O documento discute a teoria do sociólogo Émile Durkheim sobre os "fatos sociais" e a "consciência coletiva". Durkheim define fatos sociais como criações humanas que exercem força coercitiva sobre os indivíduos, como crenças, valores e normas compartilhadas por uma sociedade. A consciência coletiva representa essas crenças e normas que são transmitidas entre gerações e influenciam o comportamento das pessoas. O documento também analisa como a consciência coletiva é formada e como pode ser influenciada.
1. O Que É Um Fato Social?
leitura de Durkheim
por: Rodrigo Belinaso Guimarães
* Fato social e “consciência coletiva”são sinônimos. A ideiaprincipal é a de que a “consciência
coletiva” é uma força poderosa sobre os indivíduos. As “(...) crenças e práticas que nos são
transmitidas pelas gerações anteriores; recebemo-las e adotamo-las porque, sendo ao mesmo
tempo uma obra coletiva e uma obra secular, estão investidas de uma particular autoridade
que a educação nos ensinou a reconhecer e a respeitar.” (p. 91). O interessante é entender,
atualmente, como se processa a formação da “consciência coletiva”, sob os prismas da
“revolução cultural” e da “guerra cultural”. Entende-se o termo coletivo como sendo a força
onde “cada um é levado por todos”. (p. 91).
* É um procedimento padrão, todo estudo científico recorta da realidade o conjunto de dados
específicos sobre os quais vai se debruçar. Assim, Durkheim define o campo científico da
sociologia como sendo: o estudo das criações humanas que exercem uma força coercitiva
sobre o comportamento dos indivíduos. Os fatos sociais são tomados como criações humanas
independentes de outros fatores, tais como os naturais ou psicológicos, ou até mesmo,
metafísicos. Independente da crença de Durkheim, encarar os fatos sociais como puramente
criações humanas, não significa que não haja uma “natureza humana”, significa apenas que
tal “natureza” não poderia ser um fator averiguado pela sociologia de Durkheim. “Mesmo
quando (os fatos sociais) estão de acordo com os meus próprios sentimentos e lhes sinto
interiormente a realidade, esta não deixa de ser objetiva, pois não foram estabelecidos por
mim, mas sim recebidos através da educação.” (p. 87).
*A força da “consciência coletiva” está no processo de ser aprendida, ela é uma criação
humana que, transformada numa fórmula, num hábito, num padrão, numa crença etc. pode
influenciar a conduta de outros indivíduos. “Um fato social reconhece-se pelo seu poder de
coação externa que exerce ou é suscetível de exercer sobre os indivíduos; e a presença desse
poder reconhece-se, por sua vez, pela existência de uma sanção determinada ou pela
resistência que o fato opõe a qualquer iniciativa individual que tenda a violentá-lo.” (p. 91).
* Não se pode negar que a força dos fatos sociais existe por estar, sem dúvida, sobreposta à
personalidade dos indivíduos singulares. “(…) os fiéis, quando nascem, encontram já feitas
as crenças e práticas de sua vida religiosa; se elas existiam antes deles é porque existiam fora
deles.” (p. 87) Assim, a Sociologianão observa nem avalia se uma ou outra religião possui em
si mais força por ser de inspiração divina, realizando, assim, um juízo de valor. Novamente,
ela vai observar a “consciência coletiva” como se fosse tão somente criação humana e a sua
força pela capacidade de influenciar a conduta humana. Durkheim não esclarece se a
“consciência coletiva”é de fato tão somente criação humana, nem discute se há nela também
símbolos naturais ou arquetípicos, pois o que importa para ele é que a Sociologia a observe
como pura criação.
2. * As criações humanas quando hegemônicas atuam sobre o modo de ser dos indivíduos e
sempre terão em si uma força que será mais percebida quando o indivíduo não se conforma
ou não adere a elas. “A consciência pública reprime todos os atos que as ofendam, através da
vigilância que exerce sobre a conduta dos cidadãos.” (p. 88) É claro que na atualidade não
podemos considerar a “consciência pública” como algo espontâneo ou livremente
desenvolvido. Há aqueles que atuam como verdadeiros “engenheiros sociais” empenhados
em distribuir recompensas a todo aquele que melhor aderir às suas elaborações. Mas a força
do fato social só existe realmente se este for sentido como se representasse a ordem normal
e espontânea da vida social, ainda mais se o indivíduo não tiver a força psicológica necessária
para resistir ao coletivo. Em outras palavras, não existe vida social sem poder. O segredo está
em fazer com que tal “consciência coletiva” seja encarada pelo indivíduo como se partisse de
sua própria elaboração. “Estamos então a ser vítimas de uma ilusão que nos faz acreditar
termos sido nós quem elaborou aquilo que se nos impôs do exterior.” (p. 89).
* Não há limite geográfico ou de número de pessoas para a definição de fatos sociais, em
outras palavras, a “consciência coletiva” pode ser tanto global quanto restrita a pequenos
grupos regionais. “(O fato social) não dispõe de outro (substrato) para além da sociedade,
quer se trate da sociedade política na sua íntegra ou de um dos grupos parciais que engloba:
ordens religiosas, escolas políticas, literárias, corporações profissionais etc.” (p. 88) Na
atualidade, quanto mais um fato social tenha alcance global é possível que tanto mais ele
seja artificial em sua proposição e propagação. Assim, no momento, já há uma “consciência
coletiva” global, vivida na forma de agendas, mesmo que artificiosa, mas que por ser global
parece conquistar ainda mais força para se impor aos recalcitrantes. Mesmo sendo a
“consciência coletiva” expressão de elaborações humanas, deve haver diferença quando ela é
um longo processo de sedimentação do que quando transparece ser uma irradiação calculada.
* Há uma tendência da “consciência coletiva” de se cristalizar em modos de ser
institucionalizados ou em hábitos arraigados pelo convívio, compondo o que se pode
entender por “ordem social”. Porém, Durkheim chama a atenção para a existência efêmera
da “consciência coletiva” num fenômeno como o de “multidão”, onde o indivíduo é levado a
agir em conformidade com a maioria apenas por estar de alguma forma associado a ela.
“Assim, numa assembleia, as grandes manifestações de entusiasmo, de indignação e de
piedade que se desencadeiam não tem a sua origem em nenhuma consciência particular.
Chegam a cada um de nós do exterior e são suscetíveis de nos arrastar, mesmo contra a
vontade.” (p. 89) Na atualidade, particularmente a mídia e os “especialistas” têm um poder de
sugestionar a “multidão” a realizarem atos que podem estar em contradição aos hábitos
familiares, comunitários ou religiosos que herdaram das gerações passadas. Para isso,
precisam associar os indivíduos a determinados grupos. Esse fenômeno, não raro, vai
produzir dissonâncias cognitivas que, como sabemos, tem o poder de modificar o
comportamento.
* É interessante notar como Durkheim tem ciência de que o processo de criação de uma
“consciência coletiva” pode se iniciar no debate de pequenos círculos, ou seja, dentro de
sociedadessecretas ou discretas. Namedidaemque estes debates vão formando a linguagem,
as premissas e as esperanças que integram o grupo, mais facilmente podem ser inseridos
gradualmente na opinião pública. Neste processo, as ideias de pequenos grupos podem se
3. constituir em uma força perene. “Ora, o que dizemos acerca destas explosões passageiras
(conformação da ação individual ao sentido dado pela influência grupal) aplica-se também
aos movimentosde opinião,maisduradouros que se produzemincessantemente à nossa volta,
mesmo em círculos mais restritos, sobre questões religiosas, políticas, literárias, artísticas etc.”
(p. 89).
* Talvez Durkheim seja um dos principais formuladores da pedagogiamoderna. Primeiro, na
concepção de criar um percurso educativo que tende a maior especialização, em uma área
científica ou técnica; depois,no papeldo Estado emdefinir as atitudes e os valores que devem
ser transmitidos às novas gerações. Para Durkheim, a educação tem “justamente o objetivo
de criar o ser social.” (p. 89). Desde então, a tendência da educação moderna é abdicar da
formação intelectual em prol da especialização e das atitudes e valores, sendo estas últimas
entregues ao planejamento de “engenheiros sociais”.
* Durkheim estabelece uma dicotomia entre a “consciência coletiva” e a forma como esta se
expressa nos indivíduos. A primeira tem em si o símbolo da univocidade, a segunda o da
multiplicidade. Assim, Durkheim vai explicar que o que constitui os fatos sociais são “as
crenças, as tendências, as práticas do grupo tomado coletivamente; quanto às formas de que
se revestem os estados coletivosao refletir-se nos indivíduos, são coisas deuma outra espécie.”
(p. 90). As assembleias sindicais podem ser um exemplo desta constatação de Durkheim, a
presença de uma mesma mentalidade baseada numa esperança comum não significa a
uniformidade de opiniões individuais, que em oposição e aparente conflito, se ajustam em
função da melhor ação a ser empreendida. Para Durkheim, a Sociologia poderia observar a
“consciência coletiva” ao sintetizar os inúmeros casos particulares em estatísticas. Esse
procedimento acaba gerando, na atualidade, uma distorção bastante explorada pela mídia.
Assim, dados estatísticos podem ser apresentados como se fossem a “consciência coletiva” da
sociedade, sem ser levado em conta todos os fatores que podem estar em jogo. Por exemplo,
numa estatística de renda segmentada por sexo, se conclui que a sociedade brasileira tem
uma “consciência coletiva” machista, quando fatores de outras ordens podem atuar para a
formação daqueles dados, sendo aqueles desconsiderados.
* Talvez Durkheim considere a psicologia como o campo de estudos daquilo que é inato aos
indivíduos, como se a psique obedecesse a fenômenos antropológicos que não foram
ensinados ou como se houvesse algo como o livre arbítrio. Assim, há fenômenos que não são
sociais, mas presentes em todos os indivíduos através da psique humana. Talvez seja este o
segredo da fórmula: “mas (o fato social) é geral por ser coletivo (quer dizer, mais ou menos
obrigatório), e nunca coletivo por ser geral. É um estado do grupo que se repete nos
indivíduos porque se impõe a eles; está em cada parte porque está no todo, não está no todo
por estar nas partes.” (p. 90-91). Então, a Sociologia só vai estudar a “consciência coletiva” em
sua generalidade, cuja existência objetiva está fundamentada numa força que se impõe aos
indivíduos.
* Durkheim divide a “consciência coletiva” em duas dimensões: maneiras de fazer ou de
funcionar e maneiras de ser ou de se apresentar. Estas maneiras de ser dos fatos sociais
parecem assumir para Durkheim o aspecto de uma geopolítica: “o número e a natureza das
partes elementares de que se compõe a sociedade, a maneira como elas se dispõem, o grau
4. de coalescência a que chegaram, a distribuição da população pela superfície do território, o
número e a natureza das vias de comunicação, a forma das habitações, etc.” (p. 91-92). As
maneiras de ser são como o formato da sociedade, a forma do social que, para Durkheim,
deve expressar valores e crenças mais consolidados e cristalizados. Essa fórmula pode gerar
as mesmas interpretações equivocadas das estatísticas, já que observar uma “consciência
coletiva” como a causa da “forma social” é apenas um modo de se aproximar do problema
que pode ter outras possíveis causas, muitas delas de ordem metafísica. Por fim, Durkheim
estabelece a fórmula sintética do fato social ou da “consciência coletiva”: “É um fato social
toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coação
exterior, ou ainda, que é geral no conjunto de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo,
uma existência própria, independente das suas manifestações individuais.”