Trata este estudo de uma reflexão acerca da importância da categoria totalidade em
Marx para pensar a prática profissional do (a) assistente social como forma de
resistência aos influxos da pósmodernidade
e afirmação do projetoéticopolítico
da
categoria profissional
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
Valéria pereira silva
1. APONTAMENTOS PARA A COMPREENSÃO DA RELAÇÃO
ENTRE DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA E ORGANIZAÇÃO
DO ESPAÇO URBANO
Valéria Pereira Silva
RESUMO
Considerando que o trabalho tratase de elemento central na definição dos locais de
moradia da população residente na cidade do Rio de Janeiro. Este artigo tem como
objetivo levantar questões que dão suporte a este tema e dizem respeito ao debate sobre
a relação entre o desenvolvimento do modo de produção capitalista e a organização do
espaço urbano na sociedade moderna. Tecemos considerações sobre a categoria trabalho
e apontamos traços do modo de produção capitalista que se relacionam com o
desenvolvimento da cidade, buscando indicar como as transformações na organização
da produção implicam em alterações na esfera da reprodução social.
Palavraschave: Trabalho, Habitação, Cidade, Modo de Produção Capitalista, Espaço
Urbano.
ABSTRACT
The category work is central elemente to define the places of dwelling of
the population that resides on Rio de Janeiro city. This article pretends to
bring issues that supports the subject and talks about the relationship among
the development of capitalist way of production and the organization of urban space on
modern society. We speak above the category work and point out aspects of the
capitalist way of production that relate with to the development of the city, to show how
changes in the organization of production affect in the sphere of social reproduction
social.
1 APRESENTAÇÃO
No presente artigo objetivamos realizar uma breve discussão sobre o
desenvolvimento do modo de produção capitalista e sua relação com a organização do
espaço urbano na sociedade moderna. Para tanto, trataremos de dois temas
fundamentais: o trabalho e a habitação.
Para tratar este tema consideramos necessário inicialmente afirmar que partimos
da compreensão de que a configuração do espaço urbano e o próprio desenvolvimento
2. 2
das cidades modernas são condicionados pelo desenvolvimento do modo de produção
capitalista. Em nossa leitura a cidade é o espaço privilegiado da reprodução social, e o
desenvolvimento capitalista faz com que o acesso da população a estes meios de
reprodução se faça quase que exclusivamente via mercado. Sendo assim acreditamos
que ainda hoje podemos encontrar uma centralidade do trabalho, uma vez que este se
constitui como principal meio de acesso aos bens e serviços necessários à reprodução
social da classe que vive do seu trabalho.
Este trabalho é fruto dos estudos realizados durante o curso de mestrado do
Programa de PósGraduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, desde março de 2008, onde desenvolvemos uma pesquisa que tem como pano
de fundo a cidade do Rio de janeiro. Esta delimitação se deve ao fato de acreditamos
que a cidade do Rio de Janeiro possui uma configuração espacial que é condicionada
por intervenções urbanas realizadas no decorrer de sua história, e que tiveram um claro
objetivo de segregação sócioespacial daquela parte da população menos favorecida
economicamente, ao mesmo tempo em que buscavase a adequação deste espaço ao
modo de produção capitalista. A população residente há mais de um século vem sendo
excluída dos benefícios da urbanização, social, espacial e economicamente,
notadamente devido ao distanciamento dos locais onde se encontram suas moradias 1
em
relação às maiores ofertas de trabalho e de equipamentos e serviços coletivos.
Assim, acreditamos que há uma profunda relação entre as opções de moradias
desta população e os espaços onde se encontram as possibilidades de conseguir
trabalho. Podemos observar que, em muitos casos, estes trabalhadores, que em
determinado momento históricos tiveram suas moradias deslocados para as áreas
periféricas da cidade, buscam estratégias para residir próximo às localidades onde se
encontram as maiores ofertas de trabalho, especialmente nas áreas centrais, de onde
verificamos um crescente processo de favelização, em determinados períodos históricos,
e mais recentemente, a ocupação de prédios abandonados em áreas centrais.
Sendo assim, tomando como exemplo a cidade do Rio de Janeiro, consideramos
que o trabalho se constitui como elemento central na definição dos locais de moradia da
população residente na cidade, em um espaço marcado por um crescente déficit
habitacional.
1
Ou ao menos onde as intervenções urbanas do início do Século XX pretendiam que estivessem
localizadas.
3. 3
Reconhecendo que esta tratase de uma discussão maior que pretendemos
abordar em nossa dissertação de mestrado, o presente trabalho tem como principal
objetivo debater algumas questões iniciais que dão suporte a este debate. Sendo assim,
inicialmente tecemos algumas considerações sobre a categoria trabalho, para em
seguida apontar alguns traços do modo de produção capitalista que se relacionam com o
desenvolvimento da cidade moderna e sua organização, buscando indicar como as
transformações na organização da produção na sociedade capitalista implicam em
alterações também na esfera da reprodução social, notadamente no que se refere à
cidade capitalista.
2 O TRABALHO ENQUANTO FUNDANTE DO SER SOCIAL
Em um primeiro momento, optamos por nos deter mais especificamente na
análise, ainda que introdutória, da categoria trabalho enquanto fundante do ser social e
protoforma da práxis social, para posteriormente tecermos algumas considerações sobre
as transformações na organização do trabalho do modo de produção capitalista e suas
implicações na vida social.
Desta forma, podemos afirmar que o trabalho é compreendido, em um primeiro
momento na concepção de Lukács, em sua determinação ontológica. Entendese o
trabalho como a relação entre o homem e a natureza, onde o primeiro cria produtos com
o objetivo de satisfação de suas necessidades materiais. Para satisfação dessas
necessidades ele transforma a natureza, tendo como finalidade a criação de objetos que
possuam valores de uso. Sua relação com estes objetos esta vinculada ao quanto lhe são
úteis para manutenção de sua sobrevivência ou de como podem atender a suas
necessidades mais básicas. Dessa forma, o trabalho é considerado como a categoria
central que determina a existência e a reprodução do homem, uma vez que lhe garante
condições materiais que satisfazem suas necessidades imediatas 2
.
“Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por
isso, uma condição de existência do homem, independente de todas as
formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do
metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana.”
(Marx, K, 1988, p 172)
2
K. Marx, O Capital, 1988.
4. 4
O trabalho é considerado por isso o fundamento ontológico da gênese do ser
social, pois a partir dele produzse algo novo com relação ao ser orgânico e inorgânico 3
– ainda que tenha como base a natureza – possibilitando sua superação, e criando um
novo tipo de ser, o ser social. Esta produção de uma nova forma de ser é o que Lukács
vai chamar de salto ontológico, onde o ser passa da esfera puramente biológica para
constituição do gênero humano, imprimindo uma mudança qualitativa do ser em sua
essência, através de sua capacidade teleológica. Contudo, como insiste este autor, o
surgimento do ser social depende da superação da natureza, processo que ocorre através
do trabalho, porém não significando que a natureza desapareça, já que o ser social não
existe sem ela. Apesar disso, conforme se desenvolve o processo de humanização do
homem, a natureza vai perdendo seu papel predominante, dando lugar à vida do homem
em sociedade.
Além disso, ainda que pressupondo esta natureza, o novo ser estabelece relações
com outros homens, através do próprio trabalho, também a fim de satisfazer
necessidades materiais, físicas, biológicas, etc. O ser social passa a ser não apenas uma
relação do homem com a natureza, mas também uma relação do homem com outros
homens, sempre inseridos em determinado contexto histórico. Ao transformar a
natureza, o homem gera novas necessidades e tem de criar novas formas de atendêlas, o
que leva a uma constante transformação e aperfeiçoamento de seus meios de trabalho e
dele mesmo.
Realizase então uma dupla transformação, de um lado ele transforma a
natureza, através de instrumentos, ao produzir objetos úteis, de outro transforma o
próprio homem, em suas relações com o objeto e com outros homens, de onde podemos
compreender que sem ele as atividades humanas não poderiam existir.
Assim, segundo Marx, o trabalho é
“Atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação
do natural para satisfazer a necessidades humanas, condição universal do
metabolismo entre o homem e a natureza, condição natural eterna da vida
humana e, portanto, independente de qualquer forma dessa vida, sendo
antes igualmente comum a todas as suas formas sociais” (Marx, 1988, p
146)
3
G. Lukács, Ontologia do Ser Social, 1979.
5. 5
O trabalho é assim entendido como atividade coletiva, pois requer sempre esta
relação entre indivíduos de uma determinada sociedade, garantindo sua reprodução, e
ultrapassando determinações puramente biológicas.
Ele é desenvolvido a partir de determinadas finalidades postas pelo homem, o
que Lukács vai chamar de préviaideação, como respostas do homem a situações
concretas, demonstrando um modo de satisfazer necessidades qualitativamente
diferentes daquelas desenvolvidas pelos animais. Estas respostas se dão no nível da
consciência e conferem direção às atividades dos homens, constituindose como
elemento central do trabalho, pois é através da consciência que os homens podem ser
capazes de transformar a realidade. Para tanto, há a necessidade de um conhecimento
prévio do objeto e dos meios de trabalho para uma ação efetiva, conhecimento este que
deve corresponder àquilo que é realmente existente e não a simples abstração
individual.
É a capacidade teleológica do homem, particularidade do ser social, que lhe
permite antever idealmente os produtos e modos de fazer do seu trabalho, fazendo com
que ele vá além do agir por instinto e possibilitando um conhecimento da realidade para
transformála 4
. Essa posição teleológica busca, além de transformar o objeto de seu
trabalho, interferir na atividade de outros homens, como ação entre seres sociais que
pretendem convencer uns aos outros a agir teleologicamente. Antunes vai chamar de
posições teleológicas secundárias, tomando a expressão de Lukács, porque possuem um
distanciamento maior em relação ao trabalho, uma vez que este tem como fundamento a
relação homem/natureza 5
. Esta capacidade teleológica que caracteriza o trabalho apenas
pode se realizar na prática, sendo objetivada na ação do homem. Esta objetivação é a
materialização daquilo que foi projetado idealmente pelo homem, transformando em
objeto e que não pode existir sem ele. O trabalho é então relação sujeito/objeto, que se
dá através de determinados meios, instrumentos de trabalho, mas que não deve ser
compreendida como uma relação de identidade, mas sim como uma relação entre seres
ontologicamente diferentes.
Vale a pena observar que não apenas de teleologia é constituído o trabalho, pois
ele depende também de causalidades, condições que fazem como que o objeto, nesta
relação com o homem, assuma uma forma independente dele. Assim como o homem
existe independente do produto do seu trabalho, este produto, uma vez objetivado,
4
K. Marx, O Capital, 1988.
5
R. Antunes, Os Sentidos do Trabalho, p 139.
6. 6
ganha sua própria existência ao estabelecer relações historicamente determinadas em
sociedade. Desse modo, as relações desenvolvidas a partir da criação deste objeto geram
conseqüências que vão além da vontade do sujeito que o cria. Conseqüências estas que
muitas vezes desencadeiam novas necessidades e vão requerer novas formas de atendê
las, impulsionando o desenvolvimento das forças produtivas e do próprio homem.
Vemos, então, que através do trabalho, o ser social se constitui transformandose
e transformando a realidade que o cerca, agindo segundo finalidades teleologicamente
postas, mas que também implicam em causalidade que vão além do alcance de sua ação,
razão ou vontade. Neste processo, que ocorre em uma realidade historicamente
constituída, o trabalho assume sua dimensão genérica, enquanto parte de um todo
existente.
Assim, segundo Marx, o processo de trabalho possui elementos fundamentais
que o constituem: a atividade orientada a um fim (o pôr teleológico), os meios de
trabalho (colocados entre o trabalho e o objeto para transformação deste), e seu objeto.
(Marx, 1988, p. 143)
“No processo de trabalho, a atividade do homem efetua, portanto,
mediante o meio de trabalho, uma transformação do objeto de trabalho,
pretendida desde o princípio. O processo extinguese no produto. Seu
produto é um valor de uso; uma matéria natural adaptada às necessidades
humanas mediante transformação da forma. O trabalho se uniu com seu
objetivo. O trabalho está objetivado e o objeto trabalhado. O que do lado
do trabalhador aparecia na forma de mobilidade aparece agora como
propriedade imóvel na forma do ser, do lado do produto”. (Marx, 1988, p
144)
3 A MERCADORIA ENQUANTO PRODUTO DO TRABALHO DO HOMEM
Consideramos necessário tratar inicialmente da categoria trabalho como
fundante do ser social, porque enquanto produtor de valores de uso, o trabalho se torna
condição da existência humana 6
. Passamos agora a tratar então da mercadoria enquanto
produto do trabalho humano. Desta forma, à concepção de trabalho enquanto
transformação da natureza e fundante do ser social que esboçamos anteriormente,
acrescentamos aquela em que o trabalho é compreendido como produtor de
mercadorias, analisado por MARX.
6
Marx, O Capital, 1988, p. 50.
7. 7
A sociedade capitalista se apóia na contradição entre capital e trabalho,
fundamentada na apropriação privada dos meios de produção, na alienação e na
exploração da classe trabalhadora, objetivando o lucro, sendo a acumulação sua base
objetiva. Neste contexto, o trabalhador possui apenas sua força de trabalho para vender
e garantir sua sobrevivência, ainda que apenas ela seja capaz de criar valor 7
. A produção
é essencialmente voltada para a obtenção de lucros, através da troca de mercadorias, não
objetivando de imediato atender a necessidades humanas essenciais. Contudo, a
mercadoria como produto do trabalho no modo de produção capitalista possui tanto um
valor de troca, quanto um valor de uso, atendendo com isso a necessidades humanas que
se relacionam com a reprodução da força de trabalho, mas também com a reprodução do
próprio capital, uma vez que garante a força de trabalho necessária pra produzir e extrair
maisvalia 8
.
Com isto, podemos compreender que o trabalho possui um duplo caráter.
Enquanto trabalho concreto útil ele é adequado a um fim e seu produto possui um valor
de uso por atender a determinadas necessidades, enquanto trabalho humano abstrato,
ele é dispêndio de força de trabalho e também cria um produto que possui valor de troca
ou valor, a mercadoria.
“O produto de trabalho é em todas as situações sociais objeto de uso, porém
apenas uma época historicamente determinada de desenvolvimento — a qual
apresenta o trabalho despendido na produção de um objeto de uso como sua
propriedade “objetiva”, isto é, como seu valor — transforma o produto de
trabalho em mercadoria.” (Marx, 1988, 63)
Assim, o produto do trabalho humano no modo de produção capitalista é
compreendido como mercadoria justamente por não possuir apenas um valor de uso,
mas por também corresponder a um valor de troca, necessário à reprodução do capital.
Essa mercadoria se valoriza exatamente por ser fruto do trabalho humano, por haver
nela um determinado quantum de trabalho necessário para sua produção. Só é passível
de ser trocada porque possui trabalho humano nela cristalizado. Apenas o trabalho do
7
Sem o trabalho humano o capital não pode ser capaz de se valorizar, contradição própria da sociedade
capitalista.
8
A produção de maisvalia se processa no interior da unidade de produção, sendo caracterizada como um
sobrevalor, um valor a mais que é extraído sobre a força de trabalho durante o processo produtivo. É um
valor criado além daquele que corresponde à mercadoria enquanto valor de uso, mercadoria que possui
um tempo de trabalho socialmente necessário para ser produzida e que equivale ao tempo de trabalho
necessário para a reprodução do trabalhador. A este tempo somase um tempo de trabalho excedente, que
vai possibilitar a extração da maisvalia.
8. 8
homem possui essa característica de criar valor, conferindoo a um determinado
produto, porque o valor de uma mercadoria depende do tempo de trabalho socialmente
necessário para sua produção.
“Tempo de trabalho socialmente necessário é aquele requerido para produzir um
valor de uso qualquer, nas condições dadas de produção socialmente normais, e
com grau social médio de habilidade e intensidade de trabalho”. (Marx, 1988, p.
48)
Deste modo, o que determina o valor de uma mercadoria é o dispêndio de força
de trabalho – trabalho humano, o tempo necessário para sua produção e sua forma
social, por possibilitar uma relação entre os homens dentro da divisão social e técnica
do trabalho. Contudo, esta determinação não nos aparece de forma clara, e acaba por
assumir um caráter fetichizado, onde as relações sociais entre os homens aparecem
como relações entre coisas, na medida em que o trabalho humano nela empreendido não
é ali representado, sendo, ao contrário, encoberto sob a forma dinheiro. Portanto, a
mercadoria
“(...) reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como
características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades
naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos
produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles,
entre objetos.” (Marx, 1988, p71)
Até o presente momento tratamos do trabalho enquanto fundante do ser social,
mas também como produtor de mercadorias. Consideramos necessário tecer estas
considerações, ainda que brevemente, justamente porque acreditamos que não é possível
falar do modo de produção capitalista ou da cidade moderna sem passar pela concepção
de trabalho que está presente nesta sociedade. Poderíamos supor que ao falar de acesso
aos bens necessários para reprodução social estamos tratando, de certa forma, do
próprio produto do trabalho humano, seja enquanto coisa útil, na medida em que
efetivamente deve atender a necessidades humanas, seja enquanto valor de troca, por se
realizar através de relações de consumo, mediatizadas pelo dinheiro e que mistificam as
relações entre os homens.
“Uma sociedade não pode parar de consumir nem de produzir. Por isso, todo
processo social de produção, encarado em suas conexões constantes e no fluxo
contínuo de sua renovação, é, ao mesmo tempo, processo de reprodução.
9. 9
As condições da produção são simultaneamente as da reprodução. Nenhuma
sociedade pode produzir continuamente, isto é, reproduzir, sem reconverter, de
maneira constante, parte de seus produtos em meios de produção ou em
elementos da nova produção.
(...) Se a produção tem a forma capitalista, também a terá a reprodução. No
modo capitalista de produção, o processo de trabalho é apenas um meio de criar
valor; analogamente, a reprodução é apenas um meio de reproduzir o valor
antecipado como capital, isto é, como valor que se expande”(Marx, 2008, p.
661)
4 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CIDADE MODERNA E O MODO DE
PRODUÇÃO CAPITALISTA
Neste momento teceremos alguns comentários sobre a forma como entendemos
a cidade moderna e suas relações com o desenvolvimento do modo de produção
capitalista.
Compreendemos o processo de urbanização como forma de divisão social do
trabalho que, segundo Marx, “é condição de existência para a produção de
mercadorias”, onde se processa a divisão da produção em diferentes esferas
profissionais, ou por gênero, idade, famílias, etc.. Tratase da divisão social do trabalho
que, em sua concepção, é característica de todas as sociedades e que vem para dar
suporte a espécie humana. A divisão social do trabalho difere da divisão técnica do
trabalho, porque esta última se refere ao processo de produção no interior da fábrica, ao
parcelamento das tarefas no processo produtivo e se encontra no modo de produção
capitalista.
“A divisão social do trabalho divide a sociedade entre ocupações, cada qual
apropriada a certo ramo de produção; a divisa pormenorizada do trabalho
destrói ocupações consideradas neste sentido, e torna o trabalhador inapto a
acompanhar qualquer processo completo de produção. No capitalismo, a divisão
social do trabalho é forçada caótica e anarquicamente pelo mercado, enquanto a
divisão do trabalho na oficina é imposta pelo planejamento e controle. Ainda no
capitalismo, os produtos da divisão social do trabalho são trocados como
mercadorias, enquanto os resultados da operação do trabalhador parcelado não
são trocados dentro da fabrica como no mercado, mas são todos possuídos pelo
mesmo capital”.(Braverman, 1977, p. 72)
Apreender a cidade como forma de divisão social do trabalho implica em
reconhecermos sua especificidade, uma vez que sua relação com o desenvolvimento do
capitalismo não pode ser entendida de forma direta, como se fizesse parte da divisão
10. 10
técnica do trabalho, na unidade de produção. Esta característica da cidade lhe confere
uma aparente autonomia em relação ao modo de produção capitalista, justamente
porque a divisão social do trabalho é anterior a este tipo de sociedade. Contudo, não
significa que a cidade e o modo de produção capitalista estejam dissociados, mas, ao
contrário, o segundo apenas pôde se instalar e melhor se desenvolver na cidade devido
ao grau de desenvolvimento da mesma.
Assim, reconhecemos a cidade moderna como o lócus privilegiado para as
transformações ocorridas com o desenvolvimento das forcas produtivas, no seio da
sociedade capitalista, e não apenas como esfera do nãotrabalho, ainda que se constitua
como o lugar da reprodução social. Em oposição ao campo ela constitui uma sociedade
concentrada e não dispersa. Significa reconhecer a cidade como
“(...) o lugar das metamorfoses e dos encontros, o espaço teatral que mistura o
ilusório e o real, que simula a apropriação (onde a apropriação aparecendo
como alienação constitui o ‘direito a cidade’) – onde enfim o capital vitorioso
parece ter descoberto o trabalho humano como fonte da riqueza... “ (Lefebvre,
2001, p 63)
Assim, acreditamos que a cidade moderna seja o pano de fundo para as
transformações ocorridas na sociedade capitalista, sendo considerada o lugar
privilegiado para a produção, a troca e o consumo, o lugar da aglomeração dos meios de
produção, da população e do próprio capital. A cidade é o espaço onde necessário para a
produção de mercadorias, mas é também o lugar onde os homens se relacionam uns
com os outros. Segundo Lojkine, a cidade se caracteriza porque há
“(...)de um lado, a crescente concentração dos ‘meios de consumos coletivos’
que vão criar pouco a pouco um modo de vida, novas necessidades sociais; de
outro, o modo de aglomeração específica do conjunto dos meios de reprodução
do capital e da força de trabalho que se vai tornar, por si mesmo, condição
sempre mais determinante do desenvolvimento econômico.”(Lojkine, 1997, p.
146)
No modo de produção capitalista a aglomeração é potencializada enquanto
concentração dos meios de produção e de troca, fazendo com que esta cidade venha a
ser o lugar onde melhor se desenvolvem as condições gerais da produção capitalista,
que, segundo Marx, são os meios de comunicação e transportes, mas é também o lugar
11. 11
onde se encontram os equipamentos e serviços coletivos, necessários a reprodução da
forca de trabalho (Lojkine, 1997).
As condições gerais da produção capitalista, consideradas na época de Marx
como os meios de comunicação e transportes, hoje também podem assumir uma outra
forma com o desenvolvimento de novas tecnologias que facilitam e potencializam a
troca de mercadorias e, conseqüentemente, a acumulação capitalista. Estas condições
não atuam diretamente sobre o processo imediato de produção, que ocorre no interior da
fábrica, mas prolongam o processo de produção para a esfera da circulação, lhe
oferecendo suporte e caracterizando o processo ampliado de produção. Contudo,
conforme se desenvolvem as forças produtivas deste modo de produção, também se
desenvolvem as condições gerais da produção, ainda que isto não ocorra de forma
direta. Os meios de comunicação e transporte são constantemente revolucionados de
forma a atender as necessidades de circulação e expansão do capital. Para que empresas
capitalistas possam se estabelecer em determinada localidade é necessário um certo
nível de desenvolvimento urbano que garanta condições favoráveis a acumulação. Basta
compreender que as indústrias se localizam em espaços dotados de infraestrutura
necessária para seu bom funcionamento, onde, por exemplo, estejam instaladas vias de
circulação que garantam o escoamento da produção ou onde exista um maior número de
mãodeobra disponível.
“Como o capitalismo foi (e continua a ser) um modo de produção
revolucionário em que as práticas e processos materiais de reprodução social se
encontram em permanente mudança, seguese que tanto as qualidades objetivas
como os significados do tempo e do espaço também se modificam.
(...)
A troca de mercadorias materiais envolve a mudança de localização e o
movimento espacial. Todo sistema complexo de produção envolve a
organização espacial(...). Vencer essas barreiras espaciais custa tempo e
dinheiro. Por conseguinte, a eficiência na organização e no movimento espaciais
é uma questão importante para todos os capitalistas”(Harvey, 2007, 209)
Com isso, alem de considerar a cidade como palco para estas transformações,
consideramos que sua organização em grande parte é condicionada pelo próprio
desenvolvimento do modo de produção capitalista, sendo ao mesmo tempo o espaço
onde se processam estas alterações, mas também sofrendo diretamente interferências
deste processo. Isso porque, as transformações no processo produtivo implicam em
alterações na vida social, uma vez que exigem novas condições de reprodução da forca
12. 12
de trabalho, onde novas necessidades são criadas e o consumo tornase a forma através
da qual a classe trabalhadora deve se reproduzir.
Estas transformações impactam diretamente na vida da população que reside na
cidades, notadamente podemos nos referir ao caso da cidade do Rio de Janeiro. Novas
condições de existência são estabelecidas em função do desenvolvimento urbano.
Novos padrões de consumos são criados, assim como se busca uma adequação do
espaço que possa garantir maior rentabilidade para o capital. Para que isto ocorra,
determinadas áreas são eleitas como privilegiadas para potencializar a acumulação por
facilitar a concentração de capital ou por possibilitar um escoamento mais acelerado da
produção.
Neste contexto, as necessidades dos trabalhadores são deixadas em segundo
plano, e intervenções urbanas são realizadas por parte do poder público, ou com
incentivo privado, de forma que contribuam para garantir que aquela parcela da
população com menor poder aquisitivo resida em localidades também com menor
potencial produtivo e menos valorizadas economicamente.
Certamente não podemos considerar estes fatores isoladamente. Contudo,
definitivamente tratase de uma realidade que salta aos olhos. Esta população, em sua
maioria, passa a residir em lugares que adquirem grande concentração populacional
associada a baixos investimentos em infraestrutura e poucas ofertas de equipamentos e
serviços coletivos necessários para sua reprodução.
Distantes dos espaços onde se encontram as maiores ofertas de trabalho, muitas
vezes as melhores, parte desta população vai buscar formas alternativas de residir
próximo ao seu local de trabalho: em muitos casos são favelas ou ocupações irregulares
como no caso do Rio de Janeiro, especialmente em sua área central. A oferta de
moradias em uma cidade marcada por um grande déficit habitacional é cada vez mais
precária, assim como a situação desta população que busca formas alternativas de
moradia.
Desta forma, objetivamos com este trabalho apontar sucintamente como as
transformações ocorridas no modo de produção capitalista impactam na configuração do
espaço urbano, compreendendo as relações entre trabalho e cidade. Isso porque
acreditamos que estas transformações implicam em alterações na esfera da reprodução
social e, do mesmo modo, em novas formas de organização do espaço que interferem
diretamente na vida dos trabalhadores.