se encontre quem, pretendendo estudar
ou exercer Medicina, preocupe-se exclusivamente (ou quase exclusivamente) com
um destes aspectos inter-complementares: a doença (os doencistas) ou o doente
(os doentistas). Sendo que cada uma destas vertentes reducionistas incorre em
erro, dificulta o desenvolvimento teórico e prático da Medicina, enquanto prejudica
os enfermos.
Enfermidade e enfermo são as duas dimensões essenciais do objeto da Medicina
e constituem duas categorias completamente inter-complementares (chamadas
dialéticas, por que não pode existir uma, sem a outra).
Recorde-se que não existe enfermo sem enfermidade nem enfermidade sem
enfermo. Toda tentativa de pretender separar estes dois fenômenos reais resulta
em uma distorção de seu entendimento e uma perturbação de seu conhecimento.
Enfermidade é um conceito bastante amplo com o qual se designa
genericamente qualquer moléstia, patologia, doença ou condição de incapacidade
mórbida, invalidez ou sofrimento; neste sentido assim amplo. A enfermidade pode
atingir indivíduos vivos.
O termo enfermidade pode muito bem ser substituído pela expressão patologiaem
todas sua situações de emprego, porque enfermidade e patologia se referem a
uma condição individual caracterizada por um dano. O conceito de enfermidade
contém, pois, um juízo negativo de valor que se aplica a um acontecimento vital ou
existencial danoso. As enfermidades podem se apresentar como uma entidade
específica, algo novo na vida da pessoa, uma estrutura patológica definida (uma
manifestação qualitativamente nova), ou como uma variação danosa da
funcionalidade orgânica os psicológica (transtorno quantitativo).
47
O dano constitui o elemento basilar de todos os conceitos que se referem ao
objeto da medicina em todas as partes do mundo.
Na linguagem vulgar, ao menos no idioma português tal como é falado no Brasil,
se empregam também as expressões moléstia e doença com este sentido genérico e
inespecífico. Mas, isto que não é incorreto na linguagem comum, não deve ser
praticado na terminologia científica.
Doença é uma enfermidade ou uma condição patológica identificável e
reconhecível por suas manifestações clínicas, por sua etiopatogenia e por seu
prognóstico que é conhecida ou sentida pelo doente. A consciência da doença é
sua característica mais importante e que lhe possibilita assumir o papel de doente.
Moléstia é mal-estar, o incômodo, a perturbação subjetiva, o sofrimento
determinados por uma condição patológica. Também podem ser identificadas
patologias por dano negativo, caracterizadas por faltar uma estrutura ou parte
dela, ou haver prejuízo funcional identificável em relação ao modelo humano;
estas condições patológicas podem ser congênitas (deficiências) ou adquiridas
(mutilações, desfigurações).
Enfermo é a designação que se atribui ao ser que padece uma enfermidade,
uma moléstia qualquer; quem está afetado por alguma condição clínica
correspondente a uma patologia diagnosticável, correspondente a uma das três
classes de patologia (prejuízo funcional ou estrutural, doença ou sofrimento
inadequado). Enfermo é o indivíduo no qual se manifesta uma perturbação
perceptível de seu sistema vital, a pessoa que padece uma enfermidade de
qualquer natureza.
Noções como doença, enfermidade, moléstia, condição patológica, invalidez,
transtorno, distúrbio, desordem não se definem por si, são construtos, conceitos
valorativos caracterizados pelo dano que ocasionam às pessoas (ou outros
48
organismos individuais) afetadas. Dano este que pode ser estrutural ou funcional,
com ou sem sofrimento, com maior ou menor prejuízo pessoal ou social.
A pessoa enferma, no entanto, não pode nem deve ser concebida como um ser
reduzido a portador de enfermidade; ou um indivíduo afetado por um agente
patogênico e sujeito à sua ação prejudicial; mas, o enfermo deve ser entendido
sempre como um ser humano que sofre uma doença, uma pessoa prejudicada por
uma patologia, alguém que padece uma moléstia que, por isto, merece ajuda e
tem direito a ser cuidado com competência e desvelo pelos demais membros da
sociedade, principalmente pelo pessoal da saúde e pelos agentes Estado.
Durante muito tempo, discutiu-se se o objeto da Medicina seria a doença ou o
doente. Esta discussão é inútil, pois, doente e doença são fenômenos
absolutamente interdependentes e inter-complementares, inexistindo um sem o
outro; a enfermidade é um estado, uma qualidade do enfermo. Não pode haver
doente sem doença, nem doença sem doente. Estes dois fenômenos e suas
relações constituem o cerne do objeto da Medicina. Não obstante, existe quem
defenda (e pratique) os reducionismos extremados: os doencistas que se
preocupam e se ocupam apenas com as doenças e os doentistas, preocupados e
ocupados só com os doentes.
Da definição do objeto da Medicina, ressaltam quatro aspectos ontológicos que
são complementares e importantes:
= a) a vastidão e complexidade do objeto da Medicina abrange as pessoas
enfermas, os seres humanos e suas enfermidades (o que envolve um conjunto de
ciências e um sistema de técnicas de intervenção na realidade); e
= b) que o estudo da ontologia médica envolve, preliminarmente, a circunscrição
de diversos conceitos, referentes a diversos fenômenos que se entrelaçam em seu
objeto (tais como organismo, ser humano, pessoa, patologia, saúde, enfermidade
e enfermo, ambiente e sociedade, prevenção, diagnóstico, tratamento e
reabilitação);
49
= c) que o objeto da Medicina integra simultaneamente a pessoa e a sociedade, o
organismo e o meio, a patologia e a saúde, o doente e a doença que constituem o
núcleo do objeto da Medicina;
= d) toda doença humana é uma doença pessoal e um fenômeno ecológico, além
de patológico (e a principal característica da patologia é o dano que ocasiona).
Em um plano mais amplo, com relação estes dois aspectos da identidade do
objeto da Medicina, o doente e a doença, existem mais duas tendências extremas:
a tecnicista, voltada para a doença, e a humanista, dirigida para doente.
Ser Humano e Humanismo
O principal objeto da Medicina é o ser humano enfermo, o ser humano que sofre
uma enfermidade ou padece suas conseqüências objetivas e subjetivas. A pessoa
enferma constitui o objeto essencial da Medicina que, absolutamente, não existiria
sem ele. Embora, como já se mencionou anteriormente, os conceitos de
enfermidade e enfermo se integrem numa totalidade apenas separável por um
processo analítico, a Medicina se originou da necessidade de minorar ou curar a
dor e as demais vissicitudes experimentadas pelo ser humano vitimado por uma
condição de enfermidade que lhe causa algum dano ou se constitui em uma
ameaça para sua integridade, sua felicidade ou sua dignidade. A pessoa enferma
ou ameaçada de morte foi sempre o motivo e o objetivo da ação social e técnica
dos médicos em todas os lugares, em todos os momentos da história de todas as
culturas.
A dor do enfermo parece ter sido a condição mais importante, dentre as que
determinaram o aparecimento do médico e só depois, da medicina e do interesse
pela enfermidade.
O ser humano, concebido como pessoa, não pode ser reduzido ao organismo ou
a uma interação mecânica entre o organismo (entendido como indivíduo passivo e
passivamente plasmado por estímulos do meio físico ou do meio social.
50
A pessoa, entendida como personalidade e credor de dignidade, sujeito de seu
próprio destino e agente copartícipe do processo histórico-social, além de um
agente do desenvolvimento da cultura material e espiritual, é um ser
biopsicossocial qualitativamente diferenciado das outras espécies vivas, sobretudo
por causa das relações especiais que mantém com a meio físico e com a
sociedade (o meio social).
O ser humano enfermo ou ameaçado de enfermidade é dado essencial do objeto
da Medicina e só esquematicamente pode ser tido como um organismo humano
ao qual se acrescentam elementos de sua existência social e características
psicológicas. Neste esquema, o conceito de organismo deve estar absolutamente
vinculado ao de ambiente, assim como o conceito de pessoa é interdependente do
conceito de sociedade. A pessoa é moldada pela interação entre seus aspectos
biológico-individuais e sociais.
No entanto, o conceito de organismo está muito identificado com a noção de
sistema vivo e, por isto, com a dimensão biológica da existência humana, estando
muito longe de representar o conceito bastante amplo de ser humano, enquanto
ser de natureza bio-psico-social, construtor de cultura, sujeito do processo
histórico-social e de seu destino pessoal; um ser considerado único em dignidade
e em personalidade e essencialmente caracterizado, exatamente, por esta
singularidade que lhe dá sua personalidade e sua dignidade humana. Estas são
as características da pessoa.
O conceito de organismo tem sido considerado pelos positivistas mais ou menos
estritamente como mecanismo biológico, máquina animada, abrange apenas a
dimensão biológica do homem, seus aspectos biológico-individuais, no máximo,
integrados no meio físico, sem qualquer referência à sua integração no meio social
ou aos seus mecanismos psíquicos.
O conceito ampliado de organismo, descomprometido dos preconceitos
positivistas, pode (e talvez deva) conter o de psiquismo. E muitos o utilizam assim,
51
entendendo o psiquismo como parte integrante do organismo, principalmente
porque recusam separar o corpo do psiquismo como fazem os dualistas, que
primeiro separam o corpo da alma e, depois, apartam a mente do corpo, como se
fossem duas realidades essencialmente diferentes.
Por isto, ao menos em sentido bastante amplo e sob influência da doutrina
filosófica monista, a referência ao organismo humano pode (e talvez deva) incluir a
noção de psiquismo e, portanto, abranger as noções de ambiente físico e meio
social como contextos obrigatórios dos seres humanos.
O objeto da Medicina deve ser entendido como uma díade com duas faces
completamente inter-complementares: a pessoa afetada (ou em risco de ser
afetada) por uma patologia e a patologia que afeta (ou é potencialmente capaz de
afetar) às pessoas, comprometendo seu bem-estar, seu desempenho e sua
realização pessoal e social.
A condição vital especial dos seres humanos é muito difícil de ser
precisada,<$FDificuldade que se torna insuperável caso se adote um modelo
animal para referir o ser humano, como fazem os positivistas naturalistas que
infestam a psiquiatria contemporânea.> mas pode-se dizer que se caracteriza por
sua consciência, seu intelecto, sua capacidade verbal, sua aptidão para amar e
sua possibilidade de transformar deliberadamente o mundo; condições estas que
são, simultaneamente premissa e resultado de sua história e de suas relações
sociais. Aparentemente o corpo humano não se diferencia por algum elemento
qualitativo, ao contrário de sua condição psicológica e social.
Estas características de ser social e histórico, de pessoa e de sujeito, além de um
organismo vivo, fazem do homem um ser especial, simultaneamente agente,
produto e habitante de três mundos: o mundo da sociedade, o mundo biológico e o
mundo psicológico (nascido da confluência e da contradição dos dois anteriores).
Síntese desta tríplice identidade, o ser humano se caracteriza por sua inteligência,
por sua capacidade de comunicação, por sua capacidade de transformar o mundo
52
9.1.  especificidade e ontologia.res
9.1.  especificidade e ontologia.res
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9.1. especificidade e ontologia.res

  • 1. Fundamentos Epistemológicos da Medicina 5.3 Especificidade Científica Luiz Salvador de Miranda Sá Jr. Não há conhecimento ou procedimento científico sem especificidade. Como exigência de cientificidade a especificidades se apresenta com duas dimensões e devem ser ambas consideradas neste estudo. As duas dimensões conceituais da especificidade são: uma ontológica e outra, gnosiológica. Do ponto de vista ontológico: o objeto deve estar bem especificado, bem definido e ser objetivo o objetivável. O ponto de vista gnosiológico da especificidade significa que esse objeto deve poder ser estudado objetivamente e isto ser comunicável (cognoscibilidade objetiva e comunicabilidade). Especificidade é como se denomina a qualidade daquilo que é específico. Específico é o que se diz de algo que é próprio de uma espécie. Espécie é a entidade singular e mais elementar de um conjunto; se refere à natureza dos indivíduos de um conjunto homogêneo. Espécimem é um indivíduo de uma espécie. A especificidade factual inclui objetividade como característica essencial da ciência e indicador de cientificidade, se refere às propriedades específicas do objeto da ciência (o que lhe assegura caráter específico, porque a especificidade 1
  • 2. de um conhecimento ou atividade científica é assegurada unicamente por seu objeto). Quando empregada como indicador de cientificidade, a avaliação da especificidade inclui em sua conceituação dois aspectos essenciais inter- complementares e inseparáveis: a) qualquer atividade científica deve ter seu objeto bem delimitado e claramente definido (aspecto ontológico) e b) tal objeto da atividade científica deve poder ser estudado objetivamente (aspecto gnosiológico). A expressão objetividade contém dois sentidos distintos mas inter-complementares: O primeiro, referente ao indivíduo que exerce a prática científica, de quem se deve esperar isenção e o máximo de neutralidade ou imparcialidade em seu trabalho, o que deve caracterizar o observador ou experimentador científico. Em segundo lugar, trata-se da objetividade como atributo da coisa observada, do objeto que independe do observador, a objetividade como qualidade daquilo que é objetivo, do que existe objetivamente, e cuja existência independe do desejo ou de qualquer outra manifestação do observador. Neste segundo sentido, a objetividade consiste em autonomia da coisa objetiva em relação à consciência de quem a contempla ou estuda. Em filosofia da ciência, sobretudo em teoria do conhecimento, denomina-se objeto ao termo do conhecimento, à coisa intencionalmente conhecida e capaz de ser matéria de um juízo. Do ponto de vista da teoria do objeto, parte integrante da ontologia, interessam à filosofia da ciência duas categorias de objetos: os objetos reais, os objetos ideais. Os objetos ideais (as idéias) são inespaciais e intemporais, pois não existem no espaço ou no tempo; correspondem aos objetos das ciências formais, como lógica, a matemática; enquanto os objetos reais (os objetos e fenômenos da realidade, existem independentes do sujeito) são dotados de realidade e, portanto, dotados 2
  • 3. de espacialidade e temporalidade, correspondendo aos objetos das ciências factuais. A despeito de muitas objeções possíveis, pode-se dizer que algo é objetivo, quando é determinado por si mesmo, tem existência independente do observador. O conceito de realidade objetiva significa tudo que tem existência real fora da mente de quem a contempla ou estuda; o ser concreto; o ente objetivo; tudo o que existe no espaço e no tempo, independentemente da imaginação ou de outra manifestação subjetiva. Existe convergência e identidade entre os conceitos de realidade objetiva, realidade concreta e realidade material. Em filosofia do conhecimento, a noção de real se opõe à de ideal (o que só tem existência como dado subjetivo de alguém). As noções de idéia, abstração e subjetividade apontam para a direção oposta da realidade objetiva: a realidade subjetiva, que não existe a não ser como narrativa, senão para quem a experimenta. Embora as expressões realismo, materialismo e objetivismo (não se inventou concretismo, a não ser na arte) tenham a mesma origem etimológica, significam doutrinas filosóficas bastante diferentes e se enquadram em estruturas ideológicas freqüentemente conflitantes. Disso, pode-se inferir que aqui as expressões realismo (e materialismo) e idealismo têm significados inteiramente diferentes daqueles com que se usam estas palavras ma linguagem comum. O sentido moral com que se empregam, especialmente os conceitos de idealismo e materialismo não existe na filosofia do conhecimento. Do ponto de vista ontológico, avalia-se a cientificidade do objeto de uma ciência factual (ou o conhecimento da realidade tido como científico) a partir de dois dados essenciais: a) sua objetividade e b) sua cognoscibilidade. 3
  • 4. Para isto, não pode existir conhecimento científico, investigação científica ou procedimento científico sem objeto, com objeto mal definido ou indefinido; como não pode haver ciência cujo objeto não possa ser estudado objetivamente. O objeto de uma ciência ou de um procedimento científico deve ser objetivo ou possível de ser objetivado (como acontece com os fenômenos e processos psíquicos que se objetivam na conduta e, assim, pode ser estudados indiretamente). No primeiro sentido mencionado, a objetividade talvez seja o elemento mais essencial da isenção do cientista em seu trabalho, daquilo que se denomina perspectiva crítica da ciência. Perspectiva que, nunca será demais repetir, é precisamente no objeto que se corporifica e se materializa a atividade científica. Ademais, é a partir da cognoscibilidade objetiva deste objeto, da possibilidade deste objeto ser estudado objetivamente, que se estrutura a metodologia científica (mas não deve ser confundida como neutralidade política e moral da ciência, que é sua perversão). Uma técnica pode ser e, até, costuma ser definida por seu método; mas uma ciência se define sempre por seu objeto. No segundo sentido da objetividade, a objetividade do objeto do conhecimento se expressa por sua existência objetiva, por sua existência independente do observador. Por isto, é da maior pertinência avaliar-se aqui algumas das questões ontológicas acerca do objeto da Medicina e da psiquiatria, especificamente do objeto das ciências médicas sobre o qual se apóia a Medicina e a psiquiatria. Quando se considera a exigência ontológica e gnosiológica da especificidade, que é expressa pela possibilidade de estudo objetivo daquele segmento da realidade, é preciso que não se confunda realidade e concreção, nem abstração e irrealidade porque cada um destes conceitos tem significação precisa e se refere a uma coisa bem definida. Nunca é ocioso repetir, também, que a realidade material se compõe de coisas (objetos materiais) e construtos (objetos ideais tais como fenômenos, juízos, 4
  • 5. fatos e acontecimentos). E não pode haver ciência ou conhecimento científico cujo objeto seja incognoscível ou que não possa ser estudado e conhecido objetivamente. A Medicina tem como objeto as relações recíprocas que se estabelecem entre o ser humano (uma coisa) e a enfermidade (um construto), o meio físico (outra coisa) e o meio social (outro construto); levando em conta as inter-relações mútuas que se estabelecem, de um lado, entre o indivíduo e o meio físico e, de outro lado, entre a pessoa e o meio social. Este caráter hibrido de seu objeto talvez seja o fundamento da maior parte dos problema ontológicos com os quais se depara que pratica ou tem a Medicina como objeto de estudo. Esta concepção totalizante da Medicina mostra a impossibilidade dela ser avaliada desde qualquer ponto de vista reducionista; seja biológico-individual, psicológico-individual, ambiental-social ou ambiental-natural. Porque cada um destes ângulos de avaliação é uma vertente inseparável das demais na totalidade da Medicina. E não parece ter sentido denominar a isto Medicina Integral porque, se não for integral, não é nem deveria ser considerada como Medicina. O que se denomina medicina integral ou medicina geral e o estudo ou prática da medicina como uma atividade total, como uma unidade que transcende a soma de suas especialidades. Tanto na Psicologia Social, quanto na Psiquiatria Social nota-se grande dificuldade para delimitar conceitualmente seus objetos, distinguindo-se das ciências limítrofes, notadamente da Psicologia Geral, da Sociologia, da Antropologia, e este talvez seja o principal obstáculo para sua afirmação como disciplinas científicas. Antes de entrar na consideração de questões ontológicas mais gerais de todas as ciências ou da mais específicas que interessam à Medicina e aos médicos, vale a pena levantar, ainda que superficialmente, o sujeito do conhecimento e os objetivos da Medicina, por causa da relação existente entre estes e seu objeto. Principalmente, porque as divergências acerca destas relações constituem, senão 5
  • 6. os mais importantes, ao menos os primeiros com os quais se depara quem se inicia no estudo da teoria do conhecimento médico. O Sujeito do Conhecimento Todo conhecimento presume a existência de um sujeito e de um objeto daquele processo cognitivo (quem conhece e o quê é conhecido). A noção se objeto do conhecimento (aquilo que é conhecido) só faz sentido porque se completa na noção que lhe é simétrica e complementar de sujeito do conhecimento (aquele que elabora e processa o conhecimento). Isto sucede, seja conhecimento comum, seja no conhecimento científico ou no conhecimento filosófico. O sujeito do conhecimento, a pessoa que conhece (que em Filosofia se denomina ser cognoscente) é a pessoa que conhece, a consciência que elabora o saber, a subjetividade que se completa na objetividade. A participação ativa de quem está conhecendo no processo cognitivo, seus interesses, desejos, tendências e preferências devem ser consideradas influências na participação que, por objetiva que tente ser, tendem a comprometer a pretendida objetividade. Assim como a objetividade tem sentido de não-tendenciosidade e liberdade frente ao processo de conhecer, a subjetividade sempre inclui uma conotação de compromisso, de envolvimento, de participação do agente. A possibilidade de conhecer do sujeito depende da possibilidade de se fazer conhecer por ele (que caracteriza o objeto). Isto é, a possibilidade de conhecer do sujeito cognoscente, em princípio, está subordinada às características do objeto do conhecimento. Alguns objetos (os objetos ideais) estão sujeitos unicamente à razão. Outros, como sucede aos objetos muito pequenos, as dimensões microscópicas do objeto, deixam-no fora do alcance das possibilidades do sujeito, a menos, que utilize um recurso óptico para ampliar suas possibilidades senso-perceptivas ou algum equipamento de detecção para estender qualitativamente sua capacidade perceptiva. A qualidade e o êxito do processo de conhecer dependem, pois, de fatores objetivos (ligados ao objeto e independentes do sujeito) e subjetivos 6
  • 7. (ligados ao sujeito e mais ou menos independentes do objeto do processo cognitivo. O conhecimento depende da integridade dos recursos fisiológicos, da experiência existencial, do presente, passado e aspirações de futuro; preconceitos, interesses e desejos do sujeito. Este envolvimento é característico do conhecimento vulgar (que é, por definição muito vulnerável a ele) e, por isto, a metodologia científica, exige procedimentos e recursos destinados a afastar a tendenciosidade. Tais procedimentos constituem o núcleo da metodologia científica de investigação do mundo. Sem perder de vista que os fatores relacionados ao objeto não são mais ou menos importantes que os subjetivos. No plano subjetivo, os conhecimentos que estão sendo elaborados não sofrem influência apenas dos fatores cognitivos, mas dos afetivos e, ambos, tanto conscientes quanto inconscientes. A influência da dimensão inconsciente, por exemplo, pode ser tida como verdadeira e presente, ainda que não possa ser operacionalizada o empiricamente demonstrada com os recursos metodológicos e técnicos de que se dispõe hoje. Entretanto, a impossibilidade de operacionalizar empiricamente o conceito de inconsciente não parece ter nada a ver com a realidade ou irrealidade da inconsciência, mas com uma limitação do processo que usamos para estudá-la. O simples fato de não se poder comprovar a realidade do conteúdo de um conceito não significa que ele seja irreal. Só que sua realidade não foi comprovada. A subjetividade, que pode ser tida como o principal atributo do sujeito, é o conceito complementar ao de objetividade e diz respeito às manifestações da vida interior de quem experimenta (ou vivencia) uma experiência existencial consciente ou inconsciente. Objetividade e subjetividade são extremo apenas aparentemente oposto de uma mesma totalidade. Incontáveis condições podem exercer papel diretor e tendencioso na subjetividade de quem conduz um procedimento de investigação científica; ainda que se possam mencionar como principais os seguintes: estado das estruturas e funções 7
  • 8. neuro-psicológicas; interesses materiais (prêmios, salários, contratos, aumentar a venda de um produto, garantir contratos de investigação); orgulho e vaidade (prestígio, influência, renome ou apenas a precisão de publicar alguma coisa por imposição da carreira acadêmica) e, por fim, a paixão (tanto paixão pelo objeto de estudo ou o interesse afetivo em um resultado predeterminado, quanto paixão por si mesmo e sua produção). No entanto, é preciso destacar que a influência da subjetividade do investigador não se revela apenas como fator negativo para a investigação e a intervenção científicas. Também se reconhecem entre os fatores subjetivos do processo de conhecer algumas condições bastante positivas, indispensáveis mesmo. Tenacidade, persistência, laboriosidade, inteligência, conhecimento prévio e interesse, entre outras, podem ser condições subjetivas positivas importantes para o resultado de um trabalho, ainda que não exista por si só, mas como atributos de uma pessoa determinada. Inter-subjetividade na Ciência A subjetividade e a inter-sujetividade são inafastáveis da atividade científica, por que a ciência é uma abstração, um construto subjetivo que se materializa na atividade, inclusive ou principalmente mental, dos cientistas e em sua interação. A troca de informações e a colaboração interpessoal, a discussão, a refutação sistemática, a crítica (que inclui a auto-crítica) são manifestações intersubjetivas indispensáveis ao desenvolvimento da atividade científica. As questões relacionadas com a inter-subjetividade exercem influência na teoria do conhecimento científico e são núcleo da comunicação do conhecimento e seu desenvolvimento. Os fenômenos psicossociais e muitas das manifestações de enfermidade, principalmente das enfermidades psiquiátricas, não podem ser constatadas diretamente pelo observador (carecem de objetividade) e só podem ser conhecidas por ele, desde que relatadas pelo paciente (fenômeno inter- subjetivo). 8
  • 9. Na atividade científica, importa refletir nas elaborações subjetivas de quem a realiza, além de pensar no reflexo destas interações nas relações entre o sujeito e o objeto do conhecimento e das interações entre o sujeito cognoscente e seus eventuais interações. Nas ciências da natureza, o conhecimento se dá pela relação entre a subjetividade e a realidade objetiva, precisando ser validadas. Tem-se como certo que as representações subjetivas só podem ser consideradas válidas se seu processo de validação tiver sido objetivo, se resultarem de proposições validadas de maneira aceitável pela ciência naquele momento de seu desenvolvimento. Com relação à influência da objetividade e da subjetividade, existem três tendências extremadas em filosofia da ciência: o objetivismo (que nega ou subestima toda contribuição da subjetividade); o subjetivismo (que faz o mesmo com relação ao que for objetivo) e a eclética que é a síntese dialética destas duas (que trabalha com ambas as vertentes desta dicotomia, sem se deixar levar por nenhuma delas). Os aspectos intersubjetivos devem merecer a maior atenção por parte de quem se preocupa em estudar a ciência filosofia do conhecimento científico. Dentre os aspectos intersubjetivos, destacam-se os problemas da cooperação e da comunicação científica. Regis de Morais<$Fop. cit. p. 90.> aponta para as seguintes situações em que a subjetividade do pesquisador influi no resultado do trabalho científico: 1. necessidade de pré-estruturas cognitivas para a adquirir novos conhecimentos; 2. necessidade de certa cultura, inclusive de conhecimentos anterior por parte do sujeito para uma aproximação adequada dos novos fenômenos; 3. capacidade lógica para relacionar inteligentemente os dados; 9
  • 10. 4. necessidade de participação (engajamento, interesse, motivação) no que estiver sendo investigado, As relações entre o sujeito e o objeto, a objetividade e a subjetividade e o desdobramento teórico e práticos destas relações, depende dos objetivos da ação. É bastante diferente quando alguém pretende fazer um bom trabalho e, depois, deseja receber por ele, do que alguém que tem o dinheiro como objetivo principal e trabalha para atingi-lo. No primeiro caso, o trabalho é fim e, no segundo, se reduz a um meio. OBJETIVOS DA MEDICINA Os objetivos ideais da Medicina como instituição social (porque existem os pessoais de cada um de seus praticantes) dependem essencialmente de sua identidade. Como a instituição sanitária a Medicina sintetiza diversas identidades e qualquer uma delas pode ser confundida com ela. Veja-se. Na atividade social medica coexistem diversas identidades sócio-institucionais, das quais se destacam as seguintes: 1. a identidade sócio-econômica ou laboral, 2. a identidade técnico-científica e 3. a identidade sócio-cultural, que inclui a ética. A dimensão laboral é a que mais se destaca à primeira vista – a medicina profissão dos médicos. A segunda vertente da identidade da Medicina, sua dimensão técnica e científica, é a que será considerada prioritariamente no estudo que se segue, ainda que as demais também sejam levadas em conta, ao menos de passagem. Até porque, estas duas identidades da Medicina se superpõem, se misturam sendo bastante comum que não possam ser diferenciadas nas situações 10
  • 11. concretas senão por um exercício lógico de abstração. Contudo, ao logo de seus muitos séculos de existência, tem sido a identidade ética que assume a primazia sobre as demais. Todas as culturas modernas reconhecem a Medicina como uma ocupação especial e credora de responsabilidade social relativamente grande, como a prática social humana reconhecida como valiosa e uma aplicação científica com significativo compromisso ético, o que a situa como uma atividade profissional responsável e uma atividade científica acreditada. Grande parte deste crédito decorre da conduta de seus profissionais considerados individualmente; mas, ao menos em parte, há de resultar do reconhecimento público de seus objetivos institucionais. As pessoas enfermas sempre estiveram na fonte dos propósitos da Medicina. Desde sua origem mais remota, o principal objetivo da Medicina tem sido o doente. Restaurar-lhe a saúde e abolir seu sofrimento foram os objetivos básicos. Desde muito remotamente, o tratamento é considerado como sinônimo da Medicina. Nas as sociedades modernas, todas as dimensões da Medicina (destacando-se a profissional e a técnico-científica) convergem para buscar como objetivo geral e principal ajudar os enfermos através da consecução das seguintes metas específicas: a) conhecer os enfermos e reconhecer as enfermidades, seus condicionantes e seus mecanismos de interação mútua; b) prescrever e aplicar procedimentos destinados a evitar que as pessoas enfermem; c) desenvolver os recursos capazes de evitar a evolução das enfermidades e desenvolver meios para cuidar e, se possível, curar os que enfermaram; d) aliviar o sofrimento dos que padecem uma moléstia e 11
  • 12. e) exercer esforços para reabilitar as pessoas afetadas por incapacidade e invalidez determinadas por enfermidades ou traumatismos. Em resumo: conhecer as enfermidades e os enfermos, prevenir as enfermidades e promover a saúde, tratar e reabilitar os enfermos. Estes são os objetivos fundamentais da Medicina em todas as culturas conhecidas. Destes objetivos, o mais antigo e aquele que está mais profundamente encerrado na consciência social é o tratar (curar). Desde seu início na magia, a Medicina tem sido reconhecida como a ciência e arte de curar. Curar com o sentido de tratar. Este tem sido sempre o objetivo mais importante da Medicina, ao qual, mais recentemente se acrescentou o propósito de prevenir. Mas, deve-se ressaltar que, enquanto curar é uma tarefa médica específica (ainda que não exclusiva), prevenir tem alcance muitíssimo mais amplo e abrange muitas atividades. Estes objetivos médicos essenciais que foram listados acima se integram em duas práticas sanitárias distintas (geralmente realizadas por organismos sociais diferentes): a Medicina Curativa Individual e a Medicina Preventiva Social (conjunto indissociável de procedimentos sanitários englobados na Higiene e Saúde Pública, na Medicina Preventiva e Social e na Saúde Coletiva). Mas, também podem compor uma perspectiva mais abrangente e monista, sendo tidas como um processo sanitário único que integre os procedimento de assistência individual e os procedimentos de intervenção na coletividade; um conjunto de intervenções que se dê como uma unidade integrada, ativa, positiva e preventiva. Na primeira opção, imagina-se uma diferença essencial entre estas duas práticas e suas teorias de suporte; na segunda, ambas são reconhecidas como dimensões de uma mesma totalidade, a unidade dos aspectos preventivos e curativos na inteireza da Medicina. O que configura a essência da Medicina Preventiva: prevenção primária (promover a saúde e evitar enfermidades), prevenção secundária (diagnosticar as patologias 12
  • 13. com precisão e tratar o enfermo com eficácia o mais brevemente possível) e prevenção terciária (reabilitar os prejudicados pela enfermidade). QUESTÕES ONTOLÓGICAS GERAIS DO CONHECIMENTO MÉDICO A ontologia ou teoria do objeto pode ser definida como o capítulo da filosofia que formula e desenvolve a o conhecimento sistemático do objeto material que estiver sendo estudado em uma dada atividade cognitiva. Caracterizar bem um objeto material de cogitação filosófica ou científica. A ontologia não estuda construtos, só objetos concretos, materiais. Com resquício de sua origem na Metafísica, a ontologia também pode ser definida, em sentido mais estrito, como o estudo do ser; ou, ainda, o estudo dos entes ou a investigação sistemática do ser que estiver sendo considerado em uma determinada investigação. Caso se aprofunde o estudo desta disciplina filosófica, pode-se constatar que a ontologia tanto pode ser dirigida para o estudo do serem geral (muito a gosto dos filósofos idealistas), quanto para o estudo dos seres particulares ou, mesmo, os entes específicos que constituem os objetos específicos de cada atividade cognitiva, os entes específicos de cada estudo científico. De um ponto de vista estritamente científico-natural do estudo filosófico da ciência, o momento ontológico consiste teoria que permite caracterizar e definir o objeto de um estudo e circunscrever seus limites o mais exatamente que for possível, distinguindo-o o mais precisamente de tudo o mais que existe. A investigação ontológica de uma ciência consiste na caracterização de seu objeto de investigação. Qual fração do mundo é estudada por aquela ciência? Quais as coisas (seres ou entes) estão abrangidas por ela? Em filosofia, denomina-se ente, àquilo que é, em qualquer dos significados do termo ser.Ou pode ser entendido como uma coisa existente, real. A partir de um ponto de vista científico-natural, pode-se entender ente como uma unidade existencial dotada de entidade definível por si mesma, dotado de status existencial 13
  • 14. próprio, e de uma identidade social reconhecível por suas próprias características. O termo apareceu da Filosofia de Heidegger, que usava o termo ente para significar o ser que existe objetivamente, o ser concreto, uma coisa real, uma parte da realidade. Donde se depreende a que o conceito de ente, embora tenha surgido de um ponto de vista realista, com significado voltado para a realidade, também pode ser empregado como conceito idealista (embora isto não seja correto, ao contrário). Como os filósofos idealistas religiosos necessita muito levar em conta a presença suprema de uma divindade em suas cogitações e o conceito de ser se presta muito para isto, servem-se dos conceitos de ser e de ente (devidamente idealizado) para representá-la. Entretanto, em uma perspectiva ontológica e materialista do conhecimento e por fidelidade a seu significado original, a noção de ente corresponde a de entidade, coisa existente, parte da realidade. Desde que esse mesmo enfoque científico-natural seja aplicado às cogitações da filosofia da ciência, pode-se considerar a ontologia como o ramo da filosofia que estuda o ser, o ente, o objeto que focaliza o estudo de uma ciência ou atividade científica; o ente natural social ou humano que é objeto de estudo científico e este estudo ontológico pode ser aplicado a qualquer tipo de investigação. No caso presente, a perspectiva ontológica está dirigida para o objeto das ciências médicas, em geral, e para a Medicina, em particular. Em Medicina, a noção de ente (objeto de estudo) pode ser aplicada a dois elementos de seu objeto: o enfermo, ente humano afetado pela enfermidade, e a enfermidade, a entidade clínica que, afetando a pessoa, lhe confere a condição de enfermo. Pois, enfermidade e enfermo são categorias patológicas inseparáveis. Não se pode cogitar de uma sem considerar a outra. A enfermidade e o enfermo configuram a dupla face do objeto da Medicina. Para facilitar o entendimento da noção de ontologia e os conceitos derivados dela, pode-se afirmar que a avaliação ontológica do conhecimento científico sobre 14
  • 15. alguma coisa se refere ao o quê é o objeto daquela atividade cognitiva. Em filosofia da ciência, ontologia é o estudo do ente estudado em uma atividade científica. As questões ontológicas específicas de cada área do conhecimento científico dizem respeito ao objeto de cada ciência em particular. A ontologia de uma ciência encerra o estudo do objeto daquela ciência, enquanto objeto do conhecimento científico. Ao lado destas questões ontológicas específicas de cada ciência considerada individualmente, existem algumas questões ontológicas que interessam a todas as manifestações do conhecimento, embora sejam mais importantes para o conhecimento científico. As questões ontológicas relacionadas com a epistemologia ou teoria do conhecimento, dizem respeito ao objeto do saber: o conhecimento-resultado. O que é o conhecimento? Como se define? Como se estrutura? A ontologia é o capítulo da filosofia que estuda o objeto (originalmente, do ser ou do ente). A avaliação ontológica de um processo cognitivo é o estudo de seu objeto que deve ser iniciado com sua delimitação. O objeto de uma ciência qualquer deve circunscrever uma área específica e especificada de conhecimentos definidos acerca daquela fração particular e bem delimitada do mundo. As ciências factuais têm seus objetos na natureza, no homem ou na sociedade. A investigação ontológica, no sentido de caracterização científica do objeto daquela atividade cognitiva, é sempre um momento fundamental de cada ciência, ainda que isto nem sempre seja sabido por quem a cultiva ou nela represente um papel. As ciências se definem sempre pelo seu objeto e cada ciência deve ter objeto definido ao mesmo tempo que se define por este objeto. Todas. Ainda que algumas áreas especializadas no interior de uma ciência possam, eventualmente, serem definidas por um método, uma técnica ou, mesmo, uma filigrana técnico- científico (como um procedimento técnico particular). Já as profissões, a despeito 15
  • 16. de sua base científica, eventualmente, podem ser definidas pelo método ou pela técnica que utilize ou mesmo por um determinado procedimento técnico. As ciências podem ser classificadas do ponto de vista da natureza de seus objetos. Por isto, na dependência de seu objeto de estudo, existem ciências naturais, ciências humanas e ciências naturais. A natureza, com sentido de universo material, abrangendo seus aspectos concretos e abstratos, objetivos e subjetivos, se organiza em estratos diferentes de estruturação que apresentam níveis diversos de complexidade; não sendo possível transpor os achados referentes aos objetos e fenômenos de um estrato ou de nível para outro diverso, ainda que se refiram a coisas ou acontecimentos que pareçam semelhantes ou análogos, embora situados em estratos diversos da natureza. Conhecer os estratos qualitativamente diferentes da natureza é importante porque as leis naturais específicas, aquelas que regem determinados conjuntos de objetos ou fenômenos da natureza, não podem ser transpostas para outros objetos e outros fenômenos, sobretudo quando se situam em níveis diferentes da estrutura da organização natural. Com muito maior razão ainda, muito menos é viável transpor conhecimentos ou métodos pertinentes às ciências da sociedade para as ciência humanas ou para as ciências da natureza. Cada nível de organização do mundo está sujeito às suas próprias leis que não são válidas em outro estrato que não aquele. As leis que regem um determinado nível da natureza não são aplicáveis a outro nível da organização natural, quanto mais a outro nível da estrutura do mundo, como a sociedade e o pensamento. Não são somente as ciências definidas e reconhecidas universalmente como atividades científicas particulares que precisam ter definido seu objeto. Cada investigação científica, por mais desprentenciosa e limitada que for, necessita ter bem definido seu objeto de trabalho, antes de serem cogitados dos métodos. O mesmo acontece com cada procedimento ou cada instrumento para o qual se 16
  • 17. pretenda status de cientificidade. A definição do objeto de uma atividade, instrumento ou procedimento (que deve ser a mais completa possível no momento em que se dê) consiste no primeiro momento de declaração de sua cientificidade. Antes de avaliar os aspectos ontológicos específicos das ciências médicas e, em especial, da psicopatologia, por causa de sua influência na psiquiatria, deve-se repassar, ainda que rapidamente, algumas questões ontológicas mais gerais, porque alcançam todo conhecimento, tais como: a) Se o mundo objetivo é real ou irreal; b) e, sendo real, se o mundo objetivo mantém uma relação de primariedade ou de secundariedade em relação à atividade mental, a subjetividade. Não se deve supor que estas são apenas perguntas retóricas, elaboradas apenas para consagrar respostas previamente conhecidas no curso de uma argumentação ou explanação planejada. Trata-se de questões muito importantes, fundamentais mesmo, cujas respostas irão influir em todo desenvolvimento que se suceder a elas. Esta questão essencial da filosofia e da ciência se consubstancia nas seguintes perguntas: o mundo objetivo existe, é real ? A primeira e mais abrangente questão teórica com que os seres humanos se defrontam quando pretendem conhecer o mundo, reside em saber se este mundo é real (como crêem os realistas e materialistas), ou uma ilusão dos sentidos (como querem os idealistas e os fenomenistas mais extremados). Existe um mundo real? Uma realidade além de nossas subjetividades? E, existindo uma realidade, será uma realidade objetiva ou consistirá apenas em uma ilusão da subjetividade? Uma realidade subjetiva. Existirá uma dimensão objetiva e outra subjetiva da realidade? Ou existirão ambas? Estas indagações podem parecer inúteis para os mais desavisados ou despreocupados com isto, mas existe quem negue realidade ao mundo objetivo, de uma realidade externa a 17
  • 18. nós. Os solipsistas, por exemplo, numa posição subjetivista radicalmente extremada, negam realidade a todo o mundo objetivo; para eles, existe apenas a subjetividade e os sentidos de quem pensa no mundo real e se convence de sua realidade. A doutrina solipsista (sustentada por BERKELEY e, mais radicalmente, de forma absolutamente exagerada, por FICHTE) confundia as coisas e as percepções. BERKELEYdizia: “ser é ser percebido”. Por isto, esta opinião torna a idéia do conhecimento uma fatuidade e a ciência, uma completa impossibilidade. Pois unicamente a divindade poderia conhecer. Se alguém é solipsista, há de negar realidade ao doente e à doença, como parte de sua negação de todo o universo, considerado, no todo ou em parte, como resultante de experiências sensoriais ilusórias. Para os solipsistas, toda preocupação ontológica é denominada ontologicismo, como se fora um reducionismo, uma preocupação desmedida com o objeto; o que é bastante natural neles, vez que não aceitam a objetividade, a existência objetiva de qualquer coisa. Devendo-se afirmar que o solipsismo metodológico não é sempre tão radical, nem alcança a todos os objetos. Sabe-se, por exemplo, que na natureza, as coisas em geral constituem uma realidade difícil de ser negada porque sua objetividade é quase agressiva. Como negar um monte, um rio, um cachorro, um estômago ou a função renal? Já as ciências sociais e as ciências humanas lidam com realidades que são, ao menos em grande parte, criações humanas, exigem ao menos um sujeito e possuem alto grau de abstração. Ora, nestas condições, para os objetivistas extremados, estas realidades são negadas. A psicologia, a psicopatologia e grande parte da psiquiatria são alcançadas nesta situação. Este fenômeno cognitivo mostra-se particularmente interessante quando aplicado ao terreno da identificação das enfermidades ou entidades clínicas em psiquiatria; principalmente pelos que negam a existência objetiva da enfermidade psiquiátrica 18
  • 19. ou uma delimitação definida entre a normalidade e a patologia como facetas da existência humana. O solipsismo, em sua forma pura, pode estar fora de moda e, hoje, talvez não exista senão como expressão de excentricidade para conversas eruditas para chamar atenção no barzinho da moda. Contudo, tem muitos sucessores, nos quais se atenuou a negação delirante do mundo, como os já mencionados nominalismos, medieval e moderno, por exemplo, que negam realidade às coisas e às possibilidades de conhecê-las diretamente. Mas, isto será encarado logo adiante neste trabalho, quando se promover ao levantamento das questões gnoseológicas. A modalidade contemporânea do solipisismo se denomina conceitualismo, verbalismo ou positivismo lógico. A partir dos pressupostos que dirigem este trabalho, em última análise e a despeito de sua diversidade, o mundo material, com tudo que ele contém, deve ser considerado como o objeto do conhecimento científico. A ciências existem para estudar o mundo. O mundo todo através de cada aspecto particular dele. Cada ciência se incumbe da investigação de um aspecto particular do universo da realidade. O que vem sendo chamado realidade objetiva, mundo real ou.dos objetos materiais. Isto posto, tenta-se esquematizar o que se supõe saber ou o que se sabe sobre a natureza e realidade do mundo objetivo. Desde que se considere todo o mundo real (objetivo) como o objeto do conhecimento científico, torna-se muito importante ao menos esboçar sua conceituação ou sua definição. Porque existem diversas opiniões sobre o que seria a natureza essencial do aqui denominado muitas vezes como mundo objetivo, porque está fora do sujeito cognoscente. As diferentes opiniões sobre o mundo objetivo, se revelam nas respostas dadas às seguintes perguntas que podem ser formuladas sobre ele: 19
  • 20. 1) sendo real o mundo, ele seria um universo composto só por objetos reais e objetivos ( fossem naturais ou sociais)? 2) Ou seria um mundo povoado apenas por idéias ou outros conteúdos subjetivos? 3) ou seria um mundo só de palavras? ou, quem sabe, 4) ou seria um mundo onde coexistissem as realidades naturais e sociais, as idéias e as palavras? Por exemplo, onde as realidades naturais determinassem as palavras e as idéias e que todas elas coexistissem na realidade natural e cultural? A partir destas questões e das possíveis respostas que provocarem, podem ser situadas duas posições distintas acerca do conceito filosófico de realidade e de sua relação com a subjetividade. Tais posições são: 1. os que têm uma visão parcial e fragmentária da questão do conhecimento do mundo e 2. os que têm uma perspectiva abrangente e globalizante (dialética, pode-se dizer) da realidade objetiva. Estas conclusões são possíveis porque as respostas afirmativas a qualquer uma das três primeiras indagações configuram uma posição parcial, uma visão do mundo reducionista. A quarta questão, quando respondida afirmativamente, indica uma posição global, uma visão dialética do mundo e do conhecimento. No primeiro grupo, dentre muitos outros, destacam-se os solipsistas, os condutistas e os nominalistas pelo significado que estas posições doutrinárias parciais sobre o conhecimento têm na filosofia da ciência atual. Pois. esta tendências filosóficas têm exercido notável influência nas teorias da psicologia e da Medicina. 20
  • 21. Para os solipsistas, extremistas do subjetivismo, o mundo seria composto apenas de idéias que se reduzem a existir na subjetividade do observador, sendo incomunicável para os demais. Para os condutistas, o extremo contrário ao sliopsismo, correspondente ao objetivismo positivista clássico, o mundo (ao menos o mundo reconhecível pela ciência) se limita às realidades naturais (um mundo de coisas), servindo as palavras apenas como um exercício sempre insuficiente de revelá-las. Já para os nominalistas, cujas posições se confundem, ora com os solipsistas, ora com os condutistas (em sua visão parcial e mecânica do mundo), ora com os neopositivistas, o mundo (ou, ao menos, o mundo do conhecimento) seria um mundo unicamente habitado por palavras com significações meramente convencionais, destinadas a simular, ao invés de reproduzir, refletir, representar ou simbolizar a realidade objetiva. Estas visões contraditórias do mundo, conduzem a concepções de naturezas muito diferentes e conflituosas sobre o conhecimento. O condutismo por causa de seu enfoque reducionista e objetivista, (com um lado positivo, que foi ter permitido a primeira abordagem científica da psicologia, segundo as exigências da gnosiologia moderna). O nominalismo não é apenas um nome que evoca a lembraça de uma tendência da filosofia medieval., rebatizado de neopositivismo e empirismo, está vivo e influi muito na teoria da psicopatologia norte-americana, principalmente nos trabalhos de nosografia que costumam confundir com nosologia. Numa terceira vertente deste problema ontológico, situada no vértice das doutrinas parciais, está a posição dialética ou integral, abraçada aqui neste trabalho. Esta posição, aqui chamada dialética, considera o mundo em que vivemos um mundo de coisas objetivas, porque existem independentes do homem ou de sua consciência; apesar de que podem ser refletidas de modo regularmente eficiente e eficaz na subjetividade de quem o estuda e isto permite que possam 21
  • 22. ser comunicados a outrem pelas palavras. Existe um mundo objetivo e cada um de nós constitui uma parte dele. Existe um mundo real objetivo, um mundo de objetos do conhecimento em relação ao ser cognoscente (subjetivo) que o conhece. O mundo real objetivo inclui tudo o que existe ao alcance dos sentidos ou do intelecto, inclusive os outros sujeitos que estiverem sendo conhecidos como objetos; e um mundo interior, o mundo das idéias do sujeito daquele conhecimento. A comunicação intersubjetiva intermediando as relações cognitivas, afetivas e práticas dos homens com as coisas do mundo. Por isto, se sustenta aqui que ambos estes fenômenos, as coisas objetivas e as idéias que as refletem, são representadas ou simbolizadas pelas palavras que se referem a elas. As palavras (como muitas outras ações) são os recursos pelos quais os conteúdos mentais são objetivados e materializados. E, embora as coisas precedam as idéias e estas, as palavras, todas habitam e convivem no mundo sendo inseparáveis na unidade do conceito. Neste modo particular de ver o mundo e o conhecimento, a coisa objetiva, que é o objeto do conhecimento objetivo, deve ser considerada primária em relação à idéia que suscita na mente e à palavra que a simboliza. A coisa que está sendo conhecida é primária e a idéia e a palavra são secundárias. Conseqüentemente, a idéia que reflete o objeto cognoscente, deve ser definida como um acontecimento ou sinal secundário à coisa objetiva que é o objeto primário; e a palavra que simboliza a ambos é o dado ou sinal terciário, o seu símbolo verbal. Mesmo quando a coisa a conhecer é um fenômenos ou processo abstrato ou mítico, ele se só se torna conhecido depois de objetivado verbalmente. Neste caso, a coisa a conhecer é a idéia objetivada. E o conhecimento do mito se confunde com o conhecimento da sua narrativa. O nominalismo, ou conceitualismo, foi uma corrente filosófica medieval que afirmava a existência real unicamente das coisas isoladas e suas qualidades 22
  • 23. individuais e isto apenas, porque nós as convencionamos como tais. O aspecto positivo do nominalismo (no que ele divergia dos que se denominavam realistas) era sua negação dos universais. Os realistas afirmavam que os conceitos gerais (brancura, bondade) existiam em algum lugar do mundo. Os nominalistas, ao contrario, afirmavam que os conceitos gerais (então, chamados universais) destas coisas, eram criados por nosso pensamento, eram apenas palavras, nomes; não existiriam independentemente e não refletiriam as propriedades e qualidades daqueles objetos ou fenômenos aos quais se referem, tendo significado unicamente arbitrário e convencionado. Os nominalistas e os realistas escolásticos conflitavam (e, provavelmente, cada um deles haveria de ter alguma razão) muito radicalmente. Contudo não se deve imaginar que os chamados realistas medievais fossem adeptos da tendência filosófica atualmente denominada realismo (ou materialismo, o oposto de idealismo). Não. Os filósofos católicos que se denominavam realistas na Idade Média eram idealistas. A não ser no nome, não tinham nada de realismo. Apenas, por influência platônica e escolástica, acreditavam na realidade, na existência real dos universais (propriedades das coisas, com brancura, grandeza, inteligência). Julgavam que a brancura de todas as coisas brancas existiam realmente como essência delas O lado negativo do nominalismo foi o fomento da identificação entre abstração (ou subjetividade) e irrealidade. O que deu lugar ao aparecimento de diversas doutrinas. Entre outras, as doutrinas do rótulo e do veredito para o diagnóstico psiquiátrico são variantes do nominalismo que, na Idade Média, era combatido pelo realismo por sustentar exatamente o contrário. Muitas concepções modernas sobre a psicopatologia, sobretudo as de identidade neopositivista e empirista, como o operacionalismo, que orientaram a organização do DSM-III e da CID/10 são sobrevivências atuais do nominalismo medieval. Diferentemente dos 23
  • 24. nominalistas medievais, os neopositivistas e os empiristas não negam a existência do mundo real; apenas afirmam ser impossível conhecê-lo além daquilo que convencionamos saber sobre ele. Muitas doutrinas idealistas deveriam ser denominadas verbalistas. Porque superestimam o significado das palavras. A doutrina do rótulo, por exemplo, nega caráter objetivo às enfermidades, especialmente, às enfermidades psiquiátricas; sustenta não existirem os chamados doentes senão porque alguns indivíduos foram assim rotulados; não tivessem sido e seriam sadios. Não entendem que a noção de enfermidade é um juízo de valor relativo. Os adeptos da doutrina do veredito também negam as doenças psiquiátricas, tendo todos os enfermos por mentalmente sadios; a sociedade (o Estado ou a cultura), a família ou outra instituição condena um de seus membros a bode expiatório de suas dificuldades de adaptação e o condenado por este veredito passa a ser tido e tratado como doente. A condição de doente, neste caso, não seria expressão de uma situação real, mas produto de uma condenação imposta ao paciente. Ambas as doutrinas, a do rótulo e a do veredito, expressam o ponto de vista nominalista com relação à realidade ou à cognoscibilidade da patologia. Aida que seja impossível diferenciar os são adeptos da teoria do rótulo porque negam as enfermidades mentais dos que são negam as enfermidades mentais porque são adeptos da teoria do rótulo. O subjetivismo, como contido nas idéias de BERKELEY, de FICHT e o de HUME, em seus aspectos originais e mais radicais, que negava a existência da realidade objetiva, praticamente já não existe e não se reflete diretamente na filosofia de hoje. Já algumas tendências neopositivistas, como o empirismo e o pragmatismo, estão exercendo grande influência na psicopatologia do século vinte, principalmente, na nosologia e na nosografia. A tendência subjetivista moderna que mais se aproxima de suas matrizes originais (por via da supremacia do inconsciente, é o freudismo ou psicoanálise 24
  • 25. Os empirismos (inclusive o empirismo lógico) e o pragmatismo são tendências filosóficas idealistas modernas que revivem na atualidade diversos pontos de vista do nominalismo medieval e o conciliam com o positivismo, ao menos nos aspectos que foram mencionados acima, porque tais aspectos refletem particularmente os mesmos interesses ideológicos e se enquadram nos mesmos interesses sociais. O pragmatismo e o empirismo abandonam o antigo conceito de verdade que considera verdadeiro o que for consoante com a realidade (a concordância do pensamento com o ser) e valoriza a atividade e a pragmaticidade, a utilidade do conhecimento. Para eles, a verdade deixa de ser considerado como um valor teórico e passa a ser tida uma expressão que possa ser tida como útil. Quando alguém diz, por exemplo: "tal quadro clínico é compatível com o diagnóstico de demência vascular”, está colocando uma diferença entre o fenômeno real (o quadro clínico observado no doente) e a expressão que o denomina (o diagnóstico) e estabelecendo um abismo inexistente entre a coisa e sua denominação, o material e o ideal. Transportado para outra situação, este estilo de ver e nominar as coisas no mundo, principalmente as patologias, produziria frases assim: "este ser vivente, coerente com a designação de pessoa, tem características compatíveis com o significado atribuído à palavra mulher” ou “aquela coisa em tudo igual a um vegetal, com características análogas às contidas no significado do termo repolho”; ou, alguém se apresentando: sou alguém que atende a todas as características da identidade de Fulano de Tal... e quantos outros disparates análogos que serviriam para produzir apenas divertimento, na dependência do tempo, da paciência e da imaginação disponíveis. O realismo metafísico, adotado pelos escolásticos medievais em seu conflito com os nominalistas, é a corrente da filosofia que defende que as coisas existiriam fora e independentemente da consciência do sujeito, enquanto o realismo gnosiológico pretende que o conhecimento possa reproduzir ou refletir a realidade e, neste caso contradita simultaneamente o nominalismo e o solipsismo. 25
  • 26. Estas questões gnosiológicas gerais foram melhor vistas na primeira parte deste capítulo, quando se tratou da construção do conhecimento e, em especial, do conhecimento científico. Adiante, cuidar-se-á de circunscrever os elementos conceituais mais essenciais do objeto da Psicologia, os fenômenos psíquicos. Princípios Básicos da Ontologia Científica Quando se estuda a ontologia geral das ciências (a ciência do objeto científico) de um ponto de vista materialista, é necessário definir que seu objeto (o objeto da ciência ou de todas as ciências reunidas) é o mundo material, o mundo da realidade. O mundo da natureza (objeto das ciências biológicas), o mundo da sociedade (objeto das ciências sociais), o mundo dos seres humanos (objeto das ciências antropológicas) e o mundo das idéias (objetos das ciências formais), o que configura as três grandes áreas das ciências factuais e a área das ciências formais em que se distribuem as ciências. Mario BUNGE, <$FBunge, M., Ciência e Desenvolvimento, Belo Horizonte, Ed. Itatiaia/EDUSP, 1980, pp. 96 e 97.> um filósofo argentino que estudou com muito brilho as implicações filosóficas da ciência e a dimensão filosóficas das ciências, propõe que devam ser empregados alguns princípios fundamentais para que se possa entender o que há de essencial na ontologia (ou metafísica) da investigação científica em todos os momentos da história da ciência, em todas as áreas do conhecimento científico e em todos os lugares do mundo. Tais princípios, com algumas poucas modificações introduzidas aqui, são os seguintes: 1. Existe um mundo exterior ao sujeito que conhece e este mundo existe, ao menos em grande parte, independente deste sujeito. 2. O mundo é composto de coisas reais (concretas) que constituem o mundo dos objetos de investigação científica na natureza, na sociedade e no homem (ser natural e social). 26
  • 27. 3. As formas são propriedades das coisas (não existem independentes delas). 4. Os componentes do mundo se agrupam em sistemas ou em grupos de coisas que interagem entre si e obedecem às mesmas leis. 5. Todo sistema (natural, social, lógico ou psicológico), exceto o universo, interage em alguns aspectos com outros sistemas e está isolado de outros em outros aspectos. 6. Todas as coisas mudam com o passar do tempo (e estas mudanças podem ser quantitativas ou qualitativas). 7. Nada provém de nada e coisa alguma se reduz a nada. 8. Todas as coisas obedecem a leis (expressões de relações invariáveis entre suas propriedades) que são apropriadas para cada nível de organização da natureza ou da sociedade. 9. Há diversos tipos de lei que dependem da natureza dos objetos ou dos fenômenos e de seu nível de organização. 10. Há diversos níveis de organização das coisas no mundo (e cada um destes níveis de organização obedece às suas próprias leis). ONTOLOGIA MÉDICA A ontologia médica é o ramo da ontologia filosófica que se refere especificamente ao estudo sistemático objeto do conhecimento médico, sua definição como objeto do conhecimento científico. A ontologia médica promove o estudo sistemático do objeto da Medicina e de seu conhecimento. A Medicina pode ser definida como atividade profissional que objetiva o bem-estar humano e a busca do conhecimento sobre a saúde e a enfermidade, atuando através da aplicação de um conjunto de procedimentos, habilidades e conhecimentos que devem ser fundamentalmente científicos (mas não 27
  • 28. necessariamente), que são resultantes do estudo sistemático de seu objeto. Nesta definição se situam alguns aspectos particulares da ontologia médica que devem ser clarificados. A Medicina é uma profissão, isto é, trata-se de uma atividade social (humana, técno-científico e econômica) que existe para atender necessidades de indivíduos e coletividades. A Medicina é uma encontro humano, uma ciência e uma atividade econômica voltada prioritária ou exclusivamente para a enfermidade ou a saúde? Para o doente ou para a doença? Para os indivíduos ou para as coletividades? Para o tratamento ou para a profilaxia? Destinada a quem precisa assistência médica ou a quem pode pagar por ela? A Medicina é tudo isto simultaneamente. Cada uma destas questões bipolarizadas, quando respondidas defendendo-se uma das assertivas como excludente da outra, redunda em um reducionismo e resulta na impossibilidade de conhecer a verdadeira natureza da Medicina. Pois elas são postas de maneira maniqueísta e não correspondem à realidade dos fatos, tais como postos na prática concreta da investigação ou da clínica médicas. Em todas essas questões é possível e desejável que se responda afirmativamente a ambas as alternativas porque elas não são auto excludentes. A Medicina é uma atividade voltada para a enfermidade e para o enfermo, para a saúde e para a doença, para os indivíduos e para as coletividades, para o tratamento e para a profilaxia, para quem necessita dela e para quem pode pagar por seus serviços. Nenhuma destas respostas é incompatível com a verdade e nenhuma delas obriga à exclusão de outra. O objeto da Medicina é uma entidade dual (homem e enfermidade), cada uma delas bastante complexa que se concretiza em quatro planos distintos e complexos de relações recíprocas: primeiro, nas relações entre o enfermo e sua enfermidade; 28
  • 29. segundo, nas relações recíprocas que se estabelecem entre a pessoa enferma ou ameaçada de enfermar e a pessoa que pode ajudá-lo (o médico); em terceiro lugar, nas relações entre a patologia que afeta ou ameaça o enfermo e as possibilidades dos recursos técnicos de intervenção disponíveis para prevenir e diagnosticar a condição patológica, tratar e reabilitar o enfermo; em quarto lugar, nas relações entre o enfermo (ou pessoa ameaçada de enfermar) e o seu ambiente físico e social. Por tudo isto, a ontologia médica é, antes de tudo, uma antropologia (porque implica em uma concepção do homem. Uma antropologia metafísica (voltada para o objeto) e uma antropologia dialética (voltada para suas relações). Duas questões ontológicas essenciais da Medicina são: a primeira é a possível relação existente entre o enfermo e a enfermidade (duplo objeto da Medicina), e a segunda se refere à possível natureza específica da enfermidade considerada por si mesma e de sua história natural. Como se há de verificar adiante, quando se estudar a comprobabilidade como característica fundamental de cientificidade, existem dois procedimentos metodológicos básicos para o processo de conhecer o mundo. Estudar as coisas (sua características e atributos, sua origem suas finalidades) e estudar as relações das coisas (a maneira pela qual estas coisas se inserem no mundo e interagem com as demais). Estas duas atitudes metodológicas básicas de modo algum são antagônicas ou auto excludentes. É perfeitamente possível incluir as duas no desenvolvimento do mesmo processo cognitivo. Esta perspectiva integradora e totalizante, aliás, parece muito mais compatível com a designação de dialética. Antes de tudo, por sua primazia ontológica, há de se caracterizar o que é vida, por causa de antiga ralação deste assunto com a Medicina e com os médicos. 29
  • 30. A Vida A vida é um mistério que pode ser definido, ainda que imperfeitamente, mas de um ponto de vista materialista e prático, como uma forma especial de movimento da matéria, qualitativamente superior aos fenômenos físicos e químicos da matéria orgânica. Cada organismo vivo pode ser caracterizado como um sistema aberto (dotado de unidade, totalidade e interatividade), auto-organizador (capaz de modular seu funcionamento, inclusive seu metabolismo, em função de suas necessidades de adaptação), auto-reparador (capaz de regeneração automática de suas estruturas), capaz de autopoiese (direção e limites de seu crescimento) e de reprodutibilidade (geração de organismos iguais). E, igualmente caracterizado pela degeneração de suas estruturas e de morrer. Existem duas concepções básicas sobre a origem da vida e de sua diversidade: o criacionismo e o naturalismo evolucionista. A variante vitalista do criacionismo supõe a existência de um princípio vital eterno capaz de assumir cada uma das formas de vida existentes e ser sua característica essencial. Quando se estuda a vida, é possível diferenciar a vida individual da atividade vital que a anima e lhe é anterior, existindo em seus ascendentes e que prossegue em seus descendentes. Enquanto vitalidade, a existência de cada ser vivo é extensão da vida ou das vidas que lhe deram origem. Por isso, é impossível determinar quando começou a vida de um ser vivo (inclusive uma pessoa), embora seja relativamente fácil determinar onde ela termina. Isto porque é impossível precisar o momento do início da vida de um ser vivo (animal ou vegetal) por que ela já existia nos gametas que o originaram, na vida dos produtores destes gametas e em todos seus antepassados. A rigor, a vida de cada um dos seres vivos se iniciou com a vida de seu primeiro antepassado mais remoto, muito provavelmente uma estrutura extremamente simples, um ser vivo unicelular, originado em uma a grande matriz primitiva ou de 30
  • 31. muitas outras que teriam surgido. Cada ser vivo é, de certa maneira, uma extensão da vida de todos e de cada um dos seus incontáveis antepassados. Também não se pode entender a vida dissociada do conceito de organismo e este, separado do meio ambiente. Os seres vivos, inclusive o seres humanos, mantêm constante interação com o ambiente do qual dependem e as perturbações desta interação sempre significam um fator de risco para a saúde e para a sobrevivência. A vida humana, entendida como vida pessoal, resulta de uma interação permanentemente e dinâmica entre as estruturas biológicas, o ambiente físico e o meio social que se mantêm em permanente interação através do organismo; pois, cada organismo humano corporifica uma vida individual, a vida de um ser humano específico, na vida de uma pessoa. Neste plano se situa antiga responsabilidade médica não com vida genérica, mas com a vida de cada pessoa. O ser humano deve ser entendido como vivente de dois mundos: o mundo da natureza e o mundo da cultura. O entendimento do organismo humano como um sistema integrado no ambiente e de sua existência pessoal como uma organização integrada no meio social é cientificamente correto, mas insuficiente, suscitando grande número de indagações sobretudo éticas. Com este sentido biológico, não se diferencia a vida de um humano da vida de qualquer outro ser animado e isto é completamente insatisfatório para a Medicina Os humanos parecem qualitativamente diversificados em relação aos demais viventes e tal diferença se assenta, principalmente em sua eticidade. Nem se pode identificar o início de uma vida humana com a fecundação, pretextando sua relativa autonomia biológica individual. Exatamente porque isto equivaleria e reduzir o ser humano ao seu arcabouço biológico, a sua estrutura organísmica. (O que não tem sentido hoje, nem mesmo frente ao conceito de morte cerebral, quanto mais diante da complexa realidade bio-psicos-social). 31
  • 32. Interação e Adaptação Como é típico dos sistemas vivos, os organismos biológicos são dotados da possibilidade de promover a interação entre seus componentes e de mobilizar recursos adaptativos internos e externos para assegurar sua integridade e seu funcionamento. A adaptabilidade (interna e externa) é uma das características mais importantes e essenciais de todos os seres vivos. Reprodução, Regeneração e Degeneração A reprodução (ou auto-reprodução), entendida como capacidade de um organismo produzir outros seres da mesma espécie, também constitui atributo essencial dos organismos viventes. Variam os mecanismos reprodutivos, a partir de dois que são fundamentais: a reprodução sexuada e a assexuada. Entende-se por regeneração a capacidade que têm os seres vivos de reconstituir estruturas e funções lesadas, prejudicadas ou suprimidas. Esta função também não é idêntica em todas as estruturas, todas as espécies ou todos os espécimes. Degeneração Entropia e Autopoiese Viver e Conviver Viver e Sobreviver Quando se enfoca a questão da necessidade da vida, de como o viver ou seguir vivendo; a vida como um estado particular da matéria altamente organizada e diferenciada, a matéria viva. Devendo-se destacar que estes dois aspectos da questão (a vitalidade e a sobrevivência|) mobilizam grande interesse, especialmente do ponto de vista médico. Prolongar a própria vida é uma necessidade impressa no patrimônio instintivo de todos os seres vivos conhecidos. 32
  • 33. A necessidade de sobreviver, de se manter vivo, de se evadir ou de vencer as ameaças à vida é uma característica comum a todos os seres vivos. Tanto, que é descrita como uma propriedade da matéria viva. A necessidade de sobreviver se evidencia em dois planos distintos: o plano individual (ontológico) e o plano da espécie (filológico). Para um ser vivo, a necessidade de sobreviver impõe sobreviver como ser individual, prolongando a própria vida; e sobreviver como espécie e como estirpe, através dos descendentes por meios da reprodução. A origem, a manutenção e o prolongamento da vida humana dependem de incontáveis fatores individuais e sociais. Expectativa de vida é um índice epidemiológico que expressa o período de tempo que se espera que uma pessoa, com certa idade, viva caso se mantenham os índices de mortalidade vigentes. As pessoas estão morrendo cada vez mais velhas. E, dento de limites razoáveis, quanto mais velhas, maior é sua expectativa de viver mais. O progresso da civilização se expressa, inclusive, por aumento significativo da média de vida das pessoas e, conseqüentemente, o aumento relativo do número de pessoas idosas na população, fenômenos conhecido como envelhecimento populacional que produz implicações em muitas áreas da vida social, destacando-se as implicações médicas. Entre as implicações médicas, destacam-se a necessidade de pessoal habilitado e serviços capacitados para atender a este tipo de clientela que, por sua própria condição, mobiliza mais recursos que os jovens. Além do que, aumenta o número de aposentados e estes vivem muito mais. Como os sucessivos governos dissiparam os recursos da previdência social, os aposentados de hoje pagam a conta desta conduta. Além disto, o crescimento indisciplinado das metrópoles cria imensas áreas de moradia em condições extremamente precárias (e não apenas nas favelas e nos conjuntos habitacionais mais pobres). A proletarização da assim chamada classe 33
  • 34. média também faz crescer a montanha de pobreza (trabalhadores e funcionários públicos que até há vinte anos se inscreviam na classe média, hoje são favelados e muitas vezes se situam abaixo do nível de miséria). Desde a origem da Medicina, os médicos são identificados pela população como curadores naturais dos interesses humanos dos enfermos e guardiões da vida. Estes compromissos se incorporaram de tal maneira à sua identidade e ao seu papel profissional que provocam muita frustração quando são desobedecidos ou desrespeitados. Vida e Qualidade de Vida A qualidade de vida se refere à vida como é vivida. A vida como mais do que sobrevida, como possibilidade mínima de atingir seus objetivos e ter atendidas suas necessidades mínimas; de existir com decoro (no antigo sentido hipocrático desta expressão). A noção de vida como vitalidade se completa no conceito de vida como qualidade de vida<D>, como vida decorosa ou bem estar. Como atributo da existência pessoal, o que deu um sentido bastante diferente à noção de existir, de sobreviver, de seguir vivendo. As noção de vida humana inclui hoje uma série de condições que estão relacionadas à satisfação ou à frustração das necessidades individuais e sociais do vivente humano, encarado (também neste aspecto) como qualitativamente diferente dos demais seres vivos. O compromisso essencial que os médicos mantêm tradicionalmente com a vida humana foi ampliado para conter de novo a velha concepção hipocrática de vida digna de ser vivida, de vida decorosa. A noção de qualidade de vida está interligada com a noção de personalidade e com a idéia de síntese das necessidades individuais (primárias e superiores) e sociais. É bem verdadeiro que as noções mencionadas acima de vida média e expectativa de vida ao nascer são cada vez mais significativas em nossa civilização, porque indicam a qualidade de vida da população. Entretanto mais que tudo, é necessário levar 34
  • 35. em conta a possibilidade de uma vida digna e decorosa (como queriam os hipocráticos). A vida dos animais praticamente se resume à sobrevivência. Não é (ou não deve ser) assim com os seres humanos, a despeito da realidade de miséria e abandono em que sobrevive um contingente extremamente significativo de nossa população. Também mudou o procedimento para identificação da vida, quando a constatação da morte cerebral substituiu o antigo critério de parada cárdio-respiratória como marco clínico do fim da vida e do diagnóstico de morte. Neste caso, a troca de critérios não corresponde apenas a uma necessidade pragmática (facilitar e viabilizar transplantes) mas a aplicação do compromisso ético que exige valorizar mais o vivo que o morto. Não obstante esta situação social real, hoje, existe entre os praticantes e pensadores da Medicina uma preocupação cada vez mais ampla e mais significativa, que se estende para muito além do conceito simples de vida ou de sobrevivência das funções vitais de uma pessoa; trata-se de institucionalizar o conceito de qualidade de vida como instrumento operacional de avaliação clínica. Não basta que o paciente sobreviva a uma enfermidade durante um certo tempo, cada vez mais se considera que seja necessário que disponha de possibilidades mínimas de exercer sua vida com dignidade; não apenas de sobreviver, mas de desfrutar a vida. Neste sentido, viver é mais que unicamente sobreviver. Entretanto, não se pode condicionar a vida à exigência de plenitude da vida ou a completo bem-estar. A qualidade de vida se expressa pelo nível de bem-estar e o nível de bem-estar se difine pela satisfação das necessidades individuais e sociais; a partir das necessidades chamadas necessidades sociais básicas (alimentação, moradia, vestuário, trabalho, lazer, transporte e acesso a serviços de saúde e de educação, 35
  • 36. além de necessidades civis (autonomia e liberdade de expressão, participação social, propriedade, dignidade, auto-realização e acesso aos recursos de busca da felicidade pessoal). A definição da qualidade de vida mínima entre os direitos sociais inalienáveis da cidadania é um importante conceito para estabelecer os deveres estatais e um passo importante para o desenvolvimento da civilização. Entretanto, não basta que se escreva isto como direito nos diplomas legais, é preciso que isto fique impresso na consciência social (afinal, a constituição já diz que a saúde é direito de todos). A lei é letra morta se não corresponder ao desejo da maioria da população ou dos interesses hegemônicos. Mas a vida também tem uma dimensão ética e a vida humana uma dimensão ética especialíssima. Desde sua origem, os médicos somos zeladores da vida. Todo médico é um guardião da vida e do bem estar de seus pacientes e, por extensão, das comunidades confiadas ao seu cuidado quando desempenha uma atividade social. Sob qualquer ponto de vista, do religioso ao materialista, toda ética da Medicina se fundamenta em um princípio fundamental: o princípio da beneficência, que significa não fazer mal. Principalmente aos seus pacientes. A menos que se trate da escolha ineludível entre dois males, quando deve-se escolher o menor. Ou quando o mal menor (como um remédio, por exemplo) for indispensável para se contrapor ao mal maior (a enfermidade). Entretanto, deve-se advertir que esta escolha nem sempre é fácil, principalmente na vertigem dos acontecimentos dramáticos. os médicos experientes bem sabem o quanto a experiência dos erros anteriores os ajudam a evitar outros no futuro. E o quanto a consciência de princípios diretores da conduta podem auxiliar a evitar os primeiros. Pois, os remmédios têm esta curiosa contradição, são males que podem trazer o bem. Pois, afinal, a diferença entre um remédio e um veneno é, freqüentemente, simplesmente uma questão de dose ou de oportunidade. 36
  • 37. Uma característica universal da atividade médica, em todos os momentos históricos, em todas as culturas é a identificação do médico como guardião da vida<D>, como defensor dos interesses dos doentes, como promotor de bem-estar do povo e, portanto, um agente de permanente compromisso com a melhoria da qualidade da vida das pessoas e das comunidades. E isto não pode ser interpretado mais ou menos ingenuamente como uma sobrevivência de seu status sacerdotal original que os médicos possuíram por muitos séculos. Proteger a vida não é privilégio sacerdotal, é dever de todas as pessoas e compromisso ético com valor de princípio para todo médico que se preza; é uma herança da melhor tradição médica de todos os tempos. Morte. No mesmo plano se coloca a questão das relações entre a vida e a morte. A morte é inevitável para quem vive. Todo ser que vive tem na morte seu destino. A Medicina existe para adiar a morte, enquanto for possível garantir vida digna aos seres humanos. Às pessoas. Os conceitos de aborto, eutanásia e distanásia exigem a atenção do médico e cobram dele uma decisão em muitos casos de sua clínica. Aborto é a expulsão prematura do conteúdo do útero grávido de concepto ainda inviável, isto é, antes da vigésima oitava semana da gestação. Quando a interrupção da gestação se dá depois deste momento, quando o concepto pode ser considerado viável, denomina-se parto prematuro. Eutanásia (do grego, eu=bom + tanos=morte); morte boa, morte fácil; morte sem dor ou sofrimento; consiste em abreviar a vida de alguém já sem esperanças de sobreviver com o mínimo de qualidade de vida. O elemento conceitual mais importante do conceito de eutanásia é que a autoria da decisão deve ser do agente da eutanásia (que pode não ser médico) e assume a responsabilidade de decidir quando alguém deve morrer ou, noutros termos, deixar de viver; a outra qualidade essencial deste conceito é a incapacidade do enfermo decidir. Sá há 37
  • 38. eutanásia se o paciente estiver incapaz; estando capaz, ou se trata de suicídio assistido ou de homicídio. Suicídio assistido. quando o paciente, desfrutando da integridade de sua capacidade de decidir, decide morrer Distanásia (do grego, dis=perturbação, dificuldade + tanos=morte); morte perturbada, morte dificultada, quando se aplicam recursos da tecnologia médica para ampliar a sobrevivência de alguém que não pode desfrutar a ménima qualidade de vida e nem tem a possibilidade de vir a tê-lo. A distanásia se configura quando são empregados recursos técnicos artificiais para manter a vida, sem que haja ou possa haver qualquer esperança de sobrevivência digna. No caso da eutanásia e do suicídio assistidas trata-se de duas situações, qualitativamente diferentes, e configuram dois problemas éticos que exigem soluções diferentes, apesar dos opositores radicais da eutanásia considerá-las como idênticas, exigindo, ambas, as mesmas soluções. Indivíduo, Pessoa e Sujeito O conceito de ser humano é amplo e abrange duas noções específicas, muito usadas por todos para referir componentes da sociedade humana e, freqüentemente, são confundidas como se fossem uma única noção, apesar de corresponder a coisas perfeitamente diferenciáveis: a noção de indivíduo e a idéia de pessoa. Os conceitos de indivíduo e pessoa podem parecer idênticos, porque na linguagem comum têm significados iguais e costumam ser usados como sinônimos; mas são termos científicos diferentes e correspondem a dois sentidos sócio-antropológicos e a duas realidades psicossociais distintas e definidas. O conceito de pessoa é bastante mais amplo e contém o de indivíduo. A vida do indivíduo começa bem antes da vida da pessoa, do início da edificação da identidade pessoal e pode terminar bem depois (como no caso da justamente denominada sobrevida dos descerebrados). 38
  • 39. Esta distinção entre vida individual e vida pessoal parece ser um dos pontos mais candentes da ética contemporânea. Os direitos civís, os direitos políticos e os direitos humanos (antes chamados direitos individuais) se caracterizam como direitos pessoais, direitos das pessoas, das personalidades. Na linguagem científica, costuma-se denominar indivíduo a um ser diferenciado dos demais por ter vida separada ou algumas características que o assinalem como um ser singular; uma unidade funcional específica em relação às demais de sua espécie. A unidade e a totalidade são as características essenciais da individualidade. Qualquer coisa ou qualquer ser, de qualquer modalidade, qualidade ou espécie pode ser encarado como um indivíduo. No indivíduo coexistem e se confundem os atributos de singularidade e individualidade. A individualidade de um ser se consubstancia em características que o diferenciam dos outros da mesma espécie, fazendo-o, de certa forma, um ser único em sua singularidade. Por isto, pode-se usar o termo individualidade com sentido amplo para objetos indivisíveis (um planeta no sistema solar, uma galáxia no universo, uma estrela na galáxia, uma laranja na laranjeira, uma formiga no formigueiro). Em ciência, a expressão indivíduo não tem conotação moral positiva ou negativa. Na linguagem comum, sobretudo na imprensa de má-qualidade, a palavra indivíduo tem conotação pejorativa, indicando depreciação. Mas, este sentido pejorativo está inteiramente ausente do sentido com que esta palavra é usada como termo científico nas ciências naturais e psicossociais. Já pessoa é uma noção que transcende o conceito de indivíduo e existe para designar a entidade individual humana completa, inclusive sua personalidade (o que inclui todos seus atributos biológicos anatômicos e fisiológicos, psicológicos e sociais). Os traços característicos da noção de pessoa são a personalidade e a dignidade. A concepção de pessoa ultrapassa em todos os planos o conceito de indivíduo. Mas esta diferença constitui, principalmente, uma diferença ética. Muito mais que uma 39
  • 40. diferença antropológica ou, mais precisamente, uma diferença psicológica ou psicossocial. Não sendo possível que seja um diferença apenas verbal, convencionada, ideal e sem qualquer implicação na realidade. O termo indivíduo permite apontar qualquer ser singular em uma coletividade, apenas um componente específico de uma coletividade, um elemento singular que faz parte de um todo, seja a sociedade, a tribo, a manada, o cardume, a floresta, a colônia ou qualquer outro conjunto. O indivíduo é o elemento mais simples de uma coletividade, ainda que seja um conjunto inanimado; enquanto a pessoa é o componente mais elementar da humanidade. Pode se denominar pessoa ao indivíduo humano (o que se faz muito). Ainda que o emprego da expressão indivíduo humano permita designar apenas suas propriedades biológico-individuais, excluindo qualquer característica psicológica ou sócio-cultural. Já a expressão pessoa humana, porque é absolutamente pleonástica, deve ser evitada; pois, denuncia desconhecimento do significado dos termos empregados; posto que, por mais tolerante que seja sua apreciação, não há possibilidade de existir pessoa que não seja humana ou ser humano vivo que não seja pessoa.<$FA maior amplitude que o termo pessoa possui é a de um coletivo humano bem determinado e legalmente individualizado, a pessoa jurídica ou personalidade jurídica, conceito metafórico que complementa o de pessoa física e estes termos, sim, devem ser adjetivados.> A Pessoa e o Sujeito Se a pessoa pode ser definida como um indivíduo com personalidade e dignidade, o conceito de sujeito pode ser definido como pessoa no exercício de sua vontade, na direção de sua vida social e na construção de sua biografia. A voluntariedade (não importando se é denominada vontade, volição, conação ou intencionalidade) 40
  • 41. é a marca característica ou essencial de algo que poderia ser denominado de sujeiticidade. Um neologismo necessário que cabe muito bem nesta situação e em muitas outras que devem ser cogitadas no estudo desta matéria. Personalidade e Sujeiticidade A noção de pessoa inclui uma referência à sua condição de ser social, um indivíduo socializado, uma personalidade detentora de qualidade que, como se viu anteriormente, a identificam, personalizam e dignificam. A dignidade da pessoa tem sido um atributo sempre reconhecido nos homens de todos os tempos civilizados e é um dado essencial não só da civilização, mas do humanismo. A rigor, a personalidade constitui-se das características que configuram uma pessoa; das qualidades que caracterizam uma pessoa e se diferencia da individualidade. A noção de personalidade ultrapassa em muito o conceito de individualidade da mesma maneira que o conceito de pessoa é muito mais amplo que o de indivíduo. Analogamente, pode-se estabelecer a mesma relação com os conceitos de personalidade e sujeiticidade (como se está denominando aqui a qualidade a característica ou essencial do sujeito). Conceito de Personalidade A despeito de tudo, a noção de personalidade não tem conceituação pacífica e universalmente que seja aceita por todos os estudiosos desta matéria. Principalmente porque esta noção é muito mais antropológica e política do que psicológica. E por isto, muito sujeita a contaminação ideológica e às influências da visão do mundo que quem a emprega. O que não deve causar admiração a ninguém. Poucos conceitos são tão submetidos as pressões ideológicas como este. Nem tão influenciados pela visão de mundo. 41
  • 42. Para uns, a personalidade encerra tudo o que existe na pessoa (ainda que não sejam atributos caracteristicamente pessoais). Por isto, há quem lhe atribua a soma de todos os traços morfológicos, fisiológicos e psicossociais d de um ser humano. Empregam o conceito de personalidade como equivalente ao de individualidade humana. Outros, que confundem personalidade com sujeiticidade, pretendem-na como a soma de todas as características psicológicas humanas e as condutas estáveis de interação social. Para alguns, a personalidade constitui-se da soma dos atributos psicológicos estáveis. Para muitos, a personalidade constitui-se das características psicológicas notadamente humanas: a afetividade superior e a vontade. E, por fim, há quem conceitue a personalidade como síntese dos traços psicológicos caracteristicamente humanos e das características estáveis da forma de uma pessoa se relacionar com as demais, com a sociedade e consigo mesma. Englobando tudo o que é tipicamente humano (ainda que desenvolvida a partir de características animais herdadas ao longo da trajetória evolutiva). Nesta última perspectiva, mais consentânea com a opinião do autor deste trabalho, a personalidade não se reduz mera soma de características, mas uma síntese de atributos psicossociais situados na fronteira entre o psiquismo e a cultura. O intelecto, a imaginação criadora, a atenção voluntária, a memória racional e intencional, a afetividade superior representada pelos sentimentos, a vontade e a capacidade de trabalho, além da possibilidade de comunicação e sociabilidade seriam os elementos mais significativos da personalidade. Não havendo a menor importância se ela é estudada de maneira analítica (pelos seus traços) ou sintética (pelos tipos). 42
  • 43. A noção de sujeito(caracterizada pela vontade e pela atividade voluntária) está encerrada no conceito de pessoa, a concepção de pessoa está contida na noção de indivíduo. Toda pessoa é um indivíduo, ainda que nem todo indivíduo seja uma pessoa. Além disto, a concepção de pessoa está indissoluvelmente associada à de Homem, à concepção de ser humano (antropologia). Todas as concepções de pessoa que podem ser identificadas em nossa cultura, e mais as noções de de personalidade e de sujeito constituem o momento de convergência das ciências humanas (psicológicas e antropológicas), das ciências naturais (biologia e fisiologia) e das ciências da sociedade (sociologia, história). Não é possível situar restritamente o eixo principal destas noções (ou de qualquer uma delas) em quaisquer uma destas áreas particulares do conhecimento científico. Não é possível, por exemplo, afirmar que a personalidade é uma instância individual socialmente condicionada, ou se é uma instância social individualmente limitada. Dignidade Humana A noção de dignidade humana, atributo moral associado a todo ser humano, é importantíssima conquista ético-moral da civilização e elemento fundamental do conceito de pessoa e sua diferenciação de indivíduo. Ao contrário da honorabilidade, atributo pessoal que depende da conduta de quem a ostenta, a dignidade é um valor atribuído pelos demais. Naquilo que é essencialmente ético, considera-se a noção de pessoa como carregada pela idéia de dignidade humana individual, mesmo quando em confronto com os interesses coletivos, o que fundamenta a necessidade social que leva à codificação dos direitos civís e dos direitos humanos. Enquanto o indivíduo é um componente eticamente neutro da coletividade, a pessoa é o elemento da humanidade, premissa e resultado da perspectiva ética. 43
  • 44. Nestes termos, considera-se que a dignidade humana é apanágio das pessoas, independente de sua origem, de sua conduta ou de seu destino. Todo ser humano é merecedor de tratamento digno. Não importa se é rico ou pobre, não importa se é um criminoso ou um santo, um cidadão prestante ou um criminoso. Ao menos como princípio, todos os seres humanos são detentores de dignidade. Por isto, existem as noções de direitos humanos e de garantias sociais. No plano filosófico, o compromisso com a dignidade do outro é uma dimensão do humanismo, qualquer que for o alcance que se atribua a esta expressão; no âmbito da psicologia, deve resultar do auto-respeito, porque aqui, como em situações análogas, a agressão a um, ameaça a todos, e os sentimentos que se cultiva por si mesmo são dados importantes daqueles que se dedica aos demais. Este compromisso faz da Medicina uma profissão especial por causa de seu objeto. O ser humano atual é o resultado de um longo processo evolutivo cujo início está perdido no tempo, e cujas etapas intermediárias e mecanismos internos ainda não estão muito bem estabelecidos. Nesse processo do desenvolvimento, tudo indica que o surgimento da condição humana foi resultante da evolução das dimensões biológica e psicossocial que, aliás, podem ser consideradas como processos integrados de uma única totalidade que é completamente inviável sem qualquer um deles. A dimensão biológico-individual e a dimensão psicossociocultural são inseparáveis em cada ser humano concreto e tal divisão da totalidade humana só pode resultar de um exercício artificial de análise. O reconhecimento da dignidade humana é o ponto mais alto da evolução ética da humanidade e foi sempre um pilar ético da Medicina. O processo de humanização, ao conduzir o homem à consciência de si, da humanidade e da natureza, possibilita-lhe entender suas relações com os demais, e indica que o ser humano deve ser considerado muito mais, que um mecanismo natural de elevada complexidade e excepcional rendimento, garante aos seres humanos a condição 44
  • 45. de absoluta originalidade e dignidade face aos demais seres vivos. No início este respeito foi obtido configurando-se a vida humana como atributo especial das divindades. Nos estudos científicos de qualquer ciência, ao menos em tese, os seres humanos podem ser considerados como indivíduos ou como pessoas na dependência da situação específica dessa escolha. No entanto, os fatores individuais e pessoais hão de ser considerados, sempre, como estratos que traduzem níveis diferentes de organização existencial e evolutiva, nem sempre distinguíveis na unidade do humano No entanto, pode-se notar entre estes dois conceitos um elemento diferencial claramente qualitativo. A dignidade de seu objeto e a particularidade de sua situação de enfermidade (o homem enfermo e com sua sobrevivência ameaçada, o ser humano sofredor) emprestam ao exercício da Medicina e das atividades sanitárias correlatas ou análogas, um caráter absolutamente único em sua singularidade. Muito mais ética que técnica (ainda que, por causa disto, não deva ser menos técnica do que a realidade lhe possibilita). Por isto, enquanto procedimento social e relação inter- pessoal, a Medicina é uma atividade social que se distingue muito mais por sua ética do que por sua técnica (embora esta não possa nem deva ser subestimada). Considerando-se as três dimensões da Medicina: a ética, a técnica e a mercantil, esta deve ser sua seqüência de prioridades. O significado social de uma profissão sofre muita influência do valor que se atribui ao seu objeto. A dignidade de seu objeto e sua posição singularíssima na relação com seus clientes fazem com que as profissões incumbidas da saúde devam ser consideradas como sendo completamente diferentes das outras atividades profissionais. Mais que os agentes de quaisquer outras profissões, os profissionais de saúde (e, em geral, os médicos, muito mais que os outros) lidam com três elementos essenciais para as pessoas: sua vida, sua saúde e sua dignidade. 45
  • 46. A dignidade humana não existe no éter, ela se materializa na identidade e na personalidade de alguém real, em uma pessoa concreta. Qualquer pessoa e todas as pessoas. A dignidade humana não deve ser considerada como apenas um atributo genérico de todos os seres humanos, mas deve ser concretizada, realmente, em cada ser humano individualmente como caracteriza e atributo essencial seu. Por isto, considera-se o altruísmo como um atributo essencial de todas as profissões (ver o capítulo sobre os fundamentos sócio-antropológicos), mas é particularmente importante na Medicina. Quem não gosta de gente, não deve ser médico. Porque, a filantropia (gostar de gente, no sentido original da expressão) é a primeira qualidade que se exige dele. E o egoísmo (preocupação primária e particular com os próprios interesses) na atividade do profissional de saúde, mais do que em qualquer outro, talvez seja o fator que mais o desqualifique. O descaso com os pacientes, a falta de interesse humano e o desinteresse tem sido impropriamente confundido com neutralidade profissional, com não envolvimento, quando não é. O envolvimento pessoal do profissional com o cliente (com sentido reprovável) se dá quando ele perde a objetividade em seu desempenho técnico ou coloca outros interesses (ainda que seja o seu próprio) acima dos interesses do paciente. Enfermidade e Enfermo O conhecimento das enfermidades e as relações recíprocas que as patologias mantêm com as pessoas afetadas por elas, é objetivo cognitivo basilar da Medicina e das ciências médicas. A Medicina existe como atividade social porque existem pessoas que sofrem com as enfermidades, existe como atividade científica porque estas enfermidades podem ser estudadas, conhecidas e reconhecidas; a Medicina existe como atividade humana porque os enfermos podem ser curados, cuidados e consolados. 46
  • 47. Não se deve tentar separar os conceitos de doença e de doente, senão como um exercício intelectual, porque são conceitos que se referem a duas coisas completamente inseparáveis na realidade. A despeito disto, é bastante comum que se encontre quem, pretendendo estudar ou exercer Medicina, preocupe-se exclusivamente (ou quase exclusivamente) com um destes aspectos inter-complementares: a doença (os doencistas) ou o doente (os doentistas). Sendo que cada uma destas vertentes reducionistas incorre em erro, dificulta o desenvolvimento teórico e prático da Medicina, enquanto prejudica os enfermos. Enfermidade e enfermo são as duas dimensões essenciais do objeto da Medicina e constituem duas categorias completamente inter-complementares (chamadas dialéticas, por que não pode existir uma, sem a outra). Recorde-se que não existe enfermo sem enfermidade nem enfermidade sem enfermo. Toda tentativa de pretender separar estes dois fenômenos reais resulta em uma distorção de seu entendimento e uma perturbação de seu conhecimento. Enfermidade é um conceito bastante amplo com o qual se designa genericamente qualquer moléstia, patologia, doença ou condição de incapacidade mórbida, invalidez ou sofrimento; neste sentido assim amplo. A enfermidade pode atingir indivíduos vivos. O termo enfermidade pode muito bem ser substituído pela expressão patologiaem todas sua situações de emprego, porque enfermidade e patologia se referem a uma condição individual caracterizada por um dano. O conceito de enfermidade contém, pois, um juízo negativo de valor que se aplica a um acontecimento vital ou existencial danoso. As enfermidades podem se apresentar como uma entidade específica, algo novo na vida da pessoa, uma estrutura patológica definida (uma manifestação qualitativamente nova), ou como uma variação danosa da funcionalidade orgânica os psicológica (transtorno quantitativo). 47
  • 48. O dano constitui o elemento basilar de todos os conceitos que se referem ao objeto da medicina em todas as partes do mundo. Na linguagem vulgar, ao menos no idioma português tal como é falado no Brasil, se empregam também as expressões moléstia e doença com este sentido genérico e inespecífico. Mas, isto que não é incorreto na linguagem comum, não deve ser praticado na terminologia científica. Doença é uma enfermidade ou uma condição patológica identificável e reconhecível por suas manifestações clínicas, por sua etiopatogenia e por seu prognóstico que é conhecida ou sentida pelo doente. A consciência da doença é sua característica mais importante e que lhe possibilita assumir o papel de doente. Moléstia é mal-estar, o incômodo, a perturbação subjetiva, o sofrimento determinados por uma condição patológica. Também podem ser identificadas patologias por dano negativo, caracterizadas por faltar uma estrutura ou parte dela, ou haver prejuízo funcional identificável em relação ao modelo humano; estas condições patológicas podem ser congênitas (deficiências) ou adquiridas (mutilações, desfigurações). Enfermo é a designação que se atribui ao ser que padece uma enfermidade, uma moléstia qualquer; quem está afetado por alguma condição clínica correspondente a uma patologia diagnosticável, correspondente a uma das três classes de patologia (prejuízo funcional ou estrutural, doença ou sofrimento inadequado). Enfermo é o indivíduo no qual se manifesta uma perturbação perceptível de seu sistema vital, a pessoa que padece uma enfermidade de qualquer natureza. Noções como doença, enfermidade, moléstia, condição patológica, invalidez, transtorno, distúrbio, desordem não se definem por si, são construtos, conceitos valorativos caracterizados pelo dano que ocasionam às pessoas (ou outros 48
  • 49. organismos individuais) afetadas. Dano este que pode ser estrutural ou funcional, com ou sem sofrimento, com maior ou menor prejuízo pessoal ou social. A pessoa enferma, no entanto, não pode nem deve ser concebida como um ser reduzido a portador de enfermidade; ou um indivíduo afetado por um agente patogênico e sujeito à sua ação prejudicial; mas, o enfermo deve ser entendido sempre como um ser humano que sofre uma doença, uma pessoa prejudicada por uma patologia, alguém que padece uma moléstia que, por isto, merece ajuda e tem direito a ser cuidado com competência e desvelo pelos demais membros da sociedade, principalmente pelo pessoal da saúde e pelos agentes Estado. Durante muito tempo, discutiu-se se o objeto da Medicina seria a doença ou o doente. Esta discussão é inútil, pois, doente e doença são fenômenos absolutamente interdependentes e inter-complementares, inexistindo um sem o outro; a enfermidade é um estado, uma qualidade do enfermo. Não pode haver doente sem doença, nem doença sem doente. Estes dois fenômenos e suas relações constituem o cerne do objeto da Medicina. Não obstante, existe quem defenda (e pratique) os reducionismos extremados: os doencistas que se preocupam e se ocupam apenas com as doenças e os doentistas, preocupados e ocupados só com os doentes. Da definição do objeto da Medicina, ressaltam quatro aspectos ontológicos que são complementares e importantes: = a) a vastidão e complexidade do objeto da Medicina abrange as pessoas enfermas, os seres humanos e suas enfermidades (o que envolve um conjunto de ciências e um sistema de técnicas de intervenção na realidade); e = b) que o estudo da ontologia médica envolve, preliminarmente, a circunscrição de diversos conceitos, referentes a diversos fenômenos que se entrelaçam em seu objeto (tais como organismo, ser humano, pessoa, patologia, saúde, enfermidade e enfermo, ambiente e sociedade, prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação); 49
  • 50. = c) que o objeto da Medicina integra simultaneamente a pessoa e a sociedade, o organismo e o meio, a patologia e a saúde, o doente e a doença que constituem o núcleo do objeto da Medicina; = d) toda doença humana é uma doença pessoal e um fenômeno ecológico, além de patológico (e a principal característica da patologia é o dano que ocasiona). Em um plano mais amplo, com relação estes dois aspectos da identidade do objeto da Medicina, o doente e a doença, existem mais duas tendências extremas: a tecnicista, voltada para a doença, e a humanista, dirigida para doente. Ser Humano e Humanismo O principal objeto da Medicina é o ser humano enfermo, o ser humano que sofre uma enfermidade ou padece suas conseqüências objetivas e subjetivas. A pessoa enferma constitui o objeto essencial da Medicina que, absolutamente, não existiria sem ele. Embora, como já se mencionou anteriormente, os conceitos de enfermidade e enfermo se integrem numa totalidade apenas separável por um processo analítico, a Medicina se originou da necessidade de minorar ou curar a dor e as demais vissicitudes experimentadas pelo ser humano vitimado por uma condição de enfermidade que lhe causa algum dano ou se constitui em uma ameaça para sua integridade, sua felicidade ou sua dignidade. A pessoa enferma ou ameaçada de morte foi sempre o motivo e o objetivo da ação social e técnica dos médicos em todas os lugares, em todos os momentos da história de todas as culturas. A dor do enfermo parece ter sido a condição mais importante, dentre as que determinaram o aparecimento do médico e só depois, da medicina e do interesse pela enfermidade. O ser humano, concebido como pessoa, não pode ser reduzido ao organismo ou a uma interação mecânica entre o organismo (entendido como indivíduo passivo e passivamente plasmado por estímulos do meio físico ou do meio social. 50
  • 51. A pessoa, entendida como personalidade e credor de dignidade, sujeito de seu próprio destino e agente copartícipe do processo histórico-social, além de um agente do desenvolvimento da cultura material e espiritual, é um ser biopsicossocial qualitativamente diferenciado das outras espécies vivas, sobretudo por causa das relações especiais que mantém com a meio físico e com a sociedade (o meio social). O ser humano enfermo ou ameaçado de enfermidade é dado essencial do objeto da Medicina e só esquematicamente pode ser tido como um organismo humano ao qual se acrescentam elementos de sua existência social e características psicológicas. Neste esquema, o conceito de organismo deve estar absolutamente vinculado ao de ambiente, assim como o conceito de pessoa é interdependente do conceito de sociedade. A pessoa é moldada pela interação entre seus aspectos biológico-individuais e sociais. No entanto, o conceito de organismo está muito identificado com a noção de sistema vivo e, por isto, com a dimensão biológica da existência humana, estando muito longe de representar o conceito bastante amplo de ser humano, enquanto ser de natureza bio-psico-social, construtor de cultura, sujeito do processo histórico-social e de seu destino pessoal; um ser considerado único em dignidade e em personalidade e essencialmente caracterizado, exatamente, por esta singularidade que lhe dá sua personalidade e sua dignidade humana. Estas são as características da pessoa. O conceito de organismo tem sido considerado pelos positivistas mais ou menos estritamente como mecanismo biológico, máquina animada, abrange apenas a dimensão biológica do homem, seus aspectos biológico-individuais, no máximo, integrados no meio físico, sem qualquer referência à sua integração no meio social ou aos seus mecanismos psíquicos. O conceito ampliado de organismo, descomprometido dos preconceitos positivistas, pode (e talvez deva) conter o de psiquismo. E muitos o utilizam assim, 51
  • 52. entendendo o psiquismo como parte integrante do organismo, principalmente porque recusam separar o corpo do psiquismo como fazem os dualistas, que primeiro separam o corpo da alma e, depois, apartam a mente do corpo, como se fossem duas realidades essencialmente diferentes. Por isto, ao menos em sentido bastante amplo e sob influência da doutrina filosófica monista, a referência ao organismo humano pode (e talvez deva) incluir a noção de psiquismo e, portanto, abranger as noções de ambiente físico e meio social como contextos obrigatórios dos seres humanos. O objeto da Medicina deve ser entendido como uma díade com duas faces completamente inter-complementares: a pessoa afetada (ou em risco de ser afetada) por uma patologia e a patologia que afeta (ou é potencialmente capaz de afetar) às pessoas, comprometendo seu bem-estar, seu desempenho e sua realização pessoal e social. A condição vital especial dos seres humanos é muito difícil de ser precisada,<$FDificuldade que se torna insuperável caso se adote um modelo animal para referir o ser humano, como fazem os positivistas naturalistas que infestam a psiquiatria contemporânea.> mas pode-se dizer que se caracteriza por sua consciência, seu intelecto, sua capacidade verbal, sua aptidão para amar e sua possibilidade de transformar deliberadamente o mundo; condições estas que são, simultaneamente premissa e resultado de sua história e de suas relações sociais. Aparentemente o corpo humano não se diferencia por algum elemento qualitativo, ao contrário de sua condição psicológica e social. Estas características de ser social e histórico, de pessoa e de sujeito, além de um organismo vivo, fazem do homem um ser especial, simultaneamente agente, produto e habitante de três mundos: o mundo da sociedade, o mundo biológico e o mundo psicológico (nascido da confluência e da contradição dos dois anteriores). Síntese desta tríplice identidade, o ser humano se caracteriza por sua inteligência, por sua capacidade de comunicação, por sua capacidade de transformar o mundo 52