Escherichia coli EM AMOSTRAS DE CARNE SUÍNA DA REGIÃO INTERNA
S charque
1. CONTROLE DE Staphylococcus aureus EM CHARQUES
(JERKED BEEF) POR CULTURAS INICIADORAS1
Marcos Franke PINTO2,*; Eliza H.G. PONSANO2; Bernadette
D.G.M. FRANCO3, Massami SHIMOKOMAKI3
RESUMO
Jerked beef — JB — é um produto cárneo curado, salgado e
seco ao sol, derivado de um típico produto cárneo brasileiro
— o charque. Ambos carecem de estudos que orientem seu
aprimoramento. Staphylococcus spp. têm sido reportado
como o gênero predominante na microbiota do produto, o
que evidencia o risco de desenvolvimento de linhagens
enterotoxigênicas de S. aureus. Foram empregadas duas
linhagens inócuas de estafilococos na elaboração de JB, a
fim de avaliar sua influência sobre o desenvolvimento de S.
aureus por mecanismo competitivo ou pela produção de
bacteriocinas. Os resultados demonstraram que ambas
inibiram o desenvolvimento do patógeno tanto in vitro
como durante o processamento do produto. Não se
observou produção de compostos inibitórios pelas linhagens
iniciadoras, ficando a explicação para a inibição observada
restrita ao mecanismo competitivo. Este trabalho permitiu
demonstrar a possibilidade de aumentar a segurança e
padronização de JB pelo emprego de culturas bacterianas
selecionadas.
Palavras-chave: Staphylococcus aureus, charque, jerked
beef, tecnologia, culturas starter, sanidade
SUMMARY
CONTROL OF Staphylococcus aureus IN CHARQUIS
2. (JERKED BEEF) BY STARTER CULTURES. Jerked beef
— JB — is a sun-dried, salted and cured meat product,
derived from charqui. There are few studies about JB in the
literature, as in charqui. Staphylococcus spp has been
reported to be the predominant microrganism present in JB.
The presence of this genus reveals a possible hazard for S.
aureus growth. Two staphilococci strains commonly used
as starter in fermented meat products have been employed
with the purpose to inhibiting S. aureus either through
competitive action or through the production of
bacteriocins. The results demonstrated the inhibition S.
aureus growth, probably through a competitive action, as
they grow better in the medium. These starters have not
produced any inhibitory compound. These informations led
us to conclude that it is possible to improve the safety and
quality standardization of JB through appropriate starter
cultures.
Keywords: Staphylococcus aureus, charqui, jerked beef,
technology, starter cultures, sanity
1 — INTRODUÇÃO
Charque é um produto cárneo salgado e seco ao sol, típico do Brasil e
alguns outros países da América do Sul. Embora seja um dos produtos
cárneos industrializados mais consumidos no país [27], seu potencial de
comercialização está longe de ser completamente explorado, mesmo a
nível nacional [11]. A necessidade de ampliar o mercado consumidor fez
com que as indústrias buscassem alternativas para melhorar a qualidade e a
imagem do produto. Uma tentativa nesse sentido fez surgir o jerked beef
— JB, produto que difere do charque em alguns pontos, sendo o principal
a adição de sais de cura à matéria prima no início do processamento
(Figura 1).
3. a. A carne, depois de desossada, é cortada em camadas de 3 a 5 cm, denominadas"
mantas".
b. A salmoura, contendo cerca de 25% de NaCl e 200 ppm de NaNO2, é injetada
automaticamente nas mantas na proporção de 20% (v/p).
c. As mantas são utilizadas para formar pilhas de até cerca de 2 metros de altura. Após
cerca de 24 horas, essa pilha é invertida. Para isso, as mantas de carne localizadas no topo
da pilha inicial são colocadas na base da nova pilha a ser formada. Essas duas primeiras
pilhas são formadas alternando camadas de carne e sal grosso.
d. Diariamente, as pilhas são invertidas, sem o acréscimo adicional de sal entre as
camadas de carne. Esse processo é denominado "tombo" e tem o objetivo de uniformizar
a distribuição do sal e a retirada de água entre as diversas mantas. Além disso, permite a
visualização de possíveis falhas no processo [12]. São realizados de 3 a 5 tombos.
e. A carne é exposta ao sol em varais. Após um dia de exposição ao sol, as mantas são
recolhidas, empilhadas sobre plataformas denominadas "pedras" e cobertas com lonas
impermeáveis, para que não reabsorvam umidade. Permanecem nessa pilha coberta
durante todo o dia seguinte (abafamento), retornando depois aos varais para mais um
período de exposição ao sol. Assim, as mantas ficam, alternadamente, cerca de 6-8 horas
nos varais e 40-42 horas nas pedras. Geralmente, são empregados 3 períodos de exposição
ao sol.
FIGURA 1. Fluxograma do processamento de Jerked beef
A exemplo do charque, JB também carece de estudos visando assegurar e
4. aprimorar sua qualidade. Um dos pontos principais a serem considerados é
a inocuidade do produto, principalmente quanto ao aspecto microbiológico
[13].
LEISTNER [19] desenvolveu uma teoria explicando a estabilidade
microbiológica de produtos alimentícios — a Tecnologia dos Obstáculos
(Hurdle Technology). Segundo o autor, a estabilidade de um produto
obtido por esse tipo de tecnologia é conferida por dois ou mais fatores (ou
obstáculos) que isoladamente não produziriam esse efeito [20]. Já temos
demonstrado que JB se enquadra nessa teoria [24], sendo caracterizado
como um produto cárneo de umidade intermediária.
Poucos microrganismos são capazes de suplantar os obstáculos que se
implantam no JB durante seu processamento. Dentre esses, Staphylococcus
aureus merece destaque, por ser uma bactéria halotolerante, anaeróbia
facultativa [3, 5] e por produzir uma enterotoxina bastante termoestável
que, uma vez presente no alimento, é capaz de resistir às técnicas
convencionais de processamento térmico [3]. Quanto à sua capacidade de
produção de toxina nas condições do produto, há divergência entre os
autores, sendo que SPERBER [29] e LEITÃO et al. [21] citam um valor
mínimo de atividade de água (Aa) de 0,93, enquanto BERGDOLL [3]
relata a produção mesmo a 0,86.
Uma forma de inibir o desenvolvimento de S. aureus é controlar a
microbiota do produto, por tratar-se de um microrganismo considerado
fraco competidor. Isso pode ser conseguido pela adição de culturas
bacterianas selecionadas no início do processamento [2, 9]. Essas culturas
são disponíveis comercialmente na forma liofilizada, sendo amplamente
utilizadas na elaboração de produtos cárneos, como salames e presuntos
curados [14, 15, 22, 28].
Em estudos anteriores, demonstramos que a microbiota de JB é constituida
principalmente por estafilococos e micrococos [25], que são os gêneros
predominantes em produtos de características semelhantes, como biltong,
um produto típico africano [18] e presuntos curados [22, 26]. Isso indica
serem estas as culturas mais importantes a serem estudadas como
iniciadoras no processamento de JB.
Assim, o emprego de linhagens inócuas de micrococáceas na elaboração
de JB pode contribuir no controle da sua microbiota, promovendo
inocuidade microbiológica e padronização de suas características.
2 — MATERIAL E MÉTODOS
5. 2.1 - Culturas bacterianas
S. aureus — FRI 722
Linhagem enterotoxigênica, produtora de toxina A, proveniente da
Universidade de Wisconsin, USA, cedida pelo Depto. de Tecnologia de
Alimentos e Medicamentos da Universidade Estadual de Londrina — PR.
Culturas iniciadoras
Staphylococcus carnosus — Linhagem Floracarn S®
Staphylococcus xylosus — Linhagem Floracarn SX®
Linhagens bacterianas cedidas pela Ha-La do Brasil — Chr. Hansen Ind. e
Com. Ltda., localizada em Valinhos, Estado de São Paulo, comercializadas
na forma liofilizada para a elaboração de embutidos fermentados e como
culturas aceleradoras de cura e maturação para produtos cárneos em geral.
2.2 - Meios de cultivo
Foram utilizados os meios caldo de soja tripticaseina (CST) e caldo de
carne. Esse último, obtido segundo procedimento descrito por BIER [4],
foi utilizado devido à impossibilidade de adicionar meios microbiológicos
comerciais ao produto, pois isso interferiria em suas características
organolépticas. Para sua elaboração, misturou-se carne moida e solução
fisiológica (0,9% NaCl) na razão de 1:2. Essa mistura foi aquecida até a
ebulição e filtrada 2 vezes, sendo em seguida esterilizada em autoclave a
121oC por 15 minutos.
2.3 - Elaboração do produto
Para avaliação do comportamento das culturas em condições semelhantes
às que ocorrem em situação real, durante as etapas de processamento de
JB, foi empregado o músculo supraespinoso ("peixinho"). O preparo do
músculo para receber o inóculo foi baseado no procedimento descrito por
JACKSON et al. [17], realizado em ambiente asséptico — fluxo laminar.
As peças foram embebidas em álcool e, em seguida, inflamadas. A camada
queimada foi retirada com o auxílio de bisturi estéril. Essa operação foi
repetida duas vezes. A peça de carne restante foi submetida ao
processamento de JB em um sistema modelo. Para isso, foi utilizada
salmoura esterilizada em autoclave a 121oC por 15 minutos. As linhagens
iniciadoras foram inoculadas na carne misturadas nessa salmoura. As
etapas de salga e ressalga foram realizadas em recipientes de alumínio
estéreis. O sal empregado nessas etapas, bem como os recipientes, foram
esterilizados em estufa a 230oC por 2 horas. Após a ressalga, o excesso de
sal foi retirado, sempre de forma asséptica, e as peças permaneceram nos
recipientes fechados por mais 3 dias. Depois disso, as peças foram
6. expostas ao sol no próprio recipiente, recoberto por filme de polietileno.
Após cada período de 8 horas de exposição ao sol, as peças foram
colocadas em sacos plásticos, e permaneceram ao abrigo da luz no dia
subsequente. Após 3 períodos de exposição ao sol, o produto foi embalado
a vácuo.
2.4 - Comportamento de S. aureus em meio de cultura quando
cultivado isoladamente e juntamente com as linhagens iniciadoras
Foi avaliada a influência das linhagens comerciais de estafilococos sobre o
desenvolvimento da linhagem de S. aureus. Para isso, todas as linhagens
foram cultivadas em CST por 48 horas a 37oC. Em seguida, as diferentes
espécies de estafilococos foram inoculadas ao nível de 1% em frascos
contendo CST, isoladamente e também associando a espécie patogênica
com cada uma das espécies iniciadoras. Os frascos foram incubados a
37oC e após 0, 6, 24 e 48 horas de cultivo foram tomadas amostras para
realização de contagem. Para isso, alíquotas de 0,1 ml de diluições
decimais foram inoculadas na superfície (spread plate) de placas contendo
ágar Baird Parker. Para diferenciar a espécie patogênica das iniciadoras,
cerca de 30 colônias presentes em placas que apresentaram o crescimento
de 30 a 300 colônias foram tomadas aleatoriamente e inoculadas em tubos
contendo CST. Após incubação a 37oC por 24 horas, foi realizado o teste
para determinação da produção de coagulase. A porcentagem de cada
espécie observada na amostra de colônias isoladas foi então estendida para
o total de colônias presentes na placa selecionada.
2.5 - Comportamento de S. aureus no produto, isoladamente e na
presença das linhagens iniciadoras
A fim de avaliar a influência das culturas iniciadoras no desenvolvimento
de S. aureus quando presentes na carne empregada na elaboração de JB, as
linhagens foram cultivadas em caldo de carne por 48 horas a 37oC. Em
seguida, adicionou-se NaCl e NaNO2 aos níveis de 25% e 200 ppm,
respectivamente. Essas salmouras foram inoculadas em peças do músculo
supraespinoso. Nas peças em que foram inoculadas as linhagens
iniciadoras juntamente com a linhagem de S. aureus, foi empregado um
nível de inóculo de 10% para cada uma das linhagens. Nas peças em que
as linhagens foram inoculadas isoladamente, foi utilizado o mesmo nível
de inóculo para a salmoura preparada com o caldo de cultura, e
adicionalmente foi inoculada 10% de salmoura estéril. As amostras de
carne foram submetidas ao processamento em sistema modelo. Durante
7. diversas etapas do processamento, foram tomadas amostras para avaliação
do comportamento das linhagens inoculadas. Para isso, as amostras foram
adicionadas de água peptonada na razão de 1:10 (p/v) e homogeneizadas
em aparelho Stomacher 400. Dessa primeira diluição foram tomadas
alíquotas para a realização das demais diluições decimais.
2.6 - Teste de antibiose
Para avaliar a capacidade das culturas iniciadoras de produzirem
compostos inibitórios sobre S. aureus, realizou-se teste de antibiose
baseado no procedimento descrito por HOULE et al. [16]. As linhagens
iniciadoras foram cultivadas em CST por 48 horas a 37oC. Em seguida, a
cultura de S. aureus foi transferida ao nível de 10% em ágar soja
tripticaseina — AST — fundido e resfriado a 45oC. Esse ágar foi
transferido para placas de Petri e, após solidificação, discos de papel de
filtro estéreis de 10 mm de diâmetro foram embebidos com 0,1 ml de caldo
de cultivo de S. carnosus e de S. xylosus e colocados sobre a superfície do
ágar. Após incubação a 37oC por 48 horas, verificou-se a presença de
halos de inibição.
2.7 - Análise estatística
Os resultados foram submetidos à análise estatística através das técnicas de
análise de variância e análise de regressão clássica [6, 10].
3 — RESULTADOS E DISCUSSÃO
Em estudos anteriores [23], demonstramos que em fases bastante precoces
da fabricação de JB já se instalam no produto condições que inibem o
desenvolvimento da maioria dos microrganismos patogênicos. Por outro
lado, ficou também evidenciado que essas condições selecionam a
microbiota, favorecendo principalmente os estafilococos [25]. As espécies
pertencentes ao gênero Staphylococcus caracterizam-se por sua
halotolerância e capacidade de desenvolvimento em baixos valores de Aa
[3, 5, 29], o que reforça a preocupação de que S. aureus possa suplantar os
obstáculos do produto.
Conforme apresentado na Tabela 1, S. aureus cultivado isoladamente em
CST apresentou um desenvolvimento semelhante ao das culturas
iniciadoras. Quando cultivado em conjunto com as espécies inócuas, seu
desenvolvimento foi menor. S. carnosus apresentou o desenvolvimento
mais rápido, tanto em cultivo isolado como em conjunto com S. aureus, o
que refletiu-se numa maior inibição dessa última.
8. Essa tendência observada em caldo foi mais evidente quando as bactérias
foram inoculadas no produto. A Tabela 2 mostra que o desenvolvimento
de S. carnosus foi mais rapido também nessa situação, resultando numa
inibição mais eficaz de S. aureus. Enquanto no produto inoculado com S.
xylosus foi constatada a presença do patógeno por 48 horas, naquele
inoculado com S. carnosus não foi possível detectar células viáveis de S.
aureus 24 horas após o inóculo. Isso demonstrou a possibilidade de
inibição dessa bactéria por mecanismo competitivo, através da utilização
de culturas iniciadoras.
9. Segundo GEISEN et al. [14], a competição por nutrientes ocorre quando
uma quantidade limitada é importante para o desenvolvimento de dois ou
mais microrganismos competidores. Nesse caso, o microrganismo capaz de
se desenvolver mais rapidamente, ou seja, o mais adaptado ao substrato,
prevalecerá. As culturas iniciadoras são comercializadas para emprego em
produtos cárneos. Sendo assim, elas são selecionadas por sua capacidade
de se desenvolver nesse meio específico, o que aumenta sua eficácia no
controle de S. aureus.
Também foi avaliada a presença de compostos capazes de inibir o
desenvolvimento de S. aureus no caldo de cultivo das linhagens
iniciadoras. Essa preocupação fundamentou-se na possibilidade de que
essas linhagens produzam bacteriocinas ativas contra a espécie patogênica.
CANTONI et al. [7] descrevem a produção de bacteriocinas por
Micrococcaceae, efetivas principalmente contra S. aureus. Bacteriocinas
são proteinas ou complexos proteicos com atividade bactericida,
geralmente ativas contra espécies intimamente relacionadas com a bactéria
produtora [1]. As bacteriocinas produzidas por bactérias gram-positivas
apresentam um espectro de ação mais amplo do que as produzidas por
gram negativas [7]. O emprego dessas substâncias em alimentos tem sido
estudado pelo fato de serem quebradas em aminoácidos no trato
gastrointestinal. Assim, ao contrário dos antibióticos, elas não são
absorvidas pelo organismo na sua forma ativa, nem interferem com a
10. microbiota intestinal [14].
Conforme demonstrado na Tabela 3, neste trabalho não foi observada a
produção de compostos inibitórios pelas linhagens iniciadoras.
Diante do exposto, este trabalho permitiu demonstrar que as culturas
iniciadoras de estafilococos, embora não tenham apresentado capacidade
de produção de compostos ativos contra S. aureus, inibiram o
desenvolvimento desse patógeno, provavelmente por mecanismo
competitivo, constituindo-se num obstáculo adicional, capaz de contribuir
na garantia de inocuidade do produto.
4 — REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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5 — AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem à CAPES pela bolsa de Doutorado a MFP e à Ha-La
do Brasil — Chr. Hansen Ind. e Com. Ltda, pelas amostras das culturas
iniciadoras. BDGMF e MS são pesquisadores científicos do CNPq.
1 Recebido para publicação em 12/02/98. Aceito para publicação em 10/07/98.
2 Departamento de Apoio, Produção e Saúde Animal, Curso de Medicina Veterinária,
Unesp, Campus de Araçatuba, Rua Clóvis Pestana, 793, Caixa Postal 341, CEP 16050-
680, Araçatuba, SP, Brasil
3 Departamento de Alimentos e Nutrição Experimental, Faculdade de Ciências
13. Farmacêuticas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
4 Departamento de Tecnologia de Alimentos e Medicamentos, Centro de Ciências
Agrárias, Universidade Estadual de Londrina, Caixa Postal 6001, CEP 86051-970,
Londrina, PR, Brasil
* A quem a correspondência deve ser enviada.