O documento discute somatização e sintomas físicos inexplicados para médicos de família e comunidade. Apresenta casos clínicos de pacientes com queixas somáticas e discute fatores de risco, diagnósticos e abordagens terapêuticas, incluindo a reatribuição dos sintomas.
Somatização e sintomas físicos inexplicados para o médico de família
1. Somatização e Sintomas Físicos
Inexplicados para o Médico de
Família e Comunidade
Hélio Rocha
Psiquiatra
Mestre IPUB - UFRJ
2. Somatização e Sintomas Físicos
Inexplicados para MFC
Marlene, 27 anos, solteira, professora na cidade de Coronel
Fabriciano (50 mil habitantes), em Minas Gerais, mora com a mãe
(seu pai morreu quando estava com 17 anos) perto da ESF
Manguinhos. Há cerca de dois meses Marlene vem procurando, toda
semana, o atendimento da ESF, sendo atendida por diversas
pessoas da equipe, sempre dizendo que está “passando mal”,
embora nunca se verificasse nenhuma alteração de pressão ou de
qualquer outro sinal vital. Devido às queixas persistentes, Marlene
foi encaminhada para uma consulta médica, em que revelou
apresentar sensações de nervoso, de medo sem objeto definido e um
pouco de desânimo, que ela ainda consegue combater a duras penas
e ir trabalhar. Tem dois filhos de dois namorados diferentes e
nenhum dos dois assumiu a paternidade. A mãe ajuda na criação,
mas se intromete muito. História de crises de enxaqueca há vários
anos, pioraram há um ano. Não apresenta alteração ao exame físico.
Nega uso de álcool, tabaco e outras drogas. Não tem ideação suicida.
3. Somatização e Sintomas Físicos
Inexplicados para MFC
Francisco, 36 anos, morador da periferia de Porto Alegre,
casado há três anos, trabalha numa loja de material de construção
como vendedor há oito anos. Estava andando de ônibus quando
começou a se sentir mal, com aperto no peito, coração disparado,
pressão 140 por 90 mmHg e sensação de que “ia ter um treco”.
Procurou o pronto-socorro, onde foi realizado o eletrocardiograma
(ECG) com dosagem enzimática para diagnóstico de infarte agudo
do miocárdio (IAM), não apresentando nenhuma alteração nos
exames. Orientado a procurar atendimento ambulatorial, foi a um
cardiologista, que solicitou prova de esforço. O exame não acusou
alteração e Francisco foi medicado com bromazepam pelo
cardiologista. Apesar do posto da ESF ficar perto de sua casa, ele e
sua esposa nunca tinham ido lá. Uma semana após ter ido ao
cardiologista, Francisco apresentou nova crise com as mesmas
características e, orientado pela agente comunitária, foi à unidade
da ESF.
4. Somatização e Sintomas Físicos
Inexplicados para MFC
Márcia, 46 anos, ensino fundamental
incompleto, dona de casa, moradora da periferia de
Fortaleza, há cinco meses vem sentindo cansaço,
fraqueza, sem ânimo para as atividades diárias e
perdeu 6 quilos em três meses. Não consegue
dormir direito. Procurou o posto da ESF e conseguiu
ser consultada no mesmo dia. Chorou durante a
entrevista, relatando problemas com o marido que
perdeu o emprego há seis meses e que voltou a
beber demais. Relatou também saudades do filho
que não vê há dez meses, porque ele mora na
Rocinha, no Rio de Janeiro, e tem uma vida muito
difícil.
5. Somatização e Sintomas Físicos
Inexplicados para MFC
Saber lidar com pacientes que recebem o
título de “poliqueixosos” auxiliará o MFC a
abandonar rótulos preconceituosos e a perceber
e lidar com queixas tão comuns e tão mal
cuidadas, reconhecendo, por detrás delas,
histórias de vida que merecem apoio, tanto no
sentido humano como clínico.
6. Somatização e Sintomas Físicos
Inexplicados para MFC
Razões para o MFC atender estes casos:
1)Incidência;
2)Os próprios pacientes identificam o MFC como
alguém que pode ajudá-los;
3)Encaminhamentos a serviços de saúde mental são
pouco eficazes.
A referência prematura ou o excesso de
investigação propedêutica reforçarão um ciclo que
pode cronificar estas queixas, sem resolver o
problema do paciente, aumentando gastos do
sistema de saúde.
7. Somatização e Sintomas Físicos
Inexplicados para MFC
Na concepção contemporânea, o conceito de
somatização é definido por uma tendência
pessoal a se apresentar e comunicar queixas
somáticas diante de estresse psicossocial, que
geram sobrecarga pessoal e no sistema de saúde.
8. Somatização e Transtornos Mentais
Comuns
Transtornos Ansiosos e Depressivos são
acompanhados de diversos sintomas físcos:
Cansaço;
Astenia;
Fadiga;
Palpitações;
Dores;
Dispnéia;
Sudorese de extremidades.
9. Somatização e Episódios Depressivos
Episódios depressivos (únicos ou
recorrentes) são diagnosticados mediante a
presença de, no mínimo, dois dos seguintes
sintomas:
Humor anormalmente deprimido por quase
todos os dias;
Perda de interesse e prazer em atividades;
Energia diminuída.
10. Somatização e Episódios Depressivos
Presença de um ou mais sintomas (perfazendo, com
os anteriores, o total de no mínimo quatro) da seguinte
lista também indica diagnóstico de episódio depressivo:
Perda de auto-estima;
Sentimentos exagerados de culpa;
Pensamentos de morte ou suicídio;
Perda de concentração;
Lentificação ou agitação psicomotora;
Alterações do sono;
Alterações do apetite.
Os sintomas apresentados devem estar presente por,
no mínimo, 2 semanas.
11. Somatização e Agorafobia
É caracterizada pelo medo de ir a lugares públicos, multidões ou
viajar só, para longe de casa. Há sinais de excitação
autonômica, fazendo parte dos critérios a presença de quatro
dos seguintes sintomas físicos, tendo que estar presentes pelo
menos um dos quatro primeiros:
Palpitações/ taquicardia, sudorese, tremores e boca seca;
Dificuldade de respirar, sufocação, dor ou desconforto
torácico e náusea;
Tonturas ou sensação de desfalecimento;
Ondas de calor ou frio e formigamento/ entorpecimento.
O paciente reconhece o medo como irracional, o que
causa angústia, e os sintomas se apresentam diante da
situação temida ou em sua contemplação mental.
12. Somatização e Transtorno de
Ansiedade Generalizada
São necessários quatro sintomas (sendo um
autonômico) para agorafobia, com acréscimo de
alguns sintomas físicos – tensão ou dores
musculares, sensação de nó na garganta – e um
maior número de sintomas psicológicos:
Inquietação/ dificuldade para relaxar;
Sensação de “nervoso”/ tensão;
Sobressaltos;
Dificuldade de concentração;
Irritabilidade;
Dificuldade de adormecer, por preocupação.
13. Somatização e Sofrimento Mental
Inespecífico
Mental Distress – sofrimento psíquico, sofrimento
mental, sofrimento difuso
Quadros “subsindrômicos” dos transtornos
mentais que não preenchem critérios diagnósticos.
Estão associados a sofrimento, incapacitação
social e busca por serviços de saúde.
Estão relacionados a crises vitais esperadas
(adolescência, início de idade reprodutiva,
senescência, etc) ou não (rompimento de
relacionamentos, mortes inesperadas, mudanças de
status social, etc).
14. Transtorno de Somatização
A. História de, pelo menos, 2 anos de queixas de sintomas físicos
múltiplos e variáveis que não podem ser explicados por
quaisquer transtornos físicos detectáveis (quaisquer
transtornos físicos presentes não explicam gravidade,
extensão, variedade e persistência das queixas, nem
incapacidade associada). Na presença de sintomas decorrentes
de excitação autonômica, estes não são um aspecto importante
do transtorno.
B. Busca repetida de consultas (três ou mais) ou conjuntos de
investigação tanto em cuidados primários como com médicos
especialistas decorrente de preocupação com sintomas (na
ausência de serviços médicos ao alcance, automedicação
persistente ou múltiplas consultas com curandeiros locais).
15. Transtorno de Somatização
C. Recusa persistente em aceitar o reasseguramento médico de que
não há nenhuma causa física adequada para os sintomas físicos
(ou aceitação de tal reasseguramento por curtos períodos de
tempo).
D. Deve haver um total de seis ou mais sintomas de uma extensa
lista seguinte, com sintomas ocorrendo em pelo menos dois
grupos separados por aparelhos.
Transtorno Somatoforme Indiferenciado
A.Os critérios A e C para transtorno de somatização são satisfeitos,
exceto para duração do transtorno que é de pelo menos 6 meses.
B.Um ou ambos critérios B e D para transtorno de somatização são
incompletamente preenchidos.
16. Fatores de Risco para a presença de
sintomas físicos sem explicação médica
Fatores individuais:
Sexo feminino – menos marcantes em populações de base
cultural latina.
Comportamento anormal de adoecimento – adesão ao papel de
doente com ganhos secundários.
Amplificação de sensações somáticas.
Autoconceito de pessoa fraca e incapaz.
Dificuldade de elaboração verbal do sofrimento psíquico.
Transtornos mentais comuns (ansiedade e depressão).
História pessoal de adoecimento físico, em especial na infância.
História pessoal de abuso físico e sexual, em especial na infância.
17. Fatores de Risco para a presença de
sintomas físicos sem explicação médica
Fatores Familiares/ Coletivos:
História familiar de doenças graves, com ganho de atenção
diferenciada por este motivo.
História familiar de somatização/ transtornos mentais comuns.
Atribuições somáticas de sensações físicas anormais pelo grupo
familiar e social.
Estruturas sociais que favorecem situações de submissão e
desempoderamento.
Culturas latino-americanas e latino-européias.
18. Fatores de Risco para a presença de
sintomas físicos sem explicação médica
Fatores Ligados aos Serviços de Saúde:
Condutas excessivamente centradas no adoecimento
físico.
Falta de manejo terapêutico para queixas físicas
inexplicadas.
Diálogo médico sem sensibilidade psicossocial.
Sistema de saúde pouco organizado.
Vínculos com o paciente frouxos ou inexistentes.
19. Somatização: Abordagem ao
Paciente
1. Transcender o princípio de exclusão.
Realização do exame físico
2. Minimizar o poder somatizador da consulta médica.
3. Tratar o sofrimento psíquico associado: recodifcar o sintoma.
Reatribuição como abordagem.
Reatribuir significa construir uma conexão entre as queixas
somáticas e o sofrimento psíquico. É o primeiro passo para que os
tratamentos psicossociais na atenção primária ou encaminhamento
para terapias especializadas sejam aceitos pelos pacientes.
A abordagem, a elaboração e a resolução de seus problemas
psicossociais se tornam o objetivo de seu tratamento, em vez das
queixas físicas sem explicação.
20. Somatização: Abordagem ao
Paciente
Etapas da Reatribuição:
a.Sentindo-se compreendido – fazer anamnese ampliada e
exame físico focado na queixa, com valorização às
crenças da pessoa.
b.Ampliando a agenda – dar retorno à pessoa, com
recodificação dos sintomas e vinculação destes com
eventos vitais e/ ou psicológicos.
c.Estabelecendo o vínculo – construir modelos
explicativos que façam sentido para a pessoa.
d.Negociando um tratamento – pactuar, em conjunto com
a pessoa, um projeto terapêutico ampliado.
21. Somatização: Abordagem ao
Paciente
Expressões que ajudam:
Falar sobre estresse ou nervosismo.
Atitudes que podem atrapalhar:
Dizer: “- Você não tem nada.”
Preocupar-se excessivamente com a remissão dos sintomas.
Desafiar o paciente – concorde que há um problema.
Explicar prematuramente que os sintomas são emocionais – em
especial nos somatizadores crônicos.
Diagnósticos orgânicos positivos não vão curar o paciente.
22. Somatização: Tratamento dos
Pacientes Agudos
1. Tratar transtornos depressivos e ansiosos
associados – técnicas de respiração,
relaxamento e exercício físicos.
2. Reduzir estresse e angústia dos pacientes.
3. Ajudar o paciente a lidar melhor com seus
problemas pessoais através de técnicas
terapêuticas;
4. Prevenção: doctor shopping.
5. Manejo em grupos.
23. Somatização: Tratamento dos
Pacientes Crônicos
1. Desenvolver o processo de reatribuição de queixas – menos
de 30% dos pacientes aceitam tratamento em saúde mental.
2. Atender regularmente estes pacientes, com realização de
exames físicos periódicos. A manutenção do contato com o
clínico aumenta a adesão à saúde mental.
3. Evitar exames e encaminhamento a especialistas
desnecessários.
4. Manter um canal de comunicação com a saúde mental.
5. Organizar tratamento na APS, construindo projeto
terapêutico interdisciplinar.
6. Não esperar por cura.