Formação do leitor literário na escola: desafios e possibilidades
1. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS – PPG LETRAS
ÁREA DE LINGUAGENS: LINGÍSTICA APLICADA
Cadeira: Linguística Aplicada Prof.ª Margarete Schlatter
Turma única Semestre 2015/2
Nome: Mariana Correia
Bruxos, vampiros, divergentes e zumbis: a formação do leitor literário na escola1
Mariana Correia2
O lançamento do novo livro da série Harry Potter “Harry Potter e a criança
amaldiçoada” teve seu lançamento em inglês em julho de 2016 e tem seu lançamento em
português previsto para outubro do mesmo ano, porém já em fevereiro liderava as vendas
no site da Amazon (segundo o site G1), aparece como notícia em inúmeros sites de jornais
e revistas de renome e é assunto nas redes sociais em comentários tanto dos fãs de
carteirinha quanto de uma galera que ainda nem tinha nascido na época da publicação do
primeiro livro da série há quase 20 anos. Ao mesmo tempo, nos cinemas, os filmes de
ação dividem (cada vez mais desde o tempo do bruxinho) a cena com várias adaptações
de livros para a telona, não que fazer roteiros a partir de filmes seja algo novo, mas,
atualmente, enaltecer o livro faz parte da divulgação filme. Por exemplo, em 2016, tem
“Como eu era antes de você”, “Convergente” (final da série Divergente), “Orgulho
preconceito e zumbis”, dentre vários outros. Além disso, no Youtube3
“bombam” canais
adolescentes que comentam os livros lidos e tem milhões de visualizações, comentário e
curtidas.
Este processo vem num crescente há algum tempo e, segundo Marisa Lajolo, no
artigo “ Os jovens estão lendo (e gostando de ler) ”, publicado na Revista Carta
Fundamental de outubro de 2014, os números impressionantes de publicações, edições,
reedições e filas enormes para autógrafos na Bienal daquele ano são resultado do trabalho
desenvolvido em sala de aula por todos nós, professores, que levamos “os alunos aos
livros e à leitura”.
Com certeza, os filmes, os livros, as filas e os número indicam que os livros e a
leitura estão cada vez mais presentes no cotidiano dos jovens, ou seja, temos cada vez
mais um público de jovens leitores em nossas salas de aula e a primeiro passo para a
leitura literária, a sedução do leitor, foi cumprido com relativo sucesso. Assim sendo,
1
Texto elaborado para a disciplina de Linguística Aplicada ministrada pela Prof.ª Dra. Margarete Schlatter
2
Mestranda em linguística aplicada do PPG – Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
(mari.literatura@gmail.com )
3
Site de compartilhamento de vídeos.
2. merecemos e agradecemos o reconhecimento de Lajolo, mas e agora: qual será nosso
próximo passo como professores? Já temos uma galera que está demonstrando saber seus
livros e autores prediletos, encontrando na leitura uma forma de prazer e diversão (tanto
em suportes físicos como virtuais), porém, será que podemos afirmar que já formamos
leitores e devemos nos contentar com bruxos (Harry Potter, de J.K. Rowling), vampiros
(Crepúsculo, de Stephanie Meyer), divergentes (Divergente, de Veronica Roth) e zumbis
(são tantos)? Ou melhor, como nosso jovem leitor vai se desenvolver, a partir da fantasia,
em direção a outros personagens, tão interessantes quanto, mas que precisam de uma certa
dose de profundidade para compreensão.
Leitor, leitura e letramento
Acredito que a próxima etapa como professores passe pela discussão de conceitos
como leitura, leitores, letramento e letramento literário, que, embora aparentemente claros
e de fácil definição, ao pesquisarmos sobre formação de leitores percebemos que não é
bem assim, pois existem diferentes concepções teóricas em jogo. Desta forma,
inicialmente, é necessário definir a qual leitor nos referimos, pois, a partir das
características deste leitor a ser formado é que poderemos estabelecer como se dará a
formação de leitores literários.
Na tese de Benvenuti (2011) “Letramento, leitura e literatura no Ensino Médio da
Modalidade de Educação de Jovens e Adultos: uma proposta curricular”, a autora trata
estes conceitos de maneira bastante esclarecedora fazendo a relação entre diferentes áreas
do conhecimento com a finalidade de relatar a proposta curricular elaborada por ela.
Assim sendo, embora Benvenuti (2011) trate de questões referentes à EJA, os aspectos
sobre leitura, leitor, letramento e letramento literário destacados pela pesquisadora são de
grande interesse para a discussão proposta.
Inicialmente, junta a leitura de mundo de Freire (que precede a leitura da palavra)
com o trabalho de Iser, em que a reação do leitor dá sentido à obra. Assim, ao combinar
a pedagogia de Freire à Teoria da do Efeito Estético, o leitor passa ser aquele que está
com o mundo, realizando a leitura deste e construindo o conhecimento a partir das suas
leituras (da palavra e do mundo) e, a partir disto, utilizando-se de seu conhecimento de
mundo no momento da leitura. Desta maneira, a leitura altera o leitor e o leitor, através
de seu conhecimento de mundo, altera o texto lido, num movimento constante de
modificar e ser modificado.
3. Também agregando a esta visão de valorização do vivenciado pelo leitor, o
conceito de letramento é apresentado pela perspectiva da sociolinguística. A autora
destaca que até meados dos anos oitenta o termo alfabetização dava conta tanto da noção
de aquisição da tecnologia da escrita quanto da inserção no mundo da escrita. Contudo,
na publicação em 1986 de “No mundo da escrita: uma perspectiva sociolinguística” o
termo letramento é inserido no Brasil por Kato, fazendo então a diferenciação entre a
aquisição da tecnologia da escrita (alfabetização) e o uso efetivo e competente da
tecnologia da escrita que, como prática social, se estende por toda a vida e não está restrita
ao contexto escolar (letramento).
Além disso, também traz a ideia de eventos de letramento, (de Heath), qualquer
interação em que a escrita é parte integrante tanto da natureza quanto dos processos
interpretativos; e práticas de letramento, (de Street), concepção cultural ampla de
maneiras de ler e escrever no contexto cultural que incluem os modelos sociais de
letramento utilizados bem como o significado atribuído a eles pelos participantes.
Ao final, apresenta a proposta por Barton que estabelece a relação entre
letramento, práticas e eventos de letramento, este afirma que “Práticas de letramento são
os modos mais gerais, ligados à cultura, de utilizar o letramento, aos quais as pessoas
recorrem num evento de letramento. ”
Desta forma, na tese de Benvenuti (2011), as discussões sobre letramento servem
para auxiliar na expansão da caracterização do mundo a que Freire e Iser nos remetem
quanto definem o leitor, isso porque este leitor está inserido em um mundo de escrita
cujos eventos de letramento serão indicativos das práticas de letramento da comunidade
em que estão inseridos. Logo, ao observarmos como se dão as significações sociais da
escrita (e da leitura como parte da escrita), conseguimos delimitar mais claramente quem
é este leitor.
Assim sendo, o leitor definido pela junção entre Freire e Iser, ganha dimensão
social no momento em que está inserido em uma comunidade de letramento com
características e práticas de letramento observáveis a partir de eventos específicos e suas
significações.
Letramento literário
Acredito que para respondermos aos questionamentos iniciais, a noção de
letramento literário de Cosson – apresentada por Benvenutti (2011) – é bastante
interessante pois nos permite vislumbrar o próximo passo para a formação de leitores. Ao
4. propor a junção de letramento como prática social e da teoria da literatura no sentido de
o leitor atribuir significação ao texto, ele afirma que a função essencial da literatura é
construir e reconstruir a palavra que nos humaniza e (para alcançar o letramento literário)
é preciso ir além da simples leitura, sendo necessária uma exploração que cabe à escola
ensinar ao aluno.
A fim de organizar como se dá o desenvolvimento desta exploração, Cosson,
propõe uma sequência básica para o trabalho de literatura, em que sistematiza a leitura
como fenômeno cognitivo e social; inclusive, substituindo a dicotomia clássica entre
literatura de massa e literatura canônica por uma distinção entre obras contemporâneas -
escritas e publicadas no momento presente - e obras atuais - escritas ou publicadas em
qualquer época, mas que têm significado no momento presente. Desta forma, suaviza a
discussão literária e vincula a escolha da obra a ser lida ao contexto social de inserção da
literatura, elaborando três critérios de seleção a serem combinados: “1. Não desprezar o
cânone, 2. Não se apoiar apenas na contemporaneidade, mas na atualidade dos textos e 3.
Aplicar o princípio da diversidade. ” (COSSON apud BENVENUTI, 2011, p. 180), além
disso, destaca que o professor deve partir daquilo que o aluno já conhece em direção ao
que ele desconhece para ampliação do horizonte de leitura.
O autor propõe uma sequência básica e uma estendida, afirmando que ambas
podem ser utilizadas tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio, a primeira
envolve os seguintes momentos:
1. Motivação: início do encontro entre o leitor e a obra, atividades de leitura, escrita
e oralidade, objetiva que o aluno receba a obra de maneira positiva;
2. Introdução: apresentação do autor e da obra aos alunos, inclusive no sentido do
suporte em que ela está escrita e dos elementos paratextuais;
3. Leitura: negociável, acompanhada, deve ter um sistema de verificação, pode ter
intervalos para trabalhar com textos que dialoguem com o livro, realização prioritária
extraclasse;
4. Intepretação: não tem restrições, atividades com o princípio de exteriorizar a
leitura, recomenda a resenha como uma forma de fazê-la; tem dois momentos, interior
(individual, encontro do leitor com a obra) e exterior (concretização ou materialização
como ato de construção de sentido na comunidade).
Desta forma, a formação de leitores literário se concentra na ideia de preparar o
leitor para a leitura e exploração da obra, em que cada texto lido retoma a compreensão
de todos os textos já lidos. Por isso, não objetiva o estudo de um gênero, mas uma
5. preparação do leitor em direção à compreensão textual, à vivência de leitura que é
colocada em foco, num viés da Teoria Literária, mas levando em conta o letramento como
prática social.
Como ficamos?
Após as discussões acima sobre as relações teóricas propostas por Benvenutti
(2011), somos capazes de responder aos questionamentos propostos no início do texto da
seguinte maneira:
• O próximo passo que podemos dar como professores é realizar a transposição das
leituras contemporâneas para as leituras atuais, através de um trabalho consciente de
leitura como um fenômeno cognitivo e social;
• Podemos afirmar que não existe um leitor formado, mas sempre em formação, num
processo contínuo, logo, não é possível dizemos que a leitura dos livros de fantasia
indique um leitor formado, porque este está sempre em formação na mutabilidade de si
mesmo e do mundo;
• A forma como dar um salto em direção aos contextos mais complexos de leitura (as
obras atuais, mas não contemporâneas na terminologia de Cosson) é pautar o trabalho de
letramento literário na escola a partir do que é conhecido pelo leitor em direção ao
desconhecido através de uma sequência didática conscientemente organizada para tal fim.
Referências
BENVENUTI, Juçara. Letramento, leitura e literatura no Ensino Médio da modalidade
de Educação de Jovens e Adultos: uma proposta curricular. 2001. 248 f. Tese (Doutorado
em Linguística Aplicada) – Instituto de Letras, UFRGS, Porto Alegre. 2001. Disponível
em < http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/37807> Acessado em 15/02/2016
France Presse. Novo livro de Harry Potter já lidera as vendas meses antes do
lançamento. Disponível em: http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2016/02/novo-livro-
de-harry-potter-ja-lidera-as-vendas-meses-antes-do-lancamento.html. Acessado em:
11/02/2016
LAJOLO, Marisa. A moçada está lendo (e gostando de ler). Revista Carta Fundamental,
Edição 62, outubro de 2014. São Paulo: Editora Confiança. Disponível em
http://pt.slideshare.net/marianacorreiail/lajolo-a-moada-est-lendo-e-gostando-de-ler
Acessado em 15/2/2016