1. BILINGUISMO EM SITUAÇÕES DE ESCRITA:
A receita culinária no cotidiano as mulheres descendentes de alemães
Silvana Soares da Silva Matuchaki (MESTRADO -UNIOESTE)
Ciro Damke (Prof. Doutor- UNIOESTE)
2. •
RESUMO: O presente artigo apresenta uma reflexão acerca da escrita de donas de casa,
descendentes de alemães, que aprenderam o dialeto alemão falado em seu meio familiar,
estabelecendo o contato com a língua portuguesa somente na educação primária. A
formação da identidade e da cultura de um grupo encontra-se interligada com a
diversidade linguística que a reflete por meio da interação entre os falantes, seja por
meio da fala ou da escrita. Os grupos de descendentes de alemães, que colonizaram o sul
do Brasil, representam essa diversidade, em que são estabelecidas as relações das línguas
em contato, que sobrevivem no meio familiar e social (DAMKE, SAVEDRA, 2013).
Dessa maneira, questiona-se a forma como a escrita está presente no cotidiano dessas
donas de casa e como ocorre o processo de letramento. Dessa maneira, o objetivo é
analisar a influência da oralidade na escrita de donas de casa, destacando o processo de
letramento (SOARES, 1999; KLEIMAN, 2005) no contexto social e familiar. Para isso,
toma-se como objeto de estudo os cadernos de receitas, tendo em vista o conceito de
língua escrita como prática social, estruturada a partir do gênero receita culinária,
pertencente à esfera familiar de circulação. A partir dessa análise, compreende-se que o
próprio meio influencia e estimula o uso da escrita nas mais diversas situações sociais e,
nesse caso, os textos que circulam na esfera familiar fazem das donas de casa, sujeitos
competentes linguisticamente, mesmo que nesses textos estejam presentes as marcas da
oralidade, próprias das línguas em contato.
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PALAVRAS-CHAVE: Letramento; identidade e cultura; línguas em contato.
3. A ESCRITA COMO FATOR IDENTITÁRIO
• Falar em identidade é falar da mescla de ideologias e
culturas que demarcam o espaço político e social e
que se afirmam por meio das relações estabelecidas
entre gerações.
• Concordamos com Damke e Savedra (2008, p. 54) de
que “a identidade é composta de diversas situações
sócio históricas e culturais”, estando em constante
transformação, sofrendo influências do meio social
em que o sujeito encontra-se inserido.
4. • As interferências de uma língua em outra, ultrapassam as barreiras da fala
e se concretizam também na escrita.
• Segundo Von Borstel (2011, p.88), “estudos sobre fenômenos de contato
linguístico apresentam-se como uma linguagem intercultural e dinâmica,
interativa e interdiscursiva, caracterizando a heterogeneidade linguística
em comunidades em que coexistem culturas e línguas distintas”.
• Presenciamos, dessa maneira, a constituição de identidades hibridas,
(MOITA LOPES, 2013) que forçados pelo contexto, necessitam da escrita
em situações de interlocução e consequentemente deixam suas marcas
identitárias, também em seus textos escritos, sempre na tentativa de se
expressar na língua do país em que se encontram.
5. O LETRAMENTO NA ESFERA COTIDIANA
• Para iniciarmos a discussão, lançamos mão do conceito de
letramento defendido por Soares (1999), em que a ação de
ser letrado está relacionada às práticas sociais da leitura e
da escrita, “condição que adquire um grupo social ou um
indivíduo como consequência de ter-se apropriado da
escrita” (SOARES, 1999, p. 18). Associa-se, então, ao
conceito de letramento a necessidade de escolarização, de
aprendizagem do sistema de escrita por meio de sua
utilização em situações de práticas comunicativas.
6. • As diversas situações de escrita pressupõe a
necessidade de se compreender o conceito
que envolvem o letramento, diante do quadro
de heterogeneidade linguística apresentado
anteriormente. Não se trata de se analisar o
letramento de maneira funcional, mas sim de
ressignificar a visão de sociedade letrada
considerando-se o processo identitário do
falante.
7. • Para Kleiman:
[…] tornar-se letrado é um processo identitário,
porque, em uma sociedade profundamente
dividida por questões sociais, como a brasileira, o
processo de inserção na cultura da escrita
equivale a um processo de aculturação, com a
violência simbólica aí pressuposta (KLEIMAN,
2010, p. 376).
8. A RECEITA CULINÁRIA E O COTIDIANO DAS
FAMÍLIAS
• Segundo Amon e Menasche (2008) é por meio
da comida que se manifestam os significados
socialmente construídos, ressaltando aspectos
das tradições e da identidade dos sujeitos.
Mesmo estando em outras terras, longe do
país de origem, os costumes se perpetuam e
se mesclam com a cultura local, recriando o
passado.
9. • Para Romanelli (2006), o ato de comer está
relacionado à cultura por significar um ato
simbólico carregado de hábitos e crenças, que
envolvem o particular, ao remeter à atitudes
próprias da escolha dos alimentos; e o coletivo,
carregado de regras de convivência, adaptadas
a cada situação social. Segundo o mesmo autor,
“a alimentação só pode ser entendida como
processo social complexo que envolve
diferentes esferas da vida social [...]”
(ROMANELLI, 2006, p.335).
10. • De acordo com Amon e Menasche (2008), a
receita é parte da transmissão de saberes que
“contam a memória social, contam a história
de como uma comunidade compreendeu e
aceitou o gosto, textura e forma de uma
comida”.
• Dos cadernos analisados, as receitas que mais
se destacam são de bolos, bolachas e a “cuca”,
o que constitui uma tradição entre as
mulheres descendentes de alemães.
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13. • Dessa maneira, chegamos a conclusão de que
as formas são adaptadas a fim de atender as
necessidades do falante, sem que para isso
haja a preocupação de se seguir normas
rígidas de composição textual. Esse aspecto
lembra Rojo (2012) ao citar a multimodalidade
e o multiculturalismo presentes nos eventos
de letramento. Ser letrado corresponde ao
processo de aprender a usar a língua em
determinadas situações de comunicação.
14. • O estigma com relação à escrita aparece destacado no momento
em que a Informante das receitas 1 e 2 demonstrou um certo
constrangimento ao compartilhar o que havia escrito, pelo fato de
que o que é cobrado pela sociedade está diretamente ligado com a
noção de “certo” e “errado” e não pelo entendimento de que a
língua se faz por meio dos processos de interação e a todo o
momento se reconstrói. Para Faraco (2008, p.136), “não se pode
misturar o nível estrutural e os valores sociais, entendendo que
aqueles que falam variedades linguísticas desvalorizadas
socialmente não são, por isso, linguisticamente inferiores”.
15. • A análise das receitas culinárias demonstra que a cultura
subjacente dos grupos de alemães que vieram para o Brasil
no século XIX, ainda estão presentes no sul do Brasil e que
as interferência linguísticas somente vem ressaltar os
aspectos dessa cultura. Por isso, precisamos rever os valores
que fundamentam as políticas linguísticas do país a fim
perceber essa diversidade, abrindo espaço para a
sensibilização, para a visão de uma perspectiva de
letramento que fundamente seus conceitos tendo em vista
a diversidade, não somente de línguas em contato, mas
também do próprio português brasileiro.
16. • REFERÊNCIAS
• AMON, Denise; MENASCHE, Renata. Comida como narrativa da memória social. Sociedade e Cultura. v. 11, p. 13- 21 , jan/jun., 2008.
• BRITO, Luiz P. L. Escola, ensino de língua, letramento e conhecimento. Caleidoscópio, v. 5, n. 1, p. 24-30, jan/abr 2007
• DAMKE, Ciro; SAVEDRA, Monica M. G.. Volkslieder (músicas populares alemãs) no sul do Brasil: aspectos linguísticos, socioculturais e identitários. São Carlos: Pedro &João Editores, 2013.
• ____. As interferências do alemão como Língua Materna na aprendizagem do Português. 358 f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 1988.
• KLEIMAN, Angela B. Trajetórias de acesso ao mundo da escrita: relevância das práticas não escolares de letramento para o letramento escolar. Perspectiva, Florianópolis, v. 28, n. 2, 375400, jul./dez., 2010.
• MINTZ, Sidney W.Comida e antropologia: uma breve revisão. RBCS v.16 n. 47 p. 31-47, outubro, 2001.
• FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
• FRIEDRICH, Fabiana H. O tesouro das famílias: cadernos de receitas e a adaptação da culinária dos imigrantes alemães: (Rio Grande do Sul, 1850-1930). UNIFRA, Santa Maria, RS, 2012.
• SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. São Paulo: Autêntica 1999.
• ROJO, Roxane. Pedagogia dos Multiletramentos: diversidade cultural e de linguagens na escola. In ROJO, Roxane Helena Rodrigues & MOURA, Eduardo. (Orgs.). Multiletramentos na
escola. São Paulo: Parábola, 2012. pp. 11-31.
• VON BORSTEL, Clarice. A linguagem sociocultural do Brasildeutsch. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011.