A violência doméstica surge como resultado das transformações sociais que alteraram os papéis de gênero. Muitas mulheres continuam em relacionamentos abusivos por dependência financeira ou psicológica do parceiro, ou por repetir padrões aprendidos na infância. O trabalho busca entender os fatores que levam a mulher a escolher parceiros que a maltratam.
A violência doméstica e a escolha do objeto feita pela mulher
1. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A ESCOLHA DO OBJETO FEITA PELA MULHER
Desde os tempos mais remotos a sociedade se caracterizou pela soberania do homem
sobre a mulher, enaltecendo uma sociedade machista, uma cultura do poder masculino e da
submissão feminina, esculpindo uma cultura de dominação do homem sobre a mulher.
Associada à questão do empoderamento masculino pela força, pelos dotes físicos, a
questão de sua competência intelectual também foi enfatizada ao longo dos séculos: ao
homem sempre coube o lugar daquele que é capaz de suprir as necessidades não somente
físicas mas também como o único capaz de prover tais necessidades.
Desta forma, à mulher sempre coube o papel “secundário” de reservar-se aos
domínios do lar, cuidar das atividades domésticas, zelar pelos filhos e esperar por seu marido
para que pudesse satisfazer as suas necessidades, não só de alimentar-se como também de
vestir-se e principalmente, sexuais.
Satisfazer o homem era a princípio sua principal obrigação, e todas as demais
ocupações do seu cotidiano se dirigiam a um senhor que deveria ser agradado e estimulado,
para que pudesse dar continuidade ao seu papel de mantenedor da vida familiar. Seu desejo
era o desejo de seu senhor: o marido.
Ao longo dos séculos e principalmente na segunda metade do século XX esta realidade
começou gradativamente a mudar, a mulher começou a assumir um papel social de maior
ênfase e destaque, saindo do espaço do lar e avançando para outros espaços, ocupando
funções em empresas, construindo um novo perfil de mulher para adentrar o novo século.
Tais mudanças foram sentidas em todas as ramificações da sociedade, principalmente
no âmbito familiar, pois a mulher até então submissa e silenciosa, começou a lançar mão de
seus recursos intelectuais, começou a utilizar-se de sua força, de suas habilidades para
começar a construir uma nova identidade, não mais submissa e silenciosa, mas uma identidade
de sujeito de sua própria razão e por que não dizer de seu próprio desejo.
A sociedade masculina, sob cujos olhares a mulher sempre estive como objeto de
desejo e prazer de um lado e de outro lado como serviçal, separada pelo papel que ocupava na
vida destes homens – como a prostituta, aqui entendida não no sentido pecuniário da palavra,
mas pela forma como são separadas as mulheres para o sexo e para o casamento, e a rainha
do lar, aqui entendida como a mulher de moral indiscutível, com quem se escolhia casar –
agora é forçada a abrir-se ao sexo frágil , impotente e por muitas vezes incapaz e a reconhecer
a legitimidade de suas ações, de suas escolhas e de suas possibilidades.
Valendo-se de suas habilidades e de sua força, a mulher do século XXI, tem um perfil
diferente da mulher do século XX, porém, evidentemente ainda é possível reconhecer os
traços desta sociedade machista em todos os ambientes e de formas diversas: salários
desiguais, possibilidades desiguais, posições desiguais, não na medida das desigualdades, mas
para muito além delas.
A partir de todas as mudanças no cenário social, o lar, espaço antes reservado à
conjugalidade, passou a ser também o espaço da violência e do abuso. De um lado, a mulher
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2. para a qual a sociedade lança apelos indeléveis à conquista da liberdade, dos direitos e de
outro o homem a quem se dirigem apelos de sustentação da soberania outrora inquestionada.
Que dizer daqueles homens cujas ordens não são respeitadas? Que dizer daqueles
homens cujo domínio não é absoluto? Como manter a mulher escolhida sob sua égide e
controle?
À mulher são apresentados questionamentos: Por que se manter nesta união sem
prazer? Por que permanecer com este marido? Por que não viver de forma independente?
Enfim, numa disputa de forças, homem e mulher se digladiam em casa, cada um a seu
modo tentando sustentar o seu espaço, o seu desejo ou o sua angústia.
A violência doméstica surge como um fato não novo, porém como um sintoma destas
transformações sociais que propõem mudanças nos papéis e nas relações de gênero.
A mulher, apesar de todas as transformações citadas, mantém-se no enigma.
Com as oportunidades que se abrem, com suas habilidades e potencialidades
evidenciadas pela sociedade que já a reconhece, não sem restrições, mas reconhece capaz de
assumir as rédeas de sua própria vida, de suas próprias escolhas e de seu desejo, a mulher se
mantém numa posição de subordinação e vitimização com relação ao homem.
Nos casos de violência doméstica que envolvem relacionamentos afetivos entre
homem e mulher, observa-se uma angústia da mulher com relação ao sofrimento que lhe é
imposto, ao mesmo tempo em que é possível perceber seu gozo em manter-se na relação
conflituosa, ao ponto de dirigir-se aos órgãos públicos competentes para desdizer suas
desventuras com aquele caso amoroso.
Seus relatos são extremamente dolorosos, com detalhes com requintes de crueldade,
e apesar disso, num dado momento a fazem rir e dizer: “_ Mas ele é bom! Foi apenas ciúme,
brigas de marido e mulher!”
Naturalmente, entende-se que são inúmeros os fatores que favorecem tais atitudes,
como a dependência financeira, a dependência psíquica, os filhos, o medo, o tradicionalismo,
entre outros, porém, concebe-se que dentre todos os fatores que contribuem para a
permanência da mulher numa relação conflituosa, a mais grave é a dependência psíquica.
Como no passado em que o desejo da mulher era satisfazer o desejo do homem
escolhido, ainda hoje, nos parece visível e notório que seu gozo está em se colocar como
objeto de gozo do outro, ainda que este gozo lhe represente a dor e a morte.
Percebe-se ainda que grande parte das mulheres que conviveu com a violência
doméstica na infância, sinalizando uma repetição, um desejo de colocar-se no lugar de gozo do
homem escolhido, que poderia nos remeter ao conflito edípico.
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3. O desejo pelo pai que se mostrou agressivo, a fará escolher um parceiro que a permita
experimentar o gozo sentido pela mãe quando esta apanhava. Justifica-se a repetição através
das gerações.
Questiona-se ainda, nos casos onde não houve violência vivida na infância, como
justificar tal escolha? Por que muitas vezes, ao se desvencilhar do objeto amoroso que lhe
impungiu a violência, a mulher escolhe outro objeto amoroso que novamente lhe fará reviver
o sofrimento da violência?
Tal como Freud postula que as duas condições para a escolha do objeto feita pelo
homem são a existência de uma terceira pessoa prejudicada e o amor à prostituta, quais
seriam as condições de escolha de objeto feita pela mulher?
“O que quer uma mulher?” como sinaliza Serge André é o objetivo deste trabalho
monográfico, o que deseja, ou que estrutura a faz desejar o homem que a maltrata e violenta?
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