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(1482?-1552?)
BIOGRAFIA
Praticamente nada se sabe de certo na vida de Bernardim Ribeiro.  Presume-se que nasceu por volta de  1482.  Não se conseguiu ainda provar que este poeta Bernardim Ribeiro e um seu homónimo que frequentou, entre 1507 e 1511, a Universidade de Lisboa, e que em 1524 foi nomeado escrivão da câmara, fossem a mesma pessoa. Teria frequentado a corte de Lisboa, colaborou no  Cancioneiro Geral  de Garcia de Resende, que assim como Bernardim pertenceu à roda dos  poetas palacianos  juntamente com Sá de Miranda, Gil Vicente e outros.  Esteve algum tempo na Itália, onde tomou conhecimento inovações literárias.
Tão misterioso quanto o nascimento é a morte do escritor.  Alguns autores datam-na como  1552.  Porém, pela leitura da écloga  Bast o, de Sá de Miranda e escrita antes de 1544, verificamos que este autor se refere ao seu "bom Ribeiro amigo" como já falecido. Considerando especulativas todas as referências sobre as datas e locais de nascimento, período de vida e morte de Bernardim Ribeiro, algumas alusões autobiográficas à "aldeia que chamam Torrão" e a um "monte" podem levar-nos a considerar que o  autor era oriundo da vila do Torrão, Baixo Alentejo.  Na vila encontra-se actualmente uma estátua em homenagem ao escritor. Outro monumento ao autor pode ser encontrado no Museu de Évora onde existe uma estátua de António Alberto Nunes (1838 - 1912).
A OBRA Bernardim foi o introdutor do  bucolismo  em Portugal. O  bucolismo  exalta as belezas da vida no campo
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A sua principal obra é a novela  Saudades , mais conhecida porém como  Menina e Moça -  da primeira frase da novela, que se tornou um tópico da literatura portuguesa:  Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe… Em 1554, na oficina do hebreu exilado Abraão Usque, em Ferrara (Itália), são editadas as suas obras.  Menina e Moça  é editada sob o título de  História de Menina e Moça . Na segunda edição, de 1557-58, em Évora, com o título de  Saudades  e a terceira realizada em Colónia a partir da primeira edição.
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A NOVELA ,[object Object],[object Object],[object Object]
 
 
«Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aventura, a que me fez ser leda. Depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha. [...]»
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Bernardim Ribeiro,  Menina e Moça   Trata-se de  uma novela sentimental , género em voga em Itália, inacabada  e de carácter  autobiográfico , em que se inserem relatos que a aproximam, por um lado, do  romance de cavalaria  e, por outro, do ambiente próprio do  bucolismo , um pouco à maneira da novela  Fiametta , de Boccacio, em que também uma menina nos fala dos seus males de amor.
Menina e Moça  é uma  novela em prosa , mas de um grande lirismo pessoal,  floração caduca como a emoção ephémera do momento ou crise transitória que o inspirou , nas palavras de Teófilo Braga [1] . Ler a  Menina e Moça  não é tarefa fácil, sobretudo quando a edição de que dispomos tem seguramente mais de cem anos e está escrita com uma grafia que desconhecemos. A obra tem, no entanto, uma tal intensidade expressiva que representa quase fisicamente a ligação entre o lirismo pueril das cantigas trovadorescas e a riqueza arquitectónica do lirismo renascentista, ao mesmo tempo que se reconhecem nela os tiques e maneirismos que ainda hoje nos caracterizam como povo. Camões considerava que Bernardim Ribeiro era o seu  Énio  – o seu mestre, o seu mentor, a sua referência.
Menina e Mo ça é uma obra dividida em  duas partes  e um  prólogo .  A primeira parte tem  cinquenta capítulos  e a segunda  trinta e nove .  Cada capítulo tem um título descritivo, pelo que se pode quase seguir a história que a novela conta pela simples leitura dos títulos dos capítulos. Podemos notar esta particularidade pelos seguintes exemplos: “De como a Belisa vieram em crescimento as dores do parto: e parindo uma criança, faleceu.”, “Do pranto que Aónia fez pela morte de sua irmã Belisa.”. A novela apresenta-se em prosa conquanto se sinta no texto o lirismo de algumas cantigas de amigo e o dramatismo de  Amadis de Gaula . É de salientar ainda que Bernardim Ribeiro optou sempre pela língua portuguesa quando todos os poetas palacianos empregavam o castelhano quase exclusivamente.
O  Preâmbulo  tem início com o monólogo da Menina que se refugiou, recordando a sua infância e o seu sofrimento, agora projectado na Natureza.  Segue-se um diálogo com a Dona do Tempo Antigo, no qual diz que só as mulheres são tristes e que os homens são imunes a esse tipo de sentimento. No entanto, há uma excepção: a excepção dos "Dois Amigos”.  São essas histórias se irão desenrolar na novela .
O  monólogo  está a cargo de uma menina, - «Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe», - que recorda a sua infância, num lugar ermo em que se refugiou, longe do convívio das pessoas, em tom de lamentação por um amigo de quem se separou, não se sabe muito bem porquê -define assim uma situação de  exílio  e produz reflexões sobre a  mudança  que o tempo originou em si;  compraz-se nas saudades e no observar da natureza, assumindo particular interesse as suas reflexões em torno da morte de um rouxinol. Parece  comprazer-se na dor,  na mágoa, na  saudade,  nas lágrimas.  (Livro chamado As saudades de Bernardim Ribeiro  assim foi o título da edição de Évora).
“ Entre o capítulo V e IX há uma parte introdutória às duas histórias, referenciando-se um lance cavaleiresco – a morte do Cavaleiro da Ponte.” A partir do  capítulo IX , é-nos dado a conhecer o romance de Binmarder e Aónia.  Belisa, irmã de Aónia, morre ao dar à luz Arima e, durante o parto, um cavaleiro reparou em Aónia que chorava a morte da irmã e, imediatamente, apaixonou-se por ela. Ficou por ali, disfarçado, ia trocando os seus fatos de cavaleiro pelos de pastor e ia trocando também de nome; até que um dia vê passar por ele um desgraçado que por um pouco não foi queimado vivo (num fogo da floresta) e que diz: - "Bin m'arder !". São as próprias letras do seu nome (porém não nos é dado a conhecer o nome do cavaleiro) e, por isso, adopta-o. Sob essa falsa identidade logra o amor da donzela,  deixa a sua mulher Aquelísia, por quem não sente este amor. No entanto Aónia acaba por se casar com outro cavaleiro convencida de que a situação de casada lhe vai dar maior liberdade para os seus amores no bosque. Binmarder, que ignora tal situação, foge desesperado e perde-lhe o rasto.
Na  segunda parte  é-nos dada a conhecer a  História do Segundo Amigo : um  amor de Avalor e Arima , filha de Belisa, que se relaciona com história contada anteriormente.  Arima foi viver para a corte de um grande rei e foi lá que Avalor a conheceu e, por consequente, se apaixonou perdidamente por ela. Durante um ano, amou-a em silêncio, sem nunca lho ousar dizer. Existia qualquer razão misteriosa que tornava impossível amar Arima com amor deste mundo. A história acaba com a partida de Arima, por mar, atrás da qual seguiu o amado, em barca à deriva, para destino desconhecido.
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A novela de Bernardim Ribeiro é um livro singularíssimo na literatura portuguesa. Quem simula escrevê-lo é uma «menina e moça». Ela, que a princípio talvez só quisesse falar de suas desventuras íntimas, acaba por registar várias histórias ouvidas a uma «senhora dona» com quem se encontrou na solidão dos bosques. A unidade de acção não é perfeita e, por vezes, recebemos a impressão de estar na presença não de uma novela mas de várias. No entanto, as histórias de  Menina e Moça  estão de alguma forma relacionadas não só pela semelhança que se descobre nos lances da intriga mas também pela identidade ou parentesco das personagens. É como se umas narrativas fossem o complemento das outras.
Encontramos em  Menina e Moça  um episódio pastoril e muitos de cavalaria . Todavia, quer o episódio bucólico do pastor da flauta, quer os cavaleirescos estão impregnados de um sentimentalismo que lhes não é próprio. Atendendo a isto, podemos classificar esta obra de Bernardim como  novela sentimental , com personagens masculinos dedicados ainda ao mister da cavalaria. Este  hibridismo  coloca a  Menina e Moça  entre o Amadis de Gaula e algumas obras de ficção, puramente sentimentais, das literaturas francesa, italiana e até castelhana.
a) Feminismo Logo na introdução esbarramos com mil queixumes a brotar despiedadamente dos lábios da menina e moça. Ela vai até escrever um livro triste para os homens lerem. Poucos o entenderão; «ele» entendê-lo-ia, «mas, meu amigo verdadeiro, quem me vos levou tão longe?». Destarte, a obra é uma longa «cantiga de amigo», onde, a par da menina e moça e da senhora dona, outras mulheres surgem a exteriorizar queixas e intimidades do coração, a carpir saudades manifestadas em lágrimas ininterruptas, abraçadas a amores que tão rápidos desapareceram como rápidos surgiram. Nos vários episódios, sobressai a mulher sofredora sobre o homem das aventuras e da acção. Só elas sabem amar. Para isso nasceram: «nos homens houve sempre desamor». De resto, faz-se aí uma fina análise da psicologia feminina: enamoram-se as donzelas timidamente, sofrem caladas, até encobrem o amor e a dor para salvar as aparências de situações legais.
b) O sofrimento e a solidão Em  Menina e Moça  o sofrimento é constante. O mal das pessoas é nascerem; suposto isso, não poderão escapar à dor. As personagens da novela e sobretudo a  menina e moça,  em cada passo que dão, encontram sempre novos motivos de sofrer. Custa-nos ouvir esta confissão da desolada rapariga: «O que fazia alegre a todas as cousas, a mim só teve causa de fazer triste» (cap. II da 1ª parte). Não se vê em todo o livro o mais pequenino vestígio de reacção contra a tristeza e o sofrimento. Pelo contrário. A fuga para a solidão é que vem frequentemente agravar a desolação do espírito. As personagens andam fascinadas pela vertigem do longe: «Neste monte [...] passava eu minha vida como soía, ora em me ir pêlos fundos destes vales que o cingem de redor, ora em me pôr do mais alto dele a olhar a terra como ia acabar no mar e depois o mar como se estendia logo após ela, para se ir acabar onde ninguém visse» (cap. II da 1ª parte);
b) O sofrimento e a solidão (cont.) e, por mais paradoxal que pareça, comprazem-se em buscar a dor: «Mas eu, que sempre folguei de buscar meu dano, passei além» (ibidem). O ambiente doloroso da novela em nada se parece com o «vale de lágrimas» da doutrina cristã. O sofrimento cristão é redentor. Tem uma finalidade. Talvez seja mesmo necessário. A dor física alerta as pessoas da aproximação das doenças ou da existência de lesões graves. Porque os homens sentem esta dor, atalham muitas vezes a males bastante piores. E a dor moral contribui para o indivíduo se purificar, para formar o carácter. Já que ninguém levantou voo que o não fizesse contra o vento, quantos seres humanos não têm atingido, pêlos caminhos da dor, estados de sublime perfeição?! Bernardim ignorou esta concepção cristã da dor.
c) O amor trágico Para Bernardim a única preocupação da vida é o sentimento amoroso. Mas o amor é uma perene insatisfação. Os amantes, procurando-se, vêem-se, por razões fatais, separados um do outro. Apesar disso, o amor subsiste, mas aliado ao tormento, como não podia deixar de ser.  No capítulo XLVIII da 2. a  parte, o amor de Bimnarder e Aónia acaba em tragédia: Surpreendidos em adultério por Orfileno, marido dela, Bimnarder recebeu feridas mortais, mas não tão fulminantes que não pudesse, antes de expirar, atingir também o esposo ultrajado. E os três caíram e ficaram para sempre banhados em sangue debaixo dum freixo. É por isto que alguns críticos têm chamado à novela o  Amor de Perdição do século XVI.
d) Fatalismo De todo o livro ressuma um certo fatalismo, como se o destino de cada homem estivesse escrito nas estrelas, a ponto de ser previsto em sonhos, em agouros, em palpites do coração, em aparecimentos de sombras misteriosas. Alguém disse a Avalor num sonho: «Tinha-te uma preso o corpo, e a outra, quer queiras quer não queiras, há-de ter o corpo e a alma para sempre [...]. Em nossos espíritos somos criados com a vontade de cujos havemos de ser» (cap. V da  2ª parte ). E Arima, aparecendo-lhe, qual ninfa no fundo de uma fonte, confessou-lhe: «Em balde trabalhas [...] que só na vontade me poderás ver» (cap. XXII da 2ª parte). A vida das pessoas não é conduzida pela própria vontade, mas por forças ocultas que manejam os passos dos mortais a seu bel prazer. É o Fado, com maiúscula, a que tão frequentemente aludem os escritores clássicos. Em Bernardim, até as coisas, como as águas, estão à mercê deste fatalismo.
e) Humanização da Natureza Para Bernardim, a Natureza tem uma alma e as coisas, como se fossem seres dotados de vida racional, entram no diálogo com os homens. Provençal, petrarquista ou humanística que seja esta atitude do escritor, ela enche as suas obras de graciosa animação.
f) Autobiografia? A novela, apesar de sibilina na interpretação, parece conotar certa motivação autobiográfica. Dois criptónimos escondem o nome Bernardim  (Bimnarder  e  Narbindel).  Os outros, embora não seja fácil identificá-los, podem decifrar-se sem dificuldade:  Donanfer  é Fernando,  Belisa  é Isabel,  Arima  é Maria,  Aónia  é Joana,  Fileno  será Gato,  Avalor  é Álvaro, etc. Se é autobiográfica a motivação desta obra, estamos na presença de um caso flagrante de  evasão.  Bernardim sente abandono, inquietação, solidão, tédio, quase desespero. Tenta eva­dir-se, escrevendo. Se tivesse vivido na época do Romantismo, di-lo-íamos vítima do «mal du siècle».
 
1. É levemente arcaizante. A linguagem de  Menina e Moça é  frequentemente matizada por bem recortados arcaísmos, como  asinha, tamalavez, camanho, emmentes, ca, chuiva, crara, escontra, assi, sam, oulhar, leixar, entonces,  e pelo emprego da  dupla negação,  do  partitivo,  do  pleo­nasmo possessivo,  etc.
2. É feminina de tipo oral. A elocução desenvolve-se com a despreocupação de quem fala cara a cara. O rigor sintáctico, por isso, nem sempre é respeitado. Daí o tropeçarmos em abundantes  anacolutos, pleonasmos, repe­tições vocabulares,  etc. Repare-se neste período: «Determinei ir-me para o pé deste monte [...] por onde corre um pequeno ribeiro de água de todo o ano, que, nas noutes caladas, o rugido dele faz no mais alto deste monte um saudoso tom, que muitas vezes me tolheu o sono a mim; onde eu vou muitas vezes deixar as minhas lágrimas, onde também muitas infindas as torno a beber» (cap. II da 1.ª parte). O mesmo se nota em expressões de grande poder comunicativo que a  senhora dona  emprega a miúdo na narração: «Assim se saiu da tenda e assim o leixaremos para seu tempo» (cap. X da 1 parte).
3. Tem frequentes inversões. Com muita graciosidade costuma Bernardim inverter a ordem de colocação das palavras, produzindo belos efeitos de harmonia e ritmo. «Pois dos desastres que neste ribeiro acontecem vos espantais» (cap.  II  da 1ª parte). «Meu pai, quando ainda moço pequeno era, por grandes sem razões da ventura foi levado da sua terra natural para outras muito longadas dela» (cap. XVI da 2ª parte).
1. Magnífica expressão lírica. Bernardim expõe, os sentimentos das personagens enleados num lirismo que toca as raias da poesia, sobretudo na intro­dução: «Meu amigo verdadeiro, quem me vos levou tão longe?... E, por que  tudo  ainda mais  me  magoasse,  tão  somente  me  não  foi leixado em vossa partida o conforto de saber para que parte da terra íeis. Que descansaram meus olhos em levarem para lá a vista» (cap. I da 1." parte). «Mas, se ainda está para me ser em algum tempo outorgado que este pequeno penhor de meus longos suspiros vá ante seus olhos, muitas outras cousas desejo, mas esta me seria assaz» (ibidem). E em toda a obra é um nunca acabar de exprimir mágoas e tristezas, angústias e aflições, que, de tão profundas, mal podem adivinhar-se em atitudes ou reacções externas.
2. Harmonia expressiva. A novela exprime, na generalidade, um ambiente de saudade, tristeza, gosto pelo indefinido. E é ver como o vocabulário usado sugere continuamente essa vivência característica.  Mágoa, desaventura, tristeza, nojo, soidade, manso, repouso, descanso, longe, cansado, sombra  aparecem como pedras angulares em todos os capítulos. Estas palavras desenham na frase com exactidão a alma das pessoas, das coisas, dos acontecimentos. Sob este aspecto, outra característica do estilo bernardiniano é a elocução arrastada e lenta, própria aliás da linguagem femi­nina. Para conseguir o efeito desejado, o autor recorre à  voz perifrástica,  aos  gerúndtbs  e aos  imperfeitos,  que afastam para longe a precipitação vertiginosa de ideias e factos. Mesmo ao narrar cenas movimentadas, esta serenidade não desaparece:
2. Harmonia expressiva (cont.) «Começava a cair a calma e havia pedaço que o pastor da frauta estava sentado à beira deste ribeiro, sobre um   torrão, olhando para a parte contrária, donde a ama acertou acaso de vir. Estava tangendo mansozinho a frauta antre si. Estando ele nisto, leixara-se vir um rebanho de vacas correndo, apressadas da mosca. Passando por ele, se foram meter na água até aos peitos, e leixando ele então de tanger, ficou como cuidoso um pouco, porém sem tirar a frauta donde a dantes tinha, como transportado» (cap. XVIII da 1ª parte). No fim do capítulo V da 1. a  parte, é verdadeiramente suave e mortiça a maneira como se descreve o expirar do cavaleiro da ponte: «E com isto leixaram-se-lhe os seus olhos ir cansadamente cerrando para sempre.» Frases assim são mais musicais do que plásticas.
3. Recursos a figuras Deparamos em  Menina e Moça  com efeitos surpreendentes resultantes do recurso a  trocadilhos: «Mas estando assi nisto eles ambos, e não estando eles ambos ali, chegou Inês muito rijo à porta» (cap. XXVIII da 1ª parte); «Quantas donzelas comeu já a terra com a saudade que lhe leixaram cavaleiros, que come outra terra com outras saudades» (cap. II da 1ª parte). a  paronímias e aliterações: «Começava então de querer cair a calma» (cap. II da 1ª parte); a  comparações elucidativas: «Isto vai assi como quando algum amparo tolhe o Sol; se o toma em cheio, é muito maior a sombra que o emparo que a faz. Assi os que bem querem, porque as esperanças, por pequenas .que elas sejam, tomam sempre em cheio (ou parece que tomam) os estorvos que tolhem a causa benquista, fazem o amor muito maior do que elas são» (cap. XIII da 1ª parte).
3. Recursos a figuras (cont.) Estas figuras, cheias de pitoresco, lançam mão do concreto para ilustrar afirmações abstractas. E falam mais à inteligência do que à sensibilidade. Repare-se noutra do mesmo teor: «Cumpre a todas as pessoas, e às donas senhoras muito mais cumpre pois são as que aventuram mais, que ao princípio das cousas olhem -  onde elas podem ir parar: que não há nehãa tamanha que no começo dela se não possa resistir ou leixar sem trabalho: que muitos rios grandes há aí que onde nascem se podiam impedir com um pé ou levar para outro cabo, e no meo deles ou depois que colhem forças, todo o mundo junto não os poderá tolher ou mudar» (cap. XXIII, da 1ª parte).
A narração do parto e morte de Belisa  (cap. XIII da 1.ª parte),  a descrição da tempestade que ia vitimando Avalor  (cap. XII da 2. a  parte),  a fuga do cavalo de Narbindel atacado pelos lobos  (cap. XVI da 1.ª parte), a  luta de touros  (cap. XX da 1. a  parte)  são cenas de realismo fotográfico a denotar grande poder de observação. Confronte-se sobretudo o episódio tão romântico da morte do rouxinol com a candente realidade da morte de Belisa. Bernardim abraça aqui os dois extremos do horizonte do pensamento humano: a máxima idealização e o máximo realismo.
Esta é uma característica da ideologia do Poeta das Saudades. Bernardim anima toda a Natureza. Esta animação não é um mero enfeite literário, uma simples prosopopeia. As coisas riem e choram. Mais do que isso, influem no destino humano. Não se trata de qualquer posição infantil, semelhante à da criança que bate na cadeira que a magoou. Como um  ser no mundo,  o homem bernardiniano comunga com a terra onde põe os pés, com o Sol e com as estrelas que os seus olhos contem­plam, com os ruídos que ferem seus ouvidos, com o perfume que se cheira, com o ar que se respira. Ao dualismo filosófico  Homem-Deus,  o Autor de  Menina e Moça  prefere o dualismo  Homem-Natureza.
 

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Bernardim ribeiro

  • 3. Praticamente nada se sabe de certo na vida de Bernardim Ribeiro. Presume-se que nasceu por volta de 1482. Não se conseguiu ainda provar que este poeta Bernardim Ribeiro e um seu homónimo que frequentou, entre 1507 e 1511, a Universidade de Lisboa, e que em 1524 foi nomeado escrivão da câmara, fossem a mesma pessoa. Teria frequentado a corte de Lisboa, colaborou no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, que assim como Bernardim pertenceu à roda dos poetas palacianos juntamente com Sá de Miranda, Gil Vicente e outros. Esteve algum tempo na Itália, onde tomou conhecimento inovações literárias.
  • 4. Tão misterioso quanto o nascimento é a morte do escritor. Alguns autores datam-na como 1552. Porém, pela leitura da écloga Bast o, de Sá de Miranda e escrita antes de 1544, verificamos que este autor se refere ao seu "bom Ribeiro amigo" como já falecido. Considerando especulativas todas as referências sobre as datas e locais de nascimento, período de vida e morte de Bernardim Ribeiro, algumas alusões autobiográficas à "aldeia que chamam Torrão" e a um "monte" podem levar-nos a considerar que o autor era oriundo da vila do Torrão, Baixo Alentejo. Na vila encontra-se actualmente uma estátua em homenagem ao escritor. Outro monumento ao autor pode ser encontrado no Museu de Évora onde existe uma estátua de António Alberto Nunes (1838 - 1912).
  • 5. A OBRA Bernardim foi o introdutor do bucolismo em Portugal. O bucolismo exalta as belezas da vida no campo
  • 6.
  • 7. A sua principal obra é a novela Saudades , mais conhecida porém como Menina e Moça - da primeira frase da novela, que se tornou um tópico da literatura portuguesa: Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe… Em 1554, na oficina do hebreu exilado Abraão Usque, em Ferrara (Itália), são editadas as suas obras. Menina e Moça é editada sob o título de História de Menina e Moça . Na segunda edição, de 1557-58, em Évora, com o título de Saudades e a terceira realizada em Colónia a partir da primeira edição.
  • 8.
  • 9.
  • 10.  
  • 11.  
  • 12. «Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aventura, a que me fez ser leda. Depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha. [...]»
  • 13.
  • 14. Bernardim Ribeiro, Menina e Moça Trata-se de uma novela sentimental , género em voga em Itália, inacabada e de carácter autobiográfico , em que se inserem relatos que a aproximam, por um lado, do romance de cavalaria e, por outro, do ambiente próprio do bucolismo , um pouco à maneira da novela Fiametta , de Boccacio, em que também uma menina nos fala dos seus males de amor.
  • 15. Menina e Moça é uma novela em prosa , mas de um grande lirismo pessoal, floração caduca como a emoção ephémera do momento ou crise transitória que o inspirou , nas palavras de Teófilo Braga [1] . Ler a Menina e Moça não é tarefa fácil, sobretudo quando a edição de que dispomos tem seguramente mais de cem anos e está escrita com uma grafia que desconhecemos. A obra tem, no entanto, uma tal intensidade expressiva que representa quase fisicamente a ligação entre o lirismo pueril das cantigas trovadorescas e a riqueza arquitectónica do lirismo renascentista, ao mesmo tempo que se reconhecem nela os tiques e maneirismos que ainda hoje nos caracterizam como povo. Camões considerava que Bernardim Ribeiro era o seu Énio – o seu mestre, o seu mentor, a sua referência.
  • 16. Menina e Mo ça é uma obra dividida em duas partes e um prólogo . A primeira parte tem cinquenta capítulos e a segunda trinta e nove . Cada capítulo tem um título descritivo, pelo que se pode quase seguir a história que a novela conta pela simples leitura dos títulos dos capítulos. Podemos notar esta particularidade pelos seguintes exemplos: “De como a Belisa vieram em crescimento as dores do parto: e parindo uma criança, faleceu.”, “Do pranto que Aónia fez pela morte de sua irmã Belisa.”. A novela apresenta-se em prosa conquanto se sinta no texto o lirismo de algumas cantigas de amigo e o dramatismo de Amadis de Gaula . É de salientar ainda que Bernardim Ribeiro optou sempre pela língua portuguesa quando todos os poetas palacianos empregavam o castelhano quase exclusivamente.
  • 17. O Preâmbulo tem início com o monólogo da Menina que se refugiou, recordando a sua infância e o seu sofrimento, agora projectado na Natureza. Segue-se um diálogo com a Dona do Tempo Antigo, no qual diz que só as mulheres são tristes e que os homens são imunes a esse tipo de sentimento. No entanto, há uma excepção: a excepção dos "Dois Amigos”. São essas histórias se irão desenrolar na novela .
  • 18. O monólogo está a cargo de uma menina, - «Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe», - que recorda a sua infância, num lugar ermo em que se refugiou, longe do convívio das pessoas, em tom de lamentação por um amigo de quem se separou, não se sabe muito bem porquê -define assim uma situação de exílio e produz reflexões sobre a mudança que o tempo originou em si; compraz-se nas saudades e no observar da natureza, assumindo particular interesse as suas reflexões em torno da morte de um rouxinol. Parece comprazer-se na dor, na mágoa, na saudade, nas lágrimas. (Livro chamado As saudades de Bernardim Ribeiro assim foi o título da edição de Évora).
  • 19. “ Entre o capítulo V e IX há uma parte introdutória às duas histórias, referenciando-se um lance cavaleiresco – a morte do Cavaleiro da Ponte.” A partir do capítulo IX , é-nos dado a conhecer o romance de Binmarder e Aónia. Belisa, irmã de Aónia, morre ao dar à luz Arima e, durante o parto, um cavaleiro reparou em Aónia que chorava a morte da irmã e, imediatamente, apaixonou-se por ela. Ficou por ali, disfarçado, ia trocando os seus fatos de cavaleiro pelos de pastor e ia trocando também de nome; até que um dia vê passar por ele um desgraçado que por um pouco não foi queimado vivo (num fogo da floresta) e que diz: - "Bin m'arder !". São as próprias letras do seu nome (porém não nos é dado a conhecer o nome do cavaleiro) e, por isso, adopta-o. Sob essa falsa identidade logra o amor da donzela, deixa a sua mulher Aquelísia, por quem não sente este amor. No entanto Aónia acaba por se casar com outro cavaleiro convencida de que a situação de casada lhe vai dar maior liberdade para os seus amores no bosque. Binmarder, que ignora tal situação, foge desesperado e perde-lhe o rasto.
  • 20. Na segunda parte é-nos dada a conhecer a História do Segundo Amigo : um amor de Avalor e Arima , filha de Belisa, que se relaciona com história contada anteriormente. Arima foi viver para a corte de um grande rei e foi lá que Avalor a conheceu e, por consequente, se apaixonou perdidamente por ela. Durante um ano, amou-a em silêncio, sem nunca lho ousar dizer. Existia qualquer razão misteriosa que tornava impossível amar Arima com amor deste mundo. A história acaba com a partida de Arima, por mar, atrás da qual seguiu o amado, em barca à deriva, para destino desconhecido.
  • 21.
  • 22. A novela de Bernardim Ribeiro é um livro singularíssimo na literatura portuguesa. Quem simula escrevê-lo é uma «menina e moça». Ela, que a princípio talvez só quisesse falar de suas desventuras íntimas, acaba por registar várias histórias ouvidas a uma «senhora dona» com quem se encontrou na solidão dos bosques. A unidade de acção não é perfeita e, por vezes, recebemos a impressão de estar na presença não de uma novela mas de várias. No entanto, as histórias de Menina e Moça estão de alguma forma relacionadas não só pela semelhança que se descobre nos lances da intriga mas também pela identidade ou parentesco das personagens. É como se umas narrativas fossem o complemento das outras.
  • 23. Encontramos em Menina e Moça um episódio pastoril e muitos de cavalaria . Todavia, quer o episódio bucólico do pastor da flauta, quer os cavaleirescos estão impregnados de um sentimentalismo que lhes não é próprio. Atendendo a isto, podemos classificar esta obra de Bernardim como novela sentimental , com personagens masculinos dedicados ainda ao mister da cavalaria. Este hibridismo coloca a Menina e Moça entre o Amadis de Gaula e algumas obras de ficção, puramente sentimentais, das literaturas francesa, italiana e até castelhana.
  • 24. a) Feminismo Logo na introdução esbarramos com mil queixumes a brotar despiedadamente dos lábios da menina e moça. Ela vai até escrever um livro triste para os homens lerem. Poucos o entenderão; «ele» entendê-lo-ia, «mas, meu amigo verdadeiro, quem me vos levou tão longe?». Destarte, a obra é uma longa «cantiga de amigo», onde, a par da menina e moça e da senhora dona, outras mulheres surgem a exteriorizar queixas e intimidades do coração, a carpir saudades manifestadas em lágrimas ininterruptas, abraçadas a amores que tão rápidos desapareceram como rápidos surgiram. Nos vários episódios, sobressai a mulher sofredora sobre o homem das aventuras e da acção. Só elas sabem amar. Para isso nasceram: «nos homens houve sempre desamor». De resto, faz-se aí uma fina análise da psicologia feminina: enamoram-se as donzelas timidamente, sofrem caladas, até encobrem o amor e a dor para salvar as aparências de situações legais.
  • 25. b) O sofrimento e a solidão Em Menina e Moça o sofrimento é constante. O mal das pessoas é nascerem; suposto isso, não poderão escapar à dor. As personagens da novela e sobretudo a menina e moça, em cada passo que dão, encontram sempre novos motivos de sofrer. Custa-nos ouvir esta confissão da desolada rapariga: «O que fazia alegre a todas as cousas, a mim só teve causa de fazer triste» (cap. II da 1ª parte). Não se vê em todo o livro o mais pequenino vestígio de reacção contra a tristeza e o sofrimento. Pelo contrário. A fuga para a solidão é que vem frequentemente agravar a desolação do espírito. As personagens andam fascinadas pela vertigem do longe: «Neste monte [...] passava eu minha vida como soía, ora em me ir pêlos fundos destes vales que o cingem de redor, ora em me pôr do mais alto dele a olhar a terra como ia acabar no mar e depois o mar como se estendia logo após ela, para se ir acabar onde ninguém visse» (cap. II da 1ª parte);
  • 26. b) O sofrimento e a solidão (cont.) e, por mais paradoxal que pareça, comprazem-se em buscar a dor: «Mas eu, que sempre folguei de buscar meu dano, passei além» (ibidem). O ambiente doloroso da novela em nada se parece com o «vale de lágrimas» da doutrina cristã. O sofrimento cristão é redentor. Tem uma finalidade. Talvez seja mesmo necessário. A dor física alerta as pessoas da aproximação das doenças ou da existência de lesões graves. Porque os homens sentem esta dor, atalham muitas vezes a males bastante piores. E a dor moral contribui para o indivíduo se purificar, para formar o carácter. Já que ninguém levantou voo que o não fizesse contra o vento, quantos seres humanos não têm atingido, pêlos caminhos da dor, estados de sublime perfeição?! Bernardim ignorou esta concepção cristã da dor.
  • 27. c) O amor trágico Para Bernardim a única preocupação da vida é o sentimento amoroso. Mas o amor é uma perene insatisfação. Os amantes, procurando-se, vêem-se, por razões fatais, separados um do outro. Apesar disso, o amor subsiste, mas aliado ao tormento, como não podia deixar de ser. No capítulo XLVIII da 2. a parte, o amor de Bimnarder e Aónia acaba em tragédia: Surpreendidos em adultério por Orfileno, marido dela, Bimnarder recebeu feridas mortais, mas não tão fulminantes que não pudesse, antes de expirar, atingir também o esposo ultrajado. E os três caíram e ficaram para sempre banhados em sangue debaixo dum freixo. É por isto que alguns críticos têm chamado à novela o Amor de Perdição do século XVI.
  • 28. d) Fatalismo De todo o livro ressuma um certo fatalismo, como se o destino de cada homem estivesse escrito nas estrelas, a ponto de ser previsto em sonhos, em agouros, em palpites do coração, em aparecimentos de sombras misteriosas. Alguém disse a Avalor num sonho: «Tinha-te uma preso o corpo, e a outra, quer queiras quer não queiras, há-de ter o corpo e a alma para sempre [...]. Em nossos espíritos somos criados com a vontade de cujos havemos de ser» (cap. V da 2ª parte ). E Arima, aparecendo-lhe, qual ninfa no fundo de uma fonte, confessou-lhe: «Em balde trabalhas [...] que só na vontade me poderás ver» (cap. XXII da 2ª parte). A vida das pessoas não é conduzida pela própria vontade, mas por forças ocultas que manejam os passos dos mortais a seu bel prazer. É o Fado, com maiúscula, a que tão frequentemente aludem os escritores clássicos. Em Bernardim, até as coisas, como as águas, estão à mercê deste fatalismo.
  • 29. e) Humanização da Natureza Para Bernardim, a Natureza tem uma alma e as coisas, como se fossem seres dotados de vida racional, entram no diálogo com os homens. Provençal, petrarquista ou humanística que seja esta atitude do escritor, ela enche as suas obras de graciosa animação.
  • 30. f) Autobiografia? A novela, apesar de sibilina na interpretação, parece conotar certa motivação autobiográfica. Dois criptónimos escondem o nome Bernardim (Bimnarder e Narbindel). Os outros, embora não seja fácil identificá-los, podem decifrar-se sem dificuldade: Donanfer é Fernando, Belisa é Isabel, Arima é Maria, Aónia é Joana, Fileno será Gato, Avalor é Álvaro, etc. Se é autobiográfica a motivação desta obra, estamos na presença de um caso flagrante de evasão. Bernardim sente abandono, inquietação, solidão, tédio, quase desespero. Tenta eva­dir-se, escrevendo. Se tivesse vivido na época do Romantismo, di-lo-íamos vítima do «mal du siècle».
  • 31.  
  • 32. 1. É levemente arcaizante. A linguagem de Menina e Moça é frequentemente matizada por bem recortados arcaísmos, como asinha, tamalavez, camanho, emmentes, ca, chuiva, crara, escontra, assi, sam, oulhar, leixar, entonces, e pelo emprego da dupla negação, do partitivo, do pleo­nasmo possessivo, etc.
  • 33. 2. É feminina de tipo oral. A elocução desenvolve-se com a despreocupação de quem fala cara a cara. O rigor sintáctico, por isso, nem sempre é respeitado. Daí o tropeçarmos em abundantes anacolutos, pleonasmos, repe­tições vocabulares, etc. Repare-se neste período: «Determinei ir-me para o pé deste monte [...] por onde corre um pequeno ribeiro de água de todo o ano, que, nas noutes caladas, o rugido dele faz no mais alto deste monte um saudoso tom, que muitas vezes me tolheu o sono a mim; onde eu vou muitas vezes deixar as minhas lágrimas, onde também muitas infindas as torno a beber» (cap. II da 1.ª parte). O mesmo se nota em expressões de grande poder comunicativo que a senhora dona emprega a miúdo na narração: «Assim se saiu da tenda e assim o leixaremos para seu tempo» (cap. X da 1 parte).
  • 34. 3. Tem frequentes inversões. Com muita graciosidade costuma Bernardim inverter a ordem de colocação das palavras, produzindo belos efeitos de harmonia e ritmo. «Pois dos desastres que neste ribeiro acontecem vos espantais» (cap. II da 1ª parte). «Meu pai, quando ainda moço pequeno era, por grandes sem razões da ventura foi levado da sua terra natural para outras muito longadas dela» (cap. XVI da 2ª parte).
  • 35. 1. Magnífica expressão lírica. Bernardim expõe, os sentimentos das personagens enleados num lirismo que toca as raias da poesia, sobretudo na intro­dução: «Meu amigo verdadeiro, quem me vos levou tão longe?... E, por que tudo ainda mais me magoasse, tão somente me não foi leixado em vossa partida o conforto de saber para que parte da terra íeis. Que descansaram meus olhos em levarem para lá a vista» (cap. I da 1." parte). «Mas, se ainda está para me ser em algum tempo outorgado que este pequeno penhor de meus longos suspiros vá ante seus olhos, muitas outras cousas desejo, mas esta me seria assaz» (ibidem). E em toda a obra é um nunca acabar de exprimir mágoas e tristezas, angústias e aflições, que, de tão profundas, mal podem adivinhar-se em atitudes ou reacções externas.
  • 36. 2. Harmonia expressiva. A novela exprime, na generalidade, um ambiente de saudade, tristeza, gosto pelo indefinido. E é ver como o vocabulário usado sugere continuamente essa vivência característica. Mágoa, desaventura, tristeza, nojo, soidade, manso, repouso, descanso, longe, cansado, sombra aparecem como pedras angulares em todos os capítulos. Estas palavras desenham na frase com exactidão a alma das pessoas, das coisas, dos acontecimentos. Sob este aspecto, outra característica do estilo bernardiniano é a elocução arrastada e lenta, própria aliás da linguagem femi­nina. Para conseguir o efeito desejado, o autor recorre à voz perifrástica, aos gerúndtbs e aos imperfeitos, que afastam para longe a precipitação vertiginosa de ideias e factos. Mesmo ao narrar cenas movimentadas, esta serenidade não desaparece:
  • 37. 2. Harmonia expressiva (cont.) «Começava a cair a calma e havia pedaço que o pastor da frauta estava sentado à beira deste ribeiro, sobre um torrão, olhando para a parte contrária, donde a ama acertou acaso de vir. Estava tangendo mansozinho a frauta antre si. Estando ele nisto, leixara-se vir um rebanho de vacas correndo, apressadas da mosca. Passando por ele, se foram meter na água até aos peitos, e leixando ele então de tanger, ficou como cuidoso um pouco, porém sem tirar a frauta donde a dantes tinha, como transportado» (cap. XVIII da 1ª parte). No fim do capítulo V da 1. a parte, é verdadeiramente suave e mortiça a maneira como se descreve o expirar do cavaleiro da ponte: «E com isto leixaram-se-lhe os seus olhos ir cansadamente cerrando para sempre.» Frases assim são mais musicais do que plásticas.
  • 38. 3. Recursos a figuras Deparamos em Menina e Moça com efeitos surpreendentes resultantes do recurso a trocadilhos: «Mas estando assi nisto eles ambos, e não estando eles ambos ali, chegou Inês muito rijo à porta» (cap. XXVIII da 1ª parte); «Quantas donzelas comeu já a terra com a saudade que lhe leixaram cavaleiros, que come outra terra com outras saudades» (cap. II da 1ª parte). a paronímias e aliterações: «Começava então de querer cair a calma» (cap. II da 1ª parte); a comparações elucidativas: «Isto vai assi como quando algum amparo tolhe o Sol; se o toma em cheio, é muito maior a sombra que o emparo que a faz. Assi os que bem querem, porque as esperanças, por pequenas .que elas sejam, tomam sempre em cheio (ou parece que tomam) os estorvos que tolhem a causa benquista, fazem o amor muito maior do que elas são» (cap. XIII da 1ª parte).
  • 39. 3. Recursos a figuras (cont.) Estas figuras, cheias de pitoresco, lançam mão do concreto para ilustrar afirmações abstractas. E falam mais à inteligência do que à sensibilidade. Repare-se noutra do mesmo teor: «Cumpre a todas as pessoas, e às donas senhoras muito mais cumpre pois são as que aventuram mais, que ao princípio das cousas olhem - onde elas podem ir parar: que não há nehãa tamanha que no começo dela se não possa resistir ou leixar sem trabalho: que muitos rios grandes há aí que onde nascem se podiam impedir com um pé ou levar para outro cabo, e no meo deles ou depois que colhem forças, todo o mundo junto não os poderá tolher ou mudar» (cap. XXIII, da 1ª parte).
  • 40. A narração do parto e morte de Belisa (cap. XIII da 1.ª parte), a descrição da tempestade que ia vitimando Avalor (cap. XII da 2. a parte), a fuga do cavalo de Narbindel atacado pelos lobos (cap. XVI da 1.ª parte), a luta de touros (cap. XX da 1. a parte) são cenas de realismo fotográfico a denotar grande poder de observação. Confronte-se sobretudo o episódio tão romântico da morte do rouxinol com a candente realidade da morte de Belisa. Bernardim abraça aqui os dois extremos do horizonte do pensamento humano: a máxima idealização e o máximo realismo.
  • 41. Esta é uma característica da ideologia do Poeta das Saudades. Bernardim anima toda a Natureza. Esta animação não é um mero enfeite literário, uma simples prosopopeia. As coisas riem e choram. Mais do que isso, influem no destino humano. Não se trata de qualquer posição infantil, semelhante à da criança que bate na cadeira que a magoou. Como um ser no mundo, o homem bernardiniano comunga com a terra onde põe os pés, com o Sol e com as estrelas que os seus olhos contem­plam, com os ruídos que ferem seus ouvidos, com o perfume que se cheira, com o ar que se respira. Ao dualismo filosófico Homem-Deus, o Autor de Menina e Moça prefere o dualismo Homem-Natureza.
  • 42.  

Notas do Editor

  1. Bucolismo é o termo utilizado para designar uma espécie de poesia pastoral, que descreve a qualidade ou o caráter dos costumes rurais, exaltando as belezas da vida campestre e da natureza , característica do arcadismo . A base material do progresso consubstanciava-se nas cidades. Mudava o mundo, modernizavam-se as cidades e, consequentemente, redobravam os problemas dos conglomerados urbanos. A natureza acenava com a ordem nos prados e nos campos, os indivíduos resgatavam sentimentos corroídos pelo progresso. Os árcades buscavam uma vida simples, bucólica, longe do burburinho citadino.
  2. [1] RIBEIRO, Bernardim: Livro da Saudades de Bernardim Ribeiro – Hist ó ria da Menina e Mo ç a , texto segundo a edi ç ão de 1557 com estudo sobre Bernardim Ribeiro e a exegese da Menina e Mo ç a por Theophilo Braga, quarta edi ç ão, Livraria Lello & Irmão Editores, Porto, s. d. .
  3. Boccaccio pode considerar-se o responsável pela introdução da novela sentimental na literatura de Quinhentos. Na sua obra Elegia dl Madonna Fiammetta, poema de amor traduzido para espanhol e lido em Portugal, deparamos com a protagonista a desabafar o sofrimento que lhe adveio de ser abandonada pelo homem que amava e do qual nunca mais recebeu notícias.