O documento discute como a escravidão no Brasil por séculos impactou as desigualdades sociais e econômicas atuais, como a naturalização da desigualdade e a segregação étnico-racial. Apesar de tentativas de promover a igualdade racial, como cotas universitárias, os negros ainda enfrentam menos oportunidades em educação, emprego e saúde.
1. Desigualdade como legado da escravidão no Brasil
Desigualdades
Impactos de séculos de utilização da mão de obra escrava
repercutem nas dimensões social e econômica do país
Por Maria Teresa Manfredo
2. Trazidos da África desde o início do século XVI, trabalhadores
escravos negros tiveram importante papel na economia do Brasil
até o século XIX e ajudaram a compor nossa cultura.
Embora os números da chamada “diáspora africana” não
sejam precisos, é consenso que nosso país foi o destino mais
frequente dos milhões de homens e mulheres feitos cativos no
continente africano, por mais de trezentos anos (veja
infográfico).
“As relações escravistas no Brasil foram complexas e seus
impactos culturais são inúmeros”, afirma Leandro Jorge
Daronco, doutor em História e professor do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha (IF – Campus Santa
Rosa, RS).
É preciso lançar pelo menos dois olhares sobre os legados da
escravidão no Brasil, segundo o historiador. O primeiro ponto
seria os aspectos formadores da cultura, da identidade e da
3. etnicidade brasileiras, pois o negro africano constitui um dos
pilares étnicos de nossa formação social e cultural.
Sua contribuição está imbricada na cultura geral, na
religiosidade, na multiculturalidade étnica, na culinária, na
musicalidade, na dança e nas demais expressões artísticas.
O segundo ponto seria a presença determinante do trabalho
negro nos principais ciclos produtivos da história brasileira:
açúcar, ouro, pecuária, café, entre outros.
O escravo tornou-se imprescindível ao funcionamento da
colônia e, mais tarde, do Brasil Imperial. Ao mesmo tempo, a
escravidão produziu mazelas históricas em nosso país que
dificilmente poderão ser reparadas. Uma dessas marcas é a
segregação étnico-racial.
4. Democracia racial
Após a abolição, a segregação dos negros foi
estrategicamente silenciosa. “Os problemas de racismo
historicamente ocorridos no Brasil foram cobertos por uma
roupagem demagógica e hipócrita que não contribui para
enfrentá-los, a exemplo do ocorrido nos Estados Unidos ou na
África do Sul. Nosso ‘apartheid’ continua invisível”, afirma
Daronco.
O pesquisador aponta que o negro pós-abolição percebeu-se
com a vida cerceada, desprovido de terra, do acesso à educação
e, em muitos casos, de qualificação profissional. “Restou
àqueles milhões de africanos e afro-brasileiros ‘sem sobrenome’
buscar as periferias urbanas como local de moradia, o trabalho
nas estradas de ferro, nas docas, ou permanecer junto a seus
antigos senhores em situação muito semelhante à vida dos
tempos de escravidão.”
5. Além disso, os governos republicanos que se seguiram,
muitas vezes influenciados por noções difundidas por
intelectuais brasileiros, disseminaram a ideia de uma
“democracia racial” em nosso país.
O historiador, sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre, nos
livros Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mocambos, deu sua
colaboração para isso. O conceito de democracia racial retira a
escravidão da ótica da dominação.
O mestiço afro-brasileiro comprovaria a mistura entre os
diferentes em nosso país, atestando, assim, que não somos
racistas. Daronco explica que, a partir da ideia de que vivemos
numa democracia racial, “o preconceito e o racismo foram
escamoteados pela visão idealizada de um passado de relação
harmônica entre os diversos grupos étnicos que se encontraram
aqui”.
Daniela do Carmo Kabengele, doutora em Antropologia pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), destaca que, na
6. educação, no mercado de trabalho, na política e em outras
importantes esferas da sociedade brasileira, a população negra
tem menos oportunidades que a população branca.
Esse fato seria estrutural, estruturante e histórico em nosso
país. “O racismo se faz presente no Brasil há muito tempo, de
maneira particular e na maior parte das vezes encoberta”,
relata.
Naturalização da desigualdade
Uma herança da escravidão particularmente sentida até os
dias atuais seria a naturalização da desigualdade em nossa
sociedade, explica Ricardo Alexandre Ferreira, doutor em
História e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp –
Campus Franca).
O Brasil do século XIX passou a manejar os novos ideais de
liberdade e igualdade apregoados no mundo ocidental e, ao
7. mesmo tempo, manteve em seus quadros legais a escravidão
dos africanos.
Nascia um país “moderno” que afirmava não poder se
desvencilhar imediatamente do cativeiro. Nascia um país “livre
e igual”, composto por meios cidadãos (os ex-escravos ou
libertos) e não cidadãos (os cativos).
“Esse legado, não menos importante do que os vinculados à
arte, à culinária, à construção de edificações, à religião, enfim,
ao desenvolvimento de uma cultura mestiça, acabou por nos
marcar efetivamente como um povo que tem desigualdade
enraizada em sua cultura”, pontua Ferreira.
A naturalização da desigualdade social é tratada no livro A
Ralé Brasileira, de Jessé Souza, professor da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), em que o autor expõe o drama
histórico da sociedade brasileira: a reprodução de uma
sociedade que considera normal e aceitável ter “gente” de um
lado e “subgente” de outro; uma sociedade discriminatória que
8. classifica seres humanos em diferentes categorias, de acordo
com sua posição econômica.
Acontece que, no Brasil, por processos históricos ligados à
escravidão, a desigualdade social está muito atrelada à questão
étnico-racial.
De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), de 1995 a 2005, acerca de especificidades da
situação social do negro no Brasil, ao longo de toda a vida, a
população negra é a que mais sofre com o mau atendimento do
sistema de saúde e termina por viver menos.
Devido à situação de pobreza em que a população negra está
majoritariamente inserida, bebês negros nascem com peso
inferior a bebês brancos e têm maior probabilidade de morrer
antes de completarem um ano de idade, além de menor
probabilidade de frequentar uma creche.
São também os brasileiros negros que apresentam as mais
altas taxas de repetência na escola, o que muitas vezes os leva
9. a abandonar os estudos em níveis educacionais inferiores aos
dos brancos.
Jovens negros morrem de forma violenta em maior número
que jovens brancos e têm probabilidades menores de encontrar
um emprego. Quando empregados, recebem menos da metade
do salário pago aos brancos, aposentam-se mais tarde e com
rendimentos inferiores.
No que diz respeito ao quadro pós-abolição, Daronco lembra
que, enquanto negros norte-americanos eram segregados no
emprego, grande parcela dos negros brasileiros eram
segregados do emprego.
O mundo do trabalho brasileiro foi perverso com os africanos
e afrodescendentes livres. Décadas foram necessárias para
amenizar as mazelas provocadas pela escravidão. Mesmo assim,
os números ainda são implacáveis quando se trata de
estabelecer parâmetros sobre os negros e pardos no Brasil:
índices de escolaridade, empregabilidade, vulnerabilidade
10. social, entre outros, denunciam o legado desigualdade da nossa
história.
Tentativas de suprir as desigualdades étnico-raciais
Observam-se, sobretudo na última década, tentativas de
redução das desigualdades étnico-raciais em nosso país,
expressas principalmente por políticas públicas afirmativas. Um
exemplo desse tipo de política, conhecido também como
“discriminação positiva”, é o sistema de cotas universitárias,
aprovado pelo Senado brasileiro e sancionado pela presidência
em agosto deste ano.
O sistema determina cotas raciais e sociais nas
universidades públicas federais de todo o país, devendo ser
metade das vagas nas universidades separadas para tais cotas
(25% do total de vagas destinados aos estudantes negros,
pardos ou indígenas, de acordo com a proporção dessas
populações em cada Estado, e 25% destinados aos estudantes
11. que tenham feito todo o segundo grau em escolas públicas e
cujas famílias tenham renda per capita de até um salário mínimo
e meio).
Contudo, alguns argumentos contrários à adoção desse
sistema pregam que as cotas vão fazer de nossa sociedade uma
sociedade racista.
Nesse sentido, Daniela Kabengele pondera: “ora, se é certo
que o Brasil não experienciou, stricto sensu, o apartheid, como
a África do Sul, nem as políticas abertamente discriminatórias
observadas nos Estados Unidos até 1964, certo também é que
o Brasil está longe de ser uma democracia racial”.
A antropóloga destaca que as cotas permitem colocar em
debate a presença desse racismo à brasileira e defende que as
mesmas funcionam como uma profícua medida antirracista.
Além disso, “estudos têm mostrado que os cotistas
consideram cotas uma conquista democrática e, nesse registro,
manifestam orgulho por sua condição. Os cotistas das
12. universidades que adotaram o sistema – tais como a
Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Estadual do
Rio de Janeiro (UERJ), Universidade de Brasília (UnB) e
Universidade do Estado da Bahia (Uneb) – tiveram
desempenhos iguais e até superiores aos não cotistas”, explica.
A criação, em 2003, da Secretaria de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial (SEPPIR), órgão do Poder Executivo,
demonstra a importância dos problemas atuais envolvendo a
desigualdade e o preconceito no país.
Assinala, também, que o efetivo alcance da democracia é um
assunto tão complexo e difícil como a relação do negro com a
História do Brasil.
Fonte: Univesp