1. A Questão de Raça e Etnia
Para começar, reflita sobre as seguintes questões: negros e brancos são tratados igualmente
em nossa sociedade? Negros e brancos possuem as mesmas oportunidades de acesso à
educação, emprego, saúde e outros direitos sociais? Afinal, somos um povo racista ou não?
Por que precisamos de uma lei que afirme que “o racismo é crime inafiançável”? E como
podemos realizar uma educação das relações étnico-raciais?
E então? Percebeu como questões complexas estão envolvidas nas relações étnico-raciais?
Essa será nossa preocupação nesta disciplina, desvendar os porquês da permanência do
racismo, suas causas e consequências, bem como as múltiplas implicações na promoção da
igualdade racial na escola e na comunidade.
A partir da aprovação da Lei Federal 10.639/2003, que inclui no currículo oficial da rede de
ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-brasileira, o interesse pela
questão das relações étnico-raciais e afrodescendência aumentou consideravelmente. Nesse
sentido, poder público, sociedade civil, movimentos sociais, enfim, toda a sociedade deve
estar envolvida no projeto de uma educação pela igualdade étnico-racial no Brasil. Leia o que
afirma o Parecer do Conselho Nacional de Educação, CNE-CP 3/2004 com as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana:
(…) um equívoco a superar é a crença de que a discussão sobre a questão racial se limita ao
Movimento Negro e a estudiosos do tema e não à escola. A escola, enquanto instituição social
responsável por assegurar o direito da educação a todo e qualquer cidadão, deverá se
posicionar politicamente, como já vimos, contra toda e qualquer forma de discriminação. A
luta pela superação do racismo e da discriminação racial é, pois, tarefa de todo e qualquer
educador, independentemente do seu pertencimento étnico-racial, crença religiosa ou posição
política. O racismo, segundo o Artigo 5º da Constituição Brasileira, é crime inafiançável e
isso se aplica a todos os cidadãos e instituições, inclusive, à escola. (BRASIL, 2004, p. 7)
Nesse sentido, prossiga seus estudos e envolva-se pessoalmente nesse projeto.
Raça
A palavra raça será tomada a partir de uma perspectiva sócio-histórica, segundo preconizam
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, aprovadas em junho de 2004 pelo
Ministério da Educação:
É importante destacar que se entende por raça a construção social forjada nas tensas relações
entre brancos e negros, muitas vezes simuladas como harmoniosas, nada tendo a ver com o
2. conceito biológico de raça cunhado no século XVIII e hoje sobejamente superado. Cabe
esclarecer que o termo raça é utilizado com frequência nas relações sociais brasileiras, para
informar como determinadas características físicas, como cor de pele, tipo de cabelo, entre
outras, influenciam, interferem e até mesmo determinam o destino e o lugar social dos
sujeitos no interior da sociedade brasileira. (Brasil, 2004).
Portanto, podemos assumir o uso do termo raça quando quisermos nos referir aos aspectos
físicos (à aparência exterior herdada e transmitida hereditariamente), que mostram
repercussões negativas nas relações entre brancos e negros, ou seja, quando for necessário
demonstrar as tensões existentes a partir das diferenças na cor de pele, olhos, tipos de cabelo
etc, a partir de um padrão estético branco e europeu, que estabelece também relações de
dominação.
Etnia
Trata-se de um conceito que compreende as relações sociais estabelecidas entre sujeitos que,
entre outras coisas, se reconhecem possuidores de uma origem comum, em contraste com
outros, integrantes de grupos diferentes, na sociedade abrangente. Vejamos o verbete “etnia”
apresentado no Dicionário de Relações Étnicas e Raciais (apud Cashmore, 2000, p. 196):
Um grupo possuidor de algum grau de coerência e solidariedade, composto por pessoas
conscientes, pelo menos em forma latente, de terem origens e interesses comuns. Um grupo
étnico não é mero agrupamento de pessoas ou de um setor da população, mas uma agregação
consciente de pessoas unidas ou proximamente relacionadas por experiências compartilhadas.
Fica claro, portanto, que etnia implica, por um lado, posicionamento, pertencimento, opção,
escolha, autodenominação do sujeito tendo por referência determinado grupo étnico. Nesse
sentido, a atribuição de pertença de determinada pessoa a determinado grupo étnico é, em
primeiro lugar, endógena, ou seja, parte do próprio sujeito, devendo ser necessariamente a
decisão de pertencimento da própria pessoa que se afirma como parte daquele grupo étnico.
Entretanto, a definição da identidade étnica não é somente endógena, mas diz respeito
também aos significados atribuídos por outros grupos, ou seja, é na mesma medida exógena.
O racismo científico e as ideias eugenistas no Brasil
Foi no século XIX que a ciência, através da teoria positivista, produziu uma ampla explicação
que colocava os seres humanos organizados hierarquicamente, partindo do princípio de que há
diferenças entre as raças que os colocam naturalmente uns superiores aos outros. É importante
frisar que a palavra “naturalmente” é tomada aqui no seu sentido mais estrito, trazendo para o
3. plano da natureza a lógica e a organização dos grupos sociais. A esse respeito, afirmam Lima
e Vala (2004, p. 402):
O racismo constitui-se num processo de hierarquização, exclusão e discriminação contra um
indivíduo ou toda uma categoria social que é definida como diferente com base em alguma
marca física externa (real ou imaginada), a qual é ressignificada em termos de uma marca
cultural interna que define padrões de comportamento. Por exemplo, a cor da pele sendo
negra (marca física externa) pode implicar a percepção do sujeito (indivíduo ou grupo) como
preguiçoso, agressivo e alegre (marca cultural interna). É neste sentido que (…) o é uma
redução do cultural ao biológico, uma tentativa de fazer o primeiro depender do segundo.
Portanto, uma vez que a ciência passou a definir uma ordem natural da realidade social, todas
as diferenças dos traços exteriores, como cor de pele, cabelo, fisionomias, serviriam a partir
de então para colocar homens e mulheres “naturalmente” uns superiores aos outros e, contra
essa “verdade inquestionável”, nada nem ninguém poderia se contrapor ou fazer alguma coisa
a respeito.
O estudo detalhado sobre a eugenia no Brasil encontra-se no livro de Pietra Diwan. Tratava-se
de uma ciência para o “aprimoramento da raça humana”, a partir da qual várias políticas
foram implantadas no Brasil, visando o “branqueamento da população” e a “cura da fealdade”
do povo brasileiro.
Para esses intelectuais, médicos, escritores, juristas e políticos pertencentes às sociedades
eugênicas fundadas no Brasil, a miscigenação era impedimento para o desenvolvimento do
país, pois provocava loucura, criminalidade e doenças. A cura para os males do Brasil seria
“civilizar a herança indígena roubada pelos portugueses e branquear nossa herança negra”,
segundo estudos da autora. As soluções para o “problema da miscigenação” no Brasil,
encontradas pelo Estado Republicano na passagem para o século XX, foi a implantação no
país de várias medidas eugenistas, a saber:
a) branqueamento pelo cruzamento;
b) controle da imigração;
c) regulação de casamentos;
d) segregacionismo e esterilização.
É muito importante lermos o texto completo de Pietra Diwan, a fim de compreender
profundamente o significado da eugenia, uma das questões mais controversas em nossa
história recente, que se torna praticamente um tabu, tendo em vista a forma como se deu o
banimento desse assunto em todos os livros de história e biografias no Brasil e no mundo (a
autora também usa a expressão “amnésia”). É como se a eugenia nunca tivesse existido,
ficando a impressão de que somente os nazistas alemães teriam sido “desumanos” o bastante
para levar adiante um projeto eugenista daquela envergadura. Tomados como “bodes
expiatórios” da ciência eugenista mundial, ficam conhecidos como os “grandes vilões da
história”, por terem praticado o holocausto contra 6 milhões de judeus na II Guerra Mundial.
4. O racismo à brasileira e o mito da democracia racial
O racismo que surge e se preserva na história do Brasil tem uma configuração muito própria,
conforme chamaremos neste módulo de “racismo à brasileira”.
Roberto DaMatta é um dos autores que nos chama a atenção para o nosso passado
extremamente ambíguo, uma vez que vivíamos uma condição social fortemente hierarquizada
e, ao mesmo tempo, precisávamos nos colocar no cenário internacional como uma nação dita
moderna, democrática, de iguais. Neste ponto de nossa reflexão, queremos enfatizar o aspecto
contraditório que até hoje não foi resolvido em nosso meio, o chamado “mito da democracia
racial”. A esse respeito, vejamos o que nos diz DaMatta (1987, p. 69):
Pode-se, pois, dizer que a “fábula das três raças” se constitui na mais poderosa força cultural
do Brasil, permitindo pensar o país, integrar idealmente sua sociedade e individualizar sua
cultura. Essa fábula hoje tem a força e o estatuto de uma ideologia dominante: um sistema
totalizado de ideias que interpenetra a maioria dos domínios explicativos da cultura.
Portanto, durante muito tempo, negamos o racismo em nossa sociedade, apoiados nesses
argumentos sobre a cordialidade do brasileiro e a fábula das três raças, atrasando em muitas
décadas a inclusão de grupos excluídos ao longo de nossa história. Somente a partir do final
dos anos de 1990 é que passamos a adotar medidas legais de ações afirmativas para acelerar o
acesso de grupos afrodescendentes aos direitos sociais fundamentais.
Fonte: online.unip.br (acesso exclusivo aos alunos)