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A GÁVEA
Transcrição das memórias do médico espanhol Eduardo Nogales no Rio de Janeiro, Brasil.
Tradução: Patrícia Matos – patriciamatos85@gmail.com
Não queria fazer isso, mas devo. A fronteira entre a intimidade, a ética e a universalidade da
tradição escrita é tão difusa quanto a divisa entre Argentina, Paraguai e Brasil em Foz do
Iguaçu.
Não queria, mas finalmente faço para me livrar logo do caderno e assim poder me livrar de uma
vez por todas das correntes que arrasto, que não são diferentes das correntes que carrega toda
uma geração. Neste momento me sinto como um Cristo Redentor que com esse ato heroico
deve salvar seus pares, que vivemos todos encarcerados na prisão invisível das convenções.
Não tenho certeza se essa psicodelia é fruto da frontalização secundária às noites intermináveis
do Rio ou da maconha, mas pode ser que tenha sido assim.
Agora estou na Lapa. Não é tão central, mas ainda assim é decadente e agitado. Gosto do bairro
porque sintetiza bem o país, ao menos a imagem que tenho dele, ou ainda a imagem que tenho
de como o país se construiu através da sua história. Nessas ruas se cruzam um país decadente e
outro emergente, um caldeirão que dança em uníssono ao som de uma música ao vivo,
imediata, como a vida aqui. Um lugar pacífico e ao mesmo tempo inseguro. Negro, mas branco.
Na Lapa hoje você está por cima, amanhã por baixo. Tudo muda de momento a momento. As
certezas europeias são produto de instituições políticas que não existem aqui.
A primeira vez que cheguei ao Rio vivia e andava por Copacabana. Cheguei ao Rio pensando
que o Rio era o Brasil, acreditando que Copacabana, Ipanema e Leblon eram o Rio. De maneira
análoga, pensava que minha vida era a vida, que se constituía em uma representação em
escala. Até que li o caderno. O caderno me transformou de alguma maneira.
Vim ao Brasil por acaso. A empresa tinha me enviado para a Argentina por duas semanas para
formar instrutores para o nosso projeto de banco inteligente. Meus superiores queriam
implantá-lo na América Latina e precisavam de jovens empreendedores com sede de aventura
para vir de vez em quando para cá. Nossos voos costumavam fazer escala no Brasil, pois assim
eram mais baratos. Um problema com a conexão e uns dias livres de que dispunha me fizeram
visitar o Rio.
Eu ia sozinho e haviam me falado sobre os hostels, esses alojamentos tipo albergue onde se
compartilham os quartos e os banheiros. Alguns amigos me disseram que era um bom lugar
para conhecer pessoas e arrumar companhia para se divertir. Assim, fiz reserva em um deles na
região de Copacabana pois tinha lido em um guia de viagens sobre as qualidades do lugar.
Durante aqueles dias fiz os passeios turísticos de praxe e à tarde-noite voltava para o hostel
cansado. Eram dias de semana, logo havia um ambiente tranquilo. Escolhi um dormitório misto
para ver se assim poderia conhecer alguma garota interessante. No fim das contas éramos
todos homens, claro. Havia uma dupla de ingleses e uma dupla de australianos que chegavam
todas as noites bêbados e nos despertavam com seus gritos e risadas estridentes. Durante o
primeiro despertar da primeira noite às 3 da manhã, reparei em um rapaz que ocupava a
beliche ao lado, na cama de baixo. Devia ter mais ou menos a minha idade porque visto de cima
já se notava que estava ficando calvo. Ele tinha preparado uma gambiarra com uma lâmpada e
um cabo para conseguir ler sem incomodar aos demais. Escrevia em um caderno como se sua
vida estivesse ali, como se as palavras fossem escapar ao contato da caneta com o caderno e
precisasse capturá-las de alguma maneira.
Na manhã seguinte me levantei bem cedo, mas o rapaz já tinha ido embora. Não voltei a vê-lo o
dia inteiro e ao cair da noite finalmente saí com os ingleses para tomar umas cervejas. Me
retirei logo, antes deles, e apesar de não haver ninguém no quarto quando entrei, me despertei
com a volta dos meus amigos ingleses, barulhenta como sempre, e voltei a vê-lo debruçado
sobre seu caderno escrevendo como um possuído. No dia seguinte novamente não o vi, de
modo que antes de ir para a cama programei o despertador a fim de tentar captar sua imagem
de novo. Havia algo que me despertava a curiosidade nesse sujeito. O que fazia no Rio? Que
fazia durante o dia que nunca estava? O que escrevia com tanto ímpeto? De onde era?
Ninguém ocupou sua cama essa noite, mas suas coisas ficaram, o que indicava que não havia
ido embora do hostel… Sempre que a cama de alguém que está em um hostel fica vazia uma
noite sem que o hóspede tenha partido os companheiros de quarto sentem alegria e
camaradagem pensando que ele ou ela está se dando bem.
Confesso que, sem que ninguém me visse, mexi em suas roupas que estavam bagunçadas em
cima da cama e pude ver um uniforme branco.
Na tarde seguinte o sujeito estava tomando um suco na sala de estar do hostel e, como sempre,
escrevendo em seu caderno. Era um caderno marrom com detalhes prateados, provavelmente
um presente. Me aproximei com alguma desculpa esfarrapada que não me lembro bem para
averiguar a sua nacionalidade e ver se conseguia puxar assunto. Qual não foi minha surpresa ao
descobrir que era espanhol, de Salamanca, se chamava Eduardo e vinha a ser médico; veio ao
Brasil para algum compromisso do trabalho. Parecia uma pessoa afável e logo conseguimos um
certo intercâmbio. Ao cair da noite lhe disse para se juntar aos ingleses e a mim, que iríamos a
um bar chamado Devassa.
Nos embriagamos rapidamente com a bebida mais mortífera que existe na face da terra, a
caipirinha. Dizem que se trata de um coquetel delicioso como o mojito, mas na verdade é fogo
puro. Bebi 5 essa noite e não me lembro de quase nada. O que me lembro é que o interroguei
acerca do que escrevia e me disse que estava registrando umas memórias de sua viagem, como
um diário. Perguntei o que contava nessas memórias e ele respondeu: “Nada, umas coisas
minhas”. Vi que ruborizava e evitava o assunto e quando eu insistia (quando bebo ninguém é
mais irritante que eu) resistia com firmeza. Não me lembro de muito mais daquela noite,
apenas do baita tombo que levei quando os ingleses me jogaram para o alto e “me deixaram
deslizar” até chão e acabei com um hematoma na coxa como souvenir. Naquela manhã o sol do
amanhecer nos despertou na praia de Copacabana, sem saber como havíamos chegado ali…
que porre! Fomos para o hostel e nada nem ninguém ocupava a cama de Eduardo. Perguntei
aos funcionários que me disseram que tinha feito o check out naquela manhã. Insisti um pouco
pela estranheza que me provocou o fato já que ele havia comentado que iria ficar mais uma
semana ali. Me disseram que havia dito que surgiu um imprevisto e que precisava ir.
Me entristeci bastante pensando que havia perdido de vista o rapaz e com ele o rastro da
história. Me senti triste e até um pouco enjoado, ainda que pudesse ser efeito da ressaca.
Deitei na cama e me doía o pescoço, tudo rodava, era um desconforto terrível. Tirei o
travesseiro para dormir sem ele pois isso às vezes aliviava tais dores. Quando fiz isso notei que
havia algo embaixo e quando completei a ação vi o caderno marrom. Não soube como lidar
com aquela surpresa. Pensei que devia lê-lo, que se havia deixado ali era porque queria que eu
o lesse e que devia fazê-lo.
Quando li fiquei paralisado. Não sabia o que fazer. Pensei muito sobre isso e finalmente aqui
está.
Roberto Sánchez
Transeunte
“O Brasil é um país continental”, dizem essas frases que se repetem como mantras e que já não
se sabe se pertencem a alguém ou ao imaginário popular. Quando te dizem que o Brasil é um
país continental não se sabe se é algo bom ou ruim. Os países grandes parecem mais difíceis de
governar. Ocasionalmente, a extensão territorial não só constitui uma fortaleza como, pelo
contrário, pode parecer uma fragilidade. À variável da extensão é necessário somar a variável
da população. Todo mundo diz que os países nórdicos são um modelo de gestão porque estão
pouco povoados. Eu acredito que não é só isso, evidentemente. No caso do Brasil acontece um
fenômeno bem conhecido na América Latina e nos países com baixos índices de
desenvolvimento humano: a concentração urbana. O capitalismo em sua face mais dura e o
passado colonial criaram monstros ingovernáveis chamados cidades, às custas de um êxodo
rural considerável. A grande assimetria entre as capitais e o resto do território que tem lugar
em países como Argentina ou Brasil está relacionada a um passado colonial onde o que
interessava era uma cidade portuária forte que abasteceria e satisfaria as necessidades da
metrópole. Quem na Europa dava a mínima para o que acontecia em Manaus? Por exemplo, as
ferrovias em alguns países latino-americanos foram construídas não pensando na circulação de
pessoas pelo território nacional e sim pensando no transporte de matérias-primas e sua saída
para o mar rumo aos territórios europeus. Por vezes eram inclusive as empresas europeias que
se encarregavam da construção das ferrovias.
Essa assimetria é uma realidade social e administrativa e tende a concentrar todos os recursos
em uma cidade megalômana e inabitável onde não há problema nenhum que não existam
oportunidades para todos, onde além do mais não se levam em consideração políticas que
gerem tais oportunidades. Assim, temos um bom número de excluídos vivendo abarrotados em
favelas, bairros degradados, aglomerados, etc. Dizem os marxistas que a alternativa a esse
modelo são núcleos populacionais de transição entre o campo e a natureza, no meio do
caminho entre os dois. Também é verdade que nos países desenvolvidos e com distribuição
mais justa de riqueza essa transição se resolve de outra maneira e é possível viver com mais
facilidade fora das grandes cidades.
A assimetria entre a capital ou cidade grande e o resto do território faz com que os serviços
sejam mais difíceis e mais caros. E isso traz como consequência que o papel do Estado seja
muito fraco ou quase inexistente, o que, finalmente, provoca problemas de articulação
territorial.
Esse fenômeno tem seu melhor exemplo na distribuição dos médicos pelo território. A
“liberdade” e a “orientação para o mercado” de todos os sistemas sanitários latino-americanos
acarretam uma forte concentração de profissionais nas capitais e um abandono dos territórios
mais longínquos. Isso fere fortemente o princípio de igualdade (nem todos os habitantes do
país têm direito igual aos cuidados com a saúde, já que em localidades mais distantes os
serviços sanitários são prestados de maneira abaixo do ideal).
No Brasil, portanto, as primeiras problemáticas que temos que enfrentar emergem
simplesmente de estudar a demografia, sempre tão importante.
A segunda problemática facilmente identificável no Brasil e na América Latina em geral é a
desigualdade. Não é necessário muito mais do que ter olhos na cara para se dar conta disso.
Corre-se o risco de converter o debate, nesse caso o debate sobre a desigualdade no Brasil, em
um assunto dos brasileiros, quando é um problema do modelo global. Isso não é uma desculpa
e sim uma realidade que nos ajuda a focar no problema adequadamente.
Tudo isso alimenta o sistema sanitário que, como é bem sabido, não passa de uma reprodução
social, política, administrativa e cultural do país. A divisão da sociedade em claras classes sociais
“salta” para o sistema de saúde e, por essa razão, se constrói um sistema para os ricos e outro
para os pobres.
Esse modelo é pouco interessante para todos, já que não faz outra coisa senão aprofundar
ainda mais a desigualdade (as grades e os porteiros 24 horas das casas da Zona Sul — rica — do
Rio de Janeiro são um subproduto dessa realidade). A classe alta recebe uma atenção sanitária
cara e iatrogênica e a pouca articulação interna do sistema resulta muito pouco eficiente.
O “egoísmo solidário” dos ricos que visa contribuir para a construção de um sistema de saúde
equitativo e assim diminuir a desigualdade (e, consequentemente, aumentar a segurança)
garantindo a salubridade (ausência de doenças infecciosas, por exemplo) fica no meio do
caminho no Brasil e em outros países latino-americanos.
Na realidade em nenhum país da América Latina têm sido introduzidos mecanismos com o
propósito de acabar com esse sistema dual. Essa realidade pode nos servir como termômetro
para avaliar as reformas que estão sendo iniciadas lá, talvez não tão profundas e rápidas como
pensamos na Europa.
Na Argentina, por exemplo, houve duas tentativas de unificação nas últimas décadas, mas que
não tinham tanto a ver com uniformizar o sistema dos ricos com o dos pobres, e sim com a
transição de um sistema Bismarck para um Beveridge. Ambas as tentativas resultaram em um
retumbante fracasso.
Dentre os movimentos de mudança dos últimos anos nos sistemas de saúde latino-americanos
destaca-se sobretudo o do Brasil. Desde 2009 vêm sendo feitos movimentos com a intenção de
reformar e melhorar o Sistema Único de Saúde. As mudanças não têm tanto o propósito de
unificar o sistema dual, mas sim de melhorar a atenção sanitária da classe baixa.
Sem ignorar o que poderia ter sido feito e que não foi feito, não vamos cair na lamentação e
vamos dar a importância devida ao que está sendo feito, que é muito.
O mais interessante desse processo é que se optou por romper com as falsas ilusões e
promessas do sistema de saúde pró-ricos e buscar implementar uma estratégia forte de
Atenção Primária, cuja agenda inclui alguns fundamentos muito interessantes como a
Prevenção Quaternária e a independência da Indústria Farmacêutica.
Uma coisa que me chamou rapidamente a atenção é que os residentes e os tutores usavam
canetas da marca Bic e não com publicidade de algum medicamento.
Nesse processo há um lugar que é, com todas as dificuldades e objeções que se quiser colocar,
um exemplo por seu impulso: o Rio de Janeiro.
Nesse lugar se conjuga um compromisso político sustentado sobre as decisões técnicas de um
grupo de jovens médicos de família, comprometidos e valiosos. Por sua vez, esse processo tem
sido apoiado por uma “certeza” de que as coisas tinham que dar certo e iam dar certo; se trata
da Sociedade Brasileira de Medicina Familiar e Comunitária, uma associação profissional como
a que muitos sonhamos na Espanha e da qual lamentavelmente estamos muito longe, em parte
pelo nosso modo de funcionar.
Na experiência carioca (gentilício para os habitantes do Rio) se combina a constituição de um
corpus teórico sólido e claro (definição de carteira de serviços e competências do residente) e o
estabelecimento de alguns elementos básicos da Atenção Primária clássica, como a
territorialização, ou seja, a equipe de Atenção Primária referente a uma Zona Básica de Saúde
ou seu equivalente. Também se fazem conviver acertadamente elementos do mapa que já
estavam bem constituídos, como os Agentes de Saúde, que são peças-chave no funcionamento
do sistema brasileiro e latino-americano em geral. Adiciona-se alguns acolhimentos que
surpreenderiam na Espanha, como serviços de saúde buco-dentária públicos incomuns em
comparação com os sistemas de saúde europeus.
Foram construídas boas infraestruturas. Por mais que alguns trabalhadores se queixem que
algum Centro de Saúde é pré-fabricado à base de gesso, são lugares lindos para trabalhar. E
com o ar condicionado no máximo, como os cariocas gostam, sinônimo de “conforto”. Com
jardins e plantas no centro, com a cadeira do médico ao lado da cadeira do paciente e sem
mesa entre elas, com uma infinidade de salas para uma infinidade de usos, salas de espera
confortáveis e onde não costuma haver aglomerações, com belas serigrafias de pessoas e
pacientes do próprio bairro, lugares bem definidos e próprios para os distintos profissionais de
cada especialidade e mapas didáticos em que se especifica a geografia do bairro em cores, as
equipes a que pertencem e que ajudam a criar sem querer uma ideia de comunidade e de
“orgulho de bairro”.
Na Atenção Primária do Rio, entre outras coisas, se destaca a boa gestão dos indicadores de
saúde e medições. Eles têm tudo muito bem registrado: quantas famílias, quantos membros,
quantos homens, quantas mulheres, quantos diabéticos, quantos hipertensos, quantas
crianças, quantos pacientes com tais doenças infecciosas, quantos em tratamento… Esses
dados são públicos e todos os pacientes podem vê-los no mural, o que também contribui em
minha opinião para o “orgulho de bairro” e o “orgulho de Centro de Saúde” com o qual se
conquista o respeito de todos em um ambiente de comunidade marcado pela violência e
dificuldades. Na triagem feita pela enfermagem são registradas todas as famílias com um
código de cores e se ressalta a existência ou não de enfermidades infecciosas mais
prevalecentes, de modo que basta uma olhada para obter informações nesse sentido.
Infelizmente todos os serviços de Atenção Primária têm a gestão terceirizada através de
organizações sociais e uma empresa se encarrega da mesma, de forma que os profissionais se
sentem impelidos a justificar a “accountability” perante a empresa ao final do ano. Mesmo com
esse déficit na forma de gestão, ninguém jamais havia dado tal impulso à prestação de serviços.
Há no mesmo Centro algumas instalações para promover a participação da comunidade, como
aparelhos de exercícios físicos e hortas comunitárias. Incompreensivelmente, em um contexto
de bastante rigor científico, se toleram e até se promovem terapias “alternativas” como a
homeopatia, a acupuntura, etc.
Geralmente há café gratuito para os funcionários. Há água mineral gratuita e fresca (que em
meio ao calor do Rio pode ser um luxo e uma iguaria) com copos de plástico para profissionais e
pacientes. Em muitos Centros há uma área física que administra uma rede de apoio à docência
e investigação e provê salas de reunião e outros fins, com computadores com acesso à internet,
wifi, projetor, etc., tudo novo e em instalações bonitas, ambiente amigável e agradável. Essa
rede se chama OTICS (Observatório de Tecnologias de Informação e Comunicação em Sistemas
e Serviços de Saúde). Se utiliza um sistema de informática para gerir a história clínica que se
assemelha ao da Espanha.
Os profissionais são em geral comprometidos, aplicados e trabalhadores. Costumam bater
ponto. Dão muita importância à docência. Os residentes têm, além de suas horas de
atendimento, atividades de formação obrigatórias. Nos Centros de Saúde há uma biblioteca
mais que suficiente para realizar consultas na hora ou depois.
A articulação com o sistema secundário em geral é memorável, mesmo havendo um sistema de
gestão de consultas em nível hospitalar que às vezes ajuda e em outras não, embora não seja
culpa do método e sim dos obstáculos e lastros do sistema.
Um grande problema dos sistemas latino-americanos em geral e do brasileiro em particular é a
fragmentação, a heterogeneidade. Por um lado, a territorial, que faz com que no Rio, por
exemplo, se aposte fortemente na Atenção Primária e em outros estados não. Isso implica que
a formação em residência de Medicina Familiar e Comunitária seja excelente no Rio e nem
tanto em outros estados. O mesmo acontece com as remunerações. A descentralização das
forças é necessária, mas sempre que se realizem em níveis de equidade e igualdade entre
regiões. Por outro lado, a coordenação entre níveis se comporta com duplicidades, assimetrias,
desigualdades e absurdas lutas internas entre os poderes municipais, locais e estatais.
O sistema não funciona como um todo coordenado, mas por pequenas partes pelas quais o
paciente transita e que à miúde se complementam em instituições particulares. Isso se
manifesta em uma infinidade de clínicas privadas, uma de cada especialidade, o que faz com
que os estágios dos residentes em Medicina Familiar e Comunitária, por exemplo, sejam em
locais que os responsáveis “contratam”. Sim, eles têm que pagar, e nem sempre as
possibilidades que existem para se formar em algumas áreas são satisfatórias por diferentes
motivos.
A pouca coordenação e a aposta no privado também explicam o fluxo dos estudantes que
ingressam na especialidade desde diversos programas de formação. No Brasil (e em outros
países latino-americanos também) é possível e muito fácil trabalhar em qualquer especialidade
sem haver recebido a formação específica para tal fim.
No Brasil há 5.000 médicos de família especializados. Somente a metade trabalha como médico
de família dando consulta, o resto está relegado a plantões ou outras atividades (realidade
parecida com a espanhola). Menos de 10% dos médicos que trabalham como médicos de
família no Brasil têm residência.
As marcações de consultas com os especialistas do hospital se dão por uma espécie de central
segundo a oportunidade e a urgência dos cuidados. Isso faz com que o atendimento ao
paciente se “dissipe” para fora da área de referência e que por vezes a suposta vantagem de
que a consulta se dê em uma semana se converta em desvantagem já que ela se dá em um
hospital que fica do outro lado da cidade e o paciente perde, já que não tem meios de ir até lá.
Parece que a fragmentação é um ímã que seduz incompreensivelmente e até mesmo
personalidades clamam pela liberdade de escolha de Centro de Saúde. O nível secundário tem
pretensões de Área Única… Erros que já se mostraram como tais e que tendem a se repetir.
Como há males que vêm para o bem, perante a preguiça ou impossibilidade de deslocamento
em nível secundário, o paciente busca proteção e atenção no nível primário, reforçando
finalmente o papel da Atenção Primária.
A fragmentação provoca estragos entre os recursos humanos, especialmente entre os médicos.
Quarenta anos de neoliberalismo e de orientação para o mercado no sistema sanitário criaram
monstros, e os médicos brasileiros são vistos como “a casta”. Em grande parte ganharam esse
tratamento pois paira no ambiente a ideia de que a medicina é para eles um meio e não um fim
em si mesmo, um batismo de oligarquia.
Disso resulta que os médicos (muitos, mas não todos) gostem de ter vários trabalhos para
receber vários salários e andem de cima para baixo nem sempre cumprindo com suas
obrigações adequadamente em cada um deles, sobretudo no emprego público, que é o mais
grave, já que suas remunerações são pagas com o esforço coletivo (impostos ou rubricas do
orçamento geral do Estado).
A renúncia dos médicos a ser milionários é uma condição indispensável para construir um
sistema de saúde pública de qualidade. A integração dos efetivos da classe baixa na classe
médica também. Isso se solucionaria facilmente com uma simples Lei de Incompatibilidades e
alguns complementos para exercê-la. É só uma questão de vontade.
Uma das queixas que se escutam é que no Brasil em geral e no Rio em particular tudo funciona
com demasiada dependência dos incentivos.
No Rio os pilares são a reforma da Atenção Primária e a residência em Medicina Familiar e
Comunitária. Para captar os residentes são oferecidos bons salários, o equivalente a 2500 -
3000 euros por mês. E ainda assim alguns querem mais e fazem plantão em outros lugares! No
Brasil a residência dura dois anos.
Há uma maneira de “comprar” a adesão sem dinheiro, no caso pela ideologia. Não se trata de
ser de esquerda ou direita (se é que isso ainda existe), mas de compreender que um sistema
sanitário forte é uma maneira importante de servir à pátria e à sua gente e alcançar um
compromisso moral e social que substitua os Reais.
Disse Juan Carlos Monedero em uma entrevista: “Dizemos que temos que recuperar as
emoções. É uma coisa que aprendemos da América Latina. Não se pode lutar contra a
cosmovisão neoliberal, que é uma promessa de consumo infinita em um supermercado
inesgotável…. É preciso oferecer algo que valha a pena. A esquerda diz ‘não consuma, não faça
isso, não faça aquilo…’ Faz falta inventar, e aí as paixões são relevantes… Não se trata de uma
apelação ao irracional, como a esquerda sempre disse. O apelo às emoções é uma ferramenta
para permitir que essas coisas que parecem impossíveis sejam incorporadas. No momento em
que você se torna indiferente, isso não é mais possível…”.
A batalha que está sendo travada no sistema de saúde do Rio é fundamental. Estão tentando
fazer com que 100% dos cariocas tenham cobertura, sob a intervenção forte do Estado que
organiza a distribuição dos serviços. Desde já são ofertados para a classe baixa, mas também
para a classe média, que pela primeira vez tem uma opção que nunca havia tido antes. Em
alguns bairros do Rio, como Botafogo ou Catete, a classe média começa a ser usuária do
Sistema Único de Saúde, Atenção Primária incluída.
O campo da gestão sanitária é bem complexo porque se trata de conjugar distintos atores com
distintos interesses, mas há duas coisas em comum entre todos os processos que querem a
reforma e a melhora dos sistemas (públicos) de saúde: uma Atenção Primária forte e uma
intervenção forte do Estado. De seu sucesso depende o Brasil, a América Latina e o mundo
inteiro. Uma vitória se converteria de imediato em um exemplo para o resto dos países
limítrofes e os contaminaria como uma doença infecciosa. Os contágios locais são fundamentais
na geopolítica. Igualmente, o caminho percorrido já não tem volta. Em 2016 haverá eleições e
aquele que vier a disputar e desafiar o poder existente tem que englobar o que há (conceito de
hegemonia gramsciana).
No Rio se iniciou a Reforma da Atenção Primária de Saúde em 2009, quando somente 3,5% da
população não incluída em planos de saúde (seguradoras coletivas ou privadas) tinham
cobertura em Atenção Primária. Em 2015 vamos para a marca de 50%. Se pretende chegar aos
70% ao final do projeto, em 2016. Em 2011 começava o programa de residência da Secretaria.
No primeiro dia de minha estadia no Rio fui recebido por uma companheira espanhola que
trabalha na coordenação técnica do programa de residência em Medicina Familiar e
Comunitária do município. Ali encontrei outra companheira residente peruana e a médica
espanhola nos deu uma “iniciação” acerca do que estavam fazendo.
Me impressionou um mapa que tinham em que se representava a cidade do Rio de Janeiro. É
como se o que os turistas chamamos de Rio fosse o bico do pássaro, ou “só a pontinha”,
enquanto que a cidade se estendia muitíssimo mais além.
Eu havia escrito para a lista de e-mails de Atenção Primária MEDFAM pedindo ideias para viajar
em minhas férias. Ela me escreveu e me convidou. Logo me enviou um e-mail contando sobre o
que faziam e os lugares que poderia visitar. Era impossível dizer não. Uma semana depois já
tinha as passagens compradas.
Estive com eles por 10 dias em setembro de 2015. Nem eles me pagaram nada nem eu paguei
nada a eles.
No primeiro dia fomos visitar um Centro de Saúde em uma zona periférica da cidade. Saímos
em um carro da Secretaria Municipal com motorista que nos levou até lá. É longe, difícil e
perigoso de chegar, por isso é preciso que seja assim. Me sinto culpado pelo gasto gerado ao
sistema. Era a primeira vez que via a infraestrutura sanitária carioca em Atenção Primária que
descrevi anteriormente. Dou consulta com um residente. Uma menina de pouca idade com
uma inflamação chamativa na mandíbula. “Um abscesso secundário a uma infecção dental”,
penso em minha mentalidade europeia. O residente a examina e chega ao diagnóstico de
parotidite (caxumba). Eu havia ignorado o contexto epidemiológico local. Primeira lição clínica
aprendida. O residente pede que a menina (aparentemente de classe baixa) abra a boca para
examinar a orofaringe. Ele se dá conta de que não tem uma lanterna e olha ao redor
procurando. Como não a encontra, põe a mão no bolso e a ilumina com a luz do iPhone.
Paradoxos da modernidade.
Saímos para almoçar. Todos saem para almoçar ao meio dia. É um momento lindo do dia.
Converso com alguns residentes que falam castelhano, outros portunhol (mistura de português
com espanhol) e me esforço para entender e falar com os que falam português. Não é fácil
entender tudo, mas se pode compreender o contexto. Além disso, quando você escuta falar o
português autêntico se dá conta de que sua compreensão do idioma em outras ocasiões não se
dá pela sua capacidade, mas sim pelo esforço deles em falar castelhano ou portunhol. Os
residentes têm uma aula nessa tarde e assim passo a tarde com outra companheira, essa já
adjunta.
Vemos uma menina de novo e quando a consulta termina se estabelece uma conversa com a
mãe, de bom aspecto físico e bonita. De repente vejo que a conversa deriva para uma lesão e
uma cicatriz. A mãe levanta a camiseta e podemos observar que seu torso é um queloide
completo. Jamais havia visto coisa igual. Pobre mulher.
Em um dado momento a companheira me diz: “Você é o Eduardo, li seu texto sobre as
mulheres.” E nesse momento me emociono por dentro por pensar que algo que você escreve
em sua casa há milhares de quilômetros chega até ali.
Nos tempos mortos tento não incomodar muito porque eles também têm seus afazeres e vão
de um lado para o outro. Casualmente olho um tratado de Medicina Familiar coordenado por
Gustavo Gusso e outra pessoa. Muito bom, muito adaptado à realidade brasileira, com
capítulos que falam do sistema sanitário brasileiro, da atenção nas favelas, etc., e em que
participam médicos de outros países, como meu professor Juan Gérvas.
A programação da minha estadia é mais ou menos predefinida, mas há lugar para a variação
porque como diz minha companheira espanhola, as coisas no Rio mudam de um momento para
o outro.
Para o dia seguinte está programada uma visita a um outro Centro de Saúde da periferia, de um
bairro muito pobre. No dia anterior morria um menino de 13 anos atingido por uma bala
perdida em um tiroteio. Vemos o Centro de Saúde, similar ao anterior. Dou consulta junto a um
médico de família. Se trata, nessa ocasião, de consultas rápidas, em um espaço aberto,
separado por um biombo da sala de espera, sem possibilidade de realizar exames mais amplos
nem grandes ações, onde em princípio se tratam de problemas rápidos e/ou banais: medir a
pressão arterial, uma auscultação, uma prescrição, entrega de alguns exames…. Finalmente os
pacientes se consultam por problemas iguais aos que se pode prever em uma consulta normal.
Ocasionalmente há uma certa dissociação na abordagem, que se resolve encaminhando
novamente o paciente a uma consulta mais convencional e com soluções provisórias. Em um
dado momento vários pacientes pedem exames que não têm justificativa, derivações
incompreensíveis, etc. Olho para o médico que me devolve o olhar e lhe digo: “Aqui estamos…
igualzinho à Espanha. ”
Vou com os adjuntos almoçar. Me levam em seus carros. A comida no Brasil é deliciosa e
abundante. Vamos a um lugar tipo buffet. Eu sempre peço parecido com eles para não destoar.
Penso: “Como vou comer! ” Quando chegamos ao fim da fila me pesam a comida e é preciso
pagar por peso. Hahaha Me fodi!
À tarde dou consulta com outra companheira. Vemos alguns pacientes com motivos de
consulta similares aos europeus e com soluções parecidas. Ela é muito diligente, resoluta e
humana (a companheira anterior também. :) ) No momento da prescrição dão aos pacientes
um papelzinho para que retirem os medicamentes no dispensário que fica no mesmo Centro de
Saúde, gratuitamente. Há medicamentos essenciais e se evitam os de marca. Uma estudante
me chama para ajudá-la a fazer testes rápidos de DST (HIV, hepatite B, hepatite C, sífilis). Não
se sai bem ao furar o dedo da paciente para coletar o sangue. “Fure na lateral do dedo, onde é
mais vascularizado”, lhe digo. E o sangue efetivamente brota.
Às 4 da tarde digo à adjunta que já vou, para chegar em casa antes que a noite caia, porque
anoitece logo e nos primeiros dias a segurança é uma preocupação constante até se acostumar
com o ritmo da cidade. “Já vai? ”, ela disse. Sim, é muito cedo — eles ficam até as 8 horas. Têm
a possibilidade de trabalhar quatro dias na semana e ficar até as 8 ou cinco dias e ficar até as 6.
No terceiro dia participo de um curso de formação de preceptores credenciados, chamado
EURACT. Ali acontecem umas apresentações em que comprovo que não me inteiro de quase
nada e momentos em que me dou conta de que grande parte do trabalho da vida, e sobretudo
do primeiro ano de residência, consiste em enganar os colegas e fazer parecer que se sabe ou
se entende, quando na verdade não se sabe ou não se entende nada. O curso acontece em uma
sala que leva o nome de “Auditório Bárbara Starfield”. Creio que com esse exemplo fica claro o
compromisso desse grupo com a Atenção Primária. Ouvimos as falas de um grupo de
capacitadores que trabalham na Coordenação Técnica. Dominam os conceitos de Medicina
Baseada em Evidências, das peculiaridades do aprendizado, do humanismo médico… a partitura
dessa música me encanta.
À tarde faço uma apresentação aos residentes sobre osteoporose. Me emociona pensar que
eles vêm do cu do judas para me ouvir. Tento fazer algumas brincadeiras para envolvê-los na
questão.
No dia seguinte há uma mudança de planos e finalmente um companheiro da Coordenação
Técnica que está sempre muito ocupado, como todos, tira um tempo para levar a mim e a um
estudante de medicina até a Rocinha, a maior favela do Rio.
No Rio, se aproveitam os trajetos de carro para dar aulas, palestras e fazer debates científicos…
isso é lindo e apaixonante e me lembra meus estágios no âmbito rural. O companheiro nos dá
uma aula magistral sobre a organização de serviços de Atenção Primária no Brasil.
A Rocinha abriga 70.000 pessoas e é uma favela pacificada. Se tornou algo muito próximo de
uma pequena cidade. Me contam que antes havia um grupo de traficantes de drogas que
controlavam a favela inteira. O grupo perdeu o controle da favela e agora vários a disputam, o
que piorou sua situação. Paradoxos do poder.
O companheiro nos mostra o Centro de Saúde e em um dado momento cruzamos com uma
senhora que logo venho a saber que tem um cargo importante na Subsecretaria de Saúde. Me
apresenta a ela e diz: “Esse é Eduardo, médico espanhol, temos muito que agradecer a ele por
sua visita”. Nesse momento penso que vou ficar ali 10 dias, os incomodo, me põem em um
carro com motorista para me levar aos Centros de Saúde ou pontos de aprendizagem, roubo
seu tempo… e ainda por cima me agradecem. Consigo balbuciar um “O que está dizendo? Ao
contrário, eu que tenho que agradecer a vocês…” — Me emociono por dentro.
Me apresentam a um médico jovem, tutor de residentes. A partir desse momento me converto
em sua sombra. Seu trabalho consiste em sanar as dúvidas dos residentes sob sua
responsabilidade. Quando a situação é mais difícil se consultam os livros. Vemos os distintos
pacientes, abundam as consultas de dermatologia venérea. Fazemos algum procedimento com
algum residente, como uma infiltração de joelho. A paciente, uma senhora de uns 60 anos, se
sente vulnerável quando fala sobre sua dor intensa e chora na consulta. As emoções humanas
são as mesmas na Rocinha, em Serrano, em Zamora, no Congresso, no Leblon. Há uma coisa
que nos iguala a todos por mais que queiramos nos diferenciar.
Todo mundo para continuamente o jovem médico pelos corredores para que solucione algum
pepino. Ele aguenta tudo com impressionante paciência.
A Rocinha é um lugar vibrante, apaixonante para um estrangeiro. Não se pode tirar fotos, nem
olhar muito descaradamente, por respeito e educação. Deve-se agir como se fosse parte do
ecossistema. Ao mesmo tempo não se pode perder um detalhe desse presente dos céus de
poder ver isso e estar ali. Nem todo mundo tem esse privilégio, de ver essa realidade humana,
política e social. Não se trata de um interesse mórbido pela pobreza e sim do interesse por uma
construção sociológica humana, com suas mil contradições. A Rocinha é um “bairro” que em
algum sentido se assemelha ao caos asiático, com seus mil cabos enredados até dizer chega
sobre a sua cabeça (Como podem saber para que serve cada um?). O rugido ensurdecedor dos
carros e motoboys, as pessoas que desfilam pelas ruas e calçadas em ambos os sentidos da
avenida central. Milhares de lojas com suas luzes e anúncios. Crianças que vêm e vão. Lixo no
acostamento. Gritos, risadas, pessoas fumando em lugares relativamente afastados do alvoroço
contemplando a paisagem. Cabeleireiros e salões de beleza. Pessoas que apostam a vida
cruzando a avenida. Rincões desconhecidos e insuspeitos. Barracas de frutas e comida.
Restaurantes. Impressionantes vistas da favela. Não há nada que não se possa encontrar na
Rocinha.
Na hora do almoço nos juntamos o médico, o agente comunitário e eu. Vamos a um lugar em
que podemos nos sentar em uma espécie de terraço na “primeira fila” com vista para o
trânsito. Penso que é como estar em um desses restaurantes à beira mar, mas com uma
paisagem urbana e dilacerante. As pessoas vêm e vão de sandálias, a desordem. Penso que
nessa conjunção e no haver chegado até ali se constrói algo profundo, uma metáfora cheia de
sentido.
Ao retornar ao Centro de Saúde vemos um mural gigante na rua que diz: “A todos os habitantes
da Rocinha que trabalharam para melhorar as condições de vida das pessoas daqui”. Algo
acontece dentro de mim.
Em seguida vemos mais alguns pacientes enquanto espero o Agente de Saúde para ir com ele
visitar o seu setor. O motivo da visita da tarde é ver os hipertensos que não estiveram no
Centro de Saúde nos últimos 6 meses para controlar sua pressão arterial, porque os
medicamentos são gratuitos e o requisito para recebê-los é seguir o tratamento. Quando o
paciente não cumpre esse requisito entra na “lista negra” e os agentes vão à sua casa tomar
sua pressão. Sim, está claro que essa estratégia pode ser muito discutível em termos científicos
e de custo-benefício, mas isso não vem ao caso.
Subimos pela avenida principal. Eu não sabia em que consistia a visita nem onde íamos
(provavelmente ele me disse, mas não prestei muita atenção, hahaha), e em um dado
momento meu companheiro vira à direita e, apontando para umas escadas que adentram a
margem da avenida principal, me diz: “aqui começa o meu setor”.
Começamos a descer por umas escadas e umas “ruas” super estreitas desviando de entulhos de
cimento, cabos, lixo, esgoto…, mas ao mesmo tempo observando uma organização interna
decididamente premeditada. Jamais havia visto tanta ordem na desordem. Deixávamos as
casas na nossa lateral e essas eram construídas de maneira absolutamente inverossímil,
algumas com partes a terminar; outras que se levantavam sobre um terreno que se custa a
acreditar que as sustentam. Não podemos esquecer que as favelas geralmente se assentam
sobre a encosta de uma colina. Em alguns momentos era possível observar um tipo de corredor
grande central por onde descia uma coluna forte de água de não sei qual procedência. Pensava
meio de brincadeira nos canais de Veneza ou Amsterdã. Alguma companheira comentava:
“Imagina o que acontece quando chove, com todo o barro e tudo que a chuva arrasta”. O
agente ia chamando o nome do paciente, pois não havia campainha nas casas, e eles saíam ao
nosso encontro. Na primeira casa que entramos nos convidaram para sentar e tomar café com
bolo que obviamente tivemos que aceitar. Estavam fazendo uma reforma na casa. Recordo que
me causou muita impressão ver uma grande televisão de plasma instalada ali. A televisão tem
uma função cultural e social crucial no Brasil, sobretudo as novelas, a tal ponto que se
constituem em espaços de socialização política, segundo me contaram.
Vendo tudo isso me veio à cabeça os dizeres da bandeira do Brasil: Ordem e progresso. E era
isso que haviam encontrado ali na Rocinha: ordem e progresso, dentro da desordem e do
atraso. Provavelmente não há uma reprodução em escala mais precisa do país inteiro do que a
Rocinha. Provavelmente não há uma definição mais exata para um país tão contraditório.
Na segunda casa também nos receberam com alegria e entusiasmo. O Agente de Saúde era
uma pessoa cativante e que, além disso, vivia na mesma Rocinha e havia crescido ali. Tinha as
pessoas no bolso, se notava que os pacientes gostavam dele. Nessa casa nos deram um pedaço
enorme de melão que fomos comendo pelo caminho. Na terceira casa nos deram refresco a
cada um… E a partir daí o companheiro disse para não aceitarmos mais nada, ou terminaríamos
hipertensos também.
Me chamava a atenção que as pinturas tão bonitas que enchem as paredes do Rio também
estavam presentes nessas ruelas da Rocinha. Alguns pacientes que pegávamos de surpresa não
se abalavam em saber que estavam na “lista negra” e logo se deixavam tomar a pressão de má
vontade. Alguns sentados sobre blocos de cimento na porta de casa… eu lhes colocava o
tensiômetro automático como e onde podia. Às vezes o próprio paciente o segurava, outras o
deixava no chão e os gatos o rodeavam e lambiam. Um paciente ficou mal-humorado porque
fomos buscá-lo e medi sua pressão enquanto fumava um cigarro, hahaha.
Subimos até casas impossíveis, construídas no alto e que por sua vez tinham escadas
empinadas e estreitas até chegar onde efetivamente se vivia. No transcurso das visitas pude
conhecer senhores de idade simpáticos que me fizeram lembrar muito os da cidade espanhola
onde trabalho. Sua dignidade e seus lindos olhos agradecidos eram os mesmos. Em outras
ocasiões entrávamos e íamos medir a pressão de um paciente, mas terminávamos medindo a
de todos os membros da família, 4 ou 5. Eu brincava fingindo que tentava medir a pressão do
Agente de Saúde, mas ele era muito forte e tinha o bíceps muito grande (o que era o caso) ... e
todos caiam na gargalhada.
Quando dei a palestra sobre osteoporose depois de ter visitado a Rocinha, no momento em
que falei da prevenção de quedas me dei conta do quão importante é o contexto local. Há um
trecho que diz: “Para prevenir as quedas (e as fraturas) é preciso atuar sobre os fatores
ambientais, entre outros: iluminação defeituosa, desníveis e escadas, pisos em mal estado, fios,
animais de estimação, tráfego e transporte público, obstáculos urbanos”… Agora tente
controlar esses fatores na Rocinha! hahaha
Quando terminamos descemos até a avenida principal bebendo o refresco com o canudo de
praxe. Ali tudo se bebe com canudo. Na volta ao hostel com o médico pude vivenciar a
efervescência da noite na Rocinha. Passamos por uma passarela construída pelo famoso
arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer. Mais uma contradição. Fomos até o ponto de ônibus. Ao
lado se encontram umas instalações esportivas de alto nível. Duas contradições, pois. Pegamos
o ônibus até Copacabana. O ônibus urbano acaba com o nosso amortecedor traseiro.
No dia seguinte visitei um bairro também muito pobre, mas não construído em uma favela.
Nessa ocasião eu acompanharia uma equipe que atende pessoas que vivem na rua. Quando
cheguei ao Centro de Saúde a doutora havia saído e enquanto esperava uns companheiros
tiveram a amabilidade de me levar para conhecer um pouco as instalações. Conheci uma
residente que havia viajado para a Madri, e ficou em Valdebernardo. Lembro que pensei nesse
momento se ela havia sido tão bem tratada na Espanha como estavam me tratando no Rio.
Tomara que sim.
Em seguida me reuni com a equipe e começamos as visitas. É comum que as pessoas que vivem
na rua em condição de indigência se movam de um lugar para o outro. Daí que quando há um
caso desse tipo os médicos devem entrar em contato com a equipe que corresponde à nova
zona de estadia do paciente. Nesse caso fomos a um Centro de Saúde próximo em uma van.
Um outro médico de moradores de rua nos acompanhava e apesar de sua idade e de algumas
notáveis e chamativas dificuldades físicas de que se queixava continuava trabalhando em um
meio tão duro. Me emocionou sua dignidade. No novo Centro se discutiu sobre o paciente em
uma dessas discussões em que é melhor se sentar pois parecem não ter fim. Assim se procede,
são casos muito complexos com problemas muito complexos que vão desde assuntos de tutela
judicial de filhos, doenças sexualmente transmissíveis como sífilis, doenças infecciosas como
tuberculose multirresistente, autos judiciais de ingresso involuntário, consumo de drogas,
violência… tudo junto em uma mesma pessoa, nesse caso uma menina de 16 anos que já era
mãe de dois filhos…
Continuamos nossas andanças pela rua. À medida que caminhamos o Agente de Saúde me diz,
apontando discretamente a um grupo de jovens ao longe: “Você sabe como é o processo do
consumo de crack? ” Digo que não e quando olho vejo a fumaça que sai da aglomeração e os
meninos passando a droga.
Passamos ao lado de três homens que dormem na rua. O procedimento é se aproximar e
perguntar se estão bem, se precisam de alguma coisa, se querem alguma coisa, se está
acontecendo alguma coisa. A filosofia da equipe é o que chamam de “redução de danos”. Não
se busca a solução puritana e paternalista e sim ser realistas e fazer por eles o que o contexto
permite, minimizando as consequências de suas ações mais do que querer influenciá-las. Um
deles pede ajuda porque afirma que um policial o atingiu com um cassetete nas costas e dói
muito. A doutora o examina sobre o chão e diz que vai enviar alguns remédios para que
melhore da dor. Quando terminamos a doutora manda o Agente de Saúde dar ao paciente a
prescrição e os remédios com as instruções sobre como tomar. Além do quadro pelo qual se
consultou, o homem tem umas lesões impressionantes nas extremidades inferiores que não sei
o que são. “São infeccionas”, me dizem. As outras duas pessoas não querem consulta mas
aceitam preservativos que o Agente de Saúde oferece.
O residente visitante comenta que ali a polícia é muito violenta e fala muito mal deles. Dizem
que com o advento dos Jogos Olímpicos tudo isso vai piorar porque vão querer tirar os
indigentes da cidade.
Ato contínuo, nos dirigimos para as ruas de trás, próximo à linha do trem. Passamos junto a
uma casa onde há uma família “normal” sentada em cadeiras na porta, conversando. Logo após
há uma espécie de bar onde vejo que vendem uns copos transparentes com tampa e água
mineral dentro que se assemelham aos de iogurte. “Faz muito calor aqui e as pessoas vêm
comprar água”, penso. Alguns momentos depois seguindo pela via se abre uma curva e posso
ver umas 15 pessoas em diferentes posições e estados consumindo. Crack fundamentalmente.
Então o Agente de Saúde se aproxima e me explica detalhadamente como consomem o crack
utilizando esse copo: como fazem furos na tampa, colocam a pedra… enfim, todo o processo.
Ali havia outra menina vendendo os copos. Refleti sobre como se adapta a atividade econômica
às características do mercado.
O Agente de Saúde era muito atencioso comigo e estava realmente empenhado em que eu
aprendesse o processo e perguntava a todas as pessoas que estavam ali consumindo se tinham
uma pedra de crack para que eu a visse, hahaha. Até que chegou um que me ensinou. “É para o
médico espanhol ver”, dizia. Hilário.
Outro estava usando outra coisa, inalando de uma garrafa. Tinha um nome que não me
recordo. Uns diziam que era clorofórmio ou éter, outros que era uma substância usada para
tingir o cabelo, como um solvente. Recordo que disseram algo ao rapaz e ele riu. Nunca
esquecerei aquele sorriso em que não havia nenhum dente nessa pessoa tão jovem. Quando
retornávamos ao Centro de Saúde um integrante da equipe levantou uma lona que pendia da
parede e vimos várias pessoas amontoadas consumindo.
A linha do trem está um caos e vamos pisando em mil coisas. Recordo que uma amiga minha
enfermeira que trabalhava em um povoado de casas precárias em Madri me contou que
precisava usar umas botas que pesavam dois quilos cada uma porque tinham uma sola
resistente para evitar qualquer incidente. A doutora prossegue com cautela. A proximidade é
uma de suas marcas registradas. Em seguida me dou conta de que ela é uma pessoa muito
especial, muito hábil e cativante, assim como o Agente de Saúde. Uma dessas pessoas que se
desprende como uma força diferente, centrípeta.
No final da jornada há um momento para conversa e me convida para que lhe pergunte o que
quiser. Às minhas perguntas responde que nem todas as pessoas que vivem na rua são usuárias
de drogas. Que há muita heterogeneidade entre elas e entre as pessoas que vivem na rua nos
diversos bairros, que cada bairro tem seu perfil. Comenta que os albergues de acolhida, longe
de ser uma opção ruim para amenizar o problema, têm regras muito restritivas que as pessoas
quase nunca cumprem e então acabam tendo que sair deles. Conta que em São Paulo
implantaram uma experiência de tratamento e integração muito interessante que consiste em
capacitá-los com uma espécie de módulo de Formação Profissional e reinseri-los no mercado de
trabalho. Com um salário fixo por mês tudo começa a mudar.
A jornada termina e me junto ao residente visitante para voltar para casa. O momento da volta
é quase sempre de “preocupação”; como voltar para casa daquelas periferias. Às vezes ia com o
carro da Secretaria, mas tentava não fazer isso se houvesse qualquer outra possibilidade, por
intrincada que fosse, para não gerar transtornos aos meus anfitriões.
O companheiro me perguntou se eu me importava em esperar um pouco pois ele era o
representante dos estados do Sul e tinha uma pequena reunião com os representantes dos
residentes do Rio e dos estados do Norte porque haviam proposto uma greve de residentes e
cada um deveria explicitar sua postura. A sua é de que não há lugar para uma greve por
motivos econômicos, que acredita que os residentes já ganham o suficiente. Me disse que
ganha o equivalente a 1000 euros de salário, não muito mais com complementos. Lembramos
que os residentes do Rio ganham o equivalente a 3000, mas me diz que ainda assim lhe parece
suficiente e que as coisas no país não estão boas para protestar por isso, que são uns
privilegiados. Em seguida me dou conta de que meu companheiro não se tornou médico pelo
dinheiro. Me conta que no Brasil os especialistas hospitalares podem viver como deus e entre
umas coisas e outras ganhar mais do que na Europa.
A reunião termina e vamos para o metrô. Uma residente se aproxima de nós até a estação. Já
está completamente escuro. Vamos até Copacabana falando da América Latina, da Europa, do
capitalismo e da crise global. Sinto que falamos o mesmo idioma. Logo se notam as pessoas que
viajam e se informam.
No dia seguinte repito na Rocinha, no mesmo Centro de Saúde que fui no dia anterior, a mesma
palestra sobre osteoporose para os residentes e tutores. Logo vamos de ônibus para
Copacabana em um trajeto impossível em que vou em pé e em que tentar se segurar é como
tentar fazê-lo em um cavalo desembestado.
Na manhã seguinte volto à Rocinha, a um Centro de Saúde diferente do dia anterior, que fica na
parte mais alta da favela. Acompanho a psiquiatra que tem um marcado perfil comunitário.
Marcamos às 7h40 partindo da zona sul e tenho um puta trabalho para chegar ali a essa hora.
Quanto sono, quanto trânsito e quanta dificuldade. Pegamos vários meios de transporte,
inclusive uma van de passageiros até chegar ao Centro de Saúde. Me mostra o Centro, todo
mundo a para continuamente a fim de comentar sobre tal paciente, tal caso. Me diz: “Olhe” e
da janela posso ver uma vista impressionante do Rio. Tiro uma foto com a câmera que causa
menos impacto ambiental: a da retina. Subimos para o escritório dos Agentes de Saúde para
que nos expliquem um caso daqueles intermináveis, que quando terminam não se lembra
como tudo começou. Logo vamos com a Agente de Saúde para uma visita domiciliar ver uma
paciente que aparentemente está deprimida. Adentramos novamente nas entranhas da favela.
Todo mundo para, saúda e conversa com os Agentes. Começamos a transitar por escadas,
passadiços, pontes impossíveis em estado precário de equilíbrio social e arquitetônico. Em um
momento começo a sentir cheiro de maconha e ao dobrar a esquina as trabalhadoras
cumprimentam uns meninos que aparentemente são os “reguladores do tráfico”. Chegamos na
casa da paciente e a encontramos prostrada no sofá. Começa uma entrevista na qual somos
ajudados com a anamnese por algumas pessoas de seu convívio. A paciente é uma pessoa
maior de idade que não cumpre adequadamente com a medicação e é um pouco descuidada,
mas amável. A abordagem é psiquiátrica, porém mais “comunitária” ou “social”.
Voltamos para o Centro de Saúde e damos consulta. No Brasil e no Rio existe o que se chama
de “matriciamento”, um especialista “hospitalar”, nesse caso “comunitário” ou “ambulatorial”
que apoia assistencialmente o trabalho do médico de família referência desse paciente. A
psiquiatra se desloca ao Centro de Saúde (nesse caso seu posto de trabalho está radicado ali)
para ver conjuntamente com o médico de família alguns casos selecionados. Nesse dia vemos
quatro casos. O de uma mulher cuja filha faleceu por afogamento há alguns meses, outra
mulher com transtorno bipolar que havia sido abusada… Gosto do fato de que a psiquiatra
escreve no prontuário quando um paciente chora na consulta. Há pouco mais de meia dúzia de
psicofármacos que são os que se administra na farmacopeia do sistema público, com um par de
antidepressivos ISRS, e sem tantos medicamentos de marca e proezas farmacológicas como
aqui. Vemos e tratamos casos de gravidade leve-moderada. Os graves são encaminhados para
outro circuito.
Depois do almoço temos uns grupos terapêuticos. A psiquiatra se destaca por sua formação,
metodologia e prática nesse campo. O primeiro grupo é sobre consumo de drogas e álcool.
Comparecem 4 pacientes. Um fala sem parar durante toda a sessão. Penso que deve estar sob
efeito da droga, mas logo minha companheira comenta que ele está há 8 anos sem usar. Não
imagino como deve ter dado trabalho durante todas as sessões semanais por 8 anos, hahaha.
Me impressiona um jovem, de uns 30 anos, alto, magro, muito bonito, usuário de cocaína, que
frequenta o grupo com seu filho de uns 5 anos que dorme no colo de pai enquanto este
participa do grupo.
O grupo seguinte é “comunitário”, a sala está cheia. Concluo que coexistem nele pacientes com
transtornos psiquiátricos leves e pessoas sem patologia psiquiátrica que veem no grupo uma
terapia de autoajuda. A psiquiatra tem muito bem estudada a metodologia de trabalho e impõe
uma série de regras que me parecem interessantes: o que se diz no grupo fica no grupo, não
são admitidas crianças, não se pode falar dos problemas dos outros nem julgá-los, apenas falar
de si próprio e sempre usar a primeira pessoa do singular, evitar dar discursos e sermões…
Cada um conta sua história e logo surgem os monopolizadores. No final da sessão todos
parecem querer receitas e a psiquiatra precisa pôr um pouco de ordem. Os pacientes vão
sentando em uma cadeira em frente a nós. Junto com a prescrição sempre tem lugar alguma
pequena consulta ou alguma pergunta de minha companheira e esta incentiva os pacientes ao
redor a conversarem entre si para que não haja silêncio e assim se preserve um pouco a
intimidade do paciente interpelado, se é que isso é possível nesse entorno. Começa um desfile
interminável de pacientes onde minha companheira precisa fazer malabarismos para evitar
consultas como tais, já que é um momento para prescrições e em que estão permitidas
pequenas e rápidas perguntas. Os pacientes vêm com as demandas mais inverossímeis, que são
imediatamente desarticuladas em um cabo de guerra que beira o cômico. hahaha
Mais uma vez me impressiona outra moça muito jovem, essa devia ter 27, que espera paciente
a sua vez com dois meninos pequenos brincando o tempo todo ao redor. Quando chega sua vez
ela tira os meninos da sala, se senta em frente a nós e começam a brotar as lágrimas. Também
é usuária de coca.
Pergunto se não acha que os pacientes participam do grupo porque querem receitas no final. A
psiquiatra diz que essa hipótese já foi levantada muitas vezes. Me diz que de certa forma pode
ser em alguns casos, mas que esse encontro lhe permite preservar e perseverar no contato com
os pacientes e reconduzir o processo terapêutico para onde lhe interessa. Se os médicos de
família na Espanha eliminássemos as consultas que se fazem “pelo interesse de conseguir algo”
(licença, encaminhamento, receita, atestado…) e ficássemos com as que se fazem
exclusivamente por nosso saber e nosso critério científico não sei se chegaríamos a ver 10
pacientes por dia. Não justifico por acreditar que deveríamos contribuir cientificamente com
nosso trabalho e não fazer nenhuma burocracia, simplesmente o descrevo.
São 17h30 e já estamos ali desde as 7h40. Estou que não posso com a minha alma. Minha
companheira ainda tem consulta privada nesse dia pela tarde. “Tem que ganhar um pouco de
dinheiro”, me diz. Começa às 18h30 e ainda fica um par de horas mais. No dia seguinte volta a
trabalhar às 8h.
No Brasil se trabalha muito. As distâncias até o trabalho e o trânsito dificultam ainda mais as
coisas e aumentam artificialmente a jornada. Quando voltam para casa é tarde e chegam
acabados. Me fazem lembrar em certa medida os argentinos. Trabalhar cada vez mais para ser
cada vez mais pobres. Não será o modelo e a regulação laboral e sindical o que causa todos os
males, mais que a produtividade, a necessidade ou outras variáveis?
Me encantam as misturas porque não sou capaz de compreendê-las bem. Algo permanece
submerso, meio oculto, e na busca e investigação me sinto pleno. Não há nada mais literário
que uma mistura. Brasil e essa experiência são sobre as mesclas.
O Brasil se constrói no processo histórico pela dominação portuguesa e pela submissão.
Primeiro com os indígenas, depois os africanos trazidos como escravos. Também receberam
pessoas de outros lugares da Europa em tempos de imigração além de dominação, ou melhor,
tentativas, de outros países como Holanda e França.
A dominação, a injustiça e a desigualdade têm sido as marcas distintivas destas terras
(brasileiras e latino-americanas) desde tempos imemoriais. Tudo isso também trouxe a mistura,
ainda que manchada de sangue.
Companheiras brasileiras com pele branca como leite; olhos azuis, cabelo claro, ascendência
judia. De Albacete, mas no Rio de Janeiro. Cubano brasileiro que fala hebreu e russo. Não há
nada mais monótono que a pureza.
No entanto prefiro as misturas que não vêm impostas pelos genes ou pelas famílias. Esses
repórteres da TVE que vão para outro país e 10 anos depois têm a cara, gestos ou algo quase
imperceptível, muito fino, do país de destino. Ou esses outros que vão para ficar um mês e
ficam 17 anos. Essa gente que leva a vida em um sonho, em uma fantasia, em uma ilusão ou em
um amor, tão longe de casa e da zona de conforto.
Essa gente que sai da zona de conforto e que quando se dá conta de que dentro do novo
desconforto se encontra novamente uma zona de conforto, ainda que diferente da primeira, e
volta a sair de novo. Esse espírito cheguevarista. O eterno aprendizado, a incerteza, o ser
sempre universitário.
Essa gente transfronteiriça, que não está nem aqui nem lá. Que não tem um ponto de
ancoragem e referências claras. Que duvidam, que são de alguma maneira frágeis, que não têm
todas as respostas, que não sabem por onde andam e que quase todo dia dormem (física e
intelectualmente) em um lugar diferente, que se veem continuamente desempenhando um
trabalho que não dominam. Que não sabem o que existe três ruas à frente, mas que se
dispõem a descobrir. A aventura da vida. A medicina de família também.
Há ocasiões em que as fronteiras não são só físicas ou de pertencimento, mas também sociais.
Partindo do Leblon (uma das áreas mais ricas do Rio) demora 20 minutos para chegar, por
exemplo, na Rocinha. No transcurso se vai subindo por um lugar chamado Gávea. Ninguém
sabe qual é o ponto exato onde termina a riqueza e começa a pobreza, mas acontece, como em
uma terra de ninguém, como na zona desmilitarizada entre a Coréia do Norte e a do Sul. Talvez
esse ponto claro de transição não exista. Há uma faixa na qual os habitantes não sabem se são
ricos ou pobres, como em A Raia não sabem se são portugueses ou espanhóis. Não sabem se
vão à Clínica da Família ou se pagam um plano de saúde ou ainda se vão à clínica popular.
Conheci uma garota no avião, Bárbara, que falava espanhol perfeito, mas quando passaram os
formulários de imigração disse que era brasileira. Vivia na hora do Brasil e pensava na da
Espanha. Sua vida era um contínuo desdobramento de um quebra-cabeças ordenado que não
lhe originava conflitos internos de nenhum tipo, como essas crianças que estudam em colégios
bilíngues e que são capazes de passar de um idioma a outro sem nenhum tipo de escala entre
eles. Bárbara não só passava de um idioma a outro, mas de uma vida a outra. Quando lhe
convinha cumprimentava com um abraço de brasileira e quando queria com um simples beijo
de espanhola. Quando queria chegava tarde amparando-se em sua condição de brasileira e
quando negociava um pagamento exigia como espanhola. Quando queria conseguir algo
facilmente sacava sua condição de europeia e quando queria que um taxista não a enganasse
ou que não a assaltassem se portava e falava como uma brasileira. Quando tinha sede às vezes
bebia um guaraná e quando queria uma Mahou. Às vezes comia uma feijoada que fazia as vezes
de cozido. Bárbara tinha também uma zona de indefinição muito grande, uma zona que eu não
tinha certeza se estava desmilitarizada ou se estava cheia de minas antipessoas, o que
necessariamente me incluía também, haha. Assim não tive mais remédio a não ser tentar
explorar o terreno em termos sociológicos. Utilizei, entre outras, a técnica do brainstorming,
porque conhecê-la foi como uma tempestade tropical no meu cérebro.
Para mim suas transições hispano-brasileiras começaram a se converter nas transições do país e
comecei a buscar e a explorar nela as transições que havia observado e que se cristalizavam
naquele momento na Gávea, como exemplo das transições que me permitiam entender o país.
Assim, sem querer, o (conhe)cimento do país se transformou no conhecimento dela. Sem
querer e pela primeira vez na história da pesquisa (investigação) havia conseguido uma amostra
representativa de n=1. Tinha dificuldades para explicar isso a uma pessoa que havia acabado de
conhecer sem que ela saísse correndo pensando que eu era um desequilibrado mental e, assim,
decidi fazê-lo passar por amor que era uma maneira mais fácil e convencional. A batalha por
beijá-la se converteu na pulsão por conhecer um país inteiro. A maneira de redimir meu
sofrimento por não entender o que via a cada dia no Rio de Janeiro era me entregar aos seus
braços e assim ser protegido por uma macroestrutura similar ao papel que desempenhava o
Estado em uma sociedade moderna.
No Rio a parte rica está no sul enquanto que a pobre está no norte, ao contrário do que
acontece no planeta e em quase todas as cidades do mundo. Dizem que o Cristo Redentor abre
os braços para os ricos (está de frente para a zona sul e com os braços abertos) e dá as costas
aos pobres, que vivem na zona norte. Na favela os mais ricos estão na parte mais baixa e os
pobres na parte mais alta, ao contrário do que acontece nos edifícios onde quanto mais poder
aquisitivo as pessoas têm elas tendem a ocupar os andares mais altos (coberturas, com terraço
e tal) e quanto mais pobres tendem a ocupar os andares mais baixos.
Por isso quando ela dizia que preferia ficar por baixo eu não sabia se tomava isso como uma
postura de dominação ou passividade.
No Rio atrás de cada bairro rico há uma favela, como que ameaçando pelas costas; é a maneira
com que a desigualdade nos lembra que tem um preço. [Esse é um bonito exemplo para ver
como a disposição geográfica determina fenômenos sociais. Em outras cidades latino-
americanas as favelas estão na periferia, longe do centro e das zonas ricas e de classe média.
No Rio não é possível porque a cidade está encaixada entre a montanha e a praia. A periferia da
cidade fica aos pés da montanha que fica colada à zona rica] (Isso eu aprendi em um texto de
Márcia Pereira Leite). Ao andar pela rua sempre há o medo de que alguém venha por trás. No
Rio você se dá conta de que a desigualdade não é outra coisa que um construto político. Isso e
nada mais que isso. Na cama com o gesto simples de lhe cobrir as costas com meu corpo
representava uma função de proteção que me fazia ganhar muitos pontos.
Quando Bárbara se movia da margem espanhola para a brasileira eu deveria me reposicionar
também. É sabido que no seu país você pode não pegar nem resfriado, mas é só ir para fora
que se transforma em Julio Iglesias. Paradoxos a serem estudados. Assim, se ela assumisse o
lado brasileiro eu me reafirmava como espanhol e se oferecia o espanhol eu me retraía um
pouco. A guerra de posições gramsciana.
Em minha tentativa de conhecer todas as qualidades e coisas típicas do país perguntava se
poderia me mostrar a depilação brasileira, mas a princípio não colava. Em contrapartida, me
mostrou sua casa. Morava na Avenida Atlântica, de frente para a praia de Copacabana. A miúde
as contradições do país saltavam na minha cara. Pensava: essa manhã me levantei nessa
supercasa em frente à praia e à tarde os moradores de rua vão me ensinar como se fuma o
crack. Às vezes, se agachava em roupas íntimas para pegar algo e eu dizia que tinha uma casa
com vista.
Tínhamos graves problemas temporais; eu tinha pressa de tudo e para ela parecia que
tínhamos todo o tempo do mundo. Comíamos uns bolinhos de bacalhau e enquanto eu enfiava
um na boca e comia de uma vez para subir rápido para casa ela o colocava no prato, abria com
garfo e faca, colocava limão, um pouco de azeite de oliva e o comia pedaço por pedaço. Me
desesperava tanta lentidão.
Frequentávamos um quiosque da praia que ficava muito perto da sua casa, muito famoso e
concorrido porque serviam o melhor frango à passarinho da zona sul. Logo ela pedia uma
caipirinha, que eu detestava, e me dizia que o resultado final dependia da qualidade da cachaça
e sobretudo os demais ingredientes, da combinação que resultava deles. Outra vez a
importância da mistura e da proporção. Ou um piscinão, um copo grande cujo nome eu achava
muito engraçado porque era como uma piscina grande. Eu pedia uma cerveja que serviam em
uma garrafa grande tipo litrão. Para que não esquentasse usavam uma engenhoca que cobria a
garrafa e conservava a temperatura. Eu ria muito porque chamavam esse dispositivo de
“camisinha” que é a mesma palavra que se utiliza para denominar o preservativo.
Me encantava que quando eu chegava em sua casa da longa jornada ela me fazia tirar a roupa
de trabalho, tomar banho (no Rio tomam banho mil vezes por dia) e vestir o calção da seleção
brasileira. Me sentia pouco menos que Neymar. Logo me vestia também a camiseta que me
marcava ofensivamente a barriga como Ronaldo Nazário de Lima.
Mais tarde tirava toda a minha roupa e me cavalgava com os braços em cruz, como o Cristo
Redentor, e eu sentia que dali de cima ele também os tinha assim para perdoar todos os
pecados que se cometiam sobre o Rio. Ela terminava antes e enquanto eu o fazia a surpreendia
olhando a televisão de rabo de olho (no Rio há uma televisão em cada cômodo da casa), vendo
a novela das 9. Enfim.
Logo tomávamos algo de maracujá e ficávamos adormecidos enquanto a TV seguia passando
novelas sem parar. O maracujá é o novo Lorazepam pelo que se vê.
Eu dizia que, assim como a garota em quem Sabina se inspirou para escrever “Con la frente
marchita” na Argentina era guerrilheira, eu fantasiava que ela era do Comando Vermelho, mas
não era o caso. Em troca, lhe prometi escrever uma canção para convertê-la na Garota de
Copacabana, à imagem da de Ipanema, mas se vê que a letra está ficando um pouco longa.
E já não me resta mais tempo. Preciso ir já. Eu não tenho o tempo, a tranquilidade, a paciência
e a persistência de Lula. Sou uma bala perdida1 na Espanha e isso lamentavelmente é uma coisa
muito séria no Rio. Só me resta um último segundo para recordar sua pele crocante e peluda
como a do frango. Para recordar que ela pensava que se tratava de uma luta de línguas, mas na
realidade era a luta de classes. Para (me) inspirar com seu nariz carioca em meu peito. Para
dizer que é uma pedra angular e preciosa na minha vida.
Só me resta te beijar pela última vez na Cinelândia. Prometer te levar pra Disneylândia. Te
beijar os morros.2 Te tirar do planeta terra com o disco voador de Niemeyer. Te esperar mais
meia hora na livraria do CCBB. Te esperar com a urgência dos casais que esperam uma vaga no
hall dos motéis. Te tocar com a tristeza do pianista do shopping no Leblon. Te espiar através
dos espelhos na Colombo. Te irritar por deixar pingando o filtro de água gelada. Beber água da
torneira para me fazer de valente. Preparar seu café da manhã e de depois de amanhã. Fingir
que adoro Bossa Nova. Passar seu fio dental na minha boca. Captar repetidas vezes o olhar
censor do taxista pelo espelho retrovisor por avançar rápido demais. Me derreter quando você
coloca assim a língua e os dentes e me chama de gatinho. Fazer um arrastão para te roubar o
coração. Te furtar a alma e um beijo a cada sinal vermelho. Nos embriagarmos de bar em bar
1
N. da T: “Bala perdida” é uma expressão espanhola que, quando se refere a pessoas, designa aquelas cujo
comportamento é imprevisível e por vezes irracional, que não seguem convenções ou regras sociais.
2
N. da T: Em espanhol, “morro” também se refere aos lábios de uma pessoa. Aqui há um trocadilho com as
montanhas do Rio.
até chegar à Barra. Ser seu Pão de Açúcar e de queijo. Me apaixonar por você, pelo Rio e pelo
Brasil com a mesma intensidade que Don João.
E, finalmente, abandonar tudo com a mesma tranquilidade que o fez o Brasil do império
português, para continuar adiante.
Eduardo Nogales
Médico de família
Para conhecer mais aspectos formais da Reforma e da Atenção Primária no Rio de Janeiro e no
Brasil recomenda-se ler o Relatório final de Juan Gérvas y Mercedes Pérez. Disponível em:
http://www.sbmfc.org.br/default.asp?site_Acao=MostraPagina&PaginaId=524
Agradecimentos
Obrigado aos companheiros da Coordenação Técnica pela atenção recebida e no plano
profissional por sua dedicação e excelente trabalho com o projeto no Rio, porque é o projeto de
toda América Latina e do mundo inteiro: André, Adelson, Michele (secretária) e aos demais
companheiros.
Obrigado a Caio, Annie, Marcia, residentes e mentores da Clínica da Família Assis Valente,
Clarice, Rita; residentes e mentores da Clínica da Família Anthidio Dias da Silveira (Jacarezinho),
Michael, Renata, Leandro, Daniel; residentes e mentores da Clínica da Família Maria do
Socorro, Valeska, Anderson, Fabricio, Bruno; residentes da Clínica da Família Víctor Valla
(Manguinhos), Joana Thiesen e equipe da Clínica da Família Albert Sabin.
Obrigado aos pacientes por possibilitar que acompanhasse seus médicos e Agentes de Saúde e
por haver permitido que os conhecesse, à suas famílias, suas histórias e seus país. Obrigado aos
motoristas da Secretaria e a Joaquim, Patrícia, Jacobo e Bianca.
E muito obrigado a Lourdes Luzón. Sem ela nada disso seria possível. As pessoas que batalham
por mudar as coisas a partir da práxis são as que realmente valem a pena. Marx disse que o que
os filósofos haviam feito até então era interpretar o mundo, mas que não se trata de
interpreta-lo e sim de modifica-lo. A teoria todos já sabemos. Além disso, obrigado pela pessoa
tão linda que você é.
A despedida à francesa de Eduardo me quebrou de alguma maneira. Havia algo que ficava em
aberto e me inquietava. Pensava que se não fechasse esssa ferida ela não cicatrizaria por
segunda intenção. As segundas partes nunca foram boas. Tinha duas opções para poder
entender tudo. Uma era escrever um romance para poder explicá-lo a mim mesmo. Mas eu não
escrevia tão bem como Eduardo e na verdade eu não tinha vontade nem tempo. A outra era
tentar fechar o círculo aqui no Brasil antes que tudo se convertesse em pura história e as pistas
desaparecessem. Não fazer nada significaria condenar essa passagem a fazer parte das paredes
da cidade. Eu moro na Espanha, em uma região de trânsito dos universitários. As paredes da
zona dos bares estão cheias de histórias que só elas conhecem e que estão condenadas a nunca
serem resgatadas.
Comecei a pensar em como deveria proceder e rapidamente começaram a brotar ideias.
Deveria encontrar Bárbara, isso estava claro. Perguntei no hostel qual era o frango à passarinho
mais popular de Copacabana. Ficava em frente à sua casa segundo as referências do relato.
Perguntei no hostel e não tinham certeza. Li no Lonely Planet e havia um que parecia que
poderia ser. Eduardo gostava desse guia porque várias vezes o vi consultando. Assim, talvez
tivesse visto a recomendação ali, ainda que certamente a ideia e a iniciativa tivesse sido de
Bárbara por ser nativa. Passei próximo ao horário do jantar várias vezes por Copa e procurei de
maneira mais cuidadosa os pontos que me pareciam mais prováveis. Falei com os locais. Com
efeito havia um lugar em que as pessoas se aglomeravam. Dei uma olhada para dentro e
certamente o frango era o prato mais popular. Estava no caminho certo. Bárbara vivia por ali.
Todo morador da beira-mar tem que ir à praia com certa assiduidade, creio eu. Uma pessoa
que vive de forma contínua no Rio deve ter a praia como sua segunda casa. Pensei também que
se morava à beira-mar e as áreas de praia são tão homogêneas o lógico é que não se banharia
muito longe de casa. Assim, na semana seguinte o que fiz foi passar manhã e tarde indo à praia
que ficava em frente ao bar do frango e tentando identificar as pessoas que frequentavam, dia
e lugar, e que não pareciam estrangeiros, porque com certeza viveriam próximo e seriam
cariocas. Talvez não seria difícil para eles identificar uma garota chamada Bárbara, metade
espanhola metade brasileira. Em seguida, localizei vários grupos familiares que frequentavam
sempre o mesmo lugar. Era preciso ter cuidado porque como eu os observava com muita
atenção em seguida percebi que alguns suspeitavam de mim como ladrão, hahaha. Pensei em
algo que poderia identificá-los como espanhóis. Difícil tarefa! E em seguida reparei que se visse
alguém com um livro ou uma revista em castelhano o teria de bandeja.
Meu rosto se iluminou quando vi uma senhora loira lendo o Hola! Também se diz em português
“Olá”, mas se escreve sem H e acento no A. Logo, deveria ser a edição em castelhano.
Levei um amigo para jogar raquete nas imediações da senhora. Instruí meu amigo a lançar a
bola longe da minha zona de alcance e em direção à senhora. Assim teria uma boa razão para
entrar em sua zona de segurança. Quando a bola foi na sua direção, exclamei um estridente
“Me cago en la puta!”, para me certificar que a senhora me ouvia claramente. Nossa presa
efetivamente pegou a bola e ao me aproximar dela lhe disse: “Perdone”, para deixar claro que
havia percebido que era espanhola e para força-la a falar e começar assim a conversa. A mulher
me devolveu a bola, mas não me disse nada. Ao pegar a bola deixou a revista com a capa à
vista. Não me disse nada, mas eu não ia permitir que a realidade me estragasse o plano. Assim
eu indaguei, com os olhos na revista: “Olha, você é espanhola?” Me disse que sim e começamos
a conversa. O desenrolar do jogo fazia com que parecesse muito forçado e incomum que eu
parasse e fizesse meu companheiro esperar enquanto conhecia uma desconhecida. Tampouco
queria assustá-la de primeira. As pessoas nos países em que há muita insegurança são um
pouco desconfiadas demais da conta. Assim prosseguimos com o jogo um pouco e fizemos
como se estivéssemos indo embora para poder cruzar com ela em uma situação mais cômoda.
Fiz a abordagem típica “De onde você é? Trabalha aqui?” e tal. Contei por alto um pouco do
nosso propósito de encontrar Bárbara e porquê e a mulher muito simpática e atenciosa
começou a colaborar conosco em um meticuloso plano de busca. Me disse que sim, vivia na
Atlântica, nas imediações, e não haveria muito problema porque a zona de costa estava cheia
de hotéis, restaurantes e etc., e não muitos edifícios residenciais — uns 17 se percorresse uma
área mais ampla. É sempre bom trabalhar com margens mais amplas, como dizem que
acontece no tratamento cirúrgico do melanoma.
Nem rápido nem devagar, recolheu suas coisas e se juntou à nossa busca e captura. Lhe disse:
“Se tiver que fazer coisas não se preocupe que podemos tentar sozinhos.” “A riqueza é muito
monótona, vou com vocês”, respondeu. Hahaha
Segundo o Lonely Planet há duas coisas que compartilham a classe baixa e a alta no Brasil: o
carnaval e a praia. Eu adiciono outra: as havaianas (sandálias de dedo).
Fomos de portão em portão. Os portões do Rio da zona sul são todos gradeados com um
porteiro automático para que você possa se comunicar com o porteiro não automático para
quem é preciso dizer quem você é e para onde vai se você não mora no prédio. Ele liga para a
casa da pessoa e diz: “O fulaninho está aqui, pergunta por Dona não sei quem” e então te
deixam entrar ou não. Enfim.
Ao ver Martha e ao ouvi-la falar português perfeito a colaboração do porteiro era total. Na
duodécima tentativa enfim a encontramos. Ao escutar sua voz pelo interfone senti uma
emoção difícil de descrever, como nos filmes. Nos disse para subir.
Nos recebeu com o calção da seleção brasileira que eu adivinhava que era o que Eduardo havia
vestido. Era uma garota loira, alta e magra, com brincos de pérola. Perguntou se queríamos
beber algo e eu disse que não, mas como ela insistiu pedi um guaraná. O inglês (que não
prestava atenção em nada) pediu uma cerveja e Martha, que não perdia uma, perguntou se
tinha um whisky e como ela disse que sim, tomou um, hahaha.
Nos demos muito bem. Às vezes não é preciso muito tempo para saber se sim ou não. Fui
direto ao assunto, ainda que eu preferisse um ambiente mais íntimo para que ela pudesse falar
mais à vontade e me dar mais informações. Ajudava um pouco que o inglês brincava de ensinar
palavras para Martha e estavam entretidos. Pedi para ir ao banheiro para poder recriar em
minha cabeça o máximo possível a casa em que Eduardo havia vivido aquela experiência de
amor e transcendência.
Bárbara se mostrou muito surpresa e esperançosa com toda a história do caderno e por minha
busca. Também agradecida. Me disse que tinha sofrido pois a última coisa que sabia de Edu era
um WhatsApp que ele mandou que dizia: “Estou em um bar comendo a última coxinha. Parto
daqui a pouco. Até logo. Não se esqueça que eu te amo e sempre vou te amar”. Depois disso
nem respondeu WhatsApp e nem ligações, com o telefone desligado. Lhe disse que faria chegar
o caderno até ela e o encontro não prosseguiu mais, ela tinha que ir trabalhar.
Eu estava muito confuso e só queria ir ao hostel na Lapa, me jogar na cama e não pensar.
Martha e o inglês ficaram por Copacabana. Aquela noite ele não veio dormir, hahaha. Tirei
cópia do caderno e o fiz chegar a Bárbara. Depois de lê-lo se apegou muito mais à ideia de
buscá-lo, como um remédio que fez efeito.
Releu o caderno cuidadosamente e pensou em falar com Lourdes. Eduardo sempre falava
muito dela. Reparou também no nome Joaquim, que não lhe era estranho – a mim também,
ainda que vagamente. Pensando e pensando, decidi passar um dia pelo hostel de Copacabana e
perguntar.
“Claro, porra, Joaquim é o staff da noite, o colombiano”, me disseram.
Ao me descrevê-lo parecia familiar, mas não muito. Talvez por que segundo me disseram ele
entrava à meia noite e ficava até as 8h. Eu ou saía antes ou chegava bêbado com os demais e
não prestava atenção em nada. Em qualquer um dos casos o que eu não fazia, com certeza, era
me levantar antes das 8h.
Quando me apresentaram a ele me recordei um pouco. Uma noite havíamos chegado com os
ingleses e australianos e esses últimos começaram a gritar; um tinha subido no balcão do bar e
começado a mijar em parábola e dizer que agora era ele quem servia a cerveja… O tal Joaquim
o agarrou e por pouco não lhe dá um soco ali mesmo.
Descrevi a Joaquim quem era Edu e lhe disse por que o procurávamos. Ele soube exatamente.
“Sim, claro, o galego”, me disse, fazendo referência ao fato de que todos os espanhóis são
galegos para os latinos.
“Um dia estávamos falando de política e da crise na Espanha e lhe disse que eu havia
estudado Engenharia Química e depois Ciências Políticas e ficou todo emocionado.
Sobretudo quando lhe disse que quem tinha me dado Teoria do Estado era Juan Carlos
Monedero, que foi professor visitante lá na Nacional de Bogotá. Me disse que seu sonho
era estudar também Ciências Políticas.”
A Lei de Monedero diz que ao curso de uma conversa, a probabilidade de que apareça alguém
que anuncie ter sido aluno de Juan Carlos Monedero e que o conhece tende a um.
“Passávamos horas e horas conversando no meu turno. A mim me agradava e
entretinha sua conversa, sobretudo porque sempre se despedia com um ‘obrigado por
tudo que me ensinou essa noite’. Me sentia muito considerado por ele. Hoje em dia não
é fácil que te façam sentir isso.
Durante as conversas eu o incentivava a estudar Políticas e lhe dizia que tinha muito
bons contatos lá em Bogotá. Sobretudo lhe falava de minha amiga Priscilla, que
estudava na Nacional e tinha decidido ser a eterna universitária, vivia como Peter Pan.
Lhe dizia que tinha certeza que se dariam muito bem e Eduardo abria muito os olhos,
como se fossem saltar para fora, ficava vermelho e dizia: ‘você precisa me passar seu
contato.’
Eu perguntava por que queria estudar Ciências Políticas e me dizia que era porque não
existia ideia mais romântica que a da revolução.
Faz dois dias recebi uma mensagem pelo Facebook de Priscilla dizendo que Edu tinha
entrado em contato com ela e que tinham combinado de se ver em Bogotá. ‘Que boa
gente esse sujeito!’, escreveu Pris.
Meu companheiro da manhã me disse que Eduardo tinha feito o check out antes do
tempo e que haviam chegado a um acordo para saldar as noites restantes. E que havia
mandado me dizer que gostaria de ter se despedido, mas muito obrigado por tudo e até
logo. Havia comprado uma passagem de ônibus para atravessar toda a América Latina
até Bogotá.”
Contei tudo a Bárbara que ficou um pouco contrariada. Via em sua atitude um desdém. Tentei
fazê-la entender que não. Que com certeza Eduardo havia agido assim para proteger a todos
nós. Sua sensibilidade teria provocado lágrimas e um sofrimento nos dois difícil de suportar. Era
melhor assim. No fundo a vida devia seguir, e com a mesma intensidade com que se unem dois
polos que se atraem, a força que devem fazer para se separar deve ser maior ou igual.
Bárbara me contava que Eduardo vivia em constante crise existencial. Eu pensava que somente
nesse instável equilíbrio, de forma contínua, era possível alcançar tal grau de virtuosismo. Não
via outra maneira. Eduardo não podia com a decadência geracional que lhe rodeava, e isso o
fazia sofrer muito. Comigo acontecia algo parecido. O advento de novas responsabilidades se
tornava o fim da autenticidade. Eu tampouco havia nascido para isso. Perdoe-me, mas a vida
para mim era e é outra coisa.
Tenho problemas sérios para distinguir bem entre as miragens e a realidade, mas só sei que as
miragens me encantam. Acabo de enviar um telegrama à empresa com meu pedido de
demissão.
Em minha fantasia, no momento da decolagem fixava meus olhos em Bárbara com um desses
olhares que duram um pouco mais do que o convencional e incitam a dúvida. Esse excitante
momento de não saber se sim ou se não. Nesse instante de debilidade emocional e consciência
da vulnerabilidade que significa a decolagem, segurávamos com força as mãos um do outro em
um primeiro momento e as entrelaçávamos em um segundo. Isso não significava mais que uma
conexão que saía da amizade sem penetrar em outros territórios, como uma área de
indefinição parecida com a fronteira da Índia e do Paquistão na Cachemira ou como a faixa de
Gaza, onde as linhas que separam se movem a cada dia dependendo dos equilíbrios territoriais
e de poder. Ou como a Gávea: você sobe a colina e nunca sabe quando deixa uma categoria
para se incorporar a outra, mas certamente embaixo você é uma coisa e em cima outra
diferente.
Na realidade, olhei para o lado para tentar ver pela janela e um homem gordo de óculos que
suava e já roncava me impedia de ver qualquer coisa com sua figura. Olhei para o outro lado do
corredor e ao redor e não pude encontrar Bárbara. Me inclinei um pouco mais para a janela e
pude captar a última imagem das favelas comendo o terreno da montanha, um segundo antes
que se levantasse o nariz do avião e nos puséssemos definitivamente rumo a Bogotá.
Roberto Sánchez
Transeunte
robertojosesan@yahoo.es

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A história de um médico espanhol no Rio de Janeiro

  • 1. A GÁVEA Transcrição das memórias do médico espanhol Eduardo Nogales no Rio de Janeiro, Brasil. Tradução: Patrícia Matos – patriciamatos85@gmail.com Não queria fazer isso, mas devo. A fronteira entre a intimidade, a ética e a universalidade da tradição escrita é tão difusa quanto a divisa entre Argentina, Paraguai e Brasil em Foz do Iguaçu. Não queria, mas finalmente faço para me livrar logo do caderno e assim poder me livrar de uma vez por todas das correntes que arrasto, que não são diferentes das correntes que carrega toda uma geração. Neste momento me sinto como um Cristo Redentor que com esse ato heroico deve salvar seus pares, que vivemos todos encarcerados na prisão invisível das convenções. Não tenho certeza se essa psicodelia é fruto da frontalização secundária às noites intermináveis do Rio ou da maconha, mas pode ser que tenha sido assim. Agora estou na Lapa. Não é tão central, mas ainda assim é decadente e agitado. Gosto do bairro porque sintetiza bem o país, ao menos a imagem que tenho dele, ou ainda a imagem que tenho de como o país se construiu através da sua história. Nessas ruas se cruzam um país decadente e outro emergente, um caldeirão que dança em uníssono ao som de uma música ao vivo, imediata, como a vida aqui. Um lugar pacífico e ao mesmo tempo inseguro. Negro, mas branco. Na Lapa hoje você está por cima, amanhã por baixo. Tudo muda de momento a momento. As certezas europeias são produto de instituições políticas que não existem aqui. A primeira vez que cheguei ao Rio vivia e andava por Copacabana. Cheguei ao Rio pensando que o Rio era o Brasil, acreditando que Copacabana, Ipanema e Leblon eram o Rio. De maneira análoga, pensava que minha vida era a vida, que se constituía em uma representação em escala. Até que li o caderno. O caderno me transformou de alguma maneira.
  • 2. Vim ao Brasil por acaso. A empresa tinha me enviado para a Argentina por duas semanas para formar instrutores para o nosso projeto de banco inteligente. Meus superiores queriam implantá-lo na América Latina e precisavam de jovens empreendedores com sede de aventura para vir de vez em quando para cá. Nossos voos costumavam fazer escala no Brasil, pois assim eram mais baratos. Um problema com a conexão e uns dias livres de que dispunha me fizeram visitar o Rio. Eu ia sozinho e haviam me falado sobre os hostels, esses alojamentos tipo albergue onde se compartilham os quartos e os banheiros. Alguns amigos me disseram que era um bom lugar para conhecer pessoas e arrumar companhia para se divertir. Assim, fiz reserva em um deles na região de Copacabana pois tinha lido em um guia de viagens sobre as qualidades do lugar. Durante aqueles dias fiz os passeios turísticos de praxe e à tarde-noite voltava para o hostel cansado. Eram dias de semana, logo havia um ambiente tranquilo. Escolhi um dormitório misto para ver se assim poderia conhecer alguma garota interessante. No fim das contas éramos todos homens, claro. Havia uma dupla de ingleses e uma dupla de australianos que chegavam todas as noites bêbados e nos despertavam com seus gritos e risadas estridentes. Durante o primeiro despertar da primeira noite às 3 da manhã, reparei em um rapaz que ocupava a beliche ao lado, na cama de baixo. Devia ter mais ou menos a minha idade porque visto de cima já se notava que estava ficando calvo. Ele tinha preparado uma gambiarra com uma lâmpada e um cabo para conseguir ler sem incomodar aos demais. Escrevia em um caderno como se sua vida estivesse ali, como se as palavras fossem escapar ao contato da caneta com o caderno e precisasse capturá-las de alguma maneira. Na manhã seguinte me levantei bem cedo, mas o rapaz já tinha ido embora. Não voltei a vê-lo o dia inteiro e ao cair da noite finalmente saí com os ingleses para tomar umas cervejas. Me retirei logo, antes deles, e apesar de não haver ninguém no quarto quando entrei, me despertei com a volta dos meus amigos ingleses, barulhenta como sempre, e voltei a vê-lo debruçado sobre seu caderno escrevendo como um possuído. No dia seguinte novamente não o vi, de modo que antes de ir para a cama programei o despertador a fim de tentar captar sua imagem de novo. Havia algo que me despertava a curiosidade nesse sujeito. O que fazia no Rio? Que fazia durante o dia que nunca estava? O que escrevia com tanto ímpeto? De onde era? Ninguém ocupou sua cama essa noite, mas suas coisas ficaram, o que indicava que não havia
  • 3. ido embora do hostel… Sempre que a cama de alguém que está em um hostel fica vazia uma noite sem que o hóspede tenha partido os companheiros de quarto sentem alegria e camaradagem pensando que ele ou ela está se dando bem. Confesso que, sem que ninguém me visse, mexi em suas roupas que estavam bagunçadas em cima da cama e pude ver um uniforme branco. Na tarde seguinte o sujeito estava tomando um suco na sala de estar do hostel e, como sempre, escrevendo em seu caderno. Era um caderno marrom com detalhes prateados, provavelmente um presente. Me aproximei com alguma desculpa esfarrapada que não me lembro bem para averiguar a sua nacionalidade e ver se conseguia puxar assunto. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que era espanhol, de Salamanca, se chamava Eduardo e vinha a ser médico; veio ao Brasil para algum compromisso do trabalho. Parecia uma pessoa afável e logo conseguimos um certo intercâmbio. Ao cair da noite lhe disse para se juntar aos ingleses e a mim, que iríamos a um bar chamado Devassa. Nos embriagamos rapidamente com a bebida mais mortífera que existe na face da terra, a caipirinha. Dizem que se trata de um coquetel delicioso como o mojito, mas na verdade é fogo puro. Bebi 5 essa noite e não me lembro de quase nada. O que me lembro é que o interroguei acerca do que escrevia e me disse que estava registrando umas memórias de sua viagem, como um diário. Perguntei o que contava nessas memórias e ele respondeu: “Nada, umas coisas minhas”. Vi que ruborizava e evitava o assunto e quando eu insistia (quando bebo ninguém é mais irritante que eu) resistia com firmeza. Não me lembro de muito mais daquela noite, apenas do baita tombo que levei quando os ingleses me jogaram para o alto e “me deixaram deslizar” até chão e acabei com um hematoma na coxa como souvenir. Naquela manhã o sol do amanhecer nos despertou na praia de Copacabana, sem saber como havíamos chegado ali… que porre! Fomos para o hostel e nada nem ninguém ocupava a cama de Eduardo. Perguntei aos funcionários que me disseram que tinha feito o check out naquela manhã. Insisti um pouco pela estranheza que me provocou o fato já que ele havia comentado que iria ficar mais uma semana ali. Me disseram que havia dito que surgiu um imprevisto e que precisava ir.
  • 4. Me entristeci bastante pensando que havia perdido de vista o rapaz e com ele o rastro da história. Me senti triste e até um pouco enjoado, ainda que pudesse ser efeito da ressaca. Deitei na cama e me doía o pescoço, tudo rodava, era um desconforto terrível. Tirei o travesseiro para dormir sem ele pois isso às vezes aliviava tais dores. Quando fiz isso notei que havia algo embaixo e quando completei a ação vi o caderno marrom. Não soube como lidar com aquela surpresa. Pensei que devia lê-lo, que se havia deixado ali era porque queria que eu o lesse e que devia fazê-lo. Quando li fiquei paralisado. Não sabia o que fazer. Pensei muito sobre isso e finalmente aqui está. Roberto Sánchez Transeunte “O Brasil é um país continental”, dizem essas frases que se repetem como mantras e que já não se sabe se pertencem a alguém ou ao imaginário popular. Quando te dizem que o Brasil é um país continental não se sabe se é algo bom ou ruim. Os países grandes parecem mais difíceis de governar. Ocasionalmente, a extensão territorial não só constitui uma fortaleza como, pelo contrário, pode parecer uma fragilidade. À variável da extensão é necessário somar a variável da população. Todo mundo diz que os países nórdicos são um modelo de gestão porque estão pouco povoados. Eu acredito que não é só isso, evidentemente. No caso do Brasil acontece um fenômeno bem conhecido na América Latina e nos países com baixos índices de desenvolvimento humano: a concentração urbana. O capitalismo em sua face mais dura e o passado colonial criaram monstros ingovernáveis chamados cidades, às custas de um êxodo rural considerável. A grande assimetria entre as capitais e o resto do território que tem lugar em países como Argentina ou Brasil está relacionada a um passado colonial onde o que interessava era uma cidade portuária forte que abasteceria e satisfaria as necessidades da metrópole. Quem na Europa dava a mínima para o que acontecia em Manaus? Por exemplo, as
  • 5. ferrovias em alguns países latino-americanos foram construídas não pensando na circulação de pessoas pelo território nacional e sim pensando no transporte de matérias-primas e sua saída para o mar rumo aos territórios europeus. Por vezes eram inclusive as empresas europeias que se encarregavam da construção das ferrovias. Essa assimetria é uma realidade social e administrativa e tende a concentrar todos os recursos em uma cidade megalômana e inabitável onde não há problema nenhum que não existam oportunidades para todos, onde além do mais não se levam em consideração políticas que gerem tais oportunidades. Assim, temos um bom número de excluídos vivendo abarrotados em favelas, bairros degradados, aglomerados, etc. Dizem os marxistas que a alternativa a esse modelo são núcleos populacionais de transição entre o campo e a natureza, no meio do caminho entre os dois. Também é verdade que nos países desenvolvidos e com distribuição mais justa de riqueza essa transição se resolve de outra maneira e é possível viver com mais facilidade fora das grandes cidades. A assimetria entre a capital ou cidade grande e o resto do território faz com que os serviços sejam mais difíceis e mais caros. E isso traz como consequência que o papel do Estado seja muito fraco ou quase inexistente, o que, finalmente, provoca problemas de articulação territorial. Esse fenômeno tem seu melhor exemplo na distribuição dos médicos pelo território. A “liberdade” e a “orientação para o mercado” de todos os sistemas sanitários latino-americanos acarretam uma forte concentração de profissionais nas capitais e um abandono dos territórios mais longínquos. Isso fere fortemente o princípio de igualdade (nem todos os habitantes do país têm direito igual aos cuidados com a saúde, já que em localidades mais distantes os serviços sanitários são prestados de maneira abaixo do ideal). No Brasil, portanto, as primeiras problemáticas que temos que enfrentar emergem simplesmente de estudar a demografia, sempre tão importante.
  • 6. A segunda problemática facilmente identificável no Brasil e na América Latina em geral é a desigualdade. Não é necessário muito mais do que ter olhos na cara para se dar conta disso. Corre-se o risco de converter o debate, nesse caso o debate sobre a desigualdade no Brasil, em um assunto dos brasileiros, quando é um problema do modelo global. Isso não é uma desculpa e sim uma realidade que nos ajuda a focar no problema adequadamente. Tudo isso alimenta o sistema sanitário que, como é bem sabido, não passa de uma reprodução social, política, administrativa e cultural do país. A divisão da sociedade em claras classes sociais “salta” para o sistema de saúde e, por essa razão, se constrói um sistema para os ricos e outro para os pobres. Esse modelo é pouco interessante para todos, já que não faz outra coisa senão aprofundar ainda mais a desigualdade (as grades e os porteiros 24 horas das casas da Zona Sul — rica — do Rio de Janeiro são um subproduto dessa realidade). A classe alta recebe uma atenção sanitária cara e iatrogênica e a pouca articulação interna do sistema resulta muito pouco eficiente. O “egoísmo solidário” dos ricos que visa contribuir para a construção de um sistema de saúde equitativo e assim diminuir a desigualdade (e, consequentemente, aumentar a segurança) garantindo a salubridade (ausência de doenças infecciosas, por exemplo) fica no meio do caminho no Brasil e em outros países latino-americanos. Na realidade em nenhum país da América Latina têm sido introduzidos mecanismos com o propósito de acabar com esse sistema dual. Essa realidade pode nos servir como termômetro para avaliar as reformas que estão sendo iniciadas lá, talvez não tão profundas e rápidas como pensamos na Europa. Na Argentina, por exemplo, houve duas tentativas de unificação nas últimas décadas, mas que não tinham tanto a ver com uniformizar o sistema dos ricos com o dos pobres, e sim com a transição de um sistema Bismarck para um Beveridge. Ambas as tentativas resultaram em um retumbante fracasso.
  • 7. Dentre os movimentos de mudança dos últimos anos nos sistemas de saúde latino-americanos destaca-se sobretudo o do Brasil. Desde 2009 vêm sendo feitos movimentos com a intenção de reformar e melhorar o Sistema Único de Saúde. As mudanças não têm tanto o propósito de unificar o sistema dual, mas sim de melhorar a atenção sanitária da classe baixa. Sem ignorar o que poderia ter sido feito e que não foi feito, não vamos cair na lamentação e vamos dar a importância devida ao que está sendo feito, que é muito. O mais interessante desse processo é que se optou por romper com as falsas ilusões e promessas do sistema de saúde pró-ricos e buscar implementar uma estratégia forte de Atenção Primária, cuja agenda inclui alguns fundamentos muito interessantes como a Prevenção Quaternária e a independência da Indústria Farmacêutica. Uma coisa que me chamou rapidamente a atenção é que os residentes e os tutores usavam canetas da marca Bic e não com publicidade de algum medicamento. Nesse processo há um lugar que é, com todas as dificuldades e objeções que se quiser colocar, um exemplo por seu impulso: o Rio de Janeiro. Nesse lugar se conjuga um compromisso político sustentado sobre as decisões técnicas de um grupo de jovens médicos de família, comprometidos e valiosos. Por sua vez, esse processo tem sido apoiado por uma “certeza” de que as coisas tinham que dar certo e iam dar certo; se trata da Sociedade Brasileira de Medicina Familiar e Comunitária, uma associação profissional como a que muitos sonhamos na Espanha e da qual lamentavelmente estamos muito longe, em parte pelo nosso modo de funcionar. Na experiência carioca (gentilício para os habitantes do Rio) se combina a constituição de um corpus teórico sólido e claro (definição de carteira de serviços e competências do residente) e o estabelecimento de alguns elementos básicos da Atenção Primária clássica, como a territorialização, ou seja, a equipe de Atenção Primária referente a uma Zona Básica de Saúde
  • 8. ou seu equivalente. Também se fazem conviver acertadamente elementos do mapa que já estavam bem constituídos, como os Agentes de Saúde, que são peças-chave no funcionamento do sistema brasileiro e latino-americano em geral. Adiciona-se alguns acolhimentos que surpreenderiam na Espanha, como serviços de saúde buco-dentária públicos incomuns em comparação com os sistemas de saúde europeus. Foram construídas boas infraestruturas. Por mais que alguns trabalhadores se queixem que algum Centro de Saúde é pré-fabricado à base de gesso, são lugares lindos para trabalhar. E com o ar condicionado no máximo, como os cariocas gostam, sinônimo de “conforto”. Com jardins e plantas no centro, com a cadeira do médico ao lado da cadeira do paciente e sem mesa entre elas, com uma infinidade de salas para uma infinidade de usos, salas de espera confortáveis e onde não costuma haver aglomerações, com belas serigrafias de pessoas e pacientes do próprio bairro, lugares bem definidos e próprios para os distintos profissionais de cada especialidade e mapas didáticos em que se especifica a geografia do bairro em cores, as equipes a que pertencem e que ajudam a criar sem querer uma ideia de comunidade e de “orgulho de bairro”. Na Atenção Primária do Rio, entre outras coisas, se destaca a boa gestão dos indicadores de saúde e medições. Eles têm tudo muito bem registrado: quantas famílias, quantos membros, quantos homens, quantas mulheres, quantos diabéticos, quantos hipertensos, quantas crianças, quantos pacientes com tais doenças infecciosas, quantos em tratamento… Esses dados são públicos e todos os pacientes podem vê-los no mural, o que também contribui em minha opinião para o “orgulho de bairro” e o “orgulho de Centro de Saúde” com o qual se conquista o respeito de todos em um ambiente de comunidade marcado pela violência e dificuldades. Na triagem feita pela enfermagem são registradas todas as famílias com um código de cores e se ressalta a existência ou não de enfermidades infecciosas mais prevalecentes, de modo que basta uma olhada para obter informações nesse sentido. Infelizmente todos os serviços de Atenção Primária têm a gestão terceirizada através de organizações sociais e uma empresa se encarrega da mesma, de forma que os profissionais se sentem impelidos a justificar a “accountability” perante a empresa ao final do ano. Mesmo com esse déficit na forma de gestão, ninguém jamais havia dado tal impulso à prestação de serviços.
  • 9. Há no mesmo Centro algumas instalações para promover a participação da comunidade, como aparelhos de exercícios físicos e hortas comunitárias. Incompreensivelmente, em um contexto de bastante rigor científico, se toleram e até se promovem terapias “alternativas” como a homeopatia, a acupuntura, etc. Geralmente há café gratuito para os funcionários. Há água mineral gratuita e fresca (que em meio ao calor do Rio pode ser um luxo e uma iguaria) com copos de plástico para profissionais e pacientes. Em muitos Centros há uma área física que administra uma rede de apoio à docência e investigação e provê salas de reunião e outros fins, com computadores com acesso à internet, wifi, projetor, etc., tudo novo e em instalações bonitas, ambiente amigável e agradável. Essa rede se chama OTICS (Observatório de Tecnologias de Informação e Comunicação em Sistemas e Serviços de Saúde). Se utiliza um sistema de informática para gerir a história clínica que se assemelha ao da Espanha. Os profissionais são em geral comprometidos, aplicados e trabalhadores. Costumam bater ponto. Dão muita importância à docência. Os residentes têm, além de suas horas de atendimento, atividades de formação obrigatórias. Nos Centros de Saúde há uma biblioteca mais que suficiente para realizar consultas na hora ou depois. A articulação com o sistema secundário em geral é memorável, mesmo havendo um sistema de gestão de consultas em nível hospitalar que às vezes ajuda e em outras não, embora não seja culpa do método e sim dos obstáculos e lastros do sistema. Um grande problema dos sistemas latino-americanos em geral e do brasileiro em particular é a fragmentação, a heterogeneidade. Por um lado, a territorial, que faz com que no Rio, por exemplo, se aposte fortemente na Atenção Primária e em outros estados não. Isso implica que a formação em residência de Medicina Familiar e Comunitária seja excelente no Rio e nem tanto em outros estados. O mesmo acontece com as remunerações. A descentralização das forças é necessária, mas sempre que se realizem em níveis de equidade e igualdade entre regiões. Por outro lado, a coordenação entre níveis se comporta com duplicidades, assimetrias, desigualdades e absurdas lutas internas entre os poderes municipais, locais e estatais.
  • 10. O sistema não funciona como um todo coordenado, mas por pequenas partes pelas quais o paciente transita e que à miúde se complementam em instituições particulares. Isso se manifesta em uma infinidade de clínicas privadas, uma de cada especialidade, o que faz com que os estágios dos residentes em Medicina Familiar e Comunitária, por exemplo, sejam em locais que os responsáveis “contratam”. Sim, eles têm que pagar, e nem sempre as possibilidades que existem para se formar em algumas áreas são satisfatórias por diferentes motivos. A pouca coordenação e a aposta no privado também explicam o fluxo dos estudantes que ingressam na especialidade desde diversos programas de formação. No Brasil (e em outros países latino-americanos também) é possível e muito fácil trabalhar em qualquer especialidade sem haver recebido a formação específica para tal fim. No Brasil há 5.000 médicos de família especializados. Somente a metade trabalha como médico de família dando consulta, o resto está relegado a plantões ou outras atividades (realidade parecida com a espanhola). Menos de 10% dos médicos que trabalham como médicos de família no Brasil têm residência. As marcações de consultas com os especialistas do hospital se dão por uma espécie de central segundo a oportunidade e a urgência dos cuidados. Isso faz com que o atendimento ao paciente se “dissipe” para fora da área de referência e que por vezes a suposta vantagem de que a consulta se dê em uma semana se converta em desvantagem já que ela se dá em um hospital que fica do outro lado da cidade e o paciente perde, já que não tem meios de ir até lá. Parece que a fragmentação é um ímã que seduz incompreensivelmente e até mesmo personalidades clamam pela liberdade de escolha de Centro de Saúde. O nível secundário tem pretensões de Área Única… Erros que já se mostraram como tais e que tendem a se repetir. Como há males que vêm para o bem, perante a preguiça ou impossibilidade de deslocamento em nível secundário, o paciente busca proteção e atenção no nível primário, reforçando finalmente o papel da Atenção Primária.
  • 11. A fragmentação provoca estragos entre os recursos humanos, especialmente entre os médicos. Quarenta anos de neoliberalismo e de orientação para o mercado no sistema sanitário criaram monstros, e os médicos brasileiros são vistos como “a casta”. Em grande parte ganharam esse tratamento pois paira no ambiente a ideia de que a medicina é para eles um meio e não um fim em si mesmo, um batismo de oligarquia. Disso resulta que os médicos (muitos, mas não todos) gostem de ter vários trabalhos para receber vários salários e andem de cima para baixo nem sempre cumprindo com suas obrigações adequadamente em cada um deles, sobretudo no emprego público, que é o mais grave, já que suas remunerações são pagas com o esforço coletivo (impostos ou rubricas do orçamento geral do Estado). A renúncia dos médicos a ser milionários é uma condição indispensável para construir um sistema de saúde pública de qualidade. A integração dos efetivos da classe baixa na classe médica também. Isso se solucionaria facilmente com uma simples Lei de Incompatibilidades e alguns complementos para exercê-la. É só uma questão de vontade. Uma das queixas que se escutam é que no Brasil em geral e no Rio em particular tudo funciona com demasiada dependência dos incentivos. No Rio os pilares são a reforma da Atenção Primária e a residência em Medicina Familiar e Comunitária. Para captar os residentes são oferecidos bons salários, o equivalente a 2500 - 3000 euros por mês. E ainda assim alguns querem mais e fazem plantão em outros lugares! No Brasil a residência dura dois anos. Há uma maneira de “comprar” a adesão sem dinheiro, no caso pela ideologia. Não se trata de ser de esquerda ou direita (se é que isso ainda existe), mas de compreender que um sistema sanitário forte é uma maneira importante de servir à pátria e à sua gente e alcançar um compromisso moral e social que substitua os Reais.
  • 12. Disse Juan Carlos Monedero em uma entrevista: “Dizemos que temos que recuperar as emoções. É uma coisa que aprendemos da América Latina. Não se pode lutar contra a cosmovisão neoliberal, que é uma promessa de consumo infinita em um supermercado inesgotável…. É preciso oferecer algo que valha a pena. A esquerda diz ‘não consuma, não faça isso, não faça aquilo…’ Faz falta inventar, e aí as paixões são relevantes… Não se trata de uma apelação ao irracional, como a esquerda sempre disse. O apelo às emoções é uma ferramenta para permitir que essas coisas que parecem impossíveis sejam incorporadas. No momento em que você se torna indiferente, isso não é mais possível…”. A batalha que está sendo travada no sistema de saúde do Rio é fundamental. Estão tentando fazer com que 100% dos cariocas tenham cobertura, sob a intervenção forte do Estado que organiza a distribuição dos serviços. Desde já são ofertados para a classe baixa, mas também para a classe média, que pela primeira vez tem uma opção que nunca havia tido antes. Em alguns bairros do Rio, como Botafogo ou Catete, a classe média começa a ser usuária do Sistema Único de Saúde, Atenção Primária incluída. O campo da gestão sanitária é bem complexo porque se trata de conjugar distintos atores com distintos interesses, mas há duas coisas em comum entre todos os processos que querem a reforma e a melhora dos sistemas (públicos) de saúde: uma Atenção Primária forte e uma intervenção forte do Estado. De seu sucesso depende o Brasil, a América Latina e o mundo inteiro. Uma vitória se converteria de imediato em um exemplo para o resto dos países limítrofes e os contaminaria como uma doença infecciosa. Os contágios locais são fundamentais na geopolítica. Igualmente, o caminho percorrido já não tem volta. Em 2016 haverá eleições e aquele que vier a disputar e desafiar o poder existente tem que englobar o que há (conceito de hegemonia gramsciana). No Rio se iniciou a Reforma da Atenção Primária de Saúde em 2009, quando somente 3,5% da população não incluída em planos de saúde (seguradoras coletivas ou privadas) tinham cobertura em Atenção Primária. Em 2015 vamos para a marca de 50%. Se pretende chegar aos 70% ao final do projeto, em 2016. Em 2011 começava o programa de residência da Secretaria.
  • 13. No primeiro dia de minha estadia no Rio fui recebido por uma companheira espanhola que trabalha na coordenação técnica do programa de residência em Medicina Familiar e Comunitária do município. Ali encontrei outra companheira residente peruana e a médica espanhola nos deu uma “iniciação” acerca do que estavam fazendo. Me impressionou um mapa que tinham em que se representava a cidade do Rio de Janeiro. É como se o que os turistas chamamos de Rio fosse o bico do pássaro, ou “só a pontinha”, enquanto que a cidade se estendia muitíssimo mais além. Eu havia escrito para a lista de e-mails de Atenção Primária MEDFAM pedindo ideias para viajar em minhas férias. Ela me escreveu e me convidou. Logo me enviou um e-mail contando sobre o que faziam e os lugares que poderia visitar. Era impossível dizer não. Uma semana depois já tinha as passagens compradas. Estive com eles por 10 dias em setembro de 2015. Nem eles me pagaram nada nem eu paguei nada a eles. No primeiro dia fomos visitar um Centro de Saúde em uma zona periférica da cidade. Saímos em um carro da Secretaria Municipal com motorista que nos levou até lá. É longe, difícil e perigoso de chegar, por isso é preciso que seja assim. Me sinto culpado pelo gasto gerado ao sistema. Era a primeira vez que via a infraestrutura sanitária carioca em Atenção Primária que descrevi anteriormente. Dou consulta com um residente. Uma menina de pouca idade com uma inflamação chamativa na mandíbula. “Um abscesso secundário a uma infecção dental”, penso em minha mentalidade europeia. O residente a examina e chega ao diagnóstico de parotidite (caxumba). Eu havia ignorado o contexto epidemiológico local. Primeira lição clínica aprendida. O residente pede que a menina (aparentemente de classe baixa) abra a boca para examinar a orofaringe. Ele se dá conta de que não tem uma lanterna e olha ao redor procurando. Como não a encontra, põe a mão no bolso e a ilumina com a luz do iPhone. Paradoxos da modernidade.
  • 14. Saímos para almoçar. Todos saem para almoçar ao meio dia. É um momento lindo do dia. Converso com alguns residentes que falam castelhano, outros portunhol (mistura de português com espanhol) e me esforço para entender e falar com os que falam português. Não é fácil entender tudo, mas se pode compreender o contexto. Além disso, quando você escuta falar o português autêntico se dá conta de que sua compreensão do idioma em outras ocasiões não se dá pela sua capacidade, mas sim pelo esforço deles em falar castelhano ou portunhol. Os residentes têm uma aula nessa tarde e assim passo a tarde com outra companheira, essa já adjunta. Vemos uma menina de novo e quando a consulta termina se estabelece uma conversa com a mãe, de bom aspecto físico e bonita. De repente vejo que a conversa deriva para uma lesão e uma cicatriz. A mãe levanta a camiseta e podemos observar que seu torso é um queloide completo. Jamais havia visto coisa igual. Pobre mulher. Em um dado momento a companheira me diz: “Você é o Eduardo, li seu texto sobre as mulheres.” E nesse momento me emociono por dentro por pensar que algo que você escreve em sua casa há milhares de quilômetros chega até ali. Nos tempos mortos tento não incomodar muito porque eles também têm seus afazeres e vão de um lado para o outro. Casualmente olho um tratado de Medicina Familiar coordenado por Gustavo Gusso e outra pessoa. Muito bom, muito adaptado à realidade brasileira, com capítulos que falam do sistema sanitário brasileiro, da atenção nas favelas, etc., e em que participam médicos de outros países, como meu professor Juan Gérvas. A programação da minha estadia é mais ou menos predefinida, mas há lugar para a variação porque como diz minha companheira espanhola, as coisas no Rio mudam de um momento para o outro. Para o dia seguinte está programada uma visita a um outro Centro de Saúde da periferia, de um bairro muito pobre. No dia anterior morria um menino de 13 anos atingido por uma bala perdida em um tiroteio. Vemos o Centro de Saúde, similar ao anterior. Dou consulta junto a um
  • 15. médico de família. Se trata, nessa ocasião, de consultas rápidas, em um espaço aberto, separado por um biombo da sala de espera, sem possibilidade de realizar exames mais amplos nem grandes ações, onde em princípio se tratam de problemas rápidos e/ou banais: medir a pressão arterial, uma auscultação, uma prescrição, entrega de alguns exames…. Finalmente os pacientes se consultam por problemas iguais aos que se pode prever em uma consulta normal. Ocasionalmente há uma certa dissociação na abordagem, que se resolve encaminhando novamente o paciente a uma consulta mais convencional e com soluções provisórias. Em um dado momento vários pacientes pedem exames que não têm justificativa, derivações incompreensíveis, etc. Olho para o médico que me devolve o olhar e lhe digo: “Aqui estamos… igualzinho à Espanha. ” Vou com os adjuntos almoçar. Me levam em seus carros. A comida no Brasil é deliciosa e abundante. Vamos a um lugar tipo buffet. Eu sempre peço parecido com eles para não destoar. Penso: “Como vou comer! ” Quando chegamos ao fim da fila me pesam a comida e é preciso pagar por peso. Hahaha Me fodi! À tarde dou consulta com outra companheira. Vemos alguns pacientes com motivos de consulta similares aos europeus e com soluções parecidas. Ela é muito diligente, resoluta e humana (a companheira anterior também. :) ) No momento da prescrição dão aos pacientes um papelzinho para que retirem os medicamentes no dispensário que fica no mesmo Centro de Saúde, gratuitamente. Há medicamentos essenciais e se evitam os de marca. Uma estudante me chama para ajudá-la a fazer testes rápidos de DST (HIV, hepatite B, hepatite C, sífilis). Não se sai bem ao furar o dedo da paciente para coletar o sangue. “Fure na lateral do dedo, onde é mais vascularizado”, lhe digo. E o sangue efetivamente brota. Às 4 da tarde digo à adjunta que já vou, para chegar em casa antes que a noite caia, porque anoitece logo e nos primeiros dias a segurança é uma preocupação constante até se acostumar com o ritmo da cidade. “Já vai? ”, ela disse. Sim, é muito cedo — eles ficam até as 8 horas. Têm a possibilidade de trabalhar quatro dias na semana e ficar até as 8 ou cinco dias e ficar até as 6. No terceiro dia participo de um curso de formação de preceptores credenciados, chamado EURACT. Ali acontecem umas apresentações em que comprovo que não me inteiro de quase
  • 16. nada e momentos em que me dou conta de que grande parte do trabalho da vida, e sobretudo do primeiro ano de residência, consiste em enganar os colegas e fazer parecer que se sabe ou se entende, quando na verdade não se sabe ou não se entende nada. O curso acontece em uma sala que leva o nome de “Auditório Bárbara Starfield”. Creio que com esse exemplo fica claro o compromisso desse grupo com a Atenção Primária. Ouvimos as falas de um grupo de capacitadores que trabalham na Coordenação Técnica. Dominam os conceitos de Medicina Baseada em Evidências, das peculiaridades do aprendizado, do humanismo médico… a partitura dessa música me encanta. À tarde faço uma apresentação aos residentes sobre osteoporose. Me emociona pensar que eles vêm do cu do judas para me ouvir. Tento fazer algumas brincadeiras para envolvê-los na questão. No dia seguinte há uma mudança de planos e finalmente um companheiro da Coordenação Técnica que está sempre muito ocupado, como todos, tira um tempo para levar a mim e a um estudante de medicina até a Rocinha, a maior favela do Rio. No Rio, se aproveitam os trajetos de carro para dar aulas, palestras e fazer debates científicos… isso é lindo e apaixonante e me lembra meus estágios no âmbito rural. O companheiro nos dá uma aula magistral sobre a organização de serviços de Atenção Primária no Brasil. A Rocinha abriga 70.000 pessoas e é uma favela pacificada. Se tornou algo muito próximo de uma pequena cidade. Me contam que antes havia um grupo de traficantes de drogas que controlavam a favela inteira. O grupo perdeu o controle da favela e agora vários a disputam, o que piorou sua situação. Paradoxos do poder. O companheiro nos mostra o Centro de Saúde e em um dado momento cruzamos com uma senhora que logo venho a saber que tem um cargo importante na Subsecretaria de Saúde. Me apresenta a ela e diz: “Esse é Eduardo, médico espanhol, temos muito que agradecer a ele por sua visita”. Nesse momento penso que vou ficar ali 10 dias, os incomodo, me põem em um carro com motorista para me levar aos Centros de Saúde ou pontos de aprendizagem, roubo
  • 17. seu tempo… e ainda por cima me agradecem. Consigo balbuciar um “O que está dizendo? Ao contrário, eu que tenho que agradecer a vocês…” — Me emociono por dentro. Me apresentam a um médico jovem, tutor de residentes. A partir desse momento me converto em sua sombra. Seu trabalho consiste em sanar as dúvidas dos residentes sob sua responsabilidade. Quando a situação é mais difícil se consultam os livros. Vemos os distintos pacientes, abundam as consultas de dermatologia venérea. Fazemos algum procedimento com algum residente, como uma infiltração de joelho. A paciente, uma senhora de uns 60 anos, se sente vulnerável quando fala sobre sua dor intensa e chora na consulta. As emoções humanas são as mesmas na Rocinha, em Serrano, em Zamora, no Congresso, no Leblon. Há uma coisa que nos iguala a todos por mais que queiramos nos diferenciar. Todo mundo para continuamente o jovem médico pelos corredores para que solucione algum pepino. Ele aguenta tudo com impressionante paciência. A Rocinha é um lugar vibrante, apaixonante para um estrangeiro. Não se pode tirar fotos, nem olhar muito descaradamente, por respeito e educação. Deve-se agir como se fosse parte do ecossistema. Ao mesmo tempo não se pode perder um detalhe desse presente dos céus de poder ver isso e estar ali. Nem todo mundo tem esse privilégio, de ver essa realidade humana, política e social. Não se trata de um interesse mórbido pela pobreza e sim do interesse por uma construção sociológica humana, com suas mil contradições. A Rocinha é um “bairro” que em algum sentido se assemelha ao caos asiático, com seus mil cabos enredados até dizer chega sobre a sua cabeça (Como podem saber para que serve cada um?). O rugido ensurdecedor dos carros e motoboys, as pessoas que desfilam pelas ruas e calçadas em ambos os sentidos da avenida central. Milhares de lojas com suas luzes e anúncios. Crianças que vêm e vão. Lixo no acostamento. Gritos, risadas, pessoas fumando em lugares relativamente afastados do alvoroço contemplando a paisagem. Cabeleireiros e salões de beleza. Pessoas que apostam a vida cruzando a avenida. Rincões desconhecidos e insuspeitos. Barracas de frutas e comida. Restaurantes. Impressionantes vistas da favela. Não há nada que não se possa encontrar na Rocinha.
  • 18. Na hora do almoço nos juntamos o médico, o agente comunitário e eu. Vamos a um lugar em que podemos nos sentar em uma espécie de terraço na “primeira fila” com vista para o trânsito. Penso que é como estar em um desses restaurantes à beira mar, mas com uma paisagem urbana e dilacerante. As pessoas vêm e vão de sandálias, a desordem. Penso que nessa conjunção e no haver chegado até ali se constrói algo profundo, uma metáfora cheia de sentido. Ao retornar ao Centro de Saúde vemos um mural gigante na rua que diz: “A todos os habitantes da Rocinha que trabalharam para melhorar as condições de vida das pessoas daqui”. Algo acontece dentro de mim. Em seguida vemos mais alguns pacientes enquanto espero o Agente de Saúde para ir com ele visitar o seu setor. O motivo da visita da tarde é ver os hipertensos que não estiveram no Centro de Saúde nos últimos 6 meses para controlar sua pressão arterial, porque os medicamentos são gratuitos e o requisito para recebê-los é seguir o tratamento. Quando o paciente não cumpre esse requisito entra na “lista negra” e os agentes vão à sua casa tomar sua pressão. Sim, está claro que essa estratégia pode ser muito discutível em termos científicos e de custo-benefício, mas isso não vem ao caso. Subimos pela avenida principal. Eu não sabia em que consistia a visita nem onde íamos (provavelmente ele me disse, mas não prestei muita atenção, hahaha), e em um dado momento meu companheiro vira à direita e, apontando para umas escadas que adentram a margem da avenida principal, me diz: “aqui começa o meu setor”. Começamos a descer por umas escadas e umas “ruas” super estreitas desviando de entulhos de cimento, cabos, lixo, esgoto…, mas ao mesmo tempo observando uma organização interna decididamente premeditada. Jamais havia visto tanta ordem na desordem. Deixávamos as casas na nossa lateral e essas eram construídas de maneira absolutamente inverossímil, algumas com partes a terminar; outras que se levantavam sobre um terreno que se custa a acreditar que as sustentam. Não podemos esquecer que as favelas geralmente se assentam sobre a encosta de uma colina. Em alguns momentos era possível observar um tipo de corredor grande central por onde descia uma coluna forte de água de não sei qual procedência. Pensava
  • 19. meio de brincadeira nos canais de Veneza ou Amsterdã. Alguma companheira comentava: “Imagina o que acontece quando chove, com todo o barro e tudo que a chuva arrasta”. O agente ia chamando o nome do paciente, pois não havia campainha nas casas, e eles saíam ao nosso encontro. Na primeira casa que entramos nos convidaram para sentar e tomar café com bolo que obviamente tivemos que aceitar. Estavam fazendo uma reforma na casa. Recordo que me causou muita impressão ver uma grande televisão de plasma instalada ali. A televisão tem uma função cultural e social crucial no Brasil, sobretudo as novelas, a tal ponto que se constituem em espaços de socialização política, segundo me contaram. Vendo tudo isso me veio à cabeça os dizeres da bandeira do Brasil: Ordem e progresso. E era isso que haviam encontrado ali na Rocinha: ordem e progresso, dentro da desordem e do atraso. Provavelmente não há uma reprodução em escala mais precisa do país inteiro do que a Rocinha. Provavelmente não há uma definição mais exata para um país tão contraditório. Na segunda casa também nos receberam com alegria e entusiasmo. O Agente de Saúde era uma pessoa cativante e que, além disso, vivia na mesma Rocinha e havia crescido ali. Tinha as pessoas no bolso, se notava que os pacientes gostavam dele. Nessa casa nos deram um pedaço enorme de melão que fomos comendo pelo caminho. Na terceira casa nos deram refresco a cada um… E a partir daí o companheiro disse para não aceitarmos mais nada, ou terminaríamos hipertensos também. Me chamava a atenção que as pinturas tão bonitas que enchem as paredes do Rio também estavam presentes nessas ruelas da Rocinha. Alguns pacientes que pegávamos de surpresa não se abalavam em saber que estavam na “lista negra” e logo se deixavam tomar a pressão de má vontade. Alguns sentados sobre blocos de cimento na porta de casa… eu lhes colocava o tensiômetro automático como e onde podia. Às vezes o próprio paciente o segurava, outras o deixava no chão e os gatos o rodeavam e lambiam. Um paciente ficou mal-humorado porque fomos buscá-lo e medi sua pressão enquanto fumava um cigarro, hahaha. Subimos até casas impossíveis, construídas no alto e que por sua vez tinham escadas empinadas e estreitas até chegar onde efetivamente se vivia. No transcurso das visitas pude conhecer senhores de idade simpáticos que me fizeram lembrar muito os da cidade espanhola
  • 20. onde trabalho. Sua dignidade e seus lindos olhos agradecidos eram os mesmos. Em outras ocasiões entrávamos e íamos medir a pressão de um paciente, mas terminávamos medindo a de todos os membros da família, 4 ou 5. Eu brincava fingindo que tentava medir a pressão do Agente de Saúde, mas ele era muito forte e tinha o bíceps muito grande (o que era o caso) ... e todos caiam na gargalhada. Quando dei a palestra sobre osteoporose depois de ter visitado a Rocinha, no momento em que falei da prevenção de quedas me dei conta do quão importante é o contexto local. Há um trecho que diz: “Para prevenir as quedas (e as fraturas) é preciso atuar sobre os fatores ambientais, entre outros: iluminação defeituosa, desníveis e escadas, pisos em mal estado, fios, animais de estimação, tráfego e transporte público, obstáculos urbanos”… Agora tente controlar esses fatores na Rocinha! hahaha Quando terminamos descemos até a avenida principal bebendo o refresco com o canudo de praxe. Ali tudo se bebe com canudo. Na volta ao hostel com o médico pude vivenciar a efervescência da noite na Rocinha. Passamos por uma passarela construída pelo famoso arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer. Mais uma contradição. Fomos até o ponto de ônibus. Ao lado se encontram umas instalações esportivas de alto nível. Duas contradições, pois. Pegamos o ônibus até Copacabana. O ônibus urbano acaba com o nosso amortecedor traseiro. No dia seguinte visitei um bairro também muito pobre, mas não construído em uma favela. Nessa ocasião eu acompanharia uma equipe que atende pessoas que vivem na rua. Quando cheguei ao Centro de Saúde a doutora havia saído e enquanto esperava uns companheiros tiveram a amabilidade de me levar para conhecer um pouco as instalações. Conheci uma residente que havia viajado para a Madri, e ficou em Valdebernardo. Lembro que pensei nesse momento se ela havia sido tão bem tratada na Espanha como estavam me tratando no Rio. Tomara que sim. Em seguida me reuni com a equipe e começamos as visitas. É comum que as pessoas que vivem na rua em condição de indigência se movam de um lugar para o outro. Daí que quando há um caso desse tipo os médicos devem entrar em contato com a equipe que corresponde à nova zona de estadia do paciente. Nesse caso fomos a um Centro de Saúde próximo em uma van.
  • 21. Um outro médico de moradores de rua nos acompanhava e apesar de sua idade e de algumas notáveis e chamativas dificuldades físicas de que se queixava continuava trabalhando em um meio tão duro. Me emocionou sua dignidade. No novo Centro se discutiu sobre o paciente em uma dessas discussões em que é melhor se sentar pois parecem não ter fim. Assim se procede, são casos muito complexos com problemas muito complexos que vão desde assuntos de tutela judicial de filhos, doenças sexualmente transmissíveis como sífilis, doenças infecciosas como tuberculose multirresistente, autos judiciais de ingresso involuntário, consumo de drogas, violência… tudo junto em uma mesma pessoa, nesse caso uma menina de 16 anos que já era mãe de dois filhos… Continuamos nossas andanças pela rua. À medida que caminhamos o Agente de Saúde me diz, apontando discretamente a um grupo de jovens ao longe: “Você sabe como é o processo do consumo de crack? ” Digo que não e quando olho vejo a fumaça que sai da aglomeração e os meninos passando a droga. Passamos ao lado de três homens que dormem na rua. O procedimento é se aproximar e perguntar se estão bem, se precisam de alguma coisa, se querem alguma coisa, se está acontecendo alguma coisa. A filosofia da equipe é o que chamam de “redução de danos”. Não se busca a solução puritana e paternalista e sim ser realistas e fazer por eles o que o contexto permite, minimizando as consequências de suas ações mais do que querer influenciá-las. Um deles pede ajuda porque afirma que um policial o atingiu com um cassetete nas costas e dói muito. A doutora o examina sobre o chão e diz que vai enviar alguns remédios para que melhore da dor. Quando terminamos a doutora manda o Agente de Saúde dar ao paciente a prescrição e os remédios com as instruções sobre como tomar. Além do quadro pelo qual se consultou, o homem tem umas lesões impressionantes nas extremidades inferiores que não sei o que são. “São infeccionas”, me dizem. As outras duas pessoas não querem consulta mas aceitam preservativos que o Agente de Saúde oferece. O residente visitante comenta que ali a polícia é muito violenta e fala muito mal deles. Dizem que com o advento dos Jogos Olímpicos tudo isso vai piorar porque vão querer tirar os indigentes da cidade.
  • 22. Ato contínuo, nos dirigimos para as ruas de trás, próximo à linha do trem. Passamos junto a uma casa onde há uma família “normal” sentada em cadeiras na porta, conversando. Logo após há uma espécie de bar onde vejo que vendem uns copos transparentes com tampa e água mineral dentro que se assemelham aos de iogurte. “Faz muito calor aqui e as pessoas vêm comprar água”, penso. Alguns momentos depois seguindo pela via se abre uma curva e posso ver umas 15 pessoas em diferentes posições e estados consumindo. Crack fundamentalmente. Então o Agente de Saúde se aproxima e me explica detalhadamente como consomem o crack utilizando esse copo: como fazem furos na tampa, colocam a pedra… enfim, todo o processo. Ali havia outra menina vendendo os copos. Refleti sobre como se adapta a atividade econômica às características do mercado. O Agente de Saúde era muito atencioso comigo e estava realmente empenhado em que eu aprendesse o processo e perguntava a todas as pessoas que estavam ali consumindo se tinham uma pedra de crack para que eu a visse, hahaha. Até que chegou um que me ensinou. “É para o médico espanhol ver”, dizia. Hilário. Outro estava usando outra coisa, inalando de uma garrafa. Tinha um nome que não me recordo. Uns diziam que era clorofórmio ou éter, outros que era uma substância usada para tingir o cabelo, como um solvente. Recordo que disseram algo ao rapaz e ele riu. Nunca esquecerei aquele sorriso em que não havia nenhum dente nessa pessoa tão jovem. Quando retornávamos ao Centro de Saúde um integrante da equipe levantou uma lona que pendia da parede e vimos várias pessoas amontoadas consumindo. A linha do trem está um caos e vamos pisando em mil coisas. Recordo que uma amiga minha enfermeira que trabalhava em um povoado de casas precárias em Madri me contou que precisava usar umas botas que pesavam dois quilos cada uma porque tinham uma sola resistente para evitar qualquer incidente. A doutora prossegue com cautela. A proximidade é uma de suas marcas registradas. Em seguida me dou conta de que ela é uma pessoa muito especial, muito hábil e cativante, assim como o Agente de Saúde. Uma dessas pessoas que se desprende como uma força diferente, centrípeta.
  • 23. No final da jornada há um momento para conversa e me convida para que lhe pergunte o que quiser. Às minhas perguntas responde que nem todas as pessoas que vivem na rua são usuárias de drogas. Que há muita heterogeneidade entre elas e entre as pessoas que vivem na rua nos diversos bairros, que cada bairro tem seu perfil. Comenta que os albergues de acolhida, longe de ser uma opção ruim para amenizar o problema, têm regras muito restritivas que as pessoas quase nunca cumprem e então acabam tendo que sair deles. Conta que em São Paulo implantaram uma experiência de tratamento e integração muito interessante que consiste em capacitá-los com uma espécie de módulo de Formação Profissional e reinseri-los no mercado de trabalho. Com um salário fixo por mês tudo começa a mudar. A jornada termina e me junto ao residente visitante para voltar para casa. O momento da volta é quase sempre de “preocupação”; como voltar para casa daquelas periferias. Às vezes ia com o carro da Secretaria, mas tentava não fazer isso se houvesse qualquer outra possibilidade, por intrincada que fosse, para não gerar transtornos aos meus anfitriões. O companheiro me perguntou se eu me importava em esperar um pouco pois ele era o representante dos estados do Sul e tinha uma pequena reunião com os representantes dos residentes do Rio e dos estados do Norte porque haviam proposto uma greve de residentes e cada um deveria explicitar sua postura. A sua é de que não há lugar para uma greve por motivos econômicos, que acredita que os residentes já ganham o suficiente. Me disse que ganha o equivalente a 1000 euros de salário, não muito mais com complementos. Lembramos que os residentes do Rio ganham o equivalente a 3000, mas me diz que ainda assim lhe parece suficiente e que as coisas no país não estão boas para protestar por isso, que são uns privilegiados. Em seguida me dou conta de que meu companheiro não se tornou médico pelo dinheiro. Me conta que no Brasil os especialistas hospitalares podem viver como deus e entre umas coisas e outras ganhar mais do que na Europa. A reunião termina e vamos para o metrô. Uma residente se aproxima de nós até a estação. Já está completamente escuro. Vamos até Copacabana falando da América Latina, da Europa, do capitalismo e da crise global. Sinto que falamos o mesmo idioma. Logo se notam as pessoas que viajam e se informam.
  • 24. No dia seguinte repito na Rocinha, no mesmo Centro de Saúde que fui no dia anterior, a mesma palestra sobre osteoporose para os residentes e tutores. Logo vamos de ônibus para Copacabana em um trajeto impossível em que vou em pé e em que tentar se segurar é como tentar fazê-lo em um cavalo desembestado. Na manhã seguinte volto à Rocinha, a um Centro de Saúde diferente do dia anterior, que fica na parte mais alta da favela. Acompanho a psiquiatra que tem um marcado perfil comunitário. Marcamos às 7h40 partindo da zona sul e tenho um puta trabalho para chegar ali a essa hora. Quanto sono, quanto trânsito e quanta dificuldade. Pegamos vários meios de transporte, inclusive uma van de passageiros até chegar ao Centro de Saúde. Me mostra o Centro, todo mundo a para continuamente a fim de comentar sobre tal paciente, tal caso. Me diz: “Olhe” e da janela posso ver uma vista impressionante do Rio. Tiro uma foto com a câmera que causa menos impacto ambiental: a da retina. Subimos para o escritório dos Agentes de Saúde para que nos expliquem um caso daqueles intermináveis, que quando terminam não se lembra como tudo começou. Logo vamos com a Agente de Saúde para uma visita domiciliar ver uma paciente que aparentemente está deprimida. Adentramos novamente nas entranhas da favela. Todo mundo para, saúda e conversa com os Agentes. Começamos a transitar por escadas, passadiços, pontes impossíveis em estado precário de equilíbrio social e arquitetônico. Em um momento começo a sentir cheiro de maconha e ao dobrar a esquina as trabalhadoras cumprimentam uns meninos que aparentemente são os “reguladores do tráfico”. Chegamos na casa da paciente e a encontramos prostrada no sofá. Começa uma entrevista na qual somos ajudados com a anamnese por algumas pessoas de seu convívio. A paciente é uma pessoa maior de idade que não cumpre adequadamente com a medicação e é um pouco descuidada, mas amável. A abordagem é psiquiátrica, porém mais “comunitária” ou “social”. Voltamos para o Centro de Saúde e damos consulta. No Brasil e no Rio existe o que se chama de “matriciamento”, um especialista “hospitalar”, nesse caso “comunitário” ou “ambulatorial” que apoia assistencialmente o trabalho do médico de família referência desse paciente. A psiquiatra se desloca ao Centro de Saúde (nesse caso seu posto de trabalho está radicado ali) para ver conjuntamente com o médico de família alguns casos selecionados. Nesse dia vemos quatro casos. O de uma mulher cuja filha faleceu por afogamento há alguns meses, outra mulher com transtorno bipolar que havia sido abusada… Gosto do fato de que a psiquiatra escreve no prontuário quando um paciente chora na consulta. Há pouco mais de meia dúzia de psicofármacos que são os que se administra na farmacopeia do sistema público, com um par de
  • 25. antidepressivos ISRS, e sem tantos medicamentos de marca e proezas farmacológicas como aqui. Vemos e tratamos casos de gravidade leve-moderada. Os graves são encaminhados para outro circuito. Depois do almoço temos uns grupos terapêuticos. A psiquiatra se destaca por sua formação, metodologia e prática nesse campo. O primeiro grupo é sobre consumo de drogas e álcool. Comparecem 4 pacientes. Um fala sem parar durante toda a sessão. Penso que deve estar sob efeito da droga, mas logo minha companheira comenta que ele está há 8 anos sem usar. Não imagino como deve ter dado trabalho durante todas as sessões semanais por 8 anos, hahaha. Me impressiona um jovem, de uns 30 anos, alto, magro, muito bonito, usuário de cocaína, que frequenta o grupo com seu filho de uns 5 anos que dorme no colo de pai enquanto este participa do grupo. O grupo seguinte é “comunitário”, a sala está cheia. Concluo que coexistem nele pacientes com transtornos psiquiátricos leves e pessoas sem patologia psiquiátrica que veem no grupo uma terapia de autoajuda. A psiquiatra tem muito bem estudada a metodologia de trabalho e impõe uma série de regras que me parecem interessantes: o que se diz no grupo fica no grupo, não são admitidas crianças, não se pode falar dos problemas dos outros nem julgá-los, apenas falar de si próprio e sempre usar a primeira pessoa do singular, evitar dar discursos e sermões… Cada um conta sua história e logo surgem os monopolizadores. No final da sessão todos parecem querer receitas e a psiquiatra precisa pôr um pouco de ordem. Os pacientes vão sentando em uma cadeira em frente a nós. Junto com a prescrição sempre tem lugar alguma pequena consulta ou alguma pergunta de minha companheira e esta incentiva os pacientes ao redor a conversarem entre si para que não haja silêncio e assim se preserve um pouco a intimidade do paciente interpelado, se é que isso é possível nesse entorno. Começa um desfile interminável de pacientes onde minha companheira precisa fazer malabarismos para evitar consultas como tais, já que é um momento para prescrições e em que estão permitidas pequenas e rápidas perguntas. Os pacientes vêm com as demandas mais inverossímeis, que são imediatamente desarticuladas em um cabo de guerra que beira o cômico. hahaha
  • 26. Mais uma vez me impressiona outra moça muito jovem, essa devia ter 27, que espera paciente a sua vez com dois meninos pequenos brincando o tempo todo ao redor. Quando chega sua vez ela tira os meninos da sala, se senta em frente a nós e começam a brotar as lágrimas. Também é usuária de coca. Pergunto se não acha que os pacientes participam do grupo porque querem receitas no final. A psiquiatra diz que essa hipótese já foi levantada muitas vezes. Me diz que de certa forma pode ser em alguns casos, mas que esse encontro lhe permite preservar e perseverar no contato com os pacientes e reconduzir o processo terapêutico para onde lhe interessa. Se os médicos de família na Espanha eliminássemos as consultas que se fazem “pelo interesse de conseguir algo” (licença, encaminhamento, receita, atestado…) e ficássemos com as que se fazem exclusivamente por nosso saber e nosso critério científico não sei se chegaríamos a ver 10 pacientes por dia. Não justifico por acreditar que deveríamos contribuir cientificamente com nosso trabalho e não fazer nenhuma burocracia, simplesmente o descrevo. São 17h30 e já estamos ali desde as 7h40. Estou que não posso com a minha alma. Minha companheira ainda tem consulta privada nesse dia pela tarde. “Tem que ganhar um pouco de dinheiro”, me diz. Começa às 18h30 e ainda fica um par de horas mais. No dia seguinte volta a trabalhar às 8h. No Brasil se trabalha muito. As distâncias até o trabalho e o trânsito dificultam ainda mais as coisas e aumentam artificialmente a jornada. Quando voltam para casa é tarde e chegam acabados. Me fazem lembrar em certa medida os argentinos. Trabalhar cada vez mais para ser cada vez mais pobres. Não será o modelo e a regulação laboral e sindical o que causa todos os males, mais que a produtividade, a necessidade ou outras variáveis? Me encantam as misturas porque não sou capaz de compreendê-las bem. Algo permanece submerso, meio oculto, e na busca e investigação me sinto pleno. Não há nada mais literário que uma mistura. Brasil e essa experiência são sobre as mesclas.
  • 27. O Brasil se constrói no processo histórico pela dominação portuguesa e pela submissão. Primeiro com os indígenas, depois os africanos trazidos como escravos. Também receberam pessoas de outros lugares da Europa em tempos de imigração além de dominação, ou melhor, tentativas, de outros países como Holanda e França. A dominação, a injustiça e a desigualdade têm sido as marcas distintivas destas terras (brasileiras e latino-americanas) desde tempos imemoriais. Tudo isso também trouxe a mistura, ainda que manchada de sangue. Companheiras brasileiras com pele branca como leite; olhos azuis, cabelo claro, ascendência judia. De Albacete, mas no Rio de Janeiro. Cubano brasileiro que fala hebreu e russo. Não há nada mais monótono que a pureza. No entanto prefiro as misturas que não vêm impostas pelos genes ou pelas famílias. Esses repórteres da TVE que vão para outro país e 10 anos depois têm a cara, gestos ou algo quase imperceptível, muito fino, do país de destino. Ou esses outros que vão para ficar um mês e ficam 17 anos. Essa gente que leva a vida em um sonho, em uma fantasia, em uma ilusão ou em um amor, tão longe de casa e da zona de conforto. Essa gente que sai da zona de conforto e que quando se dá conta de que dentro do novo desconforto se encontra novamente uma zona de conforto, ainda que diferente da primeira, e volta a sair de novo. Esse espírito cheguevarista. O eterno aprendizado, a incerteza, o ser sempre universitário. Essa gente transfronteiriça, que não está nem aqui nem lá. Que não tem um ponto de ancoragem e referências claras. Que duvidam, que são de alguma maneira frágeis, que não têm todas as respostas, que não sabem por onde andam e que quase todo dia dormem (física e intelectualmente) em um lugar diferente, que se veem continuamente desempenhando um trabalho que não dominam. Que não sabem o que existe três ruas à frente, mas que se dispõem a descobrir. A aventura da vida. A medicina de família também.
  • 28. Há ocasiões em que as fronteiras não são só físicas ou de pertencimento, mas também sociais. Partindo do Leblon (uma das áreas mais ricas do Rio) demora 20 minutos para chegar, por exemplo, na Rocinha. No transcurso se vai subindo por um lugar chamado Gávea. Ninguém sabe qual é o ponto exato onde termina a riqueza e começa a pobreza, mas acontece, como em uma terra de ninguém, como na zona desmilitarizada entre a Coréia do Norte e a do Sul. Talvez esse ponto claro de transição não exista. Há uma faixa na qual os habitantes não sabem se são ricos ou pobres, como em A Raia não sabem se são portugueses ou espanhóis. Não sabem se vão à Clínica da Família ou se pagam um plano de saúde ou ainda se vão à clínica popular. Conheci uma garota no avião, Bárbara, que falava espanhol perfeito, mas quando passaram os formulários de imigração disse que era brasileira. Vivia na hora do Brasil e pensava na da Espanha. Sua vida era um contínuo desdobramento de um quebra-cabeças ordenado que não lhe originava conflitos internos de nenhum tipo, como essas crianças que estudam em colégios bilíngues e que são capazes de passar de um idioma a outro sem nenhum tipo de escala entre eles. Bárbara não só passava de um idioma a outro, mas de uma vida a outra. Quando lhe convinha cumprimentava com um abraço de brasileira e quando queria com um simples beijo de espanhola. Quando queria chegava tarde amparando-se em sua condição de brasileira e quando negociava um pagamento exigia como espanhola. Quando queria conseguir algo facilmente sacava sua condição de europeia e quando queria que um taxista não a enganasse ou que não a assaltassem se portava e falava como uma brasileira. Quando tinha sede às vezes bebia um guaraná e quando queria uma Mahou. Às vezes comia uma feijoada que fazia as vezes de cozido. Bárbara tinha também uma zona de indefinição muito grande, uma zona que eu não tinha certeza se estava desmilitarizada ou se estava cheia de minas antipessoas, o que necessariamente me incluía também, haha. Assim não tive mais remédio a não ser tentar explorar o terreno em termos sociológicos. Utilizei, entre outras, a técnica do brainstorming, porque conhecê-la foi como uma tempestade tropical no meu cérebro. Para mim suas transições hispano-brasileiras começaram a se converter nas transições do país e comecei a buscar e a explorar nela as transições que havia observado e que se cristalizavam naquele momento na Gávea, como exemplo das transições que me permitiam entender o país. Assim, sem querer, o (conhe)cimento do país se transformou no conhecimento dela. Sem querer e pela primeira vez na história da pesquisa (investigação) havia conseguido uma amostra representativa de n=1. Tinha dificuldades para explicar isso a uma pessoa que havia acabado de conhecer sem que ela saísse correndo pensando que eu era um desequilibrado mental e, assim, decidi fazê-lo passar por amor que era uma maneira mais fácil e convencional. A batalha por
  • 29. beijá-la se converteu na pulsão por conhecer um país inteiro. A maneira de redimir meu sofrimento por não entender o que via a cada dia no Rio de Janeiro era me entregar aos seus braços e assim ser protegido por uma macroestrutura similar ao papel que desempenhava o Estado em uma sociedade moderna. No Rio a parte rica está no sul enquanto que a pobre está no norte, ao contrário do que acontece no planeta e em quase todas as cidades do mundo. Dizem que o Cristo Redentor abre os braços para os ricos (está de frente para a zona sul e com os braços abertos) e dá as costas aos pobres, que vivem na zona norte. Na favela os mais ricos estão na parte mais baixa e os pobres na parte mais alta, ao contrário do que acontece nos edifícios onde quanto mais poder aquisitivo as pessoas têm elas tendem a ocupar os andares mais altos (coberturas, com terraço e tal) e quanto mais pobres tendem a ocupar os andares mais baixos. Por isso quando ela dizia que preferia ficar por baixo eu não sabia se tomava isso como uma postura de dominação ou passividade. No Rio atrás de cada bairro rico há uma favela, como que ameaçando pelas costas; é a maneira com que a desigualdade nos lembra que tem um preço. [Esse é um bonito exemplo para ver como a disposição geográfica determina fenômenos sociais. Em outras cidades latino- americanas as favelas estão na periferia, longe do centro e das zonas ricas e de classe média. No Rio não é possível porque a cidade está encaixada entre a montanha e a praia. A periferia da cidade fica aos pés da montanha que fica colada à zona rica] (Isso eu aprendi em um texto de Márcia Pereira Leite). Ao andar pela rua sempre há o medo de que alguém venha por trás. No Rio você se dá conta de que a desigualdade não é outra coisa que um construto político. Isso e nada mais que isso. Na cama com o gesto simples de lhe cobrir as costas com meu corpo representava uma função de proteção que me fazia ganhar muitos pontos. Quando Bárbara se movia da margem espanhola para a brasileira eu deveria me reposicionar também. É sabido que no seu país você pode não pegar nem resfriado, mas é só ir para fora que se transforma em Julio Iglesias. Paradoxos a serem estudados. Assim, se ela assumisse o lado brasileiro eu me reafirmava como espanhol e se oferecia o espanhol eu me retraía um pouco. A guerra de posições gramsciana.
  • 30. Em minha tentativa de conhecer todas as qualidades e coisas típicas do país perguntava se poderia me mostrar a depilação brasileira, mas a princípio não colava. Em contrapartida, me mostrou sua casa. Morava na Avenida Atlântica, de frente para a praia de Copacabana. A miúde as contradições do país saltavam na minha cara. Pensava: essa manhã me levantei nessa supercasa em frente à praia e à tarde os moradores de rua vão me ensinar como se fuma o crack. Às vezes, se agachava em roupas íntimas para pegar algo e eu dizia que tinha uma casa com vista. Tínhamos graves problemas temporais; eu tinha pressa de tudo e para ela parecia que tínhamos todo o tempo do mundo. Comíamos uns bolinhos de bacalhau e enquanto eu enfiava um na boca e comia de uma vez para subir rápido para casa ela o colocava no prato, abria com garfo e faca, colocava limão, um pouco de azeite de oliva e o comia pedaço por pedaço. Me desesperava tanta lentidão. Frequentávamos um quiosque da praia que ficava muito perto da sua casa, muito famoso e concorrido porque serviam o melhor frango à passarinho da zona sul. Logo ela pedia uma caipirinha, que eu detestava, e me dizia que o resultado final dependia da qualidade da cachaça e sobretudo os demais ingredientes, da combinação que resultava deles. Outra vez a importância da mistura e da proporção. Ou um piscinão, um copo grande cujo nome eu achava muito engraçado porque era como uma piscina grande. Eu pedia uma cerveja que serviam em uma garrafa grande tipo litrão. Para que não esquentasse usavam uma engenhoca que cobria a garrafa e conservava a temperatura. Eu ria muito porque chamavam esse dispositivo de “camisinha” que é a mesma palavra que se utiliza para denominar o preservativo. Me encantava que quando eu chegava em sua casa da longa jornada ela me fazia tirar a roupa de trabalho, tomar banho (no Rio tomam banho mil vezes por dia) e vestir o calção da seleção brasileira. Me sentia pouco menos que Neymar. Logo me vestia também a camiseta que me marcava ofensivamente a barriga como Ronaldo Nazário de Lima. Mais tarde tirava toda a minha roupa e me cavalgava com os braços em cruz, como o Cristo Redentor, e eu sentia que dali de cima ele também os tinha assim para perdoar todos os
  • 31. pecados que se cometiam sobre o Rio. Ela terminava antes e enquanto eu o fazia a surpreendia olhando a televisão de rabo de olho (no Rio há uma televisão em cada cômodo da casa), vendo a novela das 9. Enfim. Logo tomávamos algo de maracujá e ficávamos adormecidos enquanto a TV seguia passando novelas sem parar. O maracujá é o novo Lorazepam pelo que se vê. Eu dizia que, assim como a garota em quem Sabina se inspirou para escrever “Con la frente marchita” na Argentina era guerrilheira, eu fantasiava que ela era do Comando Vermelho, mas não era o caso. Em troca, lhe prometi escrever uma canção para convertê-la na Garota de Copacabana, à imagem da de Ipanema, mas se vê que a letra está ficando um pouco longa. E já não me resta mais tempo. Preciso ir já. Eu não tenho o tempo, a tranquilidade, a paciência e a persistência de Lula. Sou uma bala perdida1 na Espanha e isso lamentavelmente é uma coisa muito séria no Rio. Só me resta um último segundo para recordar sua pele crocante e peluda como a do frango. Para recordar que ela pensava que se tratava de uma luta de línguas, mas na realidade era a luta de classes. Para (me) inspirar com seu nariz carioca em meu peito. Para dizer que é uma pedra angular e preciosa na minha vida. Só me resta te beijar pela última vez na Cinelândia. Prometer te levar pra Disneylândia. Te beijar os morros.2 Te tirar do planeta terra com o disco voador de Niemeyer. Te esperar mais meia hora na livraria do CCBB. Te esperar com a urgência dos casais que esperam uma vaga no hall dos motéis. Te tocar com a tristeza do pianista do shopping no Leblon. Te espiar através dos espelhos na Colombo. Te irritar por deixar pingando o filtro de água gelada. Beber água da torneira para me fazer de valente. Preparar seu café da manhã e de depois de amanhã. Fingir que adoro Bossa Nova. Passar seu fio dental na minha boca. Captar repetidas vezes o olhar censor do taxista pelo espelho retrovisor por avançar rápido demais. Me derreter quando você coloca assim a língua e os dentes e me chama de gatinho. Fazer um arrastão para te roubar o coração. Te furtar a alma e um beijo a cada sinal vermelho. Nos embriagarmos de bar em bar 1 N. da T: “Bala perdida” é uma expressão espanhola que, quando se refere a pessoas, designa aquelas cujo comportamento é imprevisível e por vezes irracional, que não seguem convenções ou regras sociais. 2 N. da T: Em espanhol, “morro” também se refere aos lábios de uma pessoa. Aqui há um trocadilho com as montanhas do Rio.
  • 32. até chegar à Barra. Ser seu Pão de Açúcar e de queijo. Me apaixonar por você, pelo Rio e pelo Brasil com a mesma intensidade que Don João. E, finalmente, abandonar tudo com a mesma tranquilidade que o fez o Brasil do império português, para continuar adiante. Eduardo Nogales Médico de família Para conhecer mais aspectos formais da Reforma e da Atenção Primária no Rio de Janeiro e no Brasil recomenda-se ler o Relatório final de Juan Gérvas y Mercedes Pérez. Disponível em: http://www.sbmfc.org.br/default.asp?site_Acao=MostraPagina&PaginaId=524 Agradecimentos Obrigado aos companheiros da Coordenação Técnica pela atenção recebida e no plano profissional por sua dedicação e excelente trabalho com o projeto no Rio, porque é o projeto de toda América Latina e do mundo inteiro: André, Adelson, Michele (secretária) e aos demais companheiros. Obrigado a Caio, Annie, Marcia, residentes e mentores da Clínica da Família Assis Valente, Clarice, Rita; residentes e mentores da Clínica da Família Anthidio Dias da Silveira (Jacarezinho), Michael, Renata, Leandro, Daniel; residentes e mentores da Clínica da Família Maria do
  • 33. Socorro, Valeska, Anderson, Fabricio, Bruno; residentes da Clínica da Família Víctor Valla (Manguinhos), Joana Thiesen e equipe da Clínica da Família Albert Sabin. Obrigado aos pacientes por possibilitar que acompanhasse seus médicos e Agentes de Saúde e por haver permitido que os conhecesse, à suas famílias, suas histórias e seus país. Obrigado aos motoristas da Secretaria e a Joaquim, Patrícia, Jacobo e Bianca. E muito obrigado a Lourdes Luzón. Sem ela nada disso seria possível. As pessoas que batalham por mudar as coisas a partir da práxis são as que realmente valem a pena. Marx disse que o que os filósofos haviam feito até então era interpretar o mundo, mas que não se trata de interpreta-lo e sim de modifica-lo. A teoria todos já sabemos. Além disso, obrigado pela pessoa tão linda que você é. A despedida à francesa de Eduardo me quebrou de alguma maneira. Havia algo que ficava em aberto e me inquietava. Pensava que se não fechasse esssa ferida ela não cicatrizaria por segunda intenção. As segundas partes nunca foram boas. Tinha duas opções para poder entender tudo. Uma era escrever um romance para poder explicá-lo a mim mesmo. Mas eu não escrevia tão bem como Eduardo e na verdade eu não tinha vontade nem tempo. A outra era tentar fechar o círculo aqui no Brasil antes que tudo se convertesse em pura história e as pistas desaparecessem. Não fazer nada significaria condenar essa passagem a fazer parte das paredes da cidade. Eu moro na Espanha, em uma região de trânsito dos universitários. As paredes da zona dos bares estão cheias de histórias que só elas conhecem e que estão condenadas a nunca serem resgatadas. Comecei a pensar em como deveria proceder e rapidamente começaram a brotar ideias. Deveria encontrar Bárbara, isso estava claro. Perguntei no hostel qual era o frango à passarinho mais popular de Copacabana. Ficava em frente à sua casa segundo as referências do relato. Perguntei no hostel e não tinham certeza. Li no Lonely Planet e havia um que parecia que poderia ser. Eduardo gostava desse guia porque várias vezes o vi consultando. Assim, talvez
  • 34. tivesse visto a recomendação ali, ainda que certamente a ideia e a iniciativa tivesse sido de Bárbara por ser nativa. Passei próximo ao horário do jantar várias vezes por Copa e procurei de maneira mais cuidadosa os pontos que me pareciam mais prováveis. Falei com os locais. Com efeito havia um lugar em que as pessoas se aglomeravam. Dei uma olhada para dentro e certamente o frango era o prato mais popular. Estava no caminho certo. Bárbara vivia por ali. Todo morador da beira-mar tem que ir à praia com certa assiduidade, creio eu. Uma pessoa que vive de forma contínua no Rio deve ter a praia como sua segunda casa. Pensei também que se morava à beira-mar e as áreas de praia são tão homogêneas o lógico é que não se banharia muito longe de casa. Assim, na semana seguinte o que fiz foi passar manhã e tarde indo à praia que ficava em frente ao bar do frango e tentando identificar as pessoas que frequentavam, dia e lugar, e que não pareciam estrangeiros, porque com certeza viveriam próximo e seriam cariocas. Talvez não seria difícil para eles identificar uma garota chamada Bárbara, metade espanhola metade brasileira. Em seguida, localizei vários grupos familiares que frequentavam sempre o mesmo lugar. Era preciso ter cuidado porque como eu os observava com muita atenção em seguida percebi que alguns suspeitavam de mim como ladrão, hahaha. Pensei em algo que poderia identificá-los como espanhóis. Difícil tarefa! E em seguida reparei que se visse alguém com um livro ou uma revista em castelhano o teria de bandeja. Meu rosto se iluminou quando vi uma senhora loira lendo o Hola! Também se diz em português “Olá”, mas se escreve sem H e acento no A. Logo, deveria ser a edição em castelhano. Levei um amigo para jogar raquete nas imediações da senhora. Instruí meu amigo a lançar a bola longe da minha zona de alcance e em direção à senhora. Assim teria uma boa razão para entrar em sua zona de segurança. Quando a bola foi na sua direção, exclamei um estridente “Me cago en la puta!”, para me certificar que a senhora me ouvia claramente. Nossa presa efetivamente pegou a bola e ao me aproximar dela lhe disse: “Perdone”, para deixar claro que havia percebido que era espanhola e para força-la a falar e começar assim a conversa. A mulher me devolveu a bola, mas não me disse nada. Ao pegar a bola deixou a revista com a capa à vista. Não me disse nada, mas eu não ia permitir que a realidade me estragasse o plano. Assim eu indaguei, com os olhos na revista: “Olha, você é espanhola?” Me disse que sim e começamos a conversa. O desenrolar do jogo fazia com que parecesse muito forçado e incomum que eu parasse e fizesse meu companheiro esperar enquanto conhecia uma desconhecida. Tampouco queria assustá-la de primeira. As pessoas nos países em que há muita insegurança são um pouco desconfiadas demais da conta. Assim prosseguimos com o jogo um pouco e fizemos como se estivéssemos indo embora para poder cruzar com ela em uma situação mais cômoda.
  • 35. Fiz a abordagem típica “De onde você é? Trabalha aqui?” e tal. Contei por alto um pouco do nosso propósito de encontrar Bárbara e porquê e a mulher muito simpática e atenciosa começou a colaborar conosco em um meticuloso plano de busca. Me disse que sim, vivia na Atlântica, nas imediações, e não haveria muito problema porque a zona de costa estava cheia de hotéis, restaurantes e etc., e não muitos edifícios residenciais — uns 17 se percorresse uma área mais ampla. É sempre bom trabalhar com margens mais amplas, como dizem que acontece no tratamento cirúrgico do melanoma. Nem rápido nem devagar, recolheu suas coisas e se juntou à nossa busca e captura. Lhe disse: “Se tiver que fazer coisas não se preocupe que podemos tentar sozinhos.” “A riqueza é muito monótona, vou com vocês”, respondeu. Hahaha Segundo o Lonely Planet há duas coisas que compartilham a classe baixa e a alta no Brasil: o carnaval e a praia. Eu adiciono outra: as havaianas (sandálias de dedo). Fomos de portão em portão. Os portões do Rio da zona sul são todos gradeados com um porteiro automático para que você possa se comunicar com o porteiro não automático para quem é preciso dizer quem você é e para onde vai se você não mora no prédio. Ele liga para a casa da pessoa e diz: “O fulaninho está aqui, pergunta por Dona não sei quem” e então te deixam entrar ou não. Enfim. Ao ver Martha e ao ouvi-la falar português perfeito a colaboração do porteiro era total. Na duodécima tentativa enfim a encontramos. Ao escutar sua voz pelo interfone senti uma emoção difícil de descrever, como nos filmes. Nos disse para subir. Nos recebeu com o calção da seleção brasileira que eu adivinhava que era o que Eduardo havia vestido. Era uma garota loira, alta e magra, com brincos de pérola. Perguntou se queríamos beber algo e eu disse que não, mas como ela insistiu pedi um guaraná. O inglês (que não prestava atenção em nada) pediu uma cerveja e Martha, que não perdia uma, perguntou se tinha um whisky e como ela disse que sim, tomou um, hahaha.
  • 36. Nos demos muito bem. Às vezes não é preciso muito tempo para saber se sim ou não. Fui direto ao assunto, ainda que eu preferisse um ambiente mais íntimo para que ela pudesse falar mais à vontade e me dar mais informações. Ajudava um pouco que o inglês brincava de ensinar palavras para Martha e estavam entretidos. Pedi para ir ao banheiro para poder recriar em minha cabeça o máximo possível a casa em que Eduardo havia vivido aquela experiência de amor e transcendência. Bárbara se mostrou muito surpresa e esperançosa com toda a história do caderno e por minha busca. Também agradecida. Me disse que tinha sofrido pois a última coisa que sabia de Edu era um WhatsApp que ele mandou que dizia: “Estou em um bar comendo a última coxinha. Parto daqui a pouco. Até logo. Não se esqueça que eu te amo e sempre vou te amar”. Depois disso nem respondeu WhatsApp e nem ligações, com o telefone desligado. Lhe disse que faria chegar o caderno até ela e o encontro não prosseguiu mais, ela tinha que ir trabalhar. Eu estava muito confuso e só queria ir ao hostel na Lapa, me jogar na cama e não pensar. Martha e o inglês ficaram por Copacabana. Aquela noite ele não veio dormir, hahaha. Tirei cópia do caderno e o fiz chegar a Bárbara. Depois de lê-lo se apegou muito mais à ideia de buscá-lo, como um remédio que fez efeito. Releu o caderno cuidadosamente e pensou em falar com Lourdes. Eduardo sempre falava muito dela. Reparou também no nome Joaquim, que não lhe era estranho – a mim também, ainda que vagamente. Pensando e pensando, decidi passar um dia pelo hostel de Copacabana e perguntar. “Claro, porra, Joaquim é o staff da noite, o colombiano”, me disseram. Ao me descrevê-lo parecia familiar, mas não muito. Talvez por que segundo me disseram ele entrava à meia noite e ficava até as 8h. Eu ou saía antes ou chegava bêbado com os demais e não prestava atenção em nada. Em qualquer um dos casos o que eu não fazia, com certeza, era me levantar antes das 8h.
  • 37. Quando me apresentaram a ele me recordei um pouco. Uma noite havíamos chegado com os ingleses e australianos e esses últimos começaram a gritar; um tinha subido no balcão do bar e começado a mijar em parábola e dizer que agora era ele quem servia a cerveja… O tal Joaquim o agarrou e por pouco não lhe dá um soco ali mesmo. Descrevi a Joaquim quem era Edu e lhe disse por que o procurávamos. Ele soube exatamente. “Sim, claro, o galego”, me disse, fazendo referência ao fato de que todos os espanhóis são galegos para os latinos. “Um dia estávamos falando de política e da crise na Espanha e lhe disse que eu havia estudado Engenharia Química e depois Ciências Políticas e ficou todo emocionado. Sobretudo quando lhe disse que quem tinha me dado Teoria do Estado era Juan Carlos Monedero, que foi professor visitante lá na Nacional de Bogotá. Me disse que seu sonho era estudar também Ciências Políticas.” A Lei de Monedero diz que ao curso de uma conversa, a probabilidade de que apareça alguém que anuncie ter sido aluno de Juan Carlos Monedero e que o conhece tende a um. “Passávamos horas e horas conversando no meu turno. A mim me agradava e entretinha sua conversa, sobretudo porque sempre se despedia com um ‘obrigado por tudo que me ensinou essa noite’. Me sentia muito considerado por ele. Hoje em dia não é fácil que te façam sentir isso. Durante as conversas eu o incentivava a estudar Políticas e lhe dizia que tinha muito bons contatos lá em Bogotá. Sobretudo lhe falava de minha amiga Priscilla, que estudava na Nacional e tinha decidido ser a eterna universitária, vivia como Peter Pan. Lhe dizia que tinha certeza que se dariam muito bem e Eduardo abria muito os olhos, como se fossem saltar para fora, ficava vermelho e dizia: ‘você precisa me passar seu contato.’
  • 38. Eu perguntava por que queria estudar Ciências Políticas e me dizia que era porque não existia ideia mais romântica que a da revolução. Faz dois dias recebi uma mensagem pelo Facebook de Priscilla dizendo que Edu tinha entrado em contato com ela e que tinham combinado de se ver em Bogotá. ‘Que boa gente esse sujeito!’, escreveu Pris. Meu companheiro da manhã me disse que Eduardo tinha feito o check out antes do tempo e que haviam chegado a um acordo para saldar as noites restantes. E que havia mandado me dizer que gostaria de ter se despedido, mas muito obrigado por tudo e até logo. Havia comprado uma passagem de ônibus para atravessar toda a América Latina até Bogotá.” Contei tudo a Bárbara que ficou um pouco contrariada. Via em sua atitude um desdém. Tentei fazê-la entender que não. Que com certeza Eduardo havia agido assim para proteger a todos nós. Sua sensibilidade teria provocado lágrimas e um sofrimento nos dois difícil de suportar. Era melhor assim. No fundo a vida devia seguir, e com a mesma intensidade com que se unem dois polos que se atraem, a força que devem fazer para se separar deve ser maior ou igual. Bárbara me contava que Eduardo vivia em constante crise existencial. Eu pensava que somente nesse instável equilíbrio, de forma contínua, era possível alcançar tal grau de virtuosismo. Não via outra maneira. Eduardo não podia com a decadência geracional que lhe rodeava, e isso o fazia sofrer muito. Comigo acontecia algo parecido. O advento de novas responsabilidades se tornava o fim da autenticidade. Eu tampouco havia nascido para isso. Perdoe-me, mas a vida para mim era e é outra coisa. Tenho problemas sérios para distinguir bem entre as miragens e a realidade, mas só sei que as miragens me encantam. Acabo de enviar um telegrama à empresa com meu pedido de demissão.
  • 39. Em minha fantasia, no momento da decolagem fixava meus olhos em Bárbara com um desses olhares que duram um pouco mais do que o convencional e incitam a dúvida. Esse excitante momento de não saber se sim ou se não. Nesse instante de debilidade emocional e consciência da vulnerabilidade que significa a decolagem, segurávamos com força as mãos um do outro em um primeiro momento e as entrelaçávamos em um segundo. Isso não significava mais que uma conexão que saía da amizade sem penetrar em outros territórios, como uma área de indefinição parecida com a fronteira da Índia e do Paquistão na Cachemira ou como a faixa de Gaza, onde as linhas que separam se movem a cada dia dependendo dos equilíbrios territoriais e de poder. Ou como a Gávea: você sobe a colina e nunca sabe quando deixa uma categoria para se incorporar a outra, mas certamente embaixo você é uma coisa e em cima outra diferente. Na realidade, olhei para o lado para tentar ver pela janela e um homem gordo de óculos que suava e já roncava me impedia de ver qualquer coisa com sua figura. Olhei para o outro lado do corredor e ao redor e não pude encontrar Bárbara. Me inclinei um pouco mais para a janela e pude captar a última imagem das favelas comendo o terreno da montanha, um segundo antes que se levantasse o nariz do avião e nos puséssemos definitivamente rumo a Bogotá. Roberto Sánchez Transeunte robertojosesan@yahoo.es