1. A identidade negra na Comunidade do Quilombo Mata Cavalo está ancorada na "terra e memória" de seus ancestrais escravos.
2. As terras doadas em 1883 criaram um modo de vida comunal e laços de reciprocidade, reminiscências da diáspora africana.
3. Após mais de 120 anos assentados no local, os descendentes dos escravos ainda resistem à pressão por suas terras e lutam para preservar sua memória afro-referenciada.
Dicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim Rangel
Quilombo mata cavalo
1. i
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO – UFMT
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS – ICHS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
HISTÓRIA, TERRITÓRIO E FRONTEIRAS
QUILOMBO MATA CAVALO:
TERRA, CONFLITO E OS CAMINHOS DA IDENTIDADE NEGRA
SILVÂNIO PAULO DE BARCELOS
Orientador: Prof. Dr. Marcus Silva da Cruz
Cuiabá/MT
Março/2011
2. ii
QUILOMBO MATA CAVALO:
TERRA, CONFLITO E OS CAMINHOS DA IDENTIDADE NEGRA
SILVÂNIO PAULO DE BARCELOS
Dissertação apresentada à banca de defesa do
Programa de Pós-graduação Mestrado em História
do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Federal de Mato Grosso, para a
obtenção do grau de mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Marcus Silva da Cruz
Cuiabá/MT
Março/2011
3. FICHA CATALOGRÁFICA
B242q Barcelos, Silvânio Paulo de.
Quilombo Mata Cavalo: terra, conflito e os caminhos da identidade negra. –
2011.
ix, 211 f. : il. color.
Orientador: Prof. Dr. Marcus Silva da Cruz.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de
Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em História. Cuiabá,
2011.
Bibliografia: p. 192-195.
Inclui anexos.
1. Escravidão – Mato Grosso – História. 2. Identidade negra. 3. Quilombo
Mata Cavalo – Mato Grosso. 4. Identidade quilombola. 5. Quilombo –
Identidade social. I. Título.
CDU – 94(817.2)
Ficha elaborada por: Rosângela Aparecida Vicente Söhn – CRB-1/931
4. iii
QUILOMBO MATA CAVALO:
TERRA, CONFLITO E OS CAMINHOS DA IDENTIDADE NEGRA
SILVÂNIO PAULO DE BARCELOS
Dissertação de mestrado avaliada em 05 de Maio de 2011
Banca examinadora
________________________________________
Prof. Dr. Marcus Silva da Cruz
Programa de Pós-graduação Mestrado em História – UFMT
Presidente
________________________________________
Prof. Dr. Paulo Staudt Moreira
Programa de Pós-graduação em História – UNISINOS
Examinador externo
_________________________________________
Prof. Dra. Leonice Aparecida de Fátima Alves
Programa de Pós-graduação Mestrado em História – UFMT
Examinadora interna
_________________________________________
Prof. Dr. Ernesto Cerveira de Sena
Programa de Pós-graduação Mestrado em História – UFMT
Suplente
5. iv
DEDICATÓRIA
Aos meus queridos netos Gabriel, Thor,
Ohana e Helena, mestres incondicionais do
companheirismo e da alegria.
6. v
AGRADECIMENTOS
A Deus, sempre presente.
Ao Professor Dr. Marcus Silva da Cruz, pelo profissionalismo, segurança e amizade
demonstrados em todos os momentos da nossa pesquisa, revelando, para além do exercício da
orientação, um profundo respeito ao processo da construção de saberes.
À Professora Dra. Leonice Aparecida de Fátima Alves, por sua simpatia e desvelada
dedicação à leitura de nosso trabalho, contribuindo de forma inestimável para uma nova visão
acerca da comunidade do Mata Cavalo.
Aos nossos pares acadêmicos, companheiros na gratificante jornada em busca de
conhecimentos, com os quais compartilho essa história.
7. vi
Resumo:
A identidade negra na Comunidade de remanescentes do Quilombo Mata Cavalo, localizada
no município de Livramento, em Mato Grosso, está ancorada conceitualmente a dois pilares bem
definidos: “terra e memória” dos escravos da Sesmaria Boa Vida, seus ancestrais. As terras que
foram doadas por D. Anna da Silva Tavares a seus escravos, forros e cativos, em 1883, foram
responsáveis pela própria origem desse Quilombo, criando-se um modo de vida baseado nas relações
de reciprocidade e trabalho comunal. Reminiscências do imaginário fértil e da herança escrava
largamente difundida entre os povos negros na diáspora. Por licença do acaso e da fortuna, já
proprietários das terras que bem conheciam, coube-lhes a tarefa maior de expandir seus ideais de
liberdade reterritorializando aquele espaço como um lugar de negros, concebido a partir do
intercâmbio das memórias e das experiências coletivas. Assentados naquela localidade há mais de
cento e vinte anos, os descendentes dos escravos resistem, ainda hoje, à pressão de alguns fazendeiros
daquela região pela disputa em torno da sua propriedade. A questão quilombola, surgida a partir da
Constituição Federal de 1988, possibilita pelas vias jurídicas acessar novas formas de lutas por suas
terras, ao mesmo tempo em que contribui para o surgimento de dissensões internas no Mata Cavalo.
Essa alternativa equivale para os que lá permaneceram, enfrentando toda sorte de violência e conflito,
a negação de sua própria história. Paradoxalmente, os remanescentes envolvidos diretamente na luta
pelas terras, como protagonistas sociais dessa trama singular, também se apropriam do conceito
“quilombola” buscando um possível desfecho favorável ao processo jurídico em trâmite na Justiça
Federal. Desta forma, em pleno século XXI os integrantes dessa comunidade tradicional lutam pela
preservação de uma memória afro-referenciada enquanto sonham conquistar o reconhecimento do seu
espaço primordial, um espaço de negro, numa sociedade marcada por interesses difusos e pelo estigma
da globalização.
Palavras-chave: Terra, identidade negra, tradição e diáspora.
8. vii
Abstract:
The specifically black identity in the remnants Comunidade de remanescentes do Quilombo
Mata Cavalo, located in the town of Livramento, in Mato Grosso, are anchored conceptually well-
defined two pillars: “land and the memory” of Sesmaria Boa Vida slaves, his ancestors. The lands that
were donated by D. Anna da Silva Tavares liners to their slaves and captives in 1883 were responsible
for their own source of Quilombo, creating a way of live based on relations of reciprocity and
communal work, reminiscent of the fertile imagination and the legacy of slavery widespread black
people in the diaspora. Why leave to chance and the fortune as owner of the lands they knew well, it
was up to than the task of the expanding the higher ideal of freedom reterritorialized that space as a
place for black, designed from the exchanged of memories and collectives experiences. Settler in that
area to more then one hundred and twenty years, the descendant of slaves to resist, even today, to
pressure from farmers in the region by the dispute over its ownership. The question maroon, arising
from the Constitution of 1988 provides legal access routes for new ways of fighting for they lands,
while contributing to the emergence of internal dissent in the Mata Cavalo. This alternative is
equivalent, for those who remained in those lands facing all sorts of violence and the conflict, denial
of they own history. Paradoxically, those remaining directly involved in the struggle for lands as
protagonists of social weft singular, also appropriated the concept of “maroon” seeking a favorable
outcome to the possible legal proceedings underway in the Federal Court. Thus in the XXI century the
members of the community traditional fight for the preservation of a memory African-referenced
while they dream to win recognition of their primordial, an area of black in a society marked by
diffuse interest and the stigma of globalization.
Key-word: Earth, black identity, tradition and diaspora.
9. viii
LISTA DE FIGURAS E TABELAS
Página
Imagem 1. Engenho na residência de Antonio Mulato..........................................03
Mapa 1. Localização da Fazenda Cocais.................................................................72
Gráfico 1. Atividades produtivas área central no lustro 1790/94...........................81
Gráfico 2. Dados estatísticos do índice de retração demográfica da
população escrava no ano de 1872..........................................................82
Imagem 2. Cópia do original da página 42, livro da Câmara de
Livramento.............................................................................................102
Mapa 2. Planta da Sesmaria Boa Vida/Mata Cavalo............................................104
Mapa 3. Perímetro da área do Mata Cavalo, revisado.........................................105
Tabela 1. Quadro socioeconômico do Mata Cavalo..............................................133
Gráfico 3. Renda familiar........................................................................................134
Gráfico 4. Grau de alfabetização............................................................................134
Gráfico 5. Religiões..................................................................................................136
Imagem 3. Detalhe da festa da banana quilombola..............................................147
Imagem 4. Rosa Domingas de Jesus e seu neto.....................................................164
Imagem 5. Rosa Domingas de Jesus recepciona membros do
Fundo Canadá.......................................................................................169
10. ix
SUMÁRIO
Página
1. INTRODUÇÃO...........................................................................................................01
2. Capítulo 1: ESCRAVIDÃO RACIAL DA ERA MODERNA........................... 10
2.1 Escravidão e modernidade..................................................................................... 11
2.2 Escravidão racial: uma contradição da modernidade.........................................16
2.3 Escravidão no Brasil................................................................................................23
2.4 Escravidão em Mato Grosso...................................................................................34
2.5 Escravidão no Mata Cavalo....................................................................................41
2.6 Remanescentes de quilombo: Conceitos................................................................42
2.7 A Política dos “homens bons”................................................................................45
2.8 No centenário da abolição, novas possibilidades................................................. 48
2.9 Identidade quilombola.............................................................................................50
3. Capítulo 2: TERRAS CATIVAS:............................................................................58
3.1 Sesmarialismo no Brasil.........................................................................................61
3.2 Mata Cavalo: Origens............................................................................................64
3.3 A Carta de Sesmaria, 1751.....................................................................................66
3.4 Do “auto de medição e posse da Sesmaria Boa Vida”. .......................................69
3.5 Inventário de Custódia de Arruda e Silva........................................................ ...74
3.6 Testamento de Ricardo José Alves Bastos...........................................................75
3.7 Inventário de Ricardo José Alves Bastos.............................................................78
3.8 As declarações de vontade de D. Anna da Silva Tavares............................... ...85
3.9 A doação da Sesmaria Boa Vida...........................................................................88
3.10 A doação do Ribeirão Mutuca............................................................................90
3.11 Uma dura realidade.............................................................................................91
3.12 Decadência............................................................................................................94
3.13 A trama.................................................................................................................97
3.14 Fênix Negra........................................................................................................103
4. Capitulo 3: DESIDERATO...................................................................................109
4.1 História oral e memória, breves conceitos.........................................................113
4.2 Terras do Quilombo.............................................................................................125
4.3 Fragmentos da memória negra...........................................................................141
4.4 Mulheres do Mata Cavalo: A resistência negra................................................154
4.5 Conflitos de memórias: a negação da história...................................................170
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................188
Bibliografia..................................................................................................................192
Anexos documentais...................................................................................................196
11. 1. INTRODUÇÃO
Em 15 de junho de 2008, participamos dos festejos em comemoração ao aniversário de
Antonio Mulato, um homem respeitável que acabava de completar seus bem vividos 103 anos
de idade, a convite de seu sobrinho-neto José Gregório de Almeida1. Naquele dia especial
entramos em contato, pela primeira vez, com o fascinante universo sociocultural da
Comunidade de remanescentes do Quilombo2 Mata Cavalo. Não precisa muito esforço para
compreender a emoção de estar-se em um lugar prenhe de estórias e histórias, um mundo
permeado por lembranças, sempre presentes, do tempo das senzalas e dos senhores, dos
sonhos de uma liberdade sempre adiada e os pesadelos da escravidão racial. Hoje, em pleno
século XXI - quase cento e vinte anos após o ato de doação da Sesmaria Boa Vida realizada
por D. Anna da Silva Tavares aos seus escravos forros e cativos - os homens e mulheres do
Quilombo ainda lutam pelo direito de permanecer em suas próprias terras. A tradição herdada
dos ancestrais, que aqui chegaram provenientes de Minas Gerais, segundo depoimento de
Antonio Mulato, possui valor simbólico de alta relevância para o ethos cultural e também para
o imaginário dos afro-descendentes do Mata Cavalo. Mesmo para as pessoas que migraram
para outras regiões, como o caso de José Gregório de Almeida e família, aquele território
representa bem mais que lugar de memória, configura-se como espaço sagrado, e também
profano, permeado sempre pela esperança do possível retorno.
A terra no Quilombo Mata Cavalo, como passaremos a partir de agora a
designar sem que se altere sua condição de lugar de remanescentes, constitui-se como
catalisadora do sentimento de pertença de seu território. No percurso da história, seus
ancestrais fincaram ali suas raízes, construindo através delas os elementos culturais de suas
identidades marcadas pela singularidade do ser negro e quilombola. Os costumes, a
religiosidade, a vida comunitária, as tradições e o esforço na manutenção de suas identidades
produzem uma territorialidade única, edificando-a enquanto espaço vital, real e simbólico,
1
José Gregório de Almeida é uma das lideranças das, aproximadamente, 30 famílias oriundas do Mata Cavalo
que transferiram-se para a cidade de Cuiabá em meados do século XX, assentando-se na antiga localidade
conhecida por Gleba Despraiado, atual bairro Ribeirão da Ponte.
2
De acordo com o senso comum a palavra “quilombo” de imediato implicaria a ideia de um lugar longínquo e
de difícil acesso, um espaço de fuga. Na realidade, existem inúmeras outras formas de classificação dos
quilombos e entre elas a resultante de atos de doação, como foi o caso no Mata Cavalo. Trataremos desse assunto
de forma pormenorizada ainda neste capítulo, no subitem “remanescentes de quilombo – conceitos”.
12. 2
simultaneamente. Para além do significado do sentimento de pertença, a questão essencial na
história dos remanescentes do Mata Cavalo consiste no fato da existência dessa comunidade
em função da terra. Foi a partir da doação de parte da [antiga] Sesmaria Boa Vida aos
escravos e ex-escravos de D. Anna da Silva Tavares, que passou a existir de forma concreta o
próprio Quilombo. Tendo como ponto de partida o território ressignificado na diáspora, os
descendentes daqueles escravos perpetuaram a memória de seus ancestrais, fazendo daquele
lugar seu espaço de liberdade, sem ao menos imaginar que precisariam lutar nas malhas do
tempo pela “libertação” de suas terras. Ironia.
O chão, expressão de sonhos e possibilidades, muitas vezes irrigado com o vermelho
tom da intolerância, testemunha o vigor e a determinação dos homens, mulheres e crianças
que foram moldados na têmpera precisa dos ideais da resistência, criando e recriando
constantemente um modo de vida peculiar. Esse mundo, dividido entre o velho e o novo,
conserva a “aura da negritude” de seu universo cultural, cultivando tradições que vão se
modificando, no interior de uma sociedade que se quer moderna, sem, contudo, perder sua
essência fundamental, uma essência que não é somente africana, mas afro-brasileira,
resultante do encontro de povos diferentes e do caráter híbrido de sua população.
O trânsito constante entre geografia e memória, cultura e imaginário, faz do
território do Quilombo Mata Cavalo um campo aberto a constantes reconfigurações de ordem
material e simbólica. Segundo Haesbaert, “teríamos vivido sempre uma
multiterritorialidade”3, onde percebemos que em toda relação social há uma implicação, uma
interação territorial, um entrecruzamento de diferentes territórios. Nesse quadro sociocultural,
o indivíduo vive ao mesmo tempo ao seu nível particular, bem como de seus familiares, do
grupo social, e da própria comunidade. A dinâmica das transformações, em conseqüência do
estado de conflito pela disputa da propriedade das terras do Mata Cavalo, determinam, num
certo grau, a própria constituição da identidade do grupo, como Bauman aponta em seus
tratados teóricos. Para ele o próprio conceito “identidade” nasce em função da crise de
pertencimento e da necessidade de se adaptar a um mundo em constantes mudanças. 4 Toda
3
Haesbaert, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 2ª.
Ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 344.
4
Ainda sobre identidade devemos referir as contribuições de Max Weber, para o qual a identidade resulta
sempre da implementação de uma variável de ordem política, sendo, pois instrumentalizada, já que os sujeitos
acessarão determinados caracteres em razão da necessidade momentânea da coletividade. Nesta perspectiva
sociológica da identidade cada indivíduo representa um papel atuante no meio onde vive, estando este
condicionado à função por ele exercida em sua organização social. Numa visão um pouco simplista das
13. 3
uma tradição herdada das senzalas reflete no cotidiano dessa comunidade, criando
territorialidades diversas que ora convergem, ora divergem confrontando interesses no seu
interior. Ao rebuscar os elementos culturais a partir da memória de seus antepassados recriam
seus territórios na diáspora, ressignificando seu espaço e delimitando-o como um território de
negros.
Numa entrevista gravada em 28 de novembro de 2009, Antonio Mulato fala, com
profunda nostalgia, de um tempo que ficou somente na memória. Tempo da fartura marcado
pelo modo de vida coletivo, onde a maioria das casas contavam com engenhos, criações de
animais domésticos, plantações de mandioca, milho, arroz, feijão e a cana de açúcar.
Rebuscando antigas recordações, relembra os dias felizes de uma vida comunitária:
muxiruns5, trabalhos no campo e as festas em comemorações aos dias santos. Quando lhe
perguntamos como se sentia nessa altura de sua vida respondeu que: “to alegre porque ainda
to vivo, mas hoje cada um faz por si. Esse é o atraso da vida, né? Não existe mais a união,
acabou a união. Fazer o que? To alegre por que ainda to vivo.”
Imagem 1 = engenho na residência de Antonio Mulato
formulações weberianas alusivas aos processos identitários, podemos concluir que o conjunto do que somos e
pensamos, nossas expectativas de vida, percepções de nós mesmos e do mundo em que vivemos constituem, isso
não é relativo, os padrões sociais que norteiam nossas condutas e comportamentos. Desta forma, assevera
Weber, a identidade, tais quais os processos dinâmicos da ação, é criada e recriada continuamente nas estruturas
sociais onde os atores se identificam ao mesmo tempo em que são identificados.
5
O trabalho realizado em sistema de mutirão, ou muxirum como é mais conhecido na região, muito utilizado no
período do Brasil Colônia, consistia na execução de tarefas coletivas e também particulares, onde o contratante
se obrigava a servir o almoço, feito pelas mulheres, enquanto os homens executavam o serviço braçal.
14. 4
Fotografia de Antonio Mulato junto ao seu antigo engenho
Formato JPEG, tirada em 28/novembro/2009, modelo da câmera DMC-FX07
Acervo particular de Silvânio Paulo de Barcelos
Na fotografia acima, onde o anfitrião faz questão de nos mostrar o funcionamento do
seu antigo engenho, percebe-se a atmosfera nostálgica, naquele ambiente calmo, provocada
pelas lembranças de outros tempos. Tempos que por contingência ou capricho, na visão para
quem a vida se fez obstinadamente tenaz, pertence mais à memória que à possibilidade do
devir e o homem acostumado a se expressar com intensa determinação parece perder a noção
da fala. Sua voz, quase um sussurro, no limite da expressão se torna simples lamento. Com
certeza, para ele, mesmo não admitindo tal hipótese, a impossibilidade do retorno àquele
tempo se torna tão real quanto o seu presente alimentado por memórias e recordações.
Essas preocupações, reveladas na fala simples de Antonio Mulato, indicam problemas
que preocupa grande parte dos moradores do Mata Cavalo. A tradição6 e os costumes
herdados dos seus antepassados constituem-se para essa comunidade a possibilidade de
perpetuação da memória escrava, um dos elos formadores de suas identidades. Entretanto,
para os jovens dessa comunidade, a tradição possui outras configurações que respondem a
seus próprios anseios e às necessidades de afirmação em um mundo marcado pela
modernidade, por constantes transformações e pelas incertezas que delas se originam. Apesar
dessas perspectivas um tanto nebulosas, a terra, testemunha viva da história do Mata Cavalo,
ainda possui o mesmo valor material e simbólico capaz de conformar identidades singulares.
No confronto das gerações, nessa comunidade, o velho e o novo se entrecruzam e, apesar da
aparente contradição, a tensão social, sempre presente, assume novas dimensões quando todos
se reúnem em torno dos festejos nos dias santos. Nessa ocasião festiva, a alegria reforça os
elos da solidariedade ao mesmo tempo em que cultiva o ideal da negritude, uma herança de
resistência ao regime escravista, que se revela maior que as querelas de suas vidas sociais e
seus aparentes antagonismos.
6
De acordo com o Dicionário de Ciências Sociais do Instituto de Documentação da Fundação Getúlio Vargas,
publicado pela Editora FGV em 1986, na cidade do Rio de Janeiro, o termo “tradição, em sentido restrito, é um
termo neutro, empregado para designar a transmissão, geralmente oral, por meio da qual modos de atividade,
gosto ou crença são passados (entregues) de uma geração para a seguinte, perpetuando-se dessa forma. Assim,
aplicando o termo às ciências sociais, tradição é o veículo através do qual cada criança aprende de seus
antepassados alguma coisa dos seus costumes e do conjunto de conhecimentos e preconceitos acumulados. [...] O
termo tradição também se aplica a alguns dos elementos culturais assim transmitidos, mas não a todos. Os
elementos escolhidos e que recebem o status de tradições são geralmente considerados de valor, e está
fortemente implícito que são especialmente dignos de serem aceitos. Assim, uma tradição é um modo de
comportamento ou padrão produzido por um grupo como tal, distinto de um indivíduo; e serve para intensificar a
consciência de grupo e sua coesão”. P. 1254.
15. 5
Como objetivo geral de nossa investigação apontamos o propósito de entender como
essas pessoas, e também os grupos aos quais pertencem, puderam experimentar o próprio
passado, recuperado por suas memórias de vida, dotando de significado a trama de suas
próprias histórias. Cabe ainda mencionar a importância de conhecer o contexto de estudo,
além de problematizar as relações sociais, jurídicas e políticas que permitiram e permitem a
constituição daquele grupo em seu espaço.
A partir dessas reflexões preliminares passamos agora a apontar alguns aspectos
relevantes no que tange a procedimentos metodológicos utilizados nessa pesquisa.
Inicialmente devemos referir sobre o uso da “pesquisa bibliográfica”, especialmente
no que diz respeito à apropriação dos principais conceitos e categorias que balizaram nossa
pesquisa, merecendo destaque o conceito de identidade, tradição, afro-referenciamento, além
de categorias de natureza jurídica, em razão da especificidade do tema de investigação. Aqui
destacamos uma importante reflexão que norteou nossas investigações: as teorias
desenvolvidas pelo sociólogo Paul Gilroy na obra “O Atlântico negro”.
Apontamos ainda a utilização sistemática dos pressupostos da “pesquisa documental”,
uma vez que a compreensão da comunidade do Mata Cavalo implica no manuseio e
problematização de documentos de natureza pública. Entre estes documentos destacam-se,
por suas relevâncias, aqueles que instruem o processo judicial que discute a titularidade das
terras da comunidade, além de uma série de documentos de natureza administrativa oriundos
do INCRA, Fundação Cultural Palmares, INTERMAT, bem como acervos do NDHIR e do
APMT7 além de documentos de natureza cartorial.
Por fim utilizamos da “pesquisa de campo”, tendo sido realizado inúmeras visitas aos
locais de estudo, sendo importante referir que durante essas incursões utilizamos daquilo que
a bibliografia denomina de observação direta e na maioria das vezes “observação
participante”. Além da observação direta cujos principais elementos foram registrados num
diário de campo, devemos referir a realização de entrevistas semi-estruturadas e não
estruturadas, utilizando-se dos pressupostos da história oral. A escolha dos depoentes atentou
para alguns pressupostos que julgamos pertinente e elucidadores de nossas premissas de
trabalho. Assim sendo, optamos pelas entrevistas com a atual presidente do quilombo, bem
7
INCRA: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária; INTERMAT: Instituto de Terras de Mato
Grosso; NDHIR: Núcleo de Documentação Histórica e Regional da Universidade Federal de Mato Grosso;
APMT: Arquivo Público do Estado de Mato Grosso.
16. 6
como algumas pessoas mais idosas que possuem, em suas narrativas de vida, memórias muito
expressivas herdadas de seus ancestrais o que, via de regra, fornece elementos importantes da
trajetória social e política da comunidade como um todo. Utilizamos também dos relatos de
algumas pessoas de destaque entre as famílias que migraram para as cidades de Cuiabá e
Várzea Grande que guardam forte ligação com o Mata Cavalo e, também, lutam pela
possibilidade de retorno ao lugar de onde vieram. Através dos relatos de vida e da
recuperação das memórias das pessoas mais velhas que, de uma forma ou de outra, lutam pela
legitimação da propriedade daquelas terras, será possível viabilizar a narrativa em torno da
história da cadeia dominial, onde os atores utilizam-se da própria trama jurídica envolvida no
processo litigioso para conquistar definitivamente suas terras. Em contrapartida, realizamos
também entrevistas com pessoas mais jovens da comunidade do Mutuca (uma das associações
que integram o complexo do Mata Cavalo) que se destacam no interior da comunidade por
estarem sintonizadas com os movimentos de resistência e luta pela causa quilombola.
Trabalhando com essas múltiplas memórias, presente e passado serão analisados, no
afã da identificação dos elementos que permitirão questionar interpretações e visões de
mundo, a partir das falas dos entrevistados e seus conseqüentes posicionamentos quanto à
própria constituição do presente vivido no interior do Mata Cavalo. Obviamente, os relatos
biográficos trazem consigo uma intencionalidade específica de quem procura dar sentido à
sua narrativa, escolhendo e classificando os fatos do seu passado, que podem ou não
apresentarem-se de forma cronológica. De acordo com Pierre Bourdieu, o relato propõe
“acontecimentos que, sem terem se desenrolado sempre em sua estrita sucessão cronológica,
tendem ou pretendem organizar-se em seqüências ordenadas segundo relações inteligíveis”.8
Não obstante, há que considerar-se que a história de vida e seus relatos podem conter sim, e
isso não é pouco, descrições bastante coerentes das ações cotidianas de um determinado
grupo, principalmente quando confrontadas com outras histórias de vida, delineando-se, por
assim dizer, os fios condutores de uma realidade presente. Essa conjuntura constitui-se, no
dizer de Verena Alberti, “histórias dentro da história”9.
Em razão das impressões iniciais, e da análise dos depoimentos colhidos no decurso
dessa pesquisa, podemos levantar uma questão explicativa do processo de constituição da
8
Bourdieu, Pierre. A ilusão biográfica. In: Ferreira, Marieta de Moraes; Amado, Janaína (coords.). Usos &
abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV 1996. P. 184.
9
Alberti, Verena. Histórias dentro da história. IN: Pinsky, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. – São
Paulo: Contexto, 2005. P. 166.
17. 7
identidade no Mata Cavalo, tendo como seus elementos principais a terra e a memória afro-
referenciada, construída pelas vias do imaginário, no período em que os ancestrais do Mata
Cavalo ainda se encontravam em cativeiro. Para além de local de subsistência, do conforto de
uma moradia e a segurança do espaço de pertencimento, a terra, para os descendentes dos ex-
escravos da Sesmaria Boa Vida, possui valores simbólicos plenos de subjetividades. Via de
regra, constitui-se na fronteira entre o “nós” e os “outros”, possibilitando, na interface com a
memória escrava, a edificação dos pilares de uma identidade singular: o ser negro e também
quilombola. Essa constatação nos leva a trilhar caminhos de busca dos elementos que
possibilitarão a escrita da narrativa proposta.
Por fim, cabe referir que essa pesquisa pode ser identificada como “participante” em
vista dos interesses pessoais e acadêmicos que consolidamos em torno do destino desta
comunidade. As pessoas que se interessam pela história dos que se colocaram em posição
antagônica na trama social aqui explorada – a saber, alguns fazendeiros da região - não
encontrarão neste trabalho nenhuma forma de expressão a não ser aquelas que entraram, de
alguma forma, no contexto da disputa litigiosa em questão. Importa frisar que nosso esforço
historiográfico expande-se além do limite da simples especulação retórica de fatos ocorridos,
pois sensibilizamo-nos pelas causas sociais ainda não resolvidas, e nesta vertente percebemos
o movimento quilombola para além da necessidade de conquista de suas próprias terras,
constituindo-se em reparação histórica aos desterrados pela violência da escravidão racial da
era moderna. Nosso lugar da enunciação, em alusão a Michel de Certeau, de onde falamos e
escrevemos, pode ser referido metaforicamente a partir dos terreiros da senzala da Sesmaria
Boa Vida, privilegiando-se os interesses e anseios mais elementares daquela gente simples
para as quais a terra é bem mais que possibilidade de trabalho, é vida.
Feitas essas considerações de ordem metodológica, passaremos agora a descrever a
forma escolhida para organizar essa dissertação.
O propósito central do primeiro capítulo, denominado “A escravidão racial da era
moderna”, é o estudo da própria escravidão enquanto objeto histórico. Para dar conta de
nosso propósito utilizamos nesse capítulo prioritariamente da pesquisa bibliográfica. Através
da contextualização da escravidão racial da era moderna, e tudo que ela trás de novidade e
mudança para a própria modernidade ocidental, buscaremos os elementos constitutivos da
cultura, bem como dos aspectos sociais do grupo aqui estudado. Isso se torna relevante na
medida em que fornecem as bases teóricas, e também práticas, capazes de dotar de
18. 8
racionalidade os processos distintos da formação da identidade negra no seio desta
comunidade tradicional. Para entender quem são os homens, mulheres e crianças que
constituem, nos dias atuais, o Mata Cavalo, torna-se imprescindível a análise dos processos
que levaram o africano, em resposta à pressão do sistema escravocrata, a criar os mecanismos
de defesa e, também, de sobrevivência dentro do universo marcado pela violência
característica das relações senhor/escravo. O escravo foi considerado, equivocadamente, pelo
senso comum e pela historiografia, que tradicionalmente trabalhou essa questão, como um
simples objeto do sistema, um feixe de músculos pronto a impulsionar, de forma passiva e
amorfa, as engrenagens do próprio sistema capitalista em boa parte do ocidente.
De acordo com trabalhos historiográficos recentes10, o escravo localizou-se não nas
extremidades dicotômicas reducionistas das relações entre opressor e oprimido, mas, sim na
posição intermediária da negociação. Colocado no vértice e no limite da tensão, oriunda do
próprio sistema que o aprisionou, os africanos na diáspora negociaram o seu modo de vida, o
seu cotidiano, da melhor forma possível, resgatando sua dignidade e sua condição de sujeito
de sua própria história. Por analogia a condição dos remanescentes do Mata Cavalo segue a
mesma orientação. Pressionados duplamente pelo sistema que oprime e os colocam como
objetos passivos de suas histórias, os descendentes dos escravos da Sesmaria Boa Vida
criaram, com imaginação, as formas do seu viver tornando-se senhores de si mesmo. Neste
processo de recuperação histórica, eles edificaram uma identidade singular em um cotidiano
expressivo marcado pela herança ancestral africana, numa feliz combinação entre passado e
presente, tradição e modernidade.
No segundo capítulo, denominado “Terras cativas”, desenvolvemos uma análise mais
aprofundada da questão agrária, envolvendo a disputa das terras no Mata Cavalo tendo por
conseqüência o estado de conflito e de conflitividade, que perdura até aos dias atuais. A
releitura da farta documentação disponível, relativa a essa comunidade, tais como relatórios
produzidos pelo INTERMAT, pelo Ministério da Cultura, Fundação Cultural Palmares,
inventários e testamentos diversos que se encontram no Arquivo Público do Estado de Mato
Grosso, no NDHIR e de alguns documentos jurídicos11, permitirá a construção da narrativa
histórica da questão agrária no Mata Cavalo. Essa documentação consiste no corpo principal
10
Conferir algumas das obras historiográficas que representam essa nova tendência na citação número 42, ainda
neste capítulo.
11
Entre os documentos jurídicos destacamos: Informe ao X Congresso de Direito Agrário: Quilombos, produzido
pelo defensor público José Orlando Muraro Silva; Ação Civil Pública empreendida pelo Ministério Público
Federal contra a União, Fundação Palmares, INCRA e Carlos Campos Maciel.
19. 9
na elaboração e reinterpretação desta questão, que por sua vez possibilitará uma análise mais
abrangente quanto à própria história deste Quilombo.
Em resposta às pressões impostas pelo estado litigioso, essa comunidade de
remanescentes criou mecanismos próprios de defesa e auto-afirmação, através do cultivo da
tradição que tem suas origens nas senzalas e da manutenção, via cultural, do universo
simbólico que a identifica como descendentes de escravos. Cientes de sua condição
fundamental de estar ocupando uma área que receberam a título de doação, os representantes
dessa comunidade tradicional lutaram, como puderam, pela preservação de suas terras, local
de subsistência, de memória e de auto-afirmação étnica específica. Uma terra quilombola.
Sem dúvida, a questão subjetiva da identificação étnica, possibilitada pela memória da
escravidão, possui peso e densidade relevantes no processo de manutenção das tradições
ancestrais africanas, constituídas a partir dos relatos orais repassados de geração a geração no
interior da comunidade. Toda uma memória específica, constituída no imaginário afro-
descendente, é insistentemente preservada em prol da conservação dos elos de solidariedade
do grupo permitindo assim, no limite, a própria existência do Mata Cavalo.
Tendo a diáspora negra como pano de fundo, trataremos no terceiro capítulo
denominado “Desiderato” dos processos de construção da identidade negra no interior desta
comunidade. Confrontando a trajetória da luta pela posse da terra e a questão subjetiva da
tradição ancestral afro-referenciada, constituída pelas vias do imaginário, tendo por
testemunho os depoimentos dos integrantes do Mata Cavalo, será possível comprovar nossas
afirmações acerca da formação desta identidade singular. Nesse contexto, mostraremos como
as manifestações artísticas e culturais da comunidade constituem-se em reflexo do próprio
movimento da diáspora negra, da forma como o entende Paul Gilroy em seu “Atlântico
negro”. A terra como meio e fim, objetivo e destinação, o desiderato primordial, constitui-se,
nas tramas de sua história, em local privilegiado da conformação da identidade negra, que por
sua vez, juridicamente, permitirá a legitimação da sua propriedade, através da questão
quilombola.
20. 10
2. Capítulo 1 - ESCRAVIDÃO RACIAL DA ERA MODERNA
Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas co’a esponja de tuas vagas de teu manto este borrão?...
Astros! Noites! Tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
(Navio Negreiro – Castro Alves)
De acordo com a convenção sobre a escravatura assinada em Genebra, no dia 25 de
setembro de 1926, e emendada pelo protocolo aberto à assinatura ou à aceitação na sede da
Organização das Nações Unidas, realizada em 7 de Dezembro de 1953 na cidade de Nova
York, em seu artigo primeiro, parágrafo primeiro: “A escravidão é o estado ou condição de
um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de
propriedade”.12 Ainda tratando da mesma temática em seu parágrafo segundo do mesmo
artigo:
O tráfico de escravos compreende todo ato de captura, aquisição ou cessão
de um indivíduo com o propósito de escravizá-lo; todo ato de aquisição de
um escravo com o propósito de vendê-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão, por
meio de venda ou troca, de um escravo adquirido para ser vendido ou
trocado; assim como em geral todo ato de comércio ou de transportes de
escravos. 13
Paul Lovejoy aprofunda ainda mais esses conceitos ao apontar as características
específicas da escravidão incluindo a idéia de que os escravos eram, em termos absolutos,
uma propriedade, e que também: “ eram estrangeiros, alienados pela origem ou dos quais, por
sanções judiciais ou outras, se retirara a herança social que lhes coubera ao nascer; que a
coerção podia ser usada à vontade; que a sua força de trabalho estava à completa disposição
12
Em nossa qualificação fomos informados que as Convenções antes referidas são utilizadas como os
instrumentos jurídicos mais antigos quando do trato da denominada escravidão contemporânea. Para maiores
esclarecimentos acerca dos tratados relativos à escravidão negra vide: Tratados de paz de Paris de 1814 e 1815;
Declarações do Congresso de Viena de 1815; Declaração de Verona de 1822; Tratados de 1831 e 1833 entre
França e Inglaterra; Tratado de Londres de 1841; Tratado de Washington de 1862; Ato Geral da Conferência de
Berlin de 1885 e o Ato Geral da Conferência de Bruxelas de 1890.
13
Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/doc_escravatura.php , acesso em 22 de Junho de 2010.
21. 11
de um senhor”14. Uma observação mais acurada desses conceitos permite entender, de alguma
forma, a transformação do africano escravizado em “coisa”, em mero “feixe de músculos” a
serviço do regime que o oprime. Essa visão estereotipada do escravo como res, no limite,
como um ser desprovido de história, contribui (isso não é pouco!) para a configuração atual
da posição social dos negros no interior das sociedades contemporâneas. Pode-se, com
relativa facilidade, relacionar os processos socioculturais excludentes a partir de premissas
raciais - a racialização do negro, portanto, no interior de sociedades marcadas profundamente
pelo predomínio e pela hegemonia das populações brancas – à própria construção, no âmbito
da história, da condição do escravo como um mero instrumento de produção de bens
capitalistas. No entanto, o que nos interessa aqui são, exatamente, as condições contrárias a
esses conceitos. Atribuindo-lhe a condição de ator na história, como já afirmamos
anteriormente, nos aproximamos da realidade cotidiana desse sujeito que se viu obrigado a
construir sua vida em terras estrangeiras estigmatizadas pelo contexto violento da dominação.
Compreender essa condição singular, marcada sempre pelo imperativo da negociação
constante, é fundamental para o entendimento da cultura e da sociedade híbrida resultante dos
movimentos da diáspora negra. No limite da expressão, não há como analisar a própria
modernidade ocidental sem considerar os processos inerentes à escravidão racial da era
moderna. Essa questão é altamente relevante, ao que nos interessa, na medida em que
possibilita interpretar o mundo constituído pela comunidade do Mata Cavalo, ela mesma uma
conseqüência do entrecruzamento entre o antigo e o moderno, a tradição e a mudança.15
2.1 Escravidão e modernidade
Paul Gilroy, sociólogo e um dos expoentes do movimento negro mundial, ao focalizar
a questão da modernidade a partir do convés dos navios negreiros, percebe o absurdo e a
contradição nas vastas obras de intelectuais que tratam da modernidade sem, ao menos,
considerar a hipótese da interação dos africanos escravizados com a formação do mundo
capitalista, condição relevante à sua própria existência. Para ele, torna-se necessário um
esforço no sentido de fazer com que a cultura e a história negras “sejam levadas a sério nos
círculos acadêmicos, em lugar de serem atribuídas, via a idéia de relações raciais, à
14
Lovejoy, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Tradução Regina A. R.
Bhering e Luiz Guilherme B. Chaves. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. P. 29.
15
Cabe aqui referir que o conceito de mudança pode ser melhor compreendido tomando como pressuposto as
investigações desenvolvidas por Bauman quando da referência acerca da “liquidez”da sociedade contemporânea.
22. 12
sociologia, e, daí, abandonadas ao cemitério de elefantes no qual as questões políticas
intratáveis vão aguardar seu falecimento”16.
Esse autor ao buscar os elementos que possibilitem o rompimento dos diques, muito
bem instalados na política cultural eurocêntrica nacionalista, que coloca o negro ora como
não-humano ora como não-cidadão, procura os meios que possam ativar os códigos re-
interpretativos da condição do negro na modernidade. Assim, a diáspora responde o debate e
ancora o caráter híbrido meta-nacional17 da condição cultural desse negro: “sob a idéia-chave
da diáspora, nós poderemos então ver não a raça, e sim formas geopolíticas e geo-culturais de
vida que são resultantes da interação entre sistemas comunicativos e contextos que elas não só
incorporam, mas também modificam e transcendem”18.
Stuart Hall19 utiliza o conceito “diáspora negra” para explicar a experiência dos
Africanos desterritorializados em função da escravidão racial. Afro-caribenho, vivendo em
Londres, Hall entendeu sua condição de ser-no-mundo: conhecendo intimamente os dois
lugares [Jamaica e Inglaterra] percebeu que na verdade não pertencia a nenhum deles, “e esta
é exatamente a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de
exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma chegada sempre adiada” 20.
Esse autor aponta que “de uma forma curiosa, o pós-colonial prepara o indivíduo para viver
uma relação pós-moderna ou diaspórica com a identidade”21. De acordo com Hall a
experiência da diáspora origina-se na bíblia ao narrar a recuperação de uma terra ocupada por
outros povos. No esforço de aproximação entre a diáspora bíblica e a diáspora negra ele
aponta a experiência de sofrimento, exílio, cultura do livramento e da redenção como alguns
dos seus fatores comuns. Essa condição explica, de alguma forma, porque os adeptos do
16
Gilroy, Paul, 1956. O Atlântico Negro: Modernidade e dupla consciência. São Paulo; Ed. 34; Rio de
Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. P. 40.
17
Acerca dessa denominação devemos referir que o autor aponta a possibilidade de identidades supra-nacionais,
marcadas por caracteres resultantes da aproximação de diferentes traços, daí seu caráter hibrido.
18
Gilroy, Paul. Op. Cit. P. 25.
19
Esse jamaicano de classe média viveu as contradições culturais e sociais no contexto colonizado da Jamaica,
uma sociedade marcada por políticas de branqueamento racial. Na sua infância foi chamado de “coolie” uma
espécie de pária entre os seus, por ser de todos os membros de sua família o mais negro. Em 1951 mudou-se
para a Inglaterra onde mais tarde filiou-se à “Nova Esquerda Inglesa”.
20
Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik; tradução Adelaine La
Guardia Resende... [et. al.]. – Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
P. 415.
21
Hall, Stuart. Op. Cit. P. 416.
23. 13
Movimento Rastafári22 utilizam com freqüência a bíblia, pois ela “Conta a história de um
povo no exílio dominado por um poder estrangeiro, distante de casa e do poder simbólico do
mito redentor”23. Conforme conclusões desse autor, o que marcou definitivamente o
rastafarianismo foi o fato de ter tornado definitivamente negra a Jamaica, descolonizando as
mentes. “Como todos os movimentos, o rastafarianismo se representou como um retorno.
Mas, aquilo a que ele nos retornou foi a nós mesmos. Ao fazê-lo produziu a África,
novamente, na diáspora”24.
A análise das estruturas políticas, sociais e culturais no interior das fazendas que
utilizavam o regime de escravidão Plantation25 revela dados impressionantes de
particularismos e concentração de poderes num regime fechado, longe dos olhos e do alcance
das instituições estatais. Foi nesse ambiente que o terror racial se desenvolveu. Entretanto, foi
também nesse espaço “permitido”26 que os escravos, absorvendo os elementos culturais da
sociedade dominante, criaram mecanismos de defesa e auto-afirmação como forma de
subsistência numa terra distante e desconhecida, recriando seu espaço primordial,
analogamente pequenas porções da África reterritorializadas pelas vias da recordação.
Expressando-se através do corpo os africanos, na diáspora, recriaram padrões estéticos que
conformaram a própria noção de contracultura da modernidade. A música, um dos elementos
culturais permitidos e/ou até incentivados pelos senhores da Plantation, expressando
pensamentos e desejos inefáveis, colocava para os escravos um mundo idealizado, tal qual
22
Na década de 1960, excluídos do sistema capitalista, muitos Rastas procuraram formas de subsistência
através da arte, entre elas o artesanato, esculpindo peças inspiradas em motivos africanos. Entretanto, onde a
cultura Rasta desenvolveu-se, tanto na Jamaica quanto fora dela, foi na música, com o surgimento do Reggae,
um estilo musical inovador . No começo o Reggae é o Ska, ritmado ao som de instrumentos metálicos que
foram inspirados na Black music norte-americana. Mais tarde o Ska que ficara mais lento, originou o
Rocksteady. Acrescido das percussões africanas e batidas da guitarra ao estilo Rock nos anos 1970 o antigo
Rocksteady passa a denominar-se Reggae
23
Hall, Stuart. Op. Cit. P. 417.
24
Id Ibidem.
25
O conceito de plantation utilizado aqui refere-se às fazendas de monocultura do algodão encontradas no sul
dos Estados Unidos no século XVIII e início do XIX, que utilizavam mão de obra escrava.
26
Utilizamos essas aspas para chamar a atenção do leitor para o fato da questão subjetiva intrínseca ao próprio
termo por nós utilizado. O sentido de apropriação, como o entende Roger Chartier, explica bem toda dinâmica
envolvida nos espaços controlados das senzalas, onde os escravos gozando de relativas e momentâneas
liberdades expressavam seus modos de vida característicos, manifestando a resistência natural ao regime da
escravidão através dos sincretismos religiosos, das manifestações culturais e lúdicas. Obviamente, as pequenas
liberdades aconteciam em um nível elevado de negociação subliminar em resposta à necessidade sempre
constante da utilização de meios para aliviar a pressão do próprio sistema. Esses recursos foram largamente
utilizados pela elite escravocrata que também se viam obrigadas a negociar seus interesses. Desta forma, as
concessões de privilégios colaboravam para a manutenção do próprio regime da escravidão. Por outro lado se os
espaços de relativa liberdade lhes eram “permitido” isso ocorria também em função da pressão interna, de dentro
da senzala para fora, tendo por conseqüência o medo sempre presente de revoltas ou sublevações incontroláveis.
Considerado neste contexto o espaço “permitido” existe em função do espaço “negociado”.
24. 14
gostariam que fosse, em oposição à realidade do vivido, fornecendo-lhes a necessária dose de
coragem para prosseguirem suas vidas. Essa concepção utópica de um mundo perfeito,
recriado ludicamente através da música, é denominada por Gilroy de “política de
transfiguração” que enfatiza desejos novos no interior da comunidade racial. Segundo ele a
política de transfiguração “Aponta especificamente para a formação de uma comunidade de
necessidades e solidariedades, que é magicamente tornada audível na música em si e palpável
nas relações sociais de sua utilidade e reprodução cultural”27.
É notável o valor e a centralidade que a música e as manifestações artísticas possuem
para a cultura e a sociedade no interior do Mata Cavalo. Elo espiritual importantíssimo,
considerando-se a licença poética, a arte concentra o poder simbólico capaz de conformar
parte da cultura e das estruturas sociais desta comunidade tradicional. Nas ocasiões festivas
desta comunidade, arte e vida se misturam de forma a dotar de sentido as hierarquias de poder
no seu interior.
A evasão lúdica do mundo real constitui-se numa espécie de resistência ao presente
opressor dilatando, poeticamente, as esperanças num amanhã glorioso. Obviamente, transitar
no espaço “permitido” no interior das fazendas no regime da escravidão exige exercício
laborioso de audácia e inteligência buscando no espaço do subliminar o escopo de suas ações.
Desenvolvida debaixo do nariz dos senhores, os desejos utópicos que alimentam a política
complementar da transfiguração, como espaços de transgressões, só podem tomar forma por
meios mais sutis, situando-se em regiões de difícil acesso aos olhos de quem domina e
oprime, pois:
Essa política existe em uma freqüência mais baixa, onde é executada,
dançada e encenada; além de cantada e decantada, pois as palavras, mesmo
as palavras prolongadas por melisma e complementadas ou transformadas
pelos gritos que ainda indicam o poder compíscuo do sublime escravo,
jamais serão suficientes para comunicar seus direitos indizíveis à verdade. 28
Não se trata de um contra discurso, como o afirma Gilroy, mas sim de uma
contracultura capaz de reconstruir, de forma desafiadora, sua própria genealogia crítica,
intelectual e moral recriando seu espaço “permitido” numa esfera pública particular e pouco
perceptível, porém totalmente dotada de singular personalidade. No centro dinâmico dessa
27
Gilroy, Paul. Op. Cit. P. 96.
28
Id Ibidem.
25. 15
contracultura29 encontram-se as expressões artísticas da música negra, que embora não
excluindo as desigualdades sociais sua ética bem estabelecida oferece as condições para o
debate em torno das questões de dominação que determinam a sua própria existência.
Conclusivamente, as expressões artísticas possibilitam meios plausíveis para a afirmação do
indivíduo, bem como para a libertação da comunidade como um todo. “Poiésis e poética
começam a coexistir em formas inéditas – literatura autobiográfica, maneiras criativas
especiais e exclusivas de manipular a linguagem falada e, acima de tudo, a música. As três
transbordaram os vasilhames que o estado-nação moderno forneceu a elas”30.
A discussão do caráter poético da música negra, e sua notável influência na cultura e
nas sociedades negras estabelecidas no movimento da diáspora, no entorno do oceano
Atlântico, são importantes para o entendimento do universo negro aqui estudado, na medida
em que fornece elementos teóricos explicativos de alguns aspectos da cultura e da
comunidade do Mata Cavalo. Não precisa muito esforço para entender que, ao menos, boa
parte das manifestações sócio-culturais percebidas no Mata Cavalo tem sua origem no período
em que seus ancestrais ainda se encontravam no cativeiro. Obviamente, essas manifestações
culturais sofreram, no curso da história, as influências externas nas zonas de contato, por
assim dizer, com outras culturas. O que se percebe hoje é que as manifestações artísticas
obedecem aos imperativos da conformação de identidades específicas recriadas no panelão da
cultura afro-americana como um todo. Em Mato Grosso, assim como em inúmeras outras
regiões do Brasil e do “Atlântico negro”, as manifestações artístico-culturais são resultantes
do confronto direto entre povos africanos, europeus e ameríndios.
De acordo com a pesquisadora Julieta de Andrade, o siriri “é uma suíte de danças de
expressão hispano-lusitana, fortemente aculturada no ritmo e no andamento, com expressão
africana”31. Uma dança que lembra os divertimentos indígenas, conforme nos aponta João
29
De acordo com a socióloga Marília Quentel Corrêa, “a contracultura é um movimento que tem seu auge na
década de 60, quando teve lugar um estilo de mobilização e contestação sociais e com ele novos meios de
comunicação em massa. Jovens inovando estilos, voltando-se mais para o anti-social aos olhos das famílias mais
conservadoras, com um espírito mais libertário, resumindo como uma cultura alternativa ou cultura marginal,
focada principalmente nas transformações da consciência, dos valores e do comportamento, na busca de outros
espaços e novos canais de expressão para o indivíduo e pequenas realidades do cotidiano.” Ainda segundo sua
análise “a contracultura pode ser definida como um ideário alternador que questiona valores centrais e vigentes
instituídos na cultura ocidental”. Disponível em:
http://estudossociologicos.blogspot.com/2009/06/contracultura.html acesso em 12 de Fevereiro de 2011.
30
Gilroy, Paul. Op. Cit. P. 100.
31
Ferreira, João Carlos Vicente. Mato Grosso e seus municípios. – Cuiabá: Secretaria de Estado da Educação,
2001. P. 210.
26. 16
Carlos Vicente Ferreira, o siriri provavelmente tem sua origem na palavra “otiriri” no
vocabulário da língua lusitana, na Portugal do século XVIII. Ou, como revela a crença
popular, significa um tipo de formigão com asas. Um dos instrumentos utilizados na dança do
siriri é o “mocho” ou “tamboril”, um banco revestido com couro de boi geralmente tocado por
homens e cujos ritmos sincopados, provavelmente lembram os tambores largamente
utilizados por diversas etnias e povos da África. Enfatizamos aqui o exemplo da expressão
cultural do “siriri” para destacar a influência do encontro de culturas resultantes do
movimento de colonização européia e da diáspora africana para a sociedade mato-grossense.
O cururu, rasqueado, dança do congo, festa do Divino Espírito Santo, Cavalhada, dança dos
mascarados, festa de São Benedito e a dança do chorado compõem o universo cultural desta
região do Brasil que influencia diretamente o caldo de cultura da comunidade do Mata
Cavalo. Importante frisar que essas expressões artísticas e culturais resultantes dos
movimentos de diáspora no Atlântico negro, de alguma forma, influenciaram as culturas
locais sendo por elas também influenciadas, como é o caso de algumas regiões do Estado de
Mato Grosso notavelmente marcadas pela influência indígena e africana.
Todo o movimento atual de ressignificação da tradição cultural no interior do Mata
Cavalo sofre a influência direta de várias forças, que ora divergem ora convergem no bojo das
profundas transformações da sociedade envolvente estigmatizada pela globalização. A seguir
delinearemos algumas questões importantes acerca da modernidade e globalização para
buscar os elementos com os quais será possível explicar, de alguma forma, o universo cultural
da comunidade do Mata Cavalo no que respeita aos processos de construção da identidade
negra e os esforços da afirmação enquanto grupo tradicional no interior de uma sociedade
convulsionada e pós-moderna.
2.2 Escravidão racial: Uma contradição da modernidade
É latente a necessidade de se repensar historiograficamente todas as periodizações
simples do moderno e do pós-moderno, sob uma nova orientação que privilegie a história da
escravidão racial enquanto elo importante na conformação do próprio conceito de
modernidade. Tudo que se produziu, e diríamos até que se produz em termos de trabalhos
historiográficos acerca desta temática desconsidera simplesmente a presença atuante, em
escala nada desprezível, dos africanos na diáspora, salvo honrosas exceções. Se considerados,
por exemplo, a porcentagem de afro-descendentes na população brasileira, cujas estimativas
27. 17
apontam um índice superior a cinqüenta por cento, natural seria sua presença também no
âmbito historiográfico. A escravidão racial da era moderna demanda, portanto, uma nova
leitura despida de idéias eurocêntricas pré-concebidas, em prol de um nível mais elevado de
entendimento da nossa sociedade atual. Essa questão primordial parece adormecida nos
ânimos de pensadores ocidentais, embora o aparecimento de expressivos críticos que,
exasperadamente, tentam dotar de significado suas vozes no interior de uma sociedade
marcada por interesses difusos, em um mundo pressionado pela globalização.
Zygmunt Bauman, em suas análises sociológicas, percebe as transformações sociais
por que passam as sociedades atuais em conseqüência da globalização. Em sua obra
Modernidade Líquida, publicada em 2001, observa o homem enquanto ator social em
processo contínuo de individualização, tendo como agravante as mudanças nas suas formas de
relacionamento e de percepção do mundo que o rodeia. Utilizando-se da metáfora
“liquefação” consegue captar a dinâmica das mudanças socioculturais de um mundo
reestruturado pela velocidade da comunicação e pela inversão dos valores éticos. No interior
dessa sociedade convulsionada as instituições sociais, descritas como estados de solidez,
obliteram-se acentuadamente desestruturando antigas formas de convivências humanas dos
espaços familiares e do mundo do trabalho. Na nova conformação social o estado de fluidez e
flexibilidade molda a plasticidade com a qual os indivíduos interagem com o meio envolvente.
Nessa perspectiva, o estado de liquefação dos sólidos metaforicamente demarca o tempo da
provisoriedade provocando a sensação de uma falsa liberdade, que traz em conseqüência o
desconforto e o desamparo social. Subjetivamente, Bauman relaciona o desprendimento do
homem, individualizado pela modernidade, das suas redes de pertencimento social e familiar,
localizando-o num terreno movediço onde as estruturas do individual se sobrepõem às do
coletivo.
O estado de contínuo movimento em que o mundo se encontra, produz desequilíbrios e
alarga o fosso que separa ricos de pobres. “Todos nós estamos, a contragosto, por desígnio ou
à revelia, em movimento. Estamos em movimento mesmo que fisicamente estejamos
imóveis.”32. Essa noção de movimento polariza a balança do poder aumentando a capacidade
de operação dos que são globalizados, estendendo as fronteiras de seus domínios ao mesmo
tempo em que aumentam o nível de exclusão social dos localizados. “Ser local num mundo
32
Bauman, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1999. P. 8.
28. 18
globalizado é sinal de privação e degradação social”33. Nesse contexto globalizado a
mobilidade constitui-se na peça chave com a qual os privilegiados da sociedade combinam os
fatores essenciais hegemônicos dominando o mundo dos negócios, das finanças, comércio e
controle dos fluxos de informações. A falta da mobilidade estratégica, a redução à condição de
“local” são os fatores que determinam a exclusão social de pobres no mundo contemporâneo
promovendo um estado de insegurança e incertezas, sendo importante articular as dimensões
do local e global como forma dos grupos sociais garantirem efetivamente a sua identidade
num mundo cada vez mais marcado pela homogeneização.
Por analogia, podemos comparar a condição da questão fundiária no Mata Cavalo com
o universo conceitual criado por Baumam acerca da modernidade e das vantagens de quem
possui a capacidade de estar em movimento, mobilizando as forças no jogo do poder a seu
favor, como bem o perceberam os movimentos sociais. Inicialmente, trata-se da verificação
de condições muito simples de manipulação do poder realizada pela elite composta por
fazendeiros no confronto com os remanescentes do Mata Cavalo, visando à legitimação das
terras em litígio. De forma resumida, a questão gira em torno da capacidade de se mover entre
signos e códigos jurídicos visando manobras políticas, nem sempre lícitas, que possibilitam
momentaneamente alterar a realidade no que respeita aos processos de titulação de terras
naquela região. Essa condição privilegiada demanda certo grau de escolaridade e capacidade
de influenciar os meios onde localizam-se as estruturas de poder, tais como cartórios de
registros e até mesmo alguns setores representativos da força política e também policial. Não
precisa muito esforço para entender que esse não é o caso dessa comunidade, composta em sua
maioria por gente simples, acostumada à vida no campo, fator que originou, na maioria das
vezes, uma postura pacífica frente a uma realidade incomum no confronto entre esses e os
fazendeiros envolvidos naquela disputa. Como veremos nos capítulos subseqüentes, esses
remanescentes, salvo algumas exceções, encontravam-se relativamente isolados em seu
próprio território, estando, em função do baixo nível de conhecimento acerca das questões
jurídicas, entregues à própria sorte.
Objetivamente, o estado de incertezas percebido por Bauman constitui-se em um
problema a mais na configuração social e cultural das comunidades negras trans-atlânticas,
embora, de acordo com o pensamento de Paul Gilroy, não representar o cerne da questão aqui
33
Id. Ibidem.
29. 19
discutida. Agravante sim, mas não determinante no contexto histórico mais amplo que estuda
e analisa a modernidade sob a ótica da escravidão racial. Gilroy alerta para a questão de que
“tanto os defensores como os críticos da modernidade parecem não atentar para o fato de que a
história e a cultura expressivas da diáspora africana, a prática da escravidão racial ou as
narrativas de conquista imperial européia podem exigir que todas as periodizações simples do
moderno e do pós-moderno sejam drasticamente repensadas”34.
Argumentando sobre o impacto violento da escravidão racial na sociedade marcada
pela modernidade, Gilroy afirma que uma parte muito expressiva da novidade que representa o
pós-moderno se oblitera, se desfaz, quando analisada sob a ótica da luz histórica inexorável
que representou os encontros entre europeus e aqueles que eles conquistaram, mataram e
escravizaram, de uma forma brutal e inconseqüente. Daí a importância da periodização do
moderno e do pós-moderno para a história do negro no ocidente e da sua narrativa histórica
das relações de dominação e subordinação entre povos da Europa e o resto do mundo. Assim,
a periodização “é essencial para nossa compreensão da categoria de ‘raça’ em si mesma e da
gênese do desenvolvimento das formas sucessivas da ideologia racista. É pertinente acima de
tudo, na elaboração de uma interpretação das origens e da evolução da política negra.”35.
Gilroy se preocupa com a evolução do racismo científico para formas culturais novas,
um tipo mais complexo de racismo gestado no pós-guerra, em lugar da hierarquia biológica
simples tratada pela cientificidade do século da razão. Para ele o racismo científico,
propugnado em meados do século XIX, foi o produto intelectual mais durável da
modernidade. Como vimos, a questão da dominação racial e suas conseqüências não faz parte
da agenda de debates da modernidade. Em seu lugar, afirma ele, aparece uma modernidade
inocente que discute a vida feliz pós-iluminista em Paris, Berlim ou Londres.
Esses lugares europeus são prontamente purgados de qualquer traço dos
povos sem história, cujas vidas degredadas poderiam levantar questões
incômodas sobre os limites do humanismo burguês. A famosa pergunta de
Montesquieu ‘como pode alguém ser persa?’ permanece obstinada e
deliberadamente sem resposta. 36.
34
Gilroy, Paul. Op. Cit. P. 103.
35
Gilroy, Paul. Op. Cit. P. 106.
36
Gilroy, Paul. Op. Cit. P. 107.
30. 20
Um fator que explica a atmosfera conflituosa na região compreendida pela
comunidade do Mata Cavalo, sem dúvida, é a questão da racialização e tudo que ela trás de
problemas inerentes aos processos do estranhamento em relação ao “outro”, à alteridade. Sob
esse prisma, a pergunta de Montesquieu certamente não encontrará resposta satisfatória,
constituindo mesmo talvez uma impossibilidade. Apesar de estarem na região há quase um
século e meio, os remanescentes desta comunidade são vistos como os outros, os estrangeiros
e em certo nível até como “exóticos”. Essa condição singular, que foi percebida por Stuart
Hall com relação às comunidades na diáspora, é fundamental para o entendimento dos
processos de edificação da própria identidade em seus interiores. Numa visão um pouco
simplista das formulações deste pensador, quando saímos de nosso lugar de origem, perdemos
a condição do retorno a ele ao mesmo tempo em que no local de destino somos considerados
estrangeiros.37 Apanágio dos tempos pós-modernos, em função dos intensos movimentos
migratórios, a identidade nesta condição única só poderia ser constantemente conformada
pelas vias do conceito da diáspora. Desterritorializados de seus lugares de origem os
remanescentes do Mata Cavalo recriaram, na diáspora, o seu território conformando-o como
uma territorialidade única clivada pela tradição herdada de seus ancestrais. Isso explica o alto
valor simbólico que a terra possui para essa comunidade, para além de simples lugar de
recolhimento e subsistência, o que ocorre também com outras populações tradicionais. Numa
consideração minimalista constitui-se como lugar de fronteira entre o “eu” e o “outro”.
Jürgen Habermas, filósofo, eminente representante da Escola de Frankfurt e assistente
do também filósofo e sociólogo Theodor Adorno, em suas obras, foi hábil defensor do
potencial democrático da modernidade. No entanto Habermas não atenta para o fato de que
os ideais iluministas não consideravam a questão da raça, central no pensamento de Gilroy em
cujos conceitos acerca da escravidão racial destaca-se uma profunda contradição: “Há uma
tênue percepção, por exemplo, de que a universalidade e a racionalidade da Europa e da
América iluminista foram usadas mais para sustentar e transplantar do que para erradicar uma
ordem de diferença racial herdada da era pré-moderna.”38. Como vimos, os pensadores da
modernidade em sua grande maioria não observaram, em suas numerosas formulações, a
importante questão da escravidão racial como um dos elementos que a constituem e lhe
37
Durante nossa qualificação fomos questionados acerca da afirmação referida. Naquela oportunidade a
avaliadora destacou que essa afirmação não pode ser extensiva a todos os grupos sociais, em especial levando-se
em conta a denominada ‘diáspora gaucha’ no norte de Mato Grosso, ainda que para o contexto de investigação
dessa pesquisa essa afirmação seja procedente.
38
Gilroy, Paul. Op. Cit. P. 114.
31. 21
conferem sua condição privilegiada nas vias das grandes inovações do mundo pós-guerras.
Desta forma, contribuem com os continuísmos históricos, presentes nas políticas sócio-
culturais, capazes de fazer sombra à importante movimentação das comunidades negras ao
mesmo tempo em que legitima as relações de poder no seu interior.
Na região onde se encontra a comunidade do Mata Cavalo, são visíveis as práticas
racistas principalmente se considerarmos que aquelas terras constituem objeto de disputa entre
ela e alguns fazendeiros que ali se instalaram ao longo do tempo. Obviamente, o contexto
violento do litígio acrescenta um elemento de instabilidade a mais nas complexas relações
sociais entre os remanescentes e representantes da sociedade circunvizinha. Em resposta às
pressões do meio envolvente, alguns membros dessa comunidade tradicional, principalmente
aqueles ligados à comunidade do Mutuca, empenham-se na participação dos movimentos
negros na região e também no país. Cientes de sua condição singular, procuram da melhor
forma possível edificar o seu espaço como um território de negros, um local decantado pela
história como remanescentes de quilombo. Conectados à vanguarda desses movimentos
negros integram-se, de alguma forma, ao mundo do “Atlântico negro” e tudo que ele
representa de possibilidades e afirmação no interior da sociedade globalizada, pelas vias da
valorização da negritude. Portanto, embora presos à sua condição econômica, social e política
enquanto “locais” conseguem ideologicamente transitar por algumas esferas delimitadas pelo
mundo globalizado. Essa condição representa certo avanço, mas não modifica
substancialmente o status quo desta comunidade tradicional que luta, cotidianamente, por sua
própria sobrevivência enquanto tal.
Na verdade, apesar da integração de alguns segmentos da comunidade do Mata Cavalo
aos movimentos negros globalizados, a realidade do cotidiano no seu interior é marcado pela
política de continuísmos históricos colaborando para a manutenção das estruturas de poder
vigente, como aponta Gilroy. Isso reforça, sobremaneira, a necessidade de se protegerem em
uma comunidade estruturada fortemente nos imperativos da tradição e do modo de vida
comunal, que por sua vez alimenta os elos de solidariedade entre os membros do grupo, ainda
que existam no seu interior, coletividades que tenham outra perspectiva acerca de sua inserção
no mundo. Esse é exatamente o grande desafio a ser enfrentado pela comunidade como um
todo: como manter a tradição e as práticas sócio-culturais, arraigadas num período de longa
duração, em um mundo marcado por instabilidade, insegurança e profundamente
estigmatizado pela globalização?
32. 22
Paul Gilroy utiliza-se da obra e do pensamento de Frederick Douglass, intelectual e
ativista político em meados do século XIX, um forte candidato a ser o pai do “nacionalismo
negro”, pois entre grandes expressões do universo de pensadores do Atlântico negro [tais
como: Martin Delany, Edward Wilmot Blyden e Alexander Crummell] foi o único marcado
por sua condição de ex-escravo, fator que lhe confere uma posição privilegiada no estudo da
escravidão. Em sua complexa relação com a modernidade, evocava o iluminismo maior que
supostamente traria um pouco de luz para a escuridão ética da escravidão. Para ele a
Plantation escravista era marcada pelo arcaísmo e por sua condição anti-modernista. Gilroy
cita uma passagem de Douglass na sua clássica obra My bondage and my freedom (Minha
escravidão e minha liberdade), “[...] A Plantation é uma pequena nação em si mesma, tendo
seu idioma próprio, suas regras, regulamentos e costumes. As leis e instituições do Estado
aparentemente não a afetam em parte alguma. As dificuldades que surgem aqui não são
resolvidas pelo poder civil do Estado”39. Reiteradamente, Douglass entendia a Plantation
escravista como uma própria antinomia da modernidade, um sistema atrasado, pré-capitalista
e comparável às relações de trabalho pré-modernas da Europa feudal. Ele ia mais além ao
afirmar que, junto ao cristianismo que não fez outra coisa senão servir à causa burguesa, com
seus aparatos ideológicos da sujeição escrava, a Plantation significava estagnação, quando
não recuo, que encerrava a civilização na parte externa do mundo iluminista.
Considerando-se o panorama político e social na arena de conflito entre a comunidade
do Mata Cavalo e seus opositores, o pensamento de Frederick Douglass continua muito atual.
Comparando a Plantation escravista, do Sul dos Estados Unidos da América, com seu
arcaísmo das relações de trabalho e a política “coronelesca”, característica do Brasil do final
do século XIX e boa parte do século XX, encontramos, sem muito esforço, os resquícios dos
sistemas de dominação concentrado na idéia da superioridade da raça40 branca. A política dos
coronéis, o paternalismo às avessas, a estigmatização do negro em coisa e a facilidade com
que as elites dominantes lançam mão de subterfúgios, muitas vezes de forma ilícita,
evidenciam um problema ainda não resolvido ao mesmo tempo em que revela a herança de
39
Gilroy, Paul. Op. Cit. P. 49.
40
Utilizamos aqui o conceito de superioridade da raça branca para referenciar práticas ainda arraigadas na
mentalidade política de nossa sociedade de forma coletiva. Embora estudos recentes nas áreas das ciências
biológicas afirmarem sua inexistência comprovada em laboratório, a questão da racialização ainda é um
problema não resolvido. Através desse prisma não faz o menor sentido fingir que essa delicada questão já não
faz parte da nossa agenda de debates acadêmicos. Enquanto persistir na prática os processos de racialização e
suas nefastas conseqüências para as comunidades negras torna-se eticamente relevante a manutenção dos
esforços em torno de sua resolução, principalmente nos meios intelectuais em nossa sociedade.
33. 23
mais de três séculos de escravidão racial no Brasil. Apesar dos aparentes avanços nas relações
sociais entre negros e brancos em nossa sociedade, o que se verifica na prática, nessas
mesmas relações, entre as comunidades do Mata Cavalo e seus vizinhos é uma realidade
profundamente marcada por antagonismos e interesses difusos. Nessa delicada teia de
relações sociais, o preconceito racial determina o ritmo e a dinâmica turbulenta do convívio,
sempre difícil, de ambas as partes. Certamente, o interesse econômico envolvido na disputa da
terra explica, mantidas as devidas proporções, o contexto de instabilidade política naquela
região, mas não constitui a peça chave capaz de elucidar os problemas resultantes da
dificuldade na aceitação da alteridade, do diferente, do outro. Tanto nos Estados Unidos da
América, como aponta Douglass, como aqui, os ideais do iluminismo não consideraram a
posição dos negros africanos, cujo trabalho e herança cultural contribuíram inexoravelmente
para a constituição da própria modernidade ocidental.
2.3 Escravidão no Brasil
Na palestra de abertura do I Simpósio Internacional de Estudos sobre a Escravidão
Africana no Brasil, realizada em Junho de 2010 na cidade de Natal – RN, Luis Felipe de
Alencastro, cientista político e historiador, professor titular da cátedra de História do Brasil da
Universidade de Paris IV Sorbonne, alerta para a defasagem dos estudos da história atlântica
que atribui pouco valor à história do Atlântico Sul. De acordo com suas formulações, esse
silêncio na produção historiográfica escamoteia, parcialmente, a própria história do Brasil no
que se refere aos movimentos de migração forçada de africanos às terras brasileiras. Os dados
estatísticos divulgados pelo IPEA em 2010 confirmam o caráter da colonização africana no
Brasil, ao revelar que mais da metade da população brasileira é afro descendente. Outros
pesquisadores apontam defasagens ainda mais amplas que denotam silêncios quanto à história
da escravidão no interior da própria história da humanidade, como é o caso de Mary Del
Priore.
Priore, no prefácio à primeira edição de “Escravidão e Universo Cultural na Colônia:
Minas Gerais, 1716-1789” de Eduardo França Paiva, publicada pela Editora UFMG em 2001,
utiliza-se com muita propriedade da metáfora do “buraco negro” para descrever o vazio na
história da humanidade em função da escravidão racial moderna, uma história ainda não
resolvida, um devir à espera de reparações e resgates. Ainda segundo ela, no bojo das
34. 24
transformações provocadas pelas comemorações em torno do Centenário da Abolição,
trabalhos inéditos caminham no sentido de resgatar nossa dívida histórica aos africanos que
ajudaram a construir a imensa nação brasileira. A idéia do africano escravizado desprovido de
qualquer conhecimento e de capacidade intelectual, totalmente impregnado por crendices e
costumes degenerados, foi cultivada com muito esmero na memória coletiva do Brasil
Colônia e seus efeitos ainda se fazem presentes nos dias atuais. Conforme Paiva esta “é uma
marca facilmente identificável em práticas e representações culturais corriqueiras e, até
mesmo, nos mais recentes programas curriculares de História, desde o ensino fundamental até
os cursos de graduação universitária e de pós-graduação”.41 Posicionando-se em terreno
favorável, alguns setores da historiografia brasileira contemporânea, que trabalham com a
questão da escravidão racial da era moderna, privilegiam não mais os dualismos de natureza
reducionista, antagonismos que opunham à África bárbara a “civilização” da Europa
iluminista, mas sim, os esforços no resgate do cotidiano de homens e mulheres que, vivendo
no limite entre cativeiro e liberdade construíram imaginativamente seus modos de vidas
peculiares. Fluxos e refluxos de suas historias, os dois lados de uma mesma moeda,
entendimento e negociação. (Vide citação 42).
Como temos enfaticamente insistido ao longo deste capítulo, as relações sociais e
culturais da comunidade do Mata Cavalo com seus vizinhos próximos e também com os
habitantes das cidades no seu entorno são marcadas por antagonismos e idéias preconcebidas
por parte de quem enxerga os remanescentes como “outros”, “exóticos”, “diferentes”.
Conforme Paiva esta é uma característica de fácil identificação no caldo de cultura originado
no panelão do Brasil Colônia, estando, pois, profundamente arraigado na mentalidade coletiva
como um todo. Essa questão nodal possibilita o entendimento dessas complicadas relações,
não só no âmbito da comunidade aqui estudada, mas também no que se refere às comunidades
negras em geral. No entanto, de acordo com a nova tendência da historiografia que trata da
escravidão racial da era moderna, uma nova linha de pensamento desenvolve-se com grande
expressão, resgatando a dignidade do negro como ator de sua própria história42. No Mata
Cavalo, observamos o esforço sempre contínuo na manutenção de uma tradição afro-
41
Paiva, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789. – Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2001. p. 218.
42
Entre os representantes dessa nova tendência historiográfica destaca-se: Eduardo França Paiva (Bateias,
carumbés, tabuleiros: mineração africana e mestiçagens no novo mundo); Luíza Rios Ricci Volpato (Cativos do
sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá: 1850/1888); Robert Slenes (Família escrava e trabalho); Manolo
Florentino (A paz das senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro: 1790/1850); Eduardo Silva
e João José Reis (Negociação e conflito: A resistência negra no Brasil escravista).
35. 25
referenciada, através do culto à memória ancestral herdada das senzalas o que, de forma
bastante intensa, recupera a posição de seus integrantes como sujeitos ativos frente à suas
próprias histórias. Como veremos a seguir, os descendentes de africanos no Brasil negociaram
da melhor forma possível os seus modos de vida. Na seqüência da investigação, buscaremos
os elementos que corroboram com a idéia central, proposta inicialmente, nos caminhos de
construção da identidade negra, tendo como parâmetro a memória escrava e,
substancialmente, o valor da terra, como meio e fim de todo processo. Para tanto, torna-se
necessário entender como se processou, ao longo da história dos afro-descendentes na
diáspora em terras brasileiras, os caminhos de uma identidade negra específica, conformando
aspectos sócio-culturais relevantes às comunidades tradicionais que se formaram deste lado
do Atlântico.
Segundo Florentino “[...] 40% dos quase 10 milhões de africanos importados pelas
Américas desembarcaram em portos brasileiros”43. Não constitui grande problema identificar
no fluxo contínuo externo da oferta de mão de obra escrava barata a própria permanência do
sistema escravista. Não podemos desconsiderar os cálculos econômicos da empresa colonial,
que certamente faziam parte das preocupações de todos que se envolveram de alguma forma
no rentável negócio da escravidão. Certamente, os comerciantes da empresa escravista
colonial perceberam que à reprodução física dos homens correspondia, na escala dos cálculos
econômicos, a reprodução da própria oferta de mão de obra e da força disponível para o
trabalho.
Analisando a empresa escravista sob esse prisma, Florentino assevera que nos momentos
de expansão dessa economia verificava-se a necessidade de ampliação do plantel de escravos:
“Ao aumento do volume das exportações de produtos tropicais correspondia o da importação
de mercadorias muito especiais – os homens”.44 Afastando-se da questão da ética e do
politicamente correto, o comércio e a utilização do escravo africano condicionou-se à própria
lógica do mercado e do capital. Por um lado o baixo preço da mercadoria em si – o africano
escravizado – permitia o contínuo fluxo de reabastecimento da mão de obra requerida, ao
mesmo tempo em que alimentava o vetor principal dessa economia: o próprio tráfico. Uma
lógica perversa. Isso explica as condições insalubres a que os escravos eram submetidos, ao
menos no longo período compreendido entre o início da empresa escravista e meados do
43
Florentino, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de
Janeiro: séculos XVIII e XIX. – São Paulo: Companhia das Letras, 1997. P. 23.
44
Florentino, Manolo. Op. Cit. P. 24.
36. 26
século XIX com o recrudescimento em torno das campanhas abolicionistas. Não havia,
aparentemente, uma grande preocupação na manutenção da longevidade da escravaria, como
explica Florentino: “Mas a alta mortalidade escrava daí derivada tramaria para a constância da
incapacidade colonial em suprir, internamente, de braços as empresas exportadoras. Desse
ponto de vista, a perenidade do comércio de almas deveria remeter paradoxalmente, ao
próprio tráfico.”45 Conclui-se, portanto, que a mão de obra indígena só foi substituída pela do
africano devido à perspectiva da alta lucratividade que o tráfico negreiro propiciaria à
economia colonial, como já o afirmava Fernando Novais na sua obra “Portugal e Brasil na
crise do antigo sistema colonial” publicada em 1983. De fato, como percebe Florentino o
comércio de escravos africanos firmou-se “como um dos mais importantes setores de
acumulação para o capital comercial europeu”.46
Essa lógica capitalista desarticula alguns conceitos cristalizados na historiografia, tais
como o da inadaptação do índio à cultura da lavoura, por um lado, e a suposta necessidade de
se povoar o Novo Mundo, por outro. Não que não fosse necessário tal povoamento se
considerada as questões de ordem geopolítica de ocupação das colônias, no contexto das
conquistas de além-mar. Discute-se, nesse momento, o motivo da preferência pela mão de
obra do africano escravizado. Quaisquer outras formas de trabalho se não a compulsória
também não interessava à Metrópole “pois não impediriam a dispersão dos recursos coloniais
na produção para a subsistência, possibilidade real caso o trabalho fosse livre (do europeu ou
de qualquer outro).”47
O peso da economia do tráfico e sua dinâmica comercial explicam como, apesar da
oposição do maior império europeu da época, foi possível a manutenção e a sobrevivência do
comércio transatlântico de escravos até o ano de 1830 oficialmente e, de acordo com
Florentino “de maneira ilegal até meados do século XIX”.48 No entanto, para esse período de
eminente crise do sistema escravocrata no Brasil, o valor do escravo alcançou índices
elevados desestabilizando a relação custo/benefício para o senhoriato que necessitava da sua
mão de obra. Com a supervalorização do preço do escravo, a sua possível perda por morte ou
qualquer outro motivo significava prejuízos imensos, o que levou os empresários escravistas a
utilizarem de seguros contra morte, como comprova a apólice de seguro nº 5032 que favorecia
45
Florentino, Manolo. Op. Cit. P. 25.
46
Florentino, Manolo. Op. Cit. P. 26.
47
Florentino, Manolo. Op. Cit. P. 72.
48
Florentino, Manolo. Op. Cit. P. 211.
37. 27
o Sr. Antonio Joaquim Pereira Borges, encontrada no acervo documental da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro.49 (Vide anexos).
Essa apólice de seguro revela dados impressionantes acerca das práticas comerciais
relativas à escravidão na cidade do Rio de Janeiro. Possivelmente a empresa seguradora
dedicava-se com exclusividade ao ramo de seguros de escravos conforme atesta o seu próprio
nome “Companhia Mútua de Seguro de Vida dos Escravos”. O número 2920 referente a esse
segurado revela uma grande demanda por esse tipo de operação financeira. Isto significa que
quase três mil escravos já haviam sido segurados por essa empresa até a data de assinatura da
referida apólice, 6 de agosto de 1860. O valor do seguro a ser pago por ocasião da morte do
escravo segurado ultrapassa a cifra de um conto de reis, um valor considerável se comparado
a outros bens nesse período histórico. Segundo se pode apurar em documentos de inventários
datados de 1851, Eduardo Campos apontou o valor de 360 mil reis referente a 30 vacas, 35
mil reis atribuídos a um cavalo castanho novo e 150 mil reis por uma escrava mulata com
idade de 50 anos50. Confrontando esses dados, o valor do premio do seguro estipulado em
mais de hum conto de reis equivaleria ao preço de 86 vacas, uma cifra sem dúvida nenhuma
considerável.
Obviamente, esses números revelam o alto valor que a mercadoria representada pelo
africano escravizado alcançou na segunda metade do século XIX, em decorrência das
pressões em torno das políticas abolicionistas e a conseqüente redução da oferta e
disponibilidade dessa mão de obra. O que mais chama a atenção nesse documento são os
“silêncios” que demandam uma leitura mais atenciosa de suas “entrelinhas”. O artigo 22 da
regulamentação constante no anexo desta apólice de seguro, intitulada “Condições extrahidas
dos estatutos”, é particularmente emblemático revelando práticas de resistência por parte dos
escravos ao regime da escravidão racial. Segundo o artigo, “A companhia se responsabiliza
por qualquer gênero de morte, menos a que resultar de sevícias ou suicídio, quando este for
originado por acto forçado, castigo bárbaro ou tortura por parte do segurado”. Por um lado,
49
Para maiores detalhes, conferir a cópia do original da referida apólice de seguro, que se encontra nos anexos
desta dissertação.
50 De acordo com o inventário e partilha de bens dos falecidos Capitão Manoel Maria de Oliveira Bastos e sua
mulher Joana Joaquina Caídas na cidade de Saboeiro (Ceará), em 3 de janeiro de 1851, documento número 80 do
Arquivo Público do Estado do Ceará, levantado pelo pesquisador Eduardo Campos, em sua obra “Revelações: da
condição de vida dos cativos do ceará”. Disponível em: http://www.eduardocampos.jor.br/_livros/e27.pdf ,
acesso em 30 de Junho de 2010.
38. 28
está bastante clara a preocupação geral na preservação da integridade do escravo num
contexto diferente dos séculos anteriores, onde o preço muito inferior e a oferta abundante
possibilitava sua substituição sem maiores dificuldades. Por outro lado, o simples fato desse
artigo existir em uma apólice de seguro da época pressupõe que o suicídio do escravo ocorria
em quantidade tal que justificava a própria ressalva no pagamento do prêmio do seguro.
Segundo pesquisas de Oda e Oliveira o suicídio entre escravos constituía uma forma de
resistência ao regime da escravidão.51 De acordo com eles, foi a partir dos relatos de viajantes
estrangeiros no Brasil que essas práticas tornaram-se conhecidas apontando um alto índice de
suicídios entre os cativos, normalmente relacionados a fatores de ordem psicológica, tal como
o banzo – uma forma passiva de suicídio verificada na recusa de alimentos e profundo
abatimento provocado por tristeza e melancolia. Segundo dados estatísticos levantados
durante essa pesquisa:
No período entre 1847-1882, entre as 295 ocorrências em que se pôde saber
a condição do suicida, 160 (54,2%) foram de escravos e 9 (3%) de libertos,
sendo os restantes 131 (44,4%) de pessoas livres. Se reagruparmos os dados,
veremos que no período compreendido entre os anos de 1847 e 1860, os
escravos (134) constituem a maior parte do total de suicidas (222), ou seja
60,4%.
Esses números não podem ser desprezados, pois evidencia no limite da tensão uma
trágica forma de negociação centrada no próprio conflito, características intrínsecas da
contrapartida ao regime, a resistência em sua fórmula mais nua. Pensando em termos de
negociações, torna-se relevante desfazer a imagem, que se pretende naturalizada, do escravo
enquanto suicida. O artifício do suicídio não era a regra, mas sim a exceção, uma resultante,
elevada ao extremo, do próprio fim da possibilidade de negociação. No contexto das relações
entre escravos e senhores predominavam os imperativos da conformação à uma nova ordem,
sob a perspectiva do africano que se viu obrigado a viver no contexto da diáspora, em terras
estrangeiras, distantes de casa e de suas próprias culturas. Negociar significava viver no
espaço do possível. No decorrer da longa experiência histórica da escravidão racial no Brasil,
uma forma dicotômica de relacionamento sintetizou-se na mentalidade coletiva: “De um lado,
Zumbí de Palmares, a ira sagrada, o treme-terra; de outro, Pai João, a submissão
51
Dados provenientes da apresentação de trabalho de pesquisas ao 3º. Encontro Escravidão e liberdade no Brasil
Meridional, realizado de 2 a 4 de maio de 2007 na Universidade Federal de Santa Catarina, sob o título:
“Registros de suicídios entre escravos em São Paulo e na Bahia (1847 – 1888): notas de pesquisas”, realizadas
por Ana Maria Galdini, Raimundo Oda e Saulo Veiga Oliveira.