5. A LINGUAGEM SIMBÓLICA DAS ILUSTRAÇÕES DE
CONTOS FANTÁSTICOS
Gabriela Marques da Costa (a pintora)
É uma capa muito poética, a apelar ao
Amor, ao Amor ausente, à Saudade, aos De-
samores, Beleza de rios, Paisagens poéticas...
Amor shakespeariano bem como camoniano.
As imagens são bem europeias e apelam à
melancolia do Amor. Penso que a imagem re-
vela bem o hino ao amor. A harmonia das
nuances cromáticas são bastante românticas e
suaves. Falando especificamente das cores das
vestes das personagens, os tons pastel mis-
turam-se com os azuis, rosas e vermelhos. Os
poucos tons esverdeados (os da natureza) re-
presentam o amor esperançado; os azuis, a
aristocracia e nobreza das personagens, en-
quanto os rosas a meninice e a inocência feliz
que contrapõem com os vermelhos, represen-
tando a paixão, o sangue e a morte; o branco a
pureza; o cinza a tristeza, a melancolia e a pa-
ragem no tempo. Optei por colocar em cenário
de fundo folhas de papel antigas, pois simbo-
licamente estão a representar as histórias de
cada personagem e acima de tudo porque o
título do livro fala em CONTOS Fantásticos.
As flores tinham de aparecer pois o seu
simbolismo está estritamente ligado ao amor/
desamor. Especificamente amores-perfeitos,
rosas e violetas campestres. O amor-perfeito
simbolicamente é dedicado à deusa Minerva e é
também o símbolo da glorificação do trabalho,
mas também está associado ao amor romântico duradouro - amor para toda a
vida. Quanto às rosas, no Ocidente é a flor que mais simbolismo tem; é uma flor
consagrada a muitas deusas da mitologia; símbolo de Afrodite, Vénus, Ísis e
Lakshmi. A rosa representa o ápice da paixão, o sangue e a carne mas ao mesmo
tempo pureza e virgindade (Maria). Os botões de rosa simbolizam o segredo. Em
relação às violetas campestres, representam a tranquilidade da espera, o sossego
Contos Fantásticos
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Pintura de Gabriela Marques da Costa
Capa e Contracapa
6. e a calma. Simbolizam também a espiritualidade e intuição das personagens, mas
ao mesmo tempo representa presságio e luto amoroso.
A janela em forma de arcada representa os pensamentos e as vontades de
todas as personagens que se encontram fora dela, e a imagem que se encontra
dentro da janela representa aquilo que elas desejam: atrair o amor para elas
mesmas, mergulhar no sonho da alegria e felicidade conjugal. Criei a janela com
duas arcadas representando assim o número DOIS. Este simboliza amor e com-
preensão. Representa também a atenção do parceiro para com a sua amada. É o
número da dualidade, do companheirismo e do amor mútuo.
Falando especificamente num pormenor da contracapa, fiz de forma que ao
colocar o texto parecesse o preenchimento da forma de um espelho imaginário.
Outros elementos suplementares de interpretação (Dulce Leal Abalada)
Esta obra tem a particularidade de ser muito rica pela quantidade de ele-
mentos simbólicos que encontramos nas ilustrações. Desde o Cúpido que jun-
tando o seu rosto ao ouvido de uma dama como que segreda os mistérios do
Amor; ou não fosse ele o deus dessa dádiva que aquece os corações, corres-
pondente ao Eros grego. De fundo, como também na contracapa, vemos o templo
de Deméter, a deusa da Natureza, símbolo da fertilidade e da protecção da Vida.
Um outro símbolo encontramos tão antigo quanto a humanidade – a repre-
sentação mítica dos Contos de Fadas de uma princesa que encontra o seu
príncipe encantado que a desperta para a vida e vivem felizes para sempre. Porém,
o corpus central das ilustrações na obra coloca-se nas várias representações de
modelos femininos que constam na capa. Desde logo confere à obra o seu ca-
rácter psicológico, dual, conflituoso, dramático. A mulher está representada nos
seus vários matizes desde os tempos remotos, onde pela representação da dupla
janela viajamos no tempo em que se banhava nas águas da mãe natureza, até às
manifestações mais sofisticadas de poder de sedução sobre o homem. É certo que
muitas outras interpretações poderão ser extrapoladas destas imagens e, a esse
propósito, não desejaria deixar de citar uma que pela sua pertinência retrata uma
época que, se bem que estranha hoje, não é muito distante. Nesse sentido passo
a citar a minha mãe, Esperança, que tendo sido há alguns anos monitora de arte
da Universidade da Terceira Idade (U.I.T.I.) no Museu Calouste Gulbenkian, me fez
ver algumas características nesta capa sobre o papel que a mulher então detinha
na sociedade do século passado, com todos os seus códigos e significados que
faziam parte do jogo amoroso.
“Só o título desperta em nós recordações mais ou menos remotas - a idade da
fantasia, do imaginário, do sobrenatural, que para nós na altura era natural; depois
Teófilo Braga
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7. as histórias, os contos que antigamente eram transmitidos na linguagem escrita, daí
a folha de papel antiga abrangendo toda a página, que nos dias de hoje se foi
encurtando e actualmente sintetizando, através do telefone, telemóvel, SMS, e-
mails...
“E em histórias de amor é sempre a mulher a protagonista. Daí a representação
de várias mulheres, através dos tempos e condições sociais, diferenciados pelas suas
vestes, urbanas e rurais, inseridas nas paisagens bucólicas; e no tema do amor,
todas as mulheres são iguais, qualquer que seja o seu nascimento.
“Na contracapa, a mulher debruçada sobre o peitoril da janela em atitude
saudosa, lembrou-me os meus tempos de estudante de literatura –“as canções de
amigo”: “Muito me tarda o meu amigo na Guarda” de que nós fazíamos estribilho
para disfarçarmos as saudades que sentíamos dos nossos namorados... Também
merece atenção a figura atenta e receptiva ao Deus Eros, ou ao Cupido dos Ro-
manos.
“O fundo atapetado de várias flores, cada uma com o seu significado, hoje
apenas lembrado pelos mais idosos e que não merecia ser esquecido, embora na
prática desnecessário, pois a oferta de uma flor em especial era testemunho do
sentimento inspirado; era uma linguagem muda, mas simbólica. Lembro ainda, não
há muitos anos, em certas aldeias de França, era tradição no 1º de Maio, os rapazes
premiarem ou criticarem as raparigas da aldeia, depositando durante a noite, à
porta de cada uma delas, uma flor (ou um cardo) que a dignificava ou penalizava
segundo os sentimentos que provocava neles.
“Recordo-me das conversas da minha avó com as suas amigas, de certa maneira
passando-me testemunho da época, sobre a linguagem dos leques, um excelente meio
de comunicação de coisas mais prosaicas que as flores, o modo como se davam as
respostas aos pretendentes, fossem do seu agrado ou não, ou marcação de encontros,
à saída da missa ou uma ida à costureira, o leque, quer fosse pela sua posição quer
pelo manuseamento, tinha um papel preponderante.
“Na capa, há um ser que se debruça, querendo como que penetrar no livro e em
equilíbrio instável, certamente proporcional ao grau de curiosidade que o conteúdo
do mesmo lhe desperta. Enquanto uma das heroínas parece escutar, talvez, “as
pancadas de Molière, convidando à Função.”
“Porque um bom livro é como um palco, onde se consegue ver e ouvir as per-
sonagens.”
Contos Fantásticos
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8.
9. ÍNDICE
Carta a José Fontana (da 1ª edição)
Preliminar
As Asas Brancas
O Véu
A Estrela d'Alva (conto marítimo do século XVI)
Lava de um Crânio
Beijos por Facadas (conto de uma serenata em Espanha)
La Blanca Palomica (o desgosto de Lope de Vega)
A Ogiva Sombria
As Águias do Norte (conto polaco)
De um estudante da Lituânia ao Poeta anónimo da Polónia
Fragmentos de uma elegia polaca
O Relógio de Estrasburgo (conto de 1352)
Um Erro no Calendário (episódio da história da inquisição em Espanha)
A Adega de Funck (conto baseado nas notas de Hoffmann)
Revelação de um Carácter
O Sonho de Esmeralda
O Evangelho da Desgraça
Aquela Máscara
A Rosa de Sáron (poema em prosa)
Os Quatro filhos d'Aymon (conto do cerco do Porto)
Ódio de Inglês (comentários ao conto de Teófilo Braga), de Gomes Leal
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Contos Fantásticos
10.
11. Contos Fantásticos
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Carta a José Fontana (da 1ª edição)
Meu caro editor,
Disse-me que esperava um prólogo, para começar a publicação dos Contos;
lembrou-me escrever-lhe um capítulo de estética sobre esta forma literária. O
público não gosta de abstracções. Por minha vontade desistia do prometido;
limito-me porém a algumas considerações históricas.
A forma do conto é de origem oriental. As fábulas de Bidpaï foram o primeiro
ensaio para fazer sentir uma moralidade abstracta por meio de uma ficção in-
teressante. É pelo século XII que esta criação do génio do Oriente aparece na
Europa, imitada na Disciplina clericalis de Moisés Sephardi, conhecido depois da
sua conversão ao cristianismo com o nome de Petrus Alphonsus. A Disciplina
clericalis, escrita em latim bárbaro, para ensino dos clérigos, compõe-se de trinta
e sete contos e apotegmas1
O Conde de Lucanor de D. João Manuel, algumas das ficções do Gesta Ro-
manorum, o Decameron de Boccacio, os Contos de Canterbury, ressentem-se bas-
tante do livro do judeu convertido da Huesca.
, que o autor imagina dados por um árabe a seu filho
na hora da agonia. A popularidade do livro foi dispondo os ânimos para a cultura
desta forma literária.
Uma criação do génio céltico e germânico é o mundo feérico; elaborada len-
tamente na fantasia popular, animada nesses tipos de Melusina, Morgane e Ur-
gante, dos trovadores da Idade Média, cantada depois nos galanteios de Boiardo
e Ariosto, Spencer e Shakespeare, tornou-se o divertimento infantil dos Contes
bleus, os contos de fadas, coligidos nas Notte piacevoli de Straparole, publicadas
no século XVI, e no Pentamerone de Giambattista Basile em 1637.
O conto é a forma literária da lenda. Boccacio no Decameron, naquelas tran-
sições instantâneas do ridículo ao patético, revela uma face profunda da história,
o estado dos espíritos na terrível peste de 1358. A imaginação era tão perigosa
como o contágio; a distracção calculada, o prazer egoísta dos jardins de Pam-
pinea, a indiferença, o cepticismo que se desenvolve nas grandes calamidades,
1
N. do R. – Dito breve e memorável de pessoa ilustre. In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.
12. Teófilo Braga
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só podiam suspendê-la na exageração do terror. Nos contos da Idade Média há
uma mistura de devoção e desenvoltura; no Heptameron da rainha de Navarra, as
aventuras cavaleirescas, as intrigas de amor, os padres e monges seduzindo as
noviças, entretecem-se com reflexões morais, e de quelque leçon de la sainte
Écriture. É a mesma antítese fatal que parodia a exaltação religiosa nos ritos
grotescos da Igreja. A Idade Média retratou-se em todas as suas criações, mesmo
nos fabliaux e no conto.
O conto é a passagem do fabulário para a linguagem da prosa, ingénua, rude,
de uma franqueza maliciosa muitas vezes, e desenvolta. O conto era uma situ-
ação inventada para aproveitar um dito feliz, um repente engenhoso dos serões
das cortes e dos castelos; nasceu daquele génio primitivo, com que Froissart
narrava a história.
Demogeot, na sua História da Literatura Francesa, considera os contos do
século XVI como alheios ao desenvolvimento intelectual; é uma afirmação menos
verdadeira por absoluta. A actividade deste período, a fecundidade e originalidade
verdadeiramente caóticas reproduzem-se em Rabelais, o criador de Gargântua e
Pantagruel.
A Renascença com as ficções gregas e romanas desnaturara o conto. No sé-
culo XVII ele torna-se volumoso, arrebicado de galanice e galantaria amaneirada.
As atenções tinham refluído sobre os trabalhos filosóficos; ficaram as criações
imaginativas em poder das Gamberville, de Scudery, de La Calprenède e quejan-
dos, que as alongaram fastidiosamente com pieguices sentimentais, por essas
séries indefinidas de volumes da Polexandra, Caritea, Cytherca, Cassandra, Fa-
remundo, Ibraim ou o ilustre Bassa, Artamene ou o grande Ciro, Clélia e Almahide.
Os heróis apaixonados são Anacreonte conversando em amáveis versos, Bruto e
Lucrécia, Horácio Cocles e Clélia, movidos pelos interesses da sociedade moderna;
a majestade escultural da antiguidade e da história em presença das pequeninas
intrigas tocara o cúmulo do ridículo! O movimento, a convulsão filosófica do
século XVIII aparece também no romance e no conto. Lesage escalpeliza a na-
tureza humana, e o Gil Blas é a síntese das observações profundas; o abade
Prévost analisa as paixões numa luta íntima, recôndita, e procura os sentimentos
novos que cintilam dos que se embatem e se destroem. Manon Lescaut é uma das
verdades eternas do sentimento humano, a contradição do que mais se aspira e
idealiza, a vontade negando-se, mobilizando-se nos multíplices desejos que tu-
multuam na alma. Voltaire filosofa também nos seus Contos. Diderot, sobretudo,
a inteligência mais robusta do seu tempo, matemático, artista criador pela re-
13. Contos Fantásticos
Apeiron edições | 15
flexão e inspiração, reduz ao interesse do conto, à peripécia da acção as verdades
mais abstractas. Na assombrosa maravilha de arte, o Neveu de Rameau, mostra a
maldade disfarçada em virtude pelas conveniências; todos nos horrorizamos ao
ver ali o nosso retrato; sentíamos aquilo, mas não tínhamos a coragem, a abne-
gação para dizê-lo. O sobrinho de Rameau mostra-se infame, ao passo que é su-
blime de razão, porque diz tudo o que pensa. Vê-se agitarem-se naquele cérebro
em ebulição todos os processos intelectuais. Na Religiosa, Diderot evoca as dores
cruciantes e desconhecidas, sofridas nas trevas por um coração ingénuo, que é o
ludíbrio do interesse egoísta, do fanatismo estúpido, e da superioridade brutal.
Este conto por si é uma revolução latente. A análise delicadíssima dos pequenos
sentimentos que formam a grande luta na alma da Religiosa não é inferior ao
quadro do quietismo de Michelet no processo da Cadière, e excede por muitas
vezes a profundidade com que Manzoni no Promessi Sposi retrata as agonias da
desgraçada Genoveva no convento de Monza.
Uma vez descobertos estes segredos do sentimento, o conto deixou de ser
individual; o romance é o desenvolvimento de uma tese da vida na sociedade.
Richardson é a admiração de Diderot; Goëthe descobre Diderot à Alemanha,
traduzindo a sua obra-prima; ele mesmo isola os sentimentos do amor e o dever
no Werther e chega pela arte à conclusão lógica do suicídio.
Hoffmann, o caricaturista das paixões, de uma individualidade extravagante,
nas criações abstractas daquela imaginação de hipocondríaco deixa-lhes o in-
completo do maravilhoso; mais tarde os editores dão aos seus contos o nome de
fantásticos. Nos Contos de Hoffmann há uma série de observações psicológicas,
de impressões instintivas que suprem a falta de imaginação; os seus contos são o
diagnóstico de uma alma doente. É o lado que os torna apreciáveis, apesar do
capricho e grotesco dos tipos a que a mente alucinada dá forma. Os Contos de
Edgar Poë, a imaginação mais extraordinária da América, têm o fantástico da
insolubilidade dos problemas filosóficos que constituem a acção; tocam às vezes
a alta metafísica. Tendo de transigir com as materialidades da vida, na esterilidade
da indigência pede a inspiração ao álcool; ele sente a excitação lúcida que lhe dá a
força espantosa da invenção, mas conhece já em si a tremulência, que é a de-
composição inevitável, e exclama no meio da fadiga: Não há pior inimigo do que o
álcool! Edgar Poë é a força da imaginação e do ideal suplantada pelo positivismo
de uma sociedade manufactureira e orgulhosa do seu carácter industrial; nos seus
Contos há a alucinação profética da doidice.
14. Teófilo Braga
16 | Apeiron Edições
A forma do conto é estudada em todas as literaturas da Europa; trazendo a
lume este pequeno trabalho, só nos inspira a boa vontade de corresponder ao
movimento que observamos lá fora. Que mais teríamos a dizer de um livro sim-
ples que lhe não desnaturasse a intenção.
Coimbra, 8 de Março de 1865
Teófilo de Braga
15. Contos Fantásticos
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PRELIMINAR
(Fevereiro de 1894 – Teófilo Braga)
Vai para trinta anos que estão publicados os Contos Fantásticos. Em boa
verdade, nunca mais passei os olhos por este livro, que me aparece agora como
obra de um estranho. Não tornei a ler esses contos, não por um afectado desdém
pela minha obra, desdém que condeno em todo o escritor que se não preocupa
com a coordenação definitiva dos seus trabalhos, mas porque este pobre livro
ficara ligado a impressões dolorosas cuja renovação evitava.
Foram reunidos em volume em 1865 os Contos Fantásticos no meio das re-
fregas da conhecida Questão de Coimbra; publicara a maior parte deles no Jornal
do Comércio, em cuja colaboração literária auferia uns tantos reis com que ia
seguindo o meu curso na Universidade.
De repente achei-me cercado de ódios. Cortaram-me os víveres na empresa
do jornal, nas aulas de Direito tiraram-me a mesquinha distinção académica, os
críticos espalmaram-me rudemente, os livreiros recusaram-se a dar publicidade ao
que escrevia, e os patriarcas das letras com o peso da sua autoridade sorriam com
equívocos sobre o meu valor intelectual, chegando a circularem lendas depres-
sivas do meu carácter e costumes que só consegui desfazer com uma vida às
claras e cheia de ignorados sacrifícios. Outro qualquer ter-se-ia rendido.
Vi-me forçado a inverter as bases da minha existência, abandonando a Arte
que me seduzia, porque me abandonara a serenidade contemplativa, e lancei-me
à crítica, à erudição, à ciência, à filosofia. Neste campo os meus erros e exageros
bem merecem ser perdoados. Só muito tarde é que consegui conciliar em mim
estas duas tendências do espírito; mas não pensava em reimprimir os Contos
Fantásticos, a não ser um dia numa colecção de coisas avulsas constituindo a
ingénua miscelânea das minhas Juvenilia.
Uma carta do meu bom amigo António Maria Pereira surpreendeu-me, ma-
nifestando o desejo de fazer uma nova edição destes Contos. Como recusar-me a
uma tão honrosa proposta?
Ressalvei a condição de rever isso de que nem já formava ideia. Foi assim que
tive de ler os Contos Fantásticos, do rapaz de vinte e dois anos que existiu em
mim, e a frio pude julgar da impressão por eles produzida.
16. Teófilo Braga
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Achei ali uma fraca penetração do mundo subjectivo ou moral, encoberta
com o esforço das comparações poéticas e dos epítetos; desgostou-me o estilo
em que a prosa se confunde com o verso, apresentando ainda a falta de nitidez de
quem não pensa com segurança. E quanto ao drama da vida, que é o tema eterno
das obras de arte, notei também pouco movimento, as situações são narradas em
vez de sucedidas.
O que salva então o livro?
Uma pequena coisa, que é tudo: a paixão. Ao fim de trinta anos ainda achei
ali calor, a ardência de um organismo que se queima, a vibração sensorial de uma
mocidade plena que se lança de peito aberto ao combate da vida.
Foi esta paixão flagrante que fez com que esses Contos não ficassem es-
quecidos no Jornal do Comércio de 1865. Voltando então de umas férias para
Coimbra, felicitou-me Eça de Queiroz, afirmando-me que nos cafés em Lisboa
cortavam-se os folhetins, quando traziam algum conto meu. Nesse mesmo ano
José Fontana quis publicá-los num livro, que seguiu o seu fadário, sendo o mais
glorioso o andar na algibeira do célebre engenheiro João Evangelista, que morreu
devorado por uma violenta paixão amorosa. O pequeno livro estava na mesma
afinação da sua alma. Cartas, que ainda guardo, me falaram da impressão de um
ou outro conto, por esse tempo.
Tudo isto me lembrou ao sentir que efectivamente o fogo que há nesses
mesquinhos quadros se comunica. E neste dilema dos dois amores, em que ainda
se debate o espírito, atraído para a arte e seduzido pela ciência, hoje repassando
as páginas deste livro, é com uma certa piedade saudosa que o deixo reviver na
publicidade, e lhe inscrevo com a frieza do qualificador inquisitorial: feitas as
emendas necessárias pode correr.
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AS ASAS BRANCAS
Sempre o mesmo olhar doloroso! Uma constante expressão de mágoa, esse
abandono, que é o tédio da vida! Porque é que na flor dos anos, quando a exis-
tência se purpúrea com todas as graças que se entrevêem apenas em sonho e se
veste das alegrias que a rodeiam, como uma criança enfeitando-se distraída com
as florinhas espontâneas, tu, bela, sentida, deixas reflectir pela transparência da
tua face pura um clarão pálido e incerto como de agonias e desespero, como a
fosforescência de um grande mar que estua? Diante de ti sente-se uma opressão
estranha, a mudez sagrada de uma grande floresta, o terror gélido, de quem entra
na caverna de uma sibila. Porque é que os teus vinte anos, as formas arreba-
tadoras do teu flexuoso corpo de sílfide, que verga pela dor, mais lânguido e
gentil do que a palmeira solitária embalada nas bafagens mornas vindas da am-
plidão remota do deserto, como é que toda esta adolescência, que te cinge como
auréola de encanto e atractivos, me faz ter medo de ti, me prende a voz temerosa
e balbuciante, que ousa às vezes perguntar-te:
– Donde vieste? Em que cismas? Que véu te acena e está chamando de lon-
ge? Porque te escondes dos olhos que choram de ver-te assim desolada, na
consternação de uma angústia intraduzível por palavras humanas? Porque não
falas, e nos contas o que sofres? Porque te deixas ficar horas esquecidas com a
mão firmada ao rosto, suspensa numa contemplação divina, irradiante, de um
modo, que ninguém ousa dizer se és da terra, se és a incarnação de alguma es-
sência arcangélica que anda errante no mundo a santificar o amor no sofrimento?