Este documento é uma cópia digital da primeira edição de um livro de contos chamado "Quarto Desamparo". Foi disponibilizado online pelo autor para download gratuito em PDF. Reproduções totais ou parciais da obra são proibidas sem autorização do autor.
2. Esta é uma cópia digitalizada da 1ª
edição artesanal. Foi disponibilizada pelo
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Proíbe-se qualquer outro tipo de
reprodução do todo ou de qualquer parte
da obra.
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6. agradeço a
Dulce Mindlin
Welber Santos
Beatriz Bueno
Luana Bastos
Alex Moraes
Rafaela Scardino
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7. Para
Edmar Ávila
Fabrício Gabriel de Souza
Giuliano César dos Santos
Fernando Marques Alvarenga
Ana Luiza Barbosa
Joana Wildhagen
Vanessa Paiva
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8. “O número de nossos sósias é infinito no tempo e no espaço. (...)
Esses sósias são de carne e osso, até de calças e paletó, de
crinolina e de coque. Não são fantasmas, é a atualidade
eternizada. Eis entretanto uma grande falha: não há progressos.
O que chamamos progresso está enclausurado em cada terra e
desaparece com ela. Sempre e em todo lugar, no campo
terrestre, o mesmo drama, o mesmo cenário, no mesmo palco
estreito, uma humanidade barulhenta, enfatuada de sua
grandeza, acreditando-se ser o universo e vivendo na sua prisão
como numa imensidão, para logo desaparecer com o planeta,
que carregou com o mais profundo desprezo o fardo de seu
orgulho.”
Auguste Blanqui - L’eternité par lês astres
“VLADIRMIR
Qual é o nosso papel? O de suplicantes.
ESTRAGON
É tão ruim assim?
VLADIMIR
O senhor tem mais alguma exigência a fazer?
ESTRAGON
E os nossos direitos? Evaporaram?
(riso de Vladimir, abruptamente abortado como antes...)
VLADIMIR
Você me faria rir, se não fosse proibido.”
Samuel Beckett – Esperando Godot
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10. Um apartamento de subúrbio.
Tem pão? No armário, segunda porta.
Placas de verde nas paredes de pintura envelhecida,
cheiro-azulado ruim de lixo na cozinha, esquecido, esperando
encher-se.
Manteiga? Acabou semana passada. Pensei em comprar,
mas a grana anda curta.
Janelas ferrugem-laranja, esperando troca, como tudo em
volta esperando um pouco mais.
Faz café! Depois... É tarde. E se você beber demais vai
perder o sono e a gente vai acabar brigando de novo.
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11. Ele tinha um sono leve. Fumava muito, compulsivamente,
um cigarro barato, mentolado, com cheiro enjoativo.
Faz um pouco só, só pra acompanhar o cigarro. Já disse
que você perde o sono e quem paga o pato sou eu.
Ela também fumava. Um cigarro mais forte, filtro escuro.
Tinha os dentes marrom-amarelos, as unhas cinza-pardas.
O casal estava no quarto-sala que dividiam. Pouca
mobília, pouco.
Amanhã precisa sobrar dinheiro pra feira. Acabou o
último tomate hoje. Você não tinha guardado um pouco pro fim
de semana? Tinha, mas você fumou nesse cigarro.
O apartamento era de segundo andar, teto descascado e
uma infiltração no banheiro. A janela da sala dava para um muro
e fazia entrar um cheiro de enxofrado-ácido de urina do beco.
Pouco ventilado, a fumaça não tinha muito por onde escapar,
azulando, delicada, o vazio. A cozinha acumulava vasilhas
empilhadas esperando. Naquela noite de verão, o tédio.
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12. Liga a tv. Se quiser, você que ligue. Tá me achando com
cara de empregada? Se eu tivesse grana pra empregada, fodia
essa noite.
Os dois se entreolham mudos. Era a primeira vez que se
olhavam naquela noite. Talvez naquela semana. Talvez até
naquele mês. Olharam-se profundamente e um silêncio quase se
fez presente, incomodando.
Ele tragou fundo: a brasa quase na guimba. Ela deu um
trago leve.
Ele passou a mão na cabeça, desatento, olhando o tubo
desligado da tv.
Liga essa merda logo, pô! Tá quase na hora do jornal! Já te
falei que não sou sua empregada. Nem sua, nem de ninguém. Se
fosse, até pensava em te foder.
Ela se levantou. Não sentia mais atração pelo marido.
Olhou o peito dele nu, camisa aberta, com um ralo pêlo que já lhe
fora atraente. Olhou as mãos do homem que já a seguraram com
desejo. Olhou os cabelos em que seus dedos já se perderam
tantas noites. As mãos passaram a tremer, os olhos fumegaram, a
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13. boca crispou. Ameaçou cuspir, deu um tapa na coxa na falta de
outro reflexo. Andou muda até diante dele.
O que você disse, filho da puta?
Ele ergueu os olhos. A cara da mulher, ali, enfurecida, era
de longe a cara da mulher que ele dissera amar endoidecido,
devoto. Os cabelos com uma pouca tinta já não tinham mais o
viço dos cabelos castanhos de antes e o corte mal aparado não
lhe dava mais o charme da juventude. Olhou a cintura, já sem a
graça, e os seios caídos não o convidavam.
Ela segurava o cigarro entre o polegar e a unha do
indicador, as mãos trêmulas, uma sobrancelha arqueada,
esperando.
Repete, seu bicha.
Os dentes dela amassavam as mútuas amálgamas. Bem
no seu interior, ela pedia para não ter ouvido a ofensa. Pedia até
só pelo sexo que ele vomitava em palavras. Pedia para que ele a
abraçasse de novo e reacendesse o passado como ele fazia com o
cigarro na beira da cama.
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14. Não é homem pra isso? Se você fosse empregada, eu te
fodia.
O cigarro dela voou aceso no peito dele.
Sua vadia louca, quer me matar?
Ela virou, enquanto ele limpava as cinzas do peito,
soprava a queimadura. Ligou a tv, foi para a cozinha. Acendeu o
fogão, pegou a caneca de metal, passou-lhe uma pouca água,
encheu, pôs para esquentar.
Precisava disso tudo pra ligar a tv?
Ele gritava indignado, cortando o pequeno espaço que os
dividia.
Te disse pra não fazer café! Você disse que não ia fazer
café. Você não me proíbe de nada.
Ela tremia num sentimento que não entendia. Queria sair,
deixá-lo, deixar aquele lugar imundo e ir para rua. Dormiria
debaixo da ponte, na casa de alguém, num puteiro se fosse
preciso. Mas algo a retia ali, perto dele, e ela não sabia o que era.
Talvez um sentimento maternal. Talvez um resto de amor ao seu
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15. marido. Talvez uma esperança, uma esperança de que ele
levantaria a bunda daquele sofá e que lhe viesse pedir desculpas,
passar-lhe a mão pela cintura, juntar seu corpo no dela e dizer
palavras doces. Mas ele não era homem dessas regalias. Não
mais. Quando no início os dois se abraçavam era diferente. Ele lhe
dava flores, dessas que nascem sem propósito nos meio-fios, dizia
palavras moles ao pé do ouvido. Era perfumado, de camisa
branca limpa, lavada, com cheiro de Comfort.
Apoiou as duas mãos no pouco espaço da pia, olhando as
vasilhas sujas e perdida, querendo chorar querendo gritar
querendo correr sem conseguir nada, como se o mundo daquele
quarto-sala a amarrasse de uma forma tal que a sufocasse. Olhou
com atenção a faca.
Ele resmungava palavrões no sofá, sem entender o que
aquela vadia tinha na cabeça, de que mulher é tudo igual, e de
que ela precisava apanhar um pouco para aprender. Resmungou
entre dentes, raspou fundo a garganta, gemeu um ai fininho
quando passou a mão sobre a ferida. Mulher maluca.
Foi para a cama, acendeu o último cigarro. Olhando a
parede suja, ele não entendia o que fazia naquele quarto. Não
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16. entendia porque não largava tudo e tentava algo novo. Não
entendia o que de ruim o prendia àquela mulher maluca que não
mais lhe atraía. Mulher que ele não conseguia mais comer e que
lhe era um peso morto. Seus pensamentos se confundiram entre
tantos outros, sentiu-se sozinho e pensou que talvez por isso ele
ainda estivesse com ela, aquela vadia.
Eram duas vítimas de mundos opostos. Duas almas
desamparadas num mesmo espaço esquecido que se buscavam
no escuro. Dois mancos que se escoravam.
Ele respirou fundo, um suspiro de saco-cheio.
A água ferveu e ela olhava a caneca sem pensar em
passar o café. Olhava a caneca fervendo, as bolhas na água, o
vapor subindo, e não pensava em nada. O metal da caneca tremia
na grade do fogão fazendo um barulho irritante.
Cê num vai passar esse maldito café não?
Ela não se moveu. Encostada na pia, nem sentia que sua
roupa molhava por causa de um empapado pano úmido. Cruzou
os braços em câmera lenta, aturdida num labirinto do qual não
conseguia sair. A visão turva via a caneca tremelicar no fogão e o
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17. cérebro gritava por uma ação que não era atendida. Nenhuma
parte do seu corpo se manifestava a nada. Imagens soltas se
embaralhavam na sua mente, apontando caminhos tão diversos
que ela não entendia bem.
Andou até a porta, sem mexer no fogão ou na faca.
Olhou-o na cama, virado de costas para ela, fumando o cigarro
mentolado enjoativo, sem a camisa. Apoiou-se no marco da
porta, a cabeça escorada.
Por que? Por que o quê, mulher?
A boca dela tremeu. Uma voz rouca saiu, enquanto uma
lágrima desceu macia e quente pela face.
Por que?
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18. Era sim, era sim, na forma da liberdade-liberta-de. Era:
sei. E não era obrigação, como bom dia. Era: sei. Não diga o
contrário, não era o contrário. Eu penso no contrário, na pobreza,
na sorte, mas não era isso. Era: sei. Diferente de bom dia. Era,
enfim. Eu que já estava pelo que sei.
Ela me deixa. Chama de rabugento meu jeito quando diz
suas idéias das coisas, olhando as nuvens, me fazendo carícias.
Não sei bem se posso dizer quando todas essas coisas se
anunciam. Mas posso dizer que era, que poucas vezes foi.
Ela estava enquanto era. Pude senti-la numa noite.
Senti-la estando. Como tocar a noite. Eu e ela. Não era o que
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19. dizem ou que trocam. É o que tira. O que antecede, que busca.
Era.
Para o que era é preciso entrar. Passei o dia com ela e nos
tocamos nas mãos como a burguesia comum se relaciona, presa
entre os dedos como náufragos. Quando a conheci, existia entre
nós o grande espaço. Aquele espaço branco e peguento como giz.
Naquele momento amei o menor amor de todos, carregado. Nós
dois, de olhos cheios, perto do que todos chamam absurdamente
paz. Demo-nos, os dois, a liberdade, a que não se tem.
Era dar a ela o direito que em nenhum momento seria.
Então, distanciamos as mãos depois que o menor se tornou
verdade.
Não sei se é possível pensar em medo. Tinha nas mãos a
forma espessa que chocava minhas unhas nas palmas das mãos e
entre o visco e a mão tinha ela, a me olhar muda, vermelha e
desesperadamente brilhante, lenta e completa, buscando a curva.
O vento trouxe o calor da manhã, um calor incomum,
colorido, como uma exposição sem ruído com cacos de coisas.
Como se as cores do mundo já não mais fossem capazes de
responder às necessidades de mim quando me perco em
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20. paredes. O sonho de um desespero que se prende num átimo de
mão machucada, num gosto de noite, de frio da hora.
É tamanho o que era. Era carne de sabão, dia de domingo.
Era silêncio, escuro, sobra. Era pele? Era vermelho em rodopio. A
vida comum e recorrente como a compra.
As cores formavam-se como consoantes soltas. É por isso
que era e ela com a dor absoluta dos meus dedos comprimidos
no espesso. Chocar e amá-la me tornava no quarto desamparo,
uma mescla que sobrava em perda.
Alguém disse que para nós não existe liberdade e
aceitamos essa verdade como válida, sabendo que não é verdade.
Acho que no fundo somos dois covardes. Mas era, eu sei, era.
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21. Como os calcanhares no estômago: fica tudo azul-veia. A
moça que saiu detrás da árvore era um vestido
verde-pimentão-cozido sobre-entre sapatos vermelho-fogão.
Calma, andava no azul-veia sem muita vontade de através. Entre,
o vermelho-fogão sobrava como caldo de tomate em prato.
Os palitos-dedos, como tentáculos, alisavam os soltos
cabelos gregos quase azeite: o contorno-casca.
O marrom-rapadura da terra pegava os pés por, entre, até
o passo, enfim. Quando levantava o calcanhar, era como tirá-lo do
estômago, voltando do azul-veia.
No meio do largo, a moça entre, através, portou-se
pronta. Detrás da árvore é o infinito sem sol. De lá, sai a
mordedura que se espessa.
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22. Não pisa, a mordedura, com a graça coadjuvante de
calcanhares no estômago. O passo-pressa nem tem tempo de
enfim. Vai por, sobre, até.
A moça, posta, em verde-pimentão-cozido, abre o vestido
para a mordedura. No campo, os olhos dos dentes são a
não-sombra do infinito.
Os olhos olham o tudo em volta sem profícuos atos.
Ouvem vozes, mas não suspendem o ataque mar afora. Olham o
azul-veia da tarde por detrás, entre, através de soltos cabelos.
Vêem o verde-alface o verde-repolho o verde-couve o verde-louro
o verde-oliva o verde-garrafa da tarde em contraste com a mulher
que já suspende pronta sem verde.
É opala! Brilha como pedra-sacrifício e transpira cristais
sob o sol, sobre. Pelo azul-veia.
Os fulvos cabelos molhados pelo cristal, o rosa-bebê da
flor-pus-púbis, a dobra cinza do fim-traço: corpo. Os cabelos
gregos, azeite, quase quase! Suspensa sem verde, sobressalta à
mordedura a onda dos seios no quebra-mar do plexo. No vácuo
azul-cobalto do centro do ventre-mundo, o ponto da mordedura
mais separa, sobre-sob o quebra-mar.
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23. Curiosa, a mordedura faz brotar tentáculos e lambuza de
óleo e tinta preta a cor-de-papelão das ondas, o farelo-de-pão do
ventre, o papel-manteiga do cristal, o papel-seda do rosa-bebê.
Tudo é carne.
Diz de sobressalto É proibido.
Diz no fundo da voz Espera a noite.
A mordedura oclusa presa no prateado-amálgama vê que
a moça suspende os tentáculos e se põe em sacrossanto ato de
entrega, para louvar e berrar no grito primeiro do combate.
Aponta com os dedos-palitos-moles as partes da
hecatombe e a mordedura brilha lâmpada de saliva.
Dos tentáculos da mordedura, a unha-faca corta o
azeite-cabelo e come exasperada.
A mordedura olha os cabelos entrando na unha,
azeitando. O gosto da mordedura está pronto para receber a
hecatombe.
Por, entre, sobre, através dos verdes, a mordedura
começa por subir por toda a carne, ainda com seus sapatos
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24. vermelho-fogão. Cobre, com a tinta dos tentáculos, todos os
papéis e todos os cristais. A mordedura cobre toda a face da
moça, que ri maravilhada e berra, pouco a pouco, por detrás,
sobre o sorriso.
Os olhos da moça são de não-cor e os lábios de um
rosa-mais-que-bebê. Um rosa-tarde. Por baixo, dentro da
mordedura, fora. Com todo o traço cinza repartido, enquanto.
Traços nos, dos tentáculos e muita tinta sobre o papelão,
o farelo-de-pão, dentro, entre o papel-manteiga, papel-seda. A
tinta preta é toda a mordedura por sobre a moça.
Do nariz, o ar é forte verde-lima e é doce como cajá. Um
cheiro de incenso, sândalo, sai de toda a mordedura na ebulição
maciça do contato.
A mordedura é lenta e já olha o azul-cobalto que se ergue
ao céu, o amarelo-vezúvio que sai das suas costas comendo as
partes do ofertado.
Não há espaço para o longe em tudo. Oferenda e
mordedura entre, através, por sob, sobre, demais, em. Moventes.
Não existe mais o verde-pimentão-cozido, nem o papelão e nem
24
25. tentáculos múltiplos que se pintam mutuamente. É tudo oferta.
Sobra sobre o papel o líquido. O sagrado líquido que aumenta,
enquanto, mútuos, se devoram em bruta-fome.
Tudo falta e tudo sobra nesta sede, menos os sapatos
vermelho-fogão.
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26. Era a primeira vez que via, colorida e maior que as outras.
Grande, batia as asas pesadas no ar soltando cores que ele
apanhava com olhos abertos no contraste-azul-lambuzado.
Desenhava-se no ar. O olhar, cheio, se desviava.
Nos volteios, a borboleta ia sobre, até. Pousou, enfim, e
fez surgir atrás de si um busto. Os seios fizeram surgir os cabelos
que fizeram surgir os ombros que fizeram surgir os olhos. Um
encanto maior que a borboleta.
Era a primeira vez que via, colorida e maior que as outras.
Nessa dupla descoberta, a boca sem ação secou e um calor subiu
à garganta. Preso, o olhar acabou a borboleta e os seios: cores.
A borboleta fez surgir para a morena o menino: cores.
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27. Ela riu com uma claridade farta. O menino respirava forte,
de bermuda de algodão-grosso-marrom-biscoito. Sorriu! A cor
subiu e iluminou mais forte o contraste-azul-lambuzado. Trouxe o
amarelo-ovo sobre os dois e intensificou o vermelho-ferrugem do
chão. Intensificou a cor da janela, o vermelho-unhas da morena,
cheio de gestos.
O menino seguiu as cores que lhe convidavam para a
aquarela. Uma voz cortou o ar, fazendo-o colorir os degraus da
porta por sobre um mendigo. Entrou na casa, a morena
estendeu-lhe a mão e lhe guiou para, entre, pelo fundo corredor.
As sombras-azuis apagaram as luzes. Um forte cheiro
invadia as narinas do menino que via na penumbra as saias de
algodão-fino-manteiga, coxas, um calor, paredes verde-couve.
Ouvia o desconhecido e tinha o carmim-coração disparado,
apertado entre as mãos. A morena, entre os longos cachos do
castanho, sorria. Apertava-lhe a mão, limpando o úmido da
palma.
Chegaram a uma porta de onde saía pouca cor. A morena
tirou da penumbra o ruído-marrom, apresentando ao menino
outras viscosidades densas: badulaques, colares, brincos, vidros,
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28. fotos, anéis, vestidos! Na cama, um urso de
pelúcia-marrom-biscoito, um lençol flores-mingau.
A mulher, então, passou-lhe a mão pelos ombros,
cheirou-lhe o pescoço, beijou-lhe o macio lábio arfante. Olhando,
a mulher nem era tão mais velha. Nem ele era tão mais novo.
Deitados nas flores-mingau, ambos se entregaram a um possível
amor-cereja.
A semana corou de cereja a rotina: o menino acordava,
saía, encontrava, adentrava. Era amor, ele pensava. Amor-cereja.
Ele levava-lhe flores, cheirava-lhe os cabelos, dormia desfalecido
nos moles braços: afagos. Ao perfume, o menino fez juras de
amor das mais profundas. Tudo amor-cereja.
Mas um átimo de vermelho trocou o tom de lugar. No
meio das coisas da seqüência, o menino viu o amarelo-surpresa.
Não encontrou o de costume. O vermelho do chão tomou o ar.
Tudo era vermelho-ferro. Foi então que o menino notou que
faltava algo na frente da casa. Algo que nunca reparou.
Adentrou com pressa a casa e avançou pelo roxo-corredor
até a porta aberta. Viu. De olhos arregalados, o mendigo subia na
morena! Ria. Ria alto, cada vez mais alto. Soltava urros e a cama
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29. rangia forte. Uma violência vermelho-ferro que fez a vista do
menino embaralhar-se. As coxas e os castanhos da morena por
todos os lados da pequena cama, o ursinho jogado no chão, os
urros do mendigo e a morena que gemia alto. O menino viu tapas
no rosto, tapas no corpo e sentiu o coração bater violento no
peito. O sangue fervia-lhe: ferro.
O mendigo já mostrava as costas nuas, as calças
abaixadas, as coxas sujas. O suor escorria pelos braços finos que
se apoiavam nas flores. Gritou alto até cair desfalecido, mole
marrom-lama sobre a morena. Respirou fundo e tossiu. A morena
passou-lhe a mão nos cabelos-quase-azuis-molhados e olhou por
sobre o homem o menino à porta. Olhou friamente o menino que
não era tão mais novo.
O amor-cereja dava lugar a um laranja, um forte laranja
viscoso como um caldo grosso, um denso laranja-angústia. Foi
então que o menino, gelado, virou-se e saiu correndo.
Viu tudo laranja-angústia, até o sono que custou a chegar.
Na cabeça, a cada instante, a cena laranja se repetia de forma
mais intensa. Laranja o mendigo que ele nunca notara, o mendigo
que gemia, o olhar laranja da morena. Como um carrossel que
29
30. acelera e confunde formas, a noite foi um conjunto
laranja-intenso.
Na manhã seguinte, o menino saiu determinado. Ainda
era tudo laranja-angústia: ruas, terra, poeira. O gosto
laranja-amargo na boca. Uma procura. Na mão, um saco laranja e
um visco-garrafa.
O mendigo, estatelado, estava de volta à porta, que agora
era sem rotina.
Estendendo a garrafa, a mão pequena rompeu o silêncio
Toma, pra você moço! O mendigo agradeceu. Deu um gole fundo,
como se para matar uma longa sede.
Instantes passaram e o mendigo se retorceu, babando. A
boca espumava um visco amarelo-ovo e os olhos-vidros-sujos
piscavam sem parar. Sacudiu-se o pobre tarde demais.
O menino, olhando tudo com atenção, virou, saiu devagar.
Depois correu. Um medo do mundo tomou-lhe e ele correu.
Em casa, encostou-se do lado de dentro da porta, o
coração batia. Não sentia culpa. Tinha nas mãos um sentimento
diverso que vinha arrebentando as veias de seu corpo. Era fome,
30
31. ele pensou. De um salto, sua cara de susto desfez-se num sorriso
e uma gargalhada encheu os pulmões e foi ouvida em casa, na
rua, dona de um completo azul.
31
32. Eu, o outro, estava na cama com uma menina. Ambos,
crianças. A menina me repreendia antes do bombardeio. Xingava
com um rosto adulto e dizia Me respeita. Antes que as bombas
caíssem, sufocamo-nos com o travesseiro.
As bombas caíram.
Ela se dissolveu por sob.
Depois, aparecemos com um outro. Ela, adulta, entre
todos nós. Sorria e me apontava, entre dedos, uma cabeça que
era a de uma medusa, sem rosto que fosse seu, sendo outro: o da
menina-mulher já adulta. O outro além de nós, ali, diante, era
entre jovem e velho, rindo e não-rindo para todos e para a
cabeça.
32
33. O lugar era sagrado: uma não-igreja sem cadeiras e um
altar-mor menor. Os não-santos eram entre o azul-marrom. Tudo
num não-escuro e não-claro em que a menina-mulher com rosto
de menina era com a cabeça. Sorriu e olhou-nos seguramente
sem olhar o outro e disse A culpa é minha. Correu para um
não-lugar marrom-azul.
O outro, o outro, o eu e a cabeça correram atrás da
menina-mulher que fazia pela velocidade de seus passos um
ensurdecedor silêncio. Enquanto corria, corríamos entre e o que
saía de um vão-nada lembrava sangue quente: muitas gotas
minúsculas. A cabeça corria louca, sem olhar algum, olhando a
nuca da menina-mulher que por causa da velocidade não deixava
entrever seus acaios cabelos.
Parou de repente num lugar azul-sem-quase-marrom,
mas com marrom e azul. Ela vestia um vestido que só agora podia
ser visto, por isso, tirou-o por sobre a cabeça. Jogou o vestido no
chão ao lado de uma criança cheia de sangue.
O outro ajoelhou perto da criança e, numa prece,
arrancou parte de seu ventre.
33
34. Na mão do outro, o ventre era como sérias serpentes
rosa-lombrigadas. Eram móveis cordas em vermelho-rosa que
aumentavam e diminuíam de tamanho na mão do outro que as
segurava. O rosto do outro já não era o não-velho e o não-novo.
Era calvo, de cabelos pretos e dentes enegrecidos que se abriam
para engolir as serpentes.
Enquanto, lenta, a boca abria entre o azul-marrom, a
menina-mulher riu de cabeça inteira, voltando a cabeça de si para
contra-si. A culpa é minha!
A boca do calvo comeu as serpentes com as mãos ávidas
de vontade, deixando o vermelho-mais-que-rosa escorrer
abundante pelo queixo. Ao mastigar, a boca produzia outro
silêncio quase de vogais. A mão voltava ao ventre e a velocidade
de comer fazia com que já não se visse o que comia a mão, a
serpente e a boca. Era tudo
vermelho-rosa-mais-vermelho-que-mais-rosa.
Eu tirei do bolso um lenço dobrado em quatro que, ao
abrir, virou papel. Nele, o outro que não era o outro, que era o
não-eu, vomitou um vermelho cheio de serpentes. O outro
34
35. vomitou muitos vermelhos cheios de serpentes enquanto a boca
comia a mão que comia as serpentes cheias de vermelho.
A menina-mulher, no azul-marrom, ria alto para e por
tudo. Atrás dela, uma sombra sobre uma escada gritou A culpa é
minha. A cabeça olhou a cabeça, o menino no chão abriu os
olhos: perdeu seus braços. Ele vestia amarelo e azul-marrom,
estava ao lado de um vestido que não existia. Foi o bombardeio.
O menino tinha serpentes que corriam de seus braços para
ligá-los ao corpo, como macarrão com ovos esfacelados e queijo
parmesão. As mãos buscavam os braços e as serpentes só
esticavam.
A mulher veio, então, sem a cabeça e se esfregou no
não-outro: eu. Disse nua Come. O eu abraçou sua cintura com
mãos fortes e o outro comeu por sob a calça. Come. E ele comeu
por sob a calça. A culpa é minha: a mão cheia de serpentes.
Os olhos e o peito do outro pancavam as costas da
menina-mulher de acaios cabelos e por sob a calça fez cair sobre
a mulher serpentes cor de macarrão. A cabeça riu, as costas
acalmaram forte o peito. A menina-mulher virou-se e tomou das
35
36. mãos o lenço de papel, passou-o por sobre o rosto. Era tudo
amarelo-macarrão. Tudo a Grande Fome cheia de dentes brancos.
Era sempre a mesma velha proibida sempre fome, dos
bombardeios.
A fome engoliu com sede a sombra por trás do
marrom-azul. A sombra gritou à mão e a mão gritou do ventre A
culpa é minha. O menino olhava fixo o céu do teto de estrelas e o
amarelo-macarrão cobriu todo o seu rosto. Tudo era
amarelo-macarrão! Até a sombra e a escada e o eu-outro. Como
um pastoso macarrão com parmesão, a linda cor gorda com o
vermelho das serpentes mais-que-rosa. Uma foto
azul-marrom-macarrão!
A menina-mulher de acaios cabelos sorria com fartos
falsos-dentes da cabeça e dizia É a Grande Fome. Come.
O eu-outro comeu e comi a menina-mulher cobertos
todos por um grande travesseiro. Entre as mãos, a
menina-mulher era toda amarelo-macarrão e o peito encostava
calmo nos dentes que a cabeça comia. A Grande Fome.
36
37. O amarelo-macarrão comeu tudo que pôde. Quanto
vermelho-mais-que-rosa! E estrelas do teto!
Come. A culpa é minha. Tudo amarelo-macarrão por sob a
calça.
37
38. De dentro, tem um jeito amarelo que lembra manga. Com
casca, quem diria da manga madura seu amarelo? É
amarelo-manga-sabor-amarelo.
A casca-cega em cores-de-arroz e, sem festa, a saliva
sobra desvairada no constante, entediada de esperar, boiando
sozinha sob o metileno, rindo desesperada-fome da situação. Na
palma da mão, os riscos que acalmam e tampam o sorriso do
fiapo que deixa no dente-pérola quase amarelo-manga, de outro
tom de amarelo, outros sentidos.
Lembra outras manhãs mais grossas, manhãs de ontem.
Manhã na cor-saber: como o amarelo-manga é mais que a cor de
casca sem a casca do amarelo?
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39. Saindo de tudo, da casca, é impossível observar com
cuidado as formas de todas as coisas, suas densidades. Mas é
possível ter-lhes o tecido que palmilha a história e a superfície.
Há, enfim, um toque febril e, no contato, o movimento
vermelho, o azul-fumaça do automóvel, o mundo dodecafônico
sobe da praça: cor! Em contraste ao metileno, às seis da tarde,
em que um forte roxo avança por entre sobre umbrais e olhos, ela
vê a incompletude de tudo fora da casca: o ápice a que um dia
deram o nome liberdade.
39
40. A mulher-amarelo-envelope entra sozinha no
branco-chantili. A tarde parda olha a cena da janela do banheiro
enegrecido onde a luz que erradia é de pêlos claros rentes da
curva-negra divisiva.
Molhada de esperma esbranquiçado, viscoso
branco-chantili, ela se banha na espuma em que entra, desatenta,
com unhas carmim na louça encardida: o arrepio das costas de
quando joelhos repolhudos tocam a água fria, o cheiro de sabão
no branco que se expande por todos os lugares.
Ela não sabe que as cores a esperam por semanas. Às
vezes até por meses, mas ela nunca se banha à tarde. Só o
negro-azulviche da noite aproveita a clara pele de arrepios
40
41. quando joelhos repolhudos abraçam o plexo das águas de
chantili.
O calor do ventre é muito para uma só noite, que se
repete na semana. Mas à tarde, as cores dividem-se em outros
calores para o ventre agüentar o máximo de chantili e de brilho
no cristal da pele, na água fria.
A mulher molha parte das costas, mergulha por completo
todos os seus espessos pêlos, seus grudados-negros-molhados
sobre a carne. Da porta a voz diz Sem susto.
A cor de envelope nas águas da banheira assusta, mas
não vira o rosto para encarar a voz na tarde, respondendo Não
estou pronta.
A voz da tarde sussurra estridente o vento que entra frio
no labirinto Tem pressa. A mulher não tem, no quase branco.
O amarelo-envelope começa a se dissolver alaranjando o
chantili da banheira. Os olhos fechados mostram o viscoso
carmim das pálpebras contra o sol e as unhas na banheira
refletem o carmim da tarde que entra pela janela. O enegrecido
das paredes e o cheiro de sabão se somam indo de, para: através.
41
42. A boca da mulher abre. Brancos sobre brancos sujam-se.
A voz estremece. A voz é só carne.
A voz parece trêmula, à porta, ao reparar em tantos
brancos. Incontida, invade o banheiro e resolve mergulhar nas
cores de envelope. A boca sorri ao ver a voz entrar na água,
arrepiando os pêlos das pernas. A boca mostra o fúcsia das
gengivas, o branco-sêmen dos dentes no branco-chantili. No frio
da água, a cor da voz, enegrecida como a umidade, pesa sobre os
joelhos repolhudos: pressão que mistura. O fúcsia e o
branco-sêmen já dividem iguais o mesmo campo, e o
fúcsia-movente separa o sêmen para a entrada de uma cor opaca,
a cor da voz.
A cor de envelope mistura-se com a cor enegrecida, o
carmim da tarde nas unhas carminiza o enegrecido da parede. O
branco-chantili começa a ter manchas cor de envelope
enegrecido das quais já não se sabe a fronteira. O branco-sêmen
e o fúcsia-movente já estão todos de cor opaca e a curva negra já
é círculo que furta o querer. Os negros-molhados-espessos
escorrem pelo chão do banheiro e em pouco o chão é sob o preto
sob as cores. Dissolvendo-se, a voz é quase espuma e a mulher
tenta usá-la para mais. A mulher pega a voz para si e carrega para
42
43. dentro dos pulmões todas as cores da banheira. Num único lance,
forte em que o carmim sulca rios, em outros brancos mais
opacos, o sabor do urro envia a explosão sistêmica na tarde.
43
44. A mulher-azul via toda a cidade sob seus pés: um mar
emaranhando gentes, buzinas, sirenes, camelôs, tudo sob um
amarelo-fubá de um dia de semana. De pé, na beirada, a
mulher-azul desorientada não sabia bem o que faria com aquele
rio-preto-viscoso lá de baixo ou com o amarelo-fubá.
Deu um passo vacilante até a beira do terraço. Olhou
fixamente o rio-preto: um mundo colorido e viscoso banhado
displicentemente pelo amarelo-fubá. Olhava o viscoso preto e o
roxo-asfixia da alma refletida nas pálpebras fechadas.
O vento aumentava. Era preciso pôr fim e bastava
coragem para que tudo se tornasse parte daquele amarelo-fubá.
Então, bastaria esperar lentamente as cores acelerarem e ouvir o
baque surdo antes do vermelho-quente.
44
45. A mulher-azul olhou novamente o rio-preto-viscoso e
ouviu o zumbido colorido da cidade enquanto era açoitada pelo
vento azul-comfort. Fechou de novo os olhos para o ver o
roxo-asfixia.
Era vazio o vermelho que batia descompassado no peito.
Era vazia a vida que levava, o trabalho repetido e comum, os
ônibus que pegava cheio de densos que não se viam. Era vazio o
gosto da comida que comia na hora do almoço, as horas iguais de
todos os dias. Tudo um rio-preto-viscoso, tudo amarelo-fubá.
Sentia, ali, fazendo algo que era uma nova maneira de colorir-se.
A vontade que rompe o silêncio, o grito que organiza. Ali, com o
vento-comfort no rosto, era livre. Se tivesse a coragem dali a
alguns instantes, seria de outra cor, talvez vermelho
verdadeiramente quente.
A cabeça embaralhava idéias estranhas, rostos, cidades,
formigas, pontos que se agitam num zumbido baixo, regidas por
um vento sem cor. Então, a mulher-azul ergueu a cabeça e olhou
a cidade. Milhares de casas e prédios se acotovelavam no espaço
das montanhas, tudo amarelo-fubá. Todos os volumes se
acotovelavam e não guardavam a mulher-azul, que se jogaria na
coragem de sua existência: a maior das verdades.
45
46. O vento azul-comfort soprou mais forte. As imagens se
montavam confusas. Lembrou-se do primeiro dia de aula, do
primeiro beijo, do casamento dos amigos. Lembrou-se do
primeiro emprego, do primeiro vestido e do primeiro porre, do
cigarro escondido e das noites de frio, sozinha com seu cobertor.
Lembrou-se de que todos os dias, há anos, fazia a mesma coisa.
Que todos os dias se banhava, se vestia, saía e voltava para
dormir. Que aos sábados, longos sábados que não acabavam
mais, assistia à televisão entre um sono e um entre sono. Nada de
telefonemas e que, quando saía com amigos, era sempre igual.
Há anos ela dormia com homens-sem-cor de vez em quando e era
vazio. Homens que ligavam, não ligavam, roncavam ou não. Uns
prometiam o mundo, outros lhe davam o silêncio e ela usava a
todos. Tudo um rio-preto-viscoso banhado por forte
amarelo-fubá.
Fora com essa sensação que ela acordou naquele dia e
que a fez querer mais cores. Era essa a sensação que ela tinha ali
e não queria mais: amarelo-fubá sobre rio-preto-viscoso.
Sorrindo, abriu as mãos e os braços e entregou.
46
47. Viu o céu, a cidade, o rio-preto-viscoso. Tudo mergulhado
no amarelo-fubá.
Durante a eternidade da cor, ouviu uma música, uma
longa melodia que lhe surgia vermelha, talvez vermelha
verdadeiramente quente.
47
48. Aqui é um fechado. Muito fechado. Um fechado sem
fotos.
Um fechado onde não há ela, mas há imagens de vapor
numa parede.
Há pouco sol e a noite louca, desvairada, jogando sombra
na parede e nas imagens de vapor. A noite é perfumada e vem
dividir este fechado em que as imagens se aglutinam na parede.
Não se sai daqui.
Perde-se tudo no quadrado lá de fora, iluminado e caótico
e desgovernado. Quadrado que incomoda muito, cheio de pontas
por todos os lados em que se olha.
48
49. Aqui pode florescer o medo que nunca dorme ou o sol
que há. Medo feito de vermelho-tomate-seco, muito
vermelho-tomate-seco que não é como o das imagens de vapor,
ou de fotografias. Vem do além-sabor, pobre de outros
vermelhos.
Esse medo-tomate-seco lambuza quando começa a sair
das coisas que existem dentro do fechado. Lambuza dedos,
pálpebras, lambuza tudo como se voltasse de um lugar mais
distante que a palavra manchada: vermelho. Medo-tomate-seco
grosso como um caldo, como goiaba espremida.
Aqui o medo-tomate-seco deita. Bate como um pulsar
desgovernado. Não tem. É como um grito de pânico. Não é como
nas esquinas do quadrado. Cresce como o mofo no silêncio e
fede.
O tempo, para o medo-tomate-seco, é caótico e precisa
da noite sem o proibir.
Aqui não cabe o corpo. No fechado, o corpo é os ossos do
medo-tomate-seco.
49
50. O medo-tomate-seco não sabe nada. Se soubesse,
entenderia.
As imagens de vapor se multiplicam nas paredes e tudo
vive em harmonia. Não é preciso ter.
É um fechado em tons de tomate-seco.
50
51. Ando pelos cômodos no labirinto e não acho reflexos. É
antes a marca de todos os antes. Se há milhares de anos um
assentou-se aqui e disse qualquer coisa, cristalizou-se, como o
qualquer coisa de todos que o sucederam.
Não se entra nele. Entra-se, antes, pelo que o antecede,
saindo de outro labirinto. Um sempre dentro do outro, como
caixas mágicas. Nunca se está num só sem estar em todos.
Assim é por quartos que se abrem para quartos que se
abrem para corredores que se abrem para quartos e cozinhas que
se abrem para um corredor improvável que não une. Sem fim
nem começo, como suas largas paredes úmidas. Um cosmos
aberto a todos os outros, cristaliza.
51
52. Também as marcas que não desaparecem. O que sujou
ainda suja, embora a tinta tente fossilizá-lo.
O labirinto é o mesmo. É a vontade condensada
influenciando os novos. Um lugar de muitos fantasmas que
invadem os corredores, escondendo-se como sombras.
Antes de rodar, pensa-se em todos que ele carrega em si,
mesmo depois de edificado. No espectro que se perpetua mesmo
quando transformado, trazendo a antiga fome ou só um cômodo
vazio. O que foi volúpia tenta a cópula. O que dava é o que ali
tenta.
É sempre tudo o que o primeiro trazia, sem desmedidas e
esforços. Sente-se em qualquer parte do labirinto as sensações
misturadas dos antigos, como se carregasse eternamente funções
que espaços desempenharam, independente do novo que ali se
põe.
Sempre todos em um e todos os que foram antes de ser o
labirinto.
52
53. Tudo não tem. Ia pedir para deixar. Sempre seduziu o
vazio, o limpo, o sereno.
No início pareceu agradável, depois, tornou-se um tédio.
Pedia olhar, atenção. Olhava demais.
Depois, não quis.
Era como uma faca. Seu corpo, como uma faca. O
primeiro.
A angústia de saber, como um meio-quarto.
Então, uma faca e um meio-quarto. Tudo morrerá sem
possibilidade de ter. Isso não se vê como o primeiro.
53
54. É assim: eu jogo para você e você devolve. Não, não
machuca não. Um de cada vez, sem pressa, a gente acaba
pegando o jeito. Pega pelo cabo que é mais fácil. Isso. Não precisa
ter medo, não vai doer. Isso, agora joga. Não, com mais força.
Tenta outra vez. Pelo cabo. Joga mais aqui para a esquerda. Isso.
Melhorou, mas manda com mais um pouco de força e desta vez
mira em mim. Tenta jogar nas pontas, aí eu mando para você de
volta. Isso.
54
55. Resolvi. Como? Resolvi.
Estava resolvido. Ele nunca foi de desdizer. Não quero
saber. Resolvi.
Era cidade era frio era tarde era ele era ela era a mesa era
o café era normal, muito normal, muito natural. Há tempos a
discussão entre os dois crescia recheada de longos silêncios.
Assunto delicado. Ela levantou-se, foi à janela. Do seu silêncio, ele
a olhou e não se mexeu, não se levantou. Acendeu um cigarro,
bebeu café.
Estavam os dois num dilema que envolvia receios. Um
dilema resolvido. Problema que não dava mais, a situação
chegara ao caos, não tinham mais paz, aquela era a única saída,
doeria nos dois, ele tentou evitar, ela tentou contornar e ele havia
55
56. resolvido. A resolução explodiu nas mãos do tempo: o pai dele
iria para um asilo.
Casa de Saúde Nossa Senhora das Dores. Um prédio cinza
que cheirava a morrinha e desinfetante, muitas grades cinza
trancando do mundo janelas e portas. Um cofre-cinza. Zumbis
cinzentos magros transladando um mundo de grades. Olhos no
cinza do tempo.
Rua da Consolação 126, Bairro da Graça. Quaresmeiras no
pátio dianteiro, uma portaria de vidro.
O pai dele era um homem de 70 anos e tinha um colchão
de molas. Dormia na sala do pequeno apartamento.
Havia sido resolvido. À noite, ele daria a notícia.
Ela foi para o quarto.
Sentados, pai e filho entreolharam-se distantes como
desconhecidos. O pai, ainda com candura, sentira no ar o tremor
das palavras antes de serem ditas. Pendeu os olhos. Resolvi, pai.
Resolvi.
56
57. Lágrimas rolaram frias, cinzas e silenciosas no ar.
Formavam uma poça no chão. Para quando? Amanhã.
O pai deitou-se cedo. A cabeça branca, cansada,
pousou-se lentamente no travesseiro encardido, quase cinza. Ia
ser a última noite em seu colchão de molas velho dentro do
infinito da memória. Um corpo manteve-se inerte à espera de
alguma cor na aurora.
Nos labirintos do esquecido, o pai viu dois pés cansados
andarem, passo a passo, ao lado dos passos de um menino.
Caminhando na escuridão, o pai sentia a mão do menino crescer,
o passo apertar-se. Os pés cansados já não davam mais conta de
seguir o ritmo louco de um menino-homem que corria agarrado à
sua mão. Dois fantasmas de mãos dadas sofrendo o sorriso do
tempo dentro do frio da noite, num distanciamento que os braços
já não mais suportavam. Na confusão dos caminhos do sonho, o
menino-homem tinha ainda o rosto do menino, mas com braços
longos que puxavam forte o velho pai que já não mais ensinava
como caminhar.
Quando as gotas da noite contaram seis horas, o vulto do
menino-homem foi parado pelo peso do pai que não mais andava
57
58. e, então, o velho ergueu o filho aos olhos. Nesse momento, os
olhos já não eram os da criança ou os do homem. Eram os olhos
frios que vira na hora da notícia. Era como se o menino se
confundisse no homem e o homem se confundisse num rosto
disforme, com quarenta anos, com os olhos para o chão. Um
tempo entre as mãos do pai e os olhos de um desconhecido
desaparecendo nos primeiros raios da manhã.
Aos poucos, a figura ficou translúcida e gota a gota
desfez-se no vapor. Pôs o velho olhando o claro do teto,
acordando do leve sono. Seus olhos se preparavam e
aguardavam, mudos, a partida.
Às sete o café foi posto. Ela não disse palavra. Ele saiu do
banho, sentou-se à mesa. Os dedos ossudos partiam o pão, assim
como seu pai o partia, com os iguais dedos ossudos. Tinha muito
de seu!
Saíram. No caminho, ele pensou em reviver tempos, dizer
palavras soltas, frias como um bom dia, dizer do dia nublado, do
jogo de sábado, de uma visita. Mas calou-se num suspiro.
O pai quase não tinha roupas, emboladas todas numa
sacola plástica de supermercado.
58
59. Bairro da Graça, Rua da Consolação, 126. Uma placa de
ferro sustentava o letreiro: Casa de Saúde Nossa Senhora das
Dores.
Caminharam até a portaria. Ele apertou o interfone. Uma
enfermeira pálida ameaçou um sorriso ao abrir a porta. Entraram.
No corredor, à meia luz, em meio aos muitos vultos cinza
que passavam, o pai olhou com olhos claros os olhos do homem.
Isso me lembra o dia que te deixei na escola pela primeira vez.
Abraçaram-se. Ele sorriu forçado.
Levaram o pai pelo braço para o fim do corredor.
Na rua, à porta do carro, ele soltou umas lágrimas, fechou
os olhos. Ao os abrir, o mundo portou-se cinza, repleto de vultos
que transladavam entre as sombras listradas das quaresmeiras no
opaco da rua.
59
60. Os vizinhos saem das casas, comentam, gesticulam. O
velho não sai de casa há alguns dias. Os cães latem forte, a garoa
engrossa. Há uma semana o velho não sai, não se senta na venda
e não discute futebol. Há uma semana não volta para casa com
um embrulho nos braços ou com uma sacola de pão.
Os vizinhos não sossegam. A garoa impregna. Quando foi
visto pela última vez, o velho subiu as escadas do sobrado com
um embrulho debaixo do braço, fazendo ranger, no longe do
tempo, as tábuas dos degraus.
Nesse dia, o velho, consigo, foi à cozinha, pegou um
caneco de metal velho, pôs água no fogo para preparar um café
ralo como o da esposa. Nas empoeiradas lembranças de sua vida
de erros, o velho caçou no passado o sorriso jovem enquanto
60
61. fazia seu café. Os cabelos negros, pesados nos ombros, os olhos
castanhos atentos ao pó, o corpo suado do calor de setembro e
um vestido de chita solto, largo, que brincava com os movimentos
das pernas firmes da moça.
Ela olhava-o entrar na cozinha, partir o pão, limpar o
farelo das barbas. Sorria ao vê-lo olhá-la, com uma fome restrita,
envolto no vapor do café. Ajeitava com mimo os cabelos, piscava
os olhos, levantava a alça do vestido. Vinha arrastando as chinelas
pelo chão frio da cozinha e lhe roçava as coxas. Fazia brincar o
pano do decote no nariz do velho. Trazia-lhe ali, depois de muito
tempo, naquela cozinha vazia, o perfume mais forte, o gosto do
beijo.
O velho repisava sua caixa de retratos, arrastando o seu
corpo pesado, cansado, preso num terno, para o seu quarto
viúvo, para a penteadeira vazia com seu pó antigo.
Pôs o embrulho na cama, arrastou os espelhos do quarto
pondo-os perto de si. Abriu o paletó pesado, despiu-se. Viu a
esposa escorada na porta: seu corpo jovem vindo e olhando para
ele com um carinho. Entrando no quarto e fazendo o sol invadir a
cortina, arrastando os pés no assoalho, tocando-o no peito há
61
62. tanto esquecido, colando seu corpo no dele, enchendo-o com um
vapor esquisito, esquecido e fazendo com que o velho se
enchesse de vida e com que o quarto se enchesse de sol.
A garoa adensa e os vizinhos se preocupam. Dois homens
discutem urgências, resolvendo abrir a porta. O cheiro de carne
podre desce as escadas sujas, está na sala invadida. Os vizinhos
entram em bandos, os olhos comendo tudo.
Na cozinha, a mesa posta para dois. Pães partidos, uma
xícara antiga e um café ralo, frio, envelhecendo. Da copa, que
dava acesso ao quarto, um brilho estranho ilumina um retrato de
moça. Muitos passos se apressam no assoalho, afoitos, em
direção ao aposento.
Então, a curiosidade sumiu com o barulho dos tacos, com
o cheiro, com a poeira da casa, com as moscas.
Deitado na cama, à vista do povo, o velho dorme refletido
no espelho. Uma cena esquisita para olhos curiosos. De costas, a
cena se emoldura. O embrulho aberto aparece no chão.
62
63. Com os braços cruzados, como num abraço, o velho surge
perdido dentro de um vestido largo, de alças, muito antigo. Um
corpo apodrecendo vestido com um vestido de chita.
63
64. Você vai dançar comigo? Esperei tantos dias, você nunca
chegava. Que dia você vai me levar pra sair? Quando a gente vai
jantar fora? Amanhã? Ah, era tão bom quando a gente saía junto!
Olhar a lua, ficávamos abraçados horas, você está prestando
atenção? Você sempre diz isso. Quando a gente vai voltar a sair e
se divertir? Quando a gente vai sair para dançar outra vez? Você
vai dançar comigo ou não? Você sempre diz essas coisas. Vou
colocar aquele vestido vermelho, bem vermelho, com o decote
atrás. Você quer ver o vestido? Você que me deu o vestido, não se
lembra? Você nunca se lembra. Foi no ano passado, no nosso
aniversário. Era domingo, fazia sol. A gente dançou! Quero tanto
dançar, você me leva? Quando você me leva? Você está me
ouvindo? Você sempre faz essas coisas. E o vestido vai combinar
com os sapatos pretos que você me deu ontem. Você gosta? Você
64
65. nunca diz que gosta. Mas a gente dançará muito, não dançará?
Você vai usar o que? Vai ficar bonito no terno do nosso
casamento? E a gente dançará na rua também? A gente vai poder
dançar aqui na sala, antes de sair, como quando você ia me
buscar pra dançar? A gente podia dançar na cozinha também, a
gente nunca dança na cozinha nem em lugar nenhum! Você podia
fazer isso amanhã! Amanhã? Você precisa me levar pra dançar,
me leva amanhã. Você está me escutando?
65
66. Tarde da noite, o homem abriu a porta do apartamento e
saiu. No corredor, em silêncio, o pé vacilou e a luz, que percebeu
o movimento, iluminou o passo do delito a ser cometido. O
homem caminhou evitando fazer ruído para não acordar
ninguém. Ruído que saía da sombra e que o assustou quando
apertou o botão do elevador.
Os olhos arregalados, o coração batendo forte no peito
apertado, a roupa incomodando como a luz e o ruído, as mãos
transpirando. Quanto mais próximo o elevador, mais o barulho
incomodava. O homem sabia que, ao abrir a porta, a sineta soaria
e seria ensurdecedora e gritante como uma sirene. Ao pensar, o
coração se apertava como se estivesse enfartando.
66
67. O ruído das cordas da caixa metálica que subia era cada
vez mais alto e se misturava ao da respiração do homem,
acelerada. A espera que a porta se abrisse era agora uma agonia
crescente – os olhos fixos no metal fosco, a saliva a faltar. O
barulho do elevador ensurdecedor: a inevitável sirene soou
denunciando a porta que se abria.
De um pulo, como se jogasse seu corpo no fosso, num
precipício, o homem entrou no destino-caixa e fitou-se ao
espelho do fundo do elevador. A barba por fazer, os olhos, os
ossos, a pele, os lábios, os dentes, o silêncio.
O homem fechou as pálpebras apertado, pedindo para
que o elevador começasse a caminhada.
O solavanco da descida denunciou a pouca firmeza de
suas pernas, trêmulas, vítimas do coração que batia vital como
um sapo, uma sombra, um copo d’água.
Foi quando acreditou que o elevador não descia nem
subia. Era o fim da gravidade compacta que o prendia ao chão
metálico. Os pés ali se fincavam por outra força que não a da
Terra, uma força que emanava dele mesmo, centro que gravitava
em outro caos. Tudo, de dentro de um abismo, saía em órbita e
67
68. em agonia e o homem tentava em vão organizar seus
pensamentos. Tudo era uma grande quantidade de cacos soltos
que orbitavam seu rosto no pequeno espaço que o afastava do
espelho. Dois universos se tocavam, elípticos, acelerando e
expandindo. O vidro do espelho já não mais existia, fazendo com
que os cacos que giravam em sentidos opostos se encontrassem e
os choques produzissem luzes e galáxias e estrelas e planetas
ínfimos, mas complexos, e tudo se dilatava, em choque, como no
princípio.
O homem, agora um deus, deslumbrado com o lugar sem
tempo da origem, firmou os olhos no outro centro de gravidade,
no outro que antes o encarava por detrás de um espelho desfeito.
Os deuses gigantescos, centros de dois universos colados e em
choque, encostaram a testa uma na outra e miraram-se. Cada
qual, um ciclope rival.
Era preciso então que este homem – feito primeiro deus e
depois ciclope – pensasse, olhando o único e gigante olho que o
encarava inquiridor. Mas os pensamentos eram confusos,
desordenados, como tudo que girava em várias direções, se
chocando e criando naquele novo e complexo universo que o
rodeava.
68
69. Todas as formas celestes ali já não mais permitiam ao
homem perceber o fim e o início do elevador e ele ouvia as vozes
das civilizações criadas, em dor e agonia, em combates e mortes,
chocando e criando um movimento que ele mesmo já não sabia
interferir, modificar, mandar. Recebia sinais de som, medições
malucas: tudo se tornava cada vez mais complexo e absurdo.
Tudo acontecendo enquanto ele mantinha o olho fixo no ciclope
que o encarava. Um grande olho, translúcido, que refletia como
um grande espelho todo o movimento vital que acontecia atrás
dele.
O homem agora podia ver tudo, em todas as dimensões
sonhadas, todas as formas de luz e viu que era sim possível ver
um objeto de todos os pontos de vista possível, sem recortes.
Tudo era magnífico, sedutor, confuso e assustadoramente
perturbador.
A grandiosidade do movimento mostrava as eras dos
tempos em cada ponto daquilo tudo que girava em torno das
duas pupilas negras que se encaravam com um foco nítido,
naquele movimento louco. O homem então começou a perder o
controle da criação que ele não começara, mas da qual se sentia
responsável. Percebeu o quão era complicado saber de cada uma
69
70. das coisas da criação e sentia, de certa forma, tudo. Tudo era
culpa dele, tudo imperfeito e em movimento, girando, chocando
e criando luz e forma em torno de sua gravidade.
Tudo crescia e ia clareando, ganhando volume e nitidez,
começando a montar um mosaico.
Naquele momento, ele pediu para esquecer e esqueceu,
de forma divinal. Viu-se, como se de fora, em algum ponto do
cosmos que emanava dele: um homem gigante, de pé, no centro
de uma confusão limitada por um cubo de metal prata.
Ali, daquele ponto de observação, via-se só pela primeira
vez. Havia criado todo um universo e era só: um homem só de
testa colada ao espelho de um elevador. Foi então que fechou os
olhos e tudo em torno de si se desfez. De repente, como se
instantâneo, o homem pôde sentir que o elevador descia
suavemente pelas cordas e notou que sua testa doía diante de
um vidro de um possível espelho.
Afastou-se e ao abrir os olhos viu um outro que o
encarava. Já não havia dois ciclopes e os desconhecidos se
contemplavam com frieza, como dois homens comuns. Ia
perdendo a memória do cosmos e agora era como se estivesse
70
71. pela primeira vez na Terra. Era o primeiro homem olhando-se
pela primeira vez na face de um lago, mas ainda cheio das marcas
de todos os homens que o sucederam.
Resolveu desmontar aquela imagem, buscar o que seria
primordial já que era o primeiro dos viventes, completamente só.
Com as mãos, fazia derreter tudo o que ali existia. Os traços e as
máscaras tornavam-se cicatrizes e as cicatrizes tornavam-se outra
coisa, confusa, distinta, que precisava ser também apagada. Viu
todos os homens e todas as mulheres. Todas as etnias e todas as
civilizações. Viu tudo que existiria depois do homem primordial.
Tudo retrocedeu na figura de seu rosto e chegou a um compacto
e inconcebível nada.
Foi possível então ouvir um surdo som de agonia que saia,
gutural, pela boca que não mais existia. Aquele era também o
som elementar, o som antes de todos os homens, antes de tudo:
urros de dor em silêncio, de forma seqüencial e alternada.
Quando o homem acreditou ter chegado ao ponto
máximo depois de tudo, no compacto nada, percebeu que seria
infinda a busca e que nada desapareceria por debaixo do que foi
desfeito, debaixo dos urros e dos surdos berros, dos rostos que se
71
72. entreolharam desfeitos e exaustos por milênios. Tornou a fechar
forte os olhos. Foi aí que percebeu que estava de novo em pé,
num elevador. Ouviu silenciar tudo em volta, o som primordial.
Era agora um silêncio que, pouco a pouco dava lugar ao barulho
das cordas do elevador que descia.
Silenciado e calmo, como se se visse pela primeira vez ao
espelho, o homem vislumbrou a luz. Era a primeira vez: O
resultado de um grande vazio cheio de verdade.
Foi então que o homem assustou-se finalmente com
tudo. Assustou-se ao ponto de soluçar e o soluço derramou um
branco-cal sobre a sua face. Nesse momento, o homem
entendeu.
Ali, vencido e silenciado, ele teve posse do que procurava
por uma vida, sem o saber. Teve posse do que sempre lhe
escapara e que lhe escaparia instantes após aquilo. Mas isso não
importava mais. Estava com a posse. Como quem segura
fartamente água.
Pronto de toda a sua posse, a face retornou ao rosto do
homem, cheia de vitória. Então, ele beijou longamente seu
reflexo no espelho e o choro convulso lhe desceu, carregado.
72
73. As lágrimas saíram com mais força quando fechou
apertado os olhos. Surgiram outros urros que limparam as veias,
sujando-o com uma viscosidade morna, misturada à pele e ao
suor, lavando-o.
Cansado de estar em pé, pesado como se os séculos dos
homens o pesassem as costas, como se a força ancestral daqueles
que entraram consigo naquele elevador o puxassem mais forte
que a gravidade, sabendo que estava cansado de um cansaço de
eras, de um povo inteiro, de toda a civilização humana, de todos
os erros do recomeço imperfeito de tudo que rodeia o universo
mortal, imortal e constantemente inacabado, deitou-se na
posição inercial de um feto.
Abraçado ao seu calor, ele se preparava. Era preciso.
O elevador, enfim, chegou ao térreo e abriu a porta. Uma
luz plena entrou tomando tudo e o homem se levantou. Era
preciso.
Era ele: o homem que iria sair ao mundo?
73
74. Acordou e pegou no armário o melhor terno. Jogado
sobre a cama, o terno já não mais lhe impunha o medo impreciso
que sentia quando olhava atentamente para ele, no armário, há
mais de trinta anos. Olhava o terno, passava-lhe as mãos e não
sabia que, dali a instantes, estaria deitado sobre aquela mesma
cama, vestindo-o, barbeado e com sua melhor colônia, trêmulo
por estar a instantes de colocar o revólver dentro de sua própria
boca.
74
75. Comia pão-sebo com salame todas as manhãs e dormia
de meias para os pés não tocarem os tacos rachados do quarto. O
pão no papel alumínio como a balconista da padaria. Era por
causa do cigarro barato que fumava no banheiro. Desisto, não
tem nada aqui pra fazer, lendo o jornal. Depois me chamam de
preguiçosa, jogando o jornal à distância para não ter que colocar
a mão nele.
Foi ao banheiro e no espelho barato com borda vermelha
ela se ria de dentes largos-sujos de restos de pão.
O quarto era estranho: parecia uma grande revista.
Figuras coloridas de sorrisos e dentes de crianças e tulipas
amarelas e amassadas. Uma cama de madeira escura, um colchão
de espuma fino mostarda-opaco, um lençol xadrez-verde-vestido
75
76. rasgado e encardido, uma rachadura do lado direito,
preta-infiltração, um teto-mancha, uma janela alumínio-gasto
com vidros fosco-gordura.
A cidade: espaço entre dois prédios recheados de janelas
como rosas. Roupas por todos os lados e um
cheiro-maquiagem-desodorante-para-os-pés. Uma penteadeira
sem espelho repleta de anjos-cera ainda com a etiqueta-preço.
A porta amarronzada do banheiro abriu-se e ela saiu de
toalha rosa-menina ao peito, cabelos
cacheados-molhados-shampoo, unhas pintadas e roídas.
Há tempo procurava trabalho e sairá de novo, tonta,
cidade afora, sem muita esperança até o pão-sebo de amanhã.
76
77. Uma ânsia irresoluta em um presente nunca vivido.
Interdita, a possibilidade de mais é sempre uma ausência. Sem o
estar, mas a ausência como a gula.
Sentir o estado incomum de tudo que faz falta, como a
boca entreaberta na noite ou mesmo o caos que consome as
vistas. Em tudo, cores e destroços. Em tudo é ânsia.
Soubesse o presente de tudo, o seu presente em tudo, o
sorriso brotaria da noite, grande, incalculável e insustentável de
tamanha fluidez. E dele, alvo em pétalas, sairia a imagem, a
sem-contorno imagem que criou no ar, em arabesco.
Não mais, em nada. E se nada fosse? Ficou a ânsia na
boca não tocada, na noite não vivida, na memória distante e
empoeirada como um cais. Sem as partidas, tudo é destroço
77
78. inalcançável, distante das mãos e dos olhos, como se no túnel se
desfizesse em mil partículas e as partículas em mais mil pedaços
de poeira e delas em átomos, e nem isso, perdurasse apenas o
movimento ou o rastro dele no vazio.
A gula. A maior das sebes. Sem fronteiras, numa
imensidão que se propaga e que, a cada dia, distancia-se mais e
mais daquela imagem, da forte imagem que sobrou de tudo no
redemoinho. Distorcida, diferente, distante, ela agora tem outro
peso, outra medida, outra textura e não se sabe feita de densa
cor, como outrora. É feita de miragem, uma miragem cinza-ocre,
como uma foto em decomposição em que os rostos vão se
tornando sombra de suas próprias formas.
Nesta distância toda, nem mesmo o som roça o caos.
Afinal, o som é conseqüência de tudo. Sobra a gula que a boca
pede e que a memória já não traz, de turva-sintonia. Não sobra,
na ausência, a branca-fome. Sobra, desesperada, a não-vontade
que poda a potência. Sem potência, tudo se perde e o que vem
de longe, na memória, é um vulto estranho, um insosso sorriso
que um dia pensou ser paz.
78
79. Tem sapatos com os bicos abertos e muitos mortos nos
ombros. Observa todos, com a cabeça mal disposta, e nota que
quase todos são ela mesma em seus muitos outros momentos:
seus mortos-de-si.
Colocados como fotografias ladeadas, ela observa os
mortos no tempo: quanto morreu em muitas faces nas quais não
se reconhece mais e que não consegue efetivamente tocar. Um
mosaico estranho, em uma pouca cor, mas que se apresentam em
multifacetadas outras formas que abandonou, que a
abandonaram, mas que são, em pedaços dela, um outro eu.
No caleidoscópio de rostos, percebe outros, outros rostos
que não são. Desmontados, são a soma que a atropela vida afora
– porque todo contato com o outro é um atropelo.
79
80. Violentos, os outros rostos precisam ser escamados, um a
um, para que ela possa notar a marca que deixaram no
pós-atropelo. Sob a marca de um, outro rosto diferente, de data
não seqüencial. No fim, sobra um conjunto disforme que também
não é seu rosto ou qualquer outro rosto seu abandonado, morto,
mas o de todos os que a antecederam em eras mais imprecisas.
Depois de tantos outros, de joelhos, o peso de todos
sobre ela. Lembra-se de que é hora de cometer outra morte e,
como se desencarnasse, recorda das outras vezes em que antes
de morrer viu os mortos. Sairá outro rosto de tudo, mais leve, que
não notará seus muitos mortos e ela terá, dali em diante, a
sensação de que re-nascer é tornar-se novamente virgem de todo
e qualquer contato. Tudo é sempre virgem para o novo, mesmo
sendo o novo o repetido exercício do presente.
80
81. Algumas questões desligadas: um malbec aberto, um par
de olhos castanhos, uma sexta-feira gorda, ensebada, de difícil
digestão.
O conjunto todo traz cidades, ruas, serras nas manhãs
malucas. É o malbec!, ela pensa. Na foz de todas as vertentes,
tem jeito de dizer o exagero das palavras.
"Ah, se eu pudesse fazer homens e estrelas" no som da
voz agradecendo-a, moça, pelo gostar. Atenções coloridas desses
jeitos loucos das pessoas. É o malbec!, ela pensa.
Dançando nas palavras, ela traz uma cor de passado
menos melancólico que ele. Tudo na música é saudade e não e
dor que tem cor mais leve, sem tanta saudade.
É o malbec!, ela pensa.
81
82. Cometeu um erro que custará caro. Caro além das
medidas. Caro como arrancar das plantas folhas que não mais
trarão a vida-verde costumeira, a vida em fluxo, a vida em seiva –
forma com que a natureza dá vida a todos os mortais.
A forma-vida é seiva, é densa, mais que o tom do dia no
poema acordado, mais que a força inconstante do problema.
Saber: como respeitar e saber que tudo, em tudo, é seiva,
independendo o nome, a cor e a forma. A brincadeira do leite
derramado, do anel que se passou, vidro, vidrilho. A torta carne
cortada pela verdade insalubre da eterna inércia, como um morto
infante, como corpo cansado de gás.
Cometeu um erro maior que a proporção indócil, maior
que a cor indistintamente vermelha da agonia-chocolate. A
82
83. gosma-vida que o mar transmite, cheia de sal e de vida do todo,
tomando e agredindo o interno formato da alma, perturbando a
paz dos contentados. A paz, a inconstante paz, a ilusória paz que
se proíbe com a afirmação da própria paz.
Não mais, porque de tanto, o que era vida em profusão, o
gosto do corpo sobre o asfalto, é erro e sal, cor-serpentina.
83
84. Ela acordou depois de um sonho-cor cata-vento cheia de
nostalgias. Na verdade, cheia de falsas imagens cheias de um
vapor de amor.
Um vapor maior que o vapor comum, como quem é
levado pelo sono às tortuosas curvas do passado que não
aconteceu. Hoje, o passado, em pesados cabelos escuros e em
sorrisos maiores que a eternidade, perfumou-a com a voz e o
gosto nítido do beijo que tantas vezes em sono é de difícil
distinção.
Carregada dessa nostalgia, desses olhos castanhos e
cabelos pesados, era uma criança em manhã de festa. Mas no
meio da madrugada, aos delírios, cata-vento colorido-cor,
84
85. abraçou na noite o corpo de vapor do baile de máscaras. O
sempre estranho retorno do vapor na ante-sala madrugada.
Riram muito, emparelhados pelas colunas do labirinto e a
alegria, cheia do cheiro do sol, carregava líquida a luz da alvorada
que saía daquele imenso sorriso, cheio de abraços e de olhos
apertados, que a memória dela – a que sempre surge depois do
instante – fez prolongar jogando com força a verdade crua na
ausência.
Como carne que reclama a perna abandonada, o pedaço
amarrado em estreitos nós neste sonho reclamou atenção e
trouxe o velho sabor: cor-roxa que esquenta a alma.
85
86. É sempre preciso descarnar a cor – ele dizia sem parar. A
cor-amêndoa do passado em meio à neblina quase branca da
presença. A cor-voz do aveludado verde-creme, como pistache
em estado frio. A cor-azeite-cabelo da cor-forma-derretida, como
os sabores das cores do tempo.
Nessa lógica imaginária, como num caleidoscópio, a
palavra-carne que ele dizia era palavra-carne-silêncio. O silêncio
incomunicável da verve, da voz no escuro: a alegria era em
tons-sóis-carminizantes na rouca-esquerda-voz de detrás do
espelho. A forma nova, repetida, como um holograma, para ele, é
mágica em palavras desmedidas, em formas e sabores do cortar o
pão pela manhã.
86
87. Perseguiu eternamente o perfume, o tom, o toque, a
cor-amêndoa do tempo que retorce as formas e traz, no
incapturável momento eternizado, o ver-melho-mesa, o
ver-melhor de uma segunda-feira. No segundo, sua mão tocou o
passado, no vapor que é mais carne que a carne, no ser que é
mais que o ser. O novo silêncio recheado de palavras trouxe os
olhares, novos e velhos, no amêndoa. O amêndoa da neblina, da
penumbra, da voz que ecoa na noite.
Num átimo de serpente, habitou a agonia do não-tempo
da palavra reservada para mais. A palavra perdida na cor-tempo,
infinito como a consciência aberta ao toque, ao esquerdo formato
do sorriso ao recuar do corpo involuntário.
Juntas, formas e formas são mais a nostalgia agônica, mas
de uma agonia boa, nova, mergulhada como o aroma no café –
ele pensou. Mergulhada na vertigem das cores no sobre-tom
cinza quase ao toque. Tantas condições divididas, sem o abraço
cor-saudade.
No conjunto, o constante-contante, sobrou o farto e a
saudade-até, no além-aquém-cais
87
88. A beleza-passado-menina aparece em sobrancelhas
levantadas de passos de dança, no corpo que cheira a sândalo,
incenso e cores.
Nas perdidas paredes, grossas dessas umidades fartas, a
leveza indomada do passado, suspenso nas sobrancelhas, traz um
tom de castanho, a cor-vertigem das rugas do arqueado da testa,
olhos que vêem de esguia a capacidade compacta do que negou
em ter.
Nos tons-toques de adamascado sabor, faz a
beleza-passado-menina rodopiar sobre-sob as próprias cores. Um
conjunto imutável de sensações que, suspensas no
todo-sobrancelha, chocam como ossos que se partem, como
caixas vazias.
88
89. O bailado das sobrancelhas faz surgir o perfume do
sândalo, cor-damasco, que a mulher carrega agora na ponta de
seus dedos em mãos rabiscadas-cheias de incensos.
Na dobra-sentido, a noite cobre como um soco e um
travesseiro: sufocante travesseiro que teve insônia, marrom-café
sem soluços.
O que sobra é sândalo-sandália e se espalha como
incenso para as sobrancelhas.
89
90. Para ela, não há um perturbador contato no nada.
Quer mãos que se esfreguem no escuro e que, com o
inelutável choque das unhas, arranhe mais profundamente o que
está por trás da carne. Tudo está por trás da carne.
O jazz vive atrás da carne, sujeira-mundo que carrega.
Desde. Esse por trás da carne, do corpo que ela carrega, mobília
que envelhece e que ganha marcas. Não se troca. Troca é outro
problema. A velha troca não existe mais, como relacionamentos
entre fios, com o contato vazio entre pessoas que não mais se
vêem.
O mundo, o entorno e intocado mundo, continua lá, de
fora de todas as coisas que quer tocar, as forte coisas,
mergulhadas em seus profundos silêncios. Não abanam os braços
90
91. e nem pedem abrigo. Não há um real contato, mesmo que a
agonia dos dias a force à empreitada.
Sob os seus pés, o que não esquece. Sobre tudo, o sol que
não mais se sustenta e que reflete o calor no ar em suspensão.
Tudo isso detrás da carne causaria um efeito lento, como
em êxtase. Num bolero lento em que pés se pisam e se arrastam
sem contato. Como o sexo sem a real entrega de corpos e de mais
contatos.
Tudo, em redor, para ela, é leve brisa que não agita as
folhas e o que sobra – nas velhas e tortas retinas – é a lágrima e a
chuva.
91
92. O casal passou parte da noite fazendo um exercício que
há muito não fazia. Arrumou mais ou menos as coisas da casa e
sentou-se para olhar as lombadas de seus livros. Um café quente.
O momento era de fechamento de coisas, de trocas. Tudo o que
traz de novo as muitas histórias, histórias sobre histórias, o que
abre milhares de caminhos.
Um deles remeteu nele à sensação de sentar para olhar
os livros. Nela, a sensação de como a casa era um ícone da
individualidade que não nega a tradição.
Para ele, a casa remetia a uma frase de um amigo,
bêbado, num bar. Para ela, toda casa muito bonita, se olhada
muito de perto, apresentava rachadura.
92
93. A mulher, há alguns dias, disse que procurava casas que
fossem outras vertentes.
O homem, numa aula, disse que a palavra casa era
exemplo de pluralidade de significações. Nas longas e frias
madrugadas, ambos ficavam em férias, sozinhos, sentados,
bebendo café e olhando os livros.
Ler mesmo não os liam. Ali, imóveis, as estantes eram a
Terra inteira sem a mão de alguém que se aventure por tal ou
qual caminho. Distantes, como observadores mudos, viam
sempre mais as coisas todas, os livros, a própria casa.
Ele pensava mais detido nas histórias que os livros teriam
vivenciado até aquele momento, ali, na estante. Ela, nas histórias
que terão para além daquelas estantes, quando serão de tantos
outros, em um destino ignorado, separados e vendidos em
bancas, estocados em alguma biblioteca, herdados por amigos
que também ignoram os destinos de seus livros depois que
passarem por eles. Ele, nas casas que tiveram: as casas por que
passaram até aquela, ela, nas que passarão além desta. Dos
meses que eles mesmos passaram em outras casas, outras mãos.
93
94. Ele, por ignorância, os tinha como coisas além das que ficam nas
estantes. Para ela, cada um, como uma casa.
Essa semana outro livro voltará da rua para casa depois
de seis meses. Mas antes de chegar, outro partiu para breve
estada fora. Um outro chegou depois de anos, de ameaças de
destruição, de esquecimento em outras casas. Ele disse que o
livro veio cheio de outros cheiros, como mulher que se deitou
com outro. Ela pensou que tantos outros, em mais ou menos
tempo, teriam destinos variados por cidades que desconhecia,
mesmo depois de chegarem ali. E sabe-se lá o que causarão?
Marcados de dedos, ambos curvos de outras estantes,
muito cheios de seus livros, rodavam. Não contavam o que viram
do mundo além do que lhes foi impresso como digitais. Além do
que carregam como aquilo possível de se perceber, não menos
intrigante e complexo do que o que se pode tocar. Como casas,
que recebem tantos em tantas épocas.
Não sabem o que a casa recebeu naquela noite e não
saberão o que receberá depois. Como não sabiam nas outras
casas que moraram e muito provável não saberão nas casas que
virão. E de destino ignorado, como o dos livros, que só guardarão
94
95. as digitais por baixo das tintas. E nas digitais outras histórias que
as paredes não contam e que nunca tiveram testemunha e se
perderam, como muitos dos que passaram por seus livros.
95
96. Quatro da tarde de uma segunda-feira de sol de janeiro
quando o homem viu a mulher entrar na livraria. Longa, leve, de
olhos negros, mãos de dedos finos e um vestido com flores quase
pálidas. Ela, com as mãos despretensiosas sobre lombadas de
títulos ignorados, com olhar-ar, numa busca em um mapa imenso
de muitos nomes.
A mulher entrou na livraria como um clarão-luz, como um
quarto fechado. Alheia a tantas pessoas, entrou nas lentes dos
óculos do homem-oblíquo.
Na rua antes da mulher, uma segunda-feira gordo-ruidosa
de carros e ressaca. A confusão humana nas ruas lotadas e portas
vistas através de vitrines, como um cenário colorido, como um
cata-vento.
96
97. A mulher na livraria. Ali, o jardim do vestido translúcido.
Os longos dedos pálidos lentos em estantes, em um compasso
solto no balcão. As unhas com um pouco esmalte e ruídos do
arrasto. A mulher e os livros: perdidos. Solitária, entrava pela
livraria: o olhar.
O homem, ali.
Uma mulher – balconista, secretaria, atendente,
telefonista – ignorada, sem passado, sem identidade, sem cor na
rua. Como uma samambaia ou um rabisco. Uma palavra no
reduto das palavras buscando seus pares, conciliando-se com
seus iguais, achando calor no formato vermelho da letra do
romance na estante. Com o romance aberto diante de si, virou as
costas para os livros e apoiou-se no balcão. Em frente.
Um cabelo preto, em grandes cachos, caía sobre a pele
branca do corpo magro da mulher de traços. Ela passava as
páginas, os olhos em segredos.
O homem via a mulher: encontrou seu princípio? Um
passaporte para voltar ao seu mundo? Viu na mulher a saída para
a anulação, encontrando de novo, felicitando, longos abraços,
97
98. amores? Uma mulher indiferente. Uma mulher que não faz falta?
Tem fibra, som, fundo?
Continuou olhando a mulher que folheava o romance.
Uma sede-sangue subia ao rosto.
O homem raspou a sede-sangue da garganta, tentando
livrar-se. Incomodado, ajeitou-se na cadeira sem achar lugar para
o corpo.
Vibrou alguma forma. A mulher notou. Olhou o homem.
Um frio soprou na nuca dele e as mãos transpiraram, sem
lugar. Olhos negros que o fitavam profundamente, respiração: um
bicho. Sem controle, os olhos trêmulos, muito mais velhos do que
os dela, como uma página de um livro a olhar um leitor.
A mulher fechou o romance e avançou. Os passos
duraram, fazendo aumentar o batimento do coração: um bicho.
No trajeto, três passos.
Ela baixou o livro antes do ataque, baixou a cabeça
fazendo cair os cabelos sobre o rosto, segurou com os dedos o
vestido e se agachou diante dele.
98
99. Mudos, cada qual sentia o cheiro um do outro,
envolvendo. O homem podia ver de perto, como a uma lanterna
mágica.
O coração do homem bateu: o zunido do mundo, um
bicho?
Neste instante, o homem se viu perdido, de mãos pensas.
99
100. O silêncio da avenida o faz olhar para o cão que se senta e
late. É marrom claro, o cão. Tem olhos grandes e desajustados.
Sorri para o cão do outro lado da avenida e o cão late
mais alto, sem sair do lugar.
Passa a olhar para as coisas. Ninguém ali, além dele e do
cão.
Percebe a geometria da avenida e nota que pensaram o
sol da cidade. O sol pensado que nunca bate de frente, nunca
atrapalha.
Vê as cores, o azul, o fundo guiando as veias pretas da
cidade. Só ele e o cão, ali, prontos para a travessia.
Há um profundo silêncio e venta forte repentinamente.
100
101. É quando o cão parece amigável. Marrons, eles aguardam
quietos. Venta mais forte e então atravessar a avenida torna-se
um risco.
Enfim, jogam os corpos contra o preto. Sentem frio nos
ossos, mas se confortam com os olhares.
Quando se aproximam do meio da trajetória, um grito.
Percebem que irão se fundir, chegando à complexa verdade.
Torna a ventar forte: agora vozes.
Antes de tornarem-se outra coisa difusa e imprecisa, o
latido do cão toma conta do espaço do rito.
101
102. Ela sentia falta do sol. Não desse sol praiano que nasce
majestoso e soberano, mostrando ao mundo que ele é a vida em
profusão, mas do sol pálido, aquele que aparece no alto da
montanha numa manhã, entre, sobre, que está nas coisas. Falta
daquela suavidade, como criança.
Ele sentia falta do frio. Aquele frio úmido, que dói os nós
dos dedos, que faz esfregar as mãos uma na outra, ou aquecê-las
na xícara de café. Só nessas épocas entendia o porquê de café
quente pela manhã. O frio fazendo doer o nariz. O dia nascendo
esquentando o resto de nuvem, evaporando o orvalho e dando
ao ar um cheiro-manhã antes do sol aparecer sem força,
acordando o azul-céu do edredom.
102
103. Mas ela sentia mais falta do vento. Sentir o vento.
Sensação de liberdade, os cabelos para trás, o corpo solto. As
roupas coladas à pele e as lágrimas brotando açoitadas pela força,
sem direito a durarem no rosto. Um vento cortante em que
abriria seus braços, querendo tocar os pólos e o sabor da saliva
quente dentro da boca, cortada de frio, que sangra ao menor
sorriso.
Ele acha que o vento tira do chão, que dificulta o passo.
Uiva na esquina da rua, sofre, corre de agonia, foge. O vento
como um bandido que joga atrás de si os objetos que encontra
dificultando a perseguição, de braços abertos e aos saltos.
Ela sentia falta do vento cuidando, dificultando-a,
ciumento, impedindo-a de acabar de ler a página,
despenteando-a como se sentisse saudades, tirando sua roupa
com sede de tocar a pele e feri-la com seu sopro louco mais
delirante.
Para ele, o vento não precisa existir. O vento é dono de si
e pode causar, derrubar o mundo ou levar a vida, esconder a voz
e deixar atrás de si uma tempestade sem fim, com mortos. O
vento cega. Não tem pátria, não tem.
103
104. Às vezes, ela sentia falta de estar ao vento. Solta,
deixando nele o seu passado, deixando-se ser carregada, sem
memória, sem pátria, para o lugar mais longínquo e que não mais
a perturbe. Ser-do-vento. Tentar controlá-lo com as mãos, tentar
ter com ele rédeas curtas e vê-lo se agitar como um cavalo louco
e indomável. Soltar-se nele por inteira e ser como ele, livre, sem
lei, sem regras, sem forma definida, sem boa educação e bom
humor fingido. Ser parte do vento, como era um pouco parte de
todas as coisas.
É das coisas do mundo que ele mais sentia falta. Nada lá
fora dependeria do seu bom comportamento. Nada no mundo
pararia pelo seu mal.
Mas o homem, para ela, era insignificante na sua
existência de erros: precisava do vento. Precisava se castigar
porque era frágil demais diante do vento. Precisa de família
porque era frágil demais. Precisava de leis porque era fraco. O
homem, para ela, tem medo de si mesmo.
O que mais a incomoda é que esses muros não deixam o
vento entrar. Tanto abrigo, tanto esconder! Às vezes, se sentia a
sujeira do mundo. Ali, fechada, não incomoda.
104
105. Queriam muito ser menos que isso. Ser-mais-forte.
Saberem a hora de morrer.
Pensavam sempre que lei era algo em que se acredita. Se
não acreditassem, ela não existiria. Se ela não existia, ela não os
punia. Podiam se punir assim, por fora, sem as leis. A maior lei
eram eles mesmos. Se eles não se puniam por dentro, não
erravam, e mesmo que o mundo os punisse, apontando-lhes os
dedos, eles eram livres e controversos, sem punição.
Queriam, cada qual, estar ao vento. Para ser exato,
queriam estar no vento agora para que no dia em que morrerem
se tornarem parte do vento também. Ser-do-vento,
Ser-mais-forte, sem medos.
105
107. Um apartamento de subúrbio. 17
Era sim, era sim... 25
Como os calcanhares... 28
Era a primeira vez que via... 33
Eu, o outro... 39
De dentro... 45
A mulher- amarelo- envelope... 47
A mulher-azul... 51
Aqui é um fechado. 55
Ando pelos cômodos... 58
Tudo não tem... 60
107
108. É assim: 62
Resolvi. 63
Os vizinhos... 68
Você vai dançar comigo? 72
Tarde da noite... 74
Acordou e pegou... 83
Comia pão-sebo... 84
Uma ânsia... 86
Tem sapatos com... 89
Algumas questões desligadas: 91
Cometeu um erro... 93
108
109. Ela acordou... 95
É sempre preciso... 97
A beleza-passado-menina... 100
Para ela... 102
O casal passou... 104
Quatro da tarde... 108
O silêncio da avenida... 112
Ela sentia falta... 114
109