O documento descreve o "caboclo", um homem sem-terra do Brasil que vive de forma itinerante e predatória, destruindo a floresta para plantar e caçar. Ele é retratado como preguiçoso, fatalista e incapaz de progresso, vivendo em completa comunhão com a terra mas causando seu declínio através da derrubada e queima indiscriminada das árvores. Sua filosofia é de esforço mínimo para sobreviver sem qualquer noção de futuro ou pertencimento a uma nação.
4. A nossa montanha é vítima de um parasita, um
piolho da terra, peculiar ao solo brasileiro como o
Argas o é aos galinheiros ou o Sarcoptes mutans à
perna das aves domésticas. Poderíamos,
analogicamente, classificá-lo entre as variedades
do Porrigo decalvans ...
5. o parasita do couro cabeludo produtor da
“pelada”, pois que onde ele assiste se vai
despojando a terra de sua coma vegetal até cair
em morna decrepitude, nua e descalvada. Em
quatro anos, a mais ubertosa região se despe dos
jequitibás magníficos e das perobeiras milenárias
...
6. Este funesto parasita da terra é o CABOCLO,
espécie de homem baldio, seminômade,
inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela
na penumbra das zonas fronteiriças.
7. A medida que o progresso vem chegando com a
via férrea, o italiano, o arado, a valorização da
propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o
seu cachorro, o seu pilão, a pica-pau e o isqueiro,
de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo
a soma. Encoscorado numa rotina de pedra, recua
para não adaptar-se.
8. Chegam silenciosamente, ele e a “sarcopta” fêmea,
esta com um filhote no útero, outro ao peito, outro
de sete anos à ourela da saia - este já de pitinho na
boca e faca à cinta.
9. Tão íntima é a comunhão dessas palhoças com a
terra local, que dariam ideia de coisa nascida do
chão por obra espontânea da natureza - se a
natureza fosse capaz de criar coisas tão feias.
Barreada a casa, pendurado o santo, está lavrada a
sentença de morte daquela paragem.
10. Com a pica-pau, o caboclo limpa a floresta das aves
incautas. Pólvora e chumbo adquire-os vendendo
palmitos no povoado vizinho.
Depois ataca a floresta. Roça a derruba, não
perdoando ao mais belo pau. Árvores diante de
cuja majestosa beleza Ruskin choraria de comoção,
ele as derriba, impassível, para extrair um mel-de-
pau escondido num oco.
11. Enquanto a mata arde, o caboclo regala-se.
Eta fogo bonito!
Não há recurso legal contra ele. A única pena
possível, e barata, fácil e já estabelecida como
praxe, é “tocá-lo”.
Curioso este preceito: “ao caboclo, toca-se”.
Toca-se, como se toca um cachorro importuno, ou
uma galinha que vareja pela sala.
12. Entrado setembro, começo das “águas”, o caboclo
planta na terra em cinzas um bocado de milho,
feijão e arroz; mas o valor da sua produção é
nenhum diante dos males que para preparar uma
quarta de chão ele semeou.
13. O caboclo é uma quantidade negativa. Tala
cinquenta alqueires de terra para extrair deles o
com que passar fome e frio durante o ano. Calcula
as sementeiras pelo máximo da sua resistência às
privações. Nem mais, nem menos.
15. Porque a verdade nua manda dizer que entre as
raças de variado matiz, formadoras da
nacionalidade e metidas entre o estrangeiro
recente e o aborígine de tabuinha no beiço, uma
existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução,
impenetrável ao progresso. Feia a soma, nada e
põe de pé.
16. Nada o esperta. Nenhuma ferrotoada o põe de pé.
Social, como individualmente, em todos os atos da
vida, Jeca, antes de agir, acocora-se.
17. Jeca Tatu é um piraquara do Paraíba, maravilhoso
epítome de carne onde se resumem todas as
características da espécie.
18. Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e
feio na realidade!
Jeca mercador, Jeca lavrador, Jeca filósofo...
Seu grande cuidado é espremer todas as
consequências da lei do menor esforço - e nisto vai
longe.
19. Quando a palha do teto, apodrecida, greta em
fendas por onde pinga a chuva, Jeca, em vez de
remendar a tortura, limita-se, cada vez que chove,
a aparar numa gamelinha a água gotejante...
Remendo... Para quê? se uma casa dura dez anos e
faltam “apenas” nove para que ele abandone
aquela?
Esta filosofia economiza reparos.
20. “Por que não remenda essa parede, homem de
Deus?”
“Ela não tem coragem de cair. Não vê a escora?”
Não obstante, “por via das dúvidas”, quando ronca
a trovoada, Jeca abandona a toca e vai agachar-se
no oco dum velho embiruçu do quintal - para se
saborear de longe com a eficácia da escora santa.
21. Um terreirinho descalvado rodeia a casa. O
mato o beira. Nem árvores frutíferas, nem
horta, nem flores - nada revelador de
permanência.
Há mil razões para isso; porque não é sua a
terra; porque se o “tocarem” não ficará
nada que a outrem aproveite;
porque para frutas há o mato; porque a
“criação“ come;
22. “Não paga a pena.”
Todo o inconsciente filosofar do caboclo
grulha nessa palavra atravessada de
fatalismo e modorra. Nada paga a pena.
Nem culturas, nem comodidades. De
qualquer jeito se vive.
23. O fato mais importante de sua vida é, sem
dúvida, votar no governo...
Vota. Não sabe em quem, mas vota...
24. ... Aqui tratamos da regra e a regra é Jeca Tatu.
O mobiliário cerebral de Jeca, à parte o suculento
recheio de superstições, vale o do casebre. O
banquinho de três pés, as cuias, o gancho de
toucinho, as gamelas, tudo se reedita dentro de
seus miolos sob a forma de ideias: são as noções
práticas da vida, que recebeu do pai e sem
mudança transmitirá aos filhos.
25. O sentimento de pátria lhe é desconhecido.
Não tem sequer a noção do país em que
vive.
26. Todos os volumes do Larousse não bastariam para
catalogar-lhe as crendices, e como não há linhas
divisórias entre estas e a religião, confundem-se
ambas em maranhada teia, não havendo distinguir
onde pára uma a começa outra.
27. A ideia de Deus e dos santos torna-se jeco-cêntrica
[... ] Uma torcedura de pé, um estrepe, o feijão
entornado, o pote que rachou, o bicho que
arruinou – tudo diabruras da corte celeste, para
castigo de más intenções ou atos.
Daí o fatalismo. Se tudo movem cordéis lá de cima,
para que lutar, reagir? Deus quis...
28. ... o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a
modorrar silencioso no recesso das grotas.
Só ele não fala, não canta, não ri, não ama.
Só ele, no meio de tanta vida, não vive...