1. A REESCRITA DE FÁBULAS NO ENSINO FUNDAMENTAL: UMA PROPOSTA DE LETRAMENTO
Marília Rocha Vieira (UFAL)
m.rocha.vieira@bol.com.br
Resumo: Este trabalho apresenta uma análise do processo de reescrita de textos com intervenções realizadas através de bilhetes, com alunos do sexto ano. Partimos da concepção de língua como ação interlocutiva, da integração entre as práticas de leitura, escrita e análise linguística proposta por Geraldi (1984) e das orientações presentes nos PCN’S que propõem um ensino de língua portuguesa pautado no eixo USO- REFLEXÃO-USO, através das intervenções realizadas criamos uma relação de interação entre professor, alunos e texto que possibilita uma postura diferente de quem escreve quando tem a oportunidade de rever seu texto e com orientações reescrevê-lo, com essa prática também direcionamos o nosso olhar de professor para uma postura linguística discursiva e nas atividades escrita e reescritas de fábulas exercitamos a escrita dos alunos e trabalhamos a língua dentro de uma perspectiva de letramento, dentro das práticas sociais que envolvem a leitura e a escrita em contextos determinados.
Palavras-chave: Ensino de língua portuguesa, Gênero textual, Letramento.
A escola, manifestada em suas concepções, práticas, saberes docentes e estruturas de transmissão e construção de conhecimentos, ao longo do tempo vêm se tornando cada vez mais objeto de estudo.
Dessa forma, como professores de língua Portuguesa, percebemos as dificuldades dos alunos na prática de uso da língua em contextos determinados, principalmente o escrito, observamos que suas produções textuais em diversas situações em sala de aula não se desenvolvem favoravelmente. Até nos momentos em que o tema é interessante e bem discutido em sala, a argumentação não ocorre de maneira
2. satisfatória, no que diz respeito estrutura do texto, do ponto de vista sintático, semântico e discursivo em que muitas vezes nos deparamos com resultados insatisfatórios.
Com essa preocupação, no decorrer da disciplina Ensino do português: leitura, escrita e gramática, que objetivou fornecer princípios teóricos e metodológicos para orientar a prática pedagógica no que concerne às atividades de leitura, escrita e gramática presentes nos livros didáticos e nos manuais oficiais; acompanhamos e desenvolvemos uma sequência didática durante quatro meses em uma classe referência, paralelo a isso refletimos sobre o processo ensino/aprendizagem de língua portuguesa.
Nossas reflexões estão fundamentadas na análise proposta por Magda Soares (1998), que aponta basicamente duas dimensões do letramento: a individual e a social. A dimensão individual diz respeito à posse individual de capacidades relacionadas à leitura e a escrita, que incluem não só habilidades de decodificação de palavras, mas um amplo conjunto de habilidades de compreensão e interpretação, como, por exemplo, estabelecer relações entre ideias, fazer inferências, reconhecer linguagem figurada, combinar informações textuais com informações intertextuais. A dimensão social do letramento diz respeito às práticas sociais que envolvem a escrita em contextos determinados.
Nas reflexões de Marcuschi (2002) que define os gêneros textuais como fenômenos históricos, que estão envolvidos na vida cultural e social. Pois fazem parte de todas as nossas ações comunicativas e surgem juntos com as necessidades de novas formas de interação,
Diante disso, o referido autor esclarece que em nossas aulas, nos trabalhos que desenvolvemos com os gêneros devemos priorizar a diversidade das práticas sociais e as condições de produção sócio-historica dos gêneros, sempre em relação ao cotidiano desses alunos, como nos lembra Bakhtin (1952-1953 apud BUZEN, 2006, p.146). A escolha de um gênero é determinada em função da especificidade da esfera de produção
3. em que ocorre a comunicação verbal, pelas necessidades uma temática e do conjunto constituído pelos participantes.
Em virtude disso as nossas aulas de produção de texto necessitam estar articuladas com atividades de leituras que priorizem a compreensão ativa e responsiva, que direciona para análises linguísticas dos textos, refletindo não só os aspectos formais, mas também os aspectos discursivos do texto.
Quando o professor utiliza os gêneros como objetos de ensino, está desenvolvendo uma sequência didática que possibilita ao aluno operar com práticas de linguagem que envolve a capacidade linguística, em determinadas situações de uso e a capacidade de ação em contexto.
Nos mostra também que os gêneros textuais não surgem na individualidade, mas são formas oriundas das práticas comunicativas. O autor destaca que essa era uma das principais posições de Bakhtin (1997), pois considera os gêneros textuais como atividades comunicativas relativamente estáveis.
Dessa forma, a escolha pelo gênero fábula se deu pelo fato da possibilidade de projeção da leitura a imagens. Ou seja, com esse suporte estimulamos a atenção do aluno de maneira considerável, sendo assim, o aluno capaz de relacionar, questionar, pois a imagem influencia bastante, já que essa prática é muito presente em sua vida, antes mesmo da educação sistemática que é oferecida na escola.
Num entanto, a questão não é apenas levar o gênero fábula à escola, mas conduzir o seu trabalho de maneira proveitosa, de modo que o aluno consiga desenvolver sua prática de letramento, satisfazendo as necessidades e perspectivas escolares, como podemos constatar nos relatos que seguem.
1- Descrição e comentários das etapas.
4. O trabalho teve início com o estudo do gênero fábula, nesse momento realizamos leituras e comentários de diferentes fábulas, em seguida foi feita a leituras de uma fábula intitulada O lobo e o cão e solicitamos dos alunos uma reescrita do texto lido, com o objetivo de verificar a escrita dos alunos e fazer as intervenções necessárias.
Texto 1 – primeira escrita.
Aluno Danilo - 28/02/2008
O lobo viu o cão e perguntou a onde você é bem tratado a suas pernas, os seus pelos, meu caro amigo lobo você quer vim morar comigo, você vai ser igual a eu, pernas bonitas, e os seus? bonitos igual o meu, eu só tenho uma obrigação lati quando avisto um ladrão, eu vou morar com você certo, certo, quando o lobo vêr a cicatriz, no pescoço do cão ele pergunta o que é isso e o cão responde e uma cicatriz da coleira eu tenho essa cicatriz por que eu fico preço para não assustar a visita, o lobo rapidamente respondeu esquecer tudo prefiro terá minha liberdade.
2.1– A organização das atividades de interferências.
Nessa primeira etapa procuramos ler a primeira escrita e analisar linguísticamente identificando os aspectos a serem trabalhados para melhorar a escrita dos alunos, para isso utilizamos esse quadro que indica alguns aspectos relevantes nessa série, em relação ao que os alunos já sabem e o que ainda necessitam aprender.
Análise da primeira escrita produzida pelos alunos e identificação de conteúdos para análise linguística.
Texto 1 – Aluno: Danilo Série: 6º ano Turma: B 1º bimestre de 2008.
Restrições impostas pelos padrões de escrita - O que o aluno já sabe - o que não sabe
5. 1. Segmenta corretamente as palavras
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2. Segmenta corretamente sílabas em final de linha?
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3. Organiza o texto em parágrafos?
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4. Grafa corretamente as palavras de alta freqüência?
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5. Acentua corretamente as palavras?
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6. Pontua corretamente final de frase?
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7. Pontua corretamente elementos internos à frase?
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8. Obedece às regras básicas de concordância?
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9. O texto tem inicio, meio e fim?
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10. Os acontecimentos estão em ordem?
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11. Conseguiu detalhar os acontecimentos.
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12. Colocou cada ideia em um parágrafo?
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13. O texto contém: título, assinatura, margem, espaço para parágrafos, data, letra legível?
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14. Utilizou maiúscula e minúscula quando necessário.
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15. Sabe organizar o texto em discurso direto?
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16. Evitou repetir palavras e ideias? Utilizou palavras adequadas para ligar partes do texto?
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A primeira intervenção realizada através de um bilhete.
Intervenção direcionada ao Texto 1 - Do aluno Danilo.
6. Danilo, analisando seu texto “o lobo e o cão”, observamos que você deixou de organizar o mesmo em parágrafos separando as falas dos animais. Reescreva o texto referido fazendo uso da pontuação.
Josefa 23/03/2008
A escuta dos alunos no processo de intervenção realizado através de bilhete.
Após a primeira intervenção solicitamos dos alunos uma nova reescrita, nessa observa-se determinados avanços, que iremos analisar mais adiante, como podemos constatar nos quadros que seguem.
Texto 1. Primeira reescrita após intervenção. Aluno Danilo 27/03/2008
-O lobo viu o cão e perguntou: _aonde você é bem tratado, e suas pernas, e seus pelos...
-Meu caro amigo lobo você quer vim morar comigo, você vai ser igual a mim, pernas bonitas e os seus pelos? bonitos igual o meu, eu só tenho uma obrigação latir quando avisto um ladrão .. eu vou morar com você certo, quando o lobo ver a cicatriz no pescoço do cão ele pergunta: - o que é isso? e o cão responde é uma cicatriz da coleira eu tenho essa cicatriz porque eu fico presso para não assustar a visita ... o lobo rapidamente responde: -esquece tudo eu prefiro ter minha liberdade fim!!!
2.2- Organizações das interferências coletivas.
Através da análise da primeira reescrita, selecionamos os aspectos que foram trabalhados isoladamente nos textos em aulas coletivas, que foram a paragrafação, a organização do discurso direto, ortografia e o uso de verbos no infinitivo.
2.3- O processo de escrita do aluno Danilo.
7. Observamos que a primeira escrita referente ao texto 1 não está organizada em parágrafos, temos o emprego equivocado de algumas palavras no que se refere a norma culta da língua, o aluno não separou a fala do narrador da fala dos personagens e existe a ausência de pontuação em determinadas partes do texto.
Notamos que após a primeira interferência realizada através de bilhete, ao reescrever seu texto o aluno buscou atender as solicitações contidas no mesmo a ele destinado, como organizar o mesmo em parágrafos, construir o discurso direto e usar sinais de pontuação.
Sendo esse um trabalho mediado pela intervenção realizada através de bilhete, assumimos a concepção de reescrita apresentada por Ruiz (2010), que se reflete da seguinte forma.
Entendo revisão como trabalho de reescrita, reestruturação, refacção, reelaborarão textual, ou retextualização realizado pelo aluno em função de intervenções escritas do professor, via correção, como vistas a uma melhor legibilidade de seu texto (Ruiz 2010, p.25).
Nessa segunda versão temos um texto dividido em dois parágrafos que é um avanço, já que o primeiro possui apenas um, atendendo ao pedido de separar as falas dos animais o aluno tenta construir o discurso direto. Constatamos que ele não teve sucesso na construção do discurso direto, como podemos verificar a seguir.
Fragmentos da 1º reescrita após a intervenção realizada através de bilhete. 27/03/2008.
-O lobo viu o cão e perguntou: _aonde você é bem tratado
ele pergunta: - o que é isso? e o cão responde é uma cicatriz da coleira
8. Acreditamos que isso acontece porque na intervenção mencionamos apenas a fala dos animais e não fizemos referência ao narrador, identificamos que o aluno ainda não domina essa construção o que justificou a nossa escola por abordar esse assunto nas interferências coletivas, visto que outros alunos também demonstraram essa dificuldade.
No bilhete mencionamos o emprego a pontuação, e o aluno pontuou seu texto em excesso como podemos observar nos fragmentos abaixo.
Fragmentos da 1º reescrita após a intervenção realizada através de bilhete. 27/03/2008.
-O lobo viu o cão e perguntou:
-Meu caro amigo lobo você quer vim morar comigo, você vai ser igual a mim, pernas bonitas e os seus pelos? bonitos igual o meu,
Através de uma análise identificamos os pontos que merecem intervenções didáticas como o uso do travessão, de dois pontos e ponto de interrogação que posteriormente foram trabalhadas em sala de aula como vimos aspectos das intervenções coletivas. Sendo estas dialógicas, pois os alunos ao lerem as orientações retornam para o seu texto e em resposta buscam atender as explicações do professor e em resposta a isso reescreve seu texto, pois “o dialogismo é a condição necessária para constituição do sujeito e do sentido de texto” como afirma Ruiz (2010).
“É preciso levar em conta a enunciação, isto é, o evento único e jamais repetido de produção desse enunciado, visto que as suas colocações de produção são igualmente constitutivas de seu sentido” Ruiz (2010, p. 28).
9. Após as interferências coletivas, solicitamos uma escrita de outra fábula onde podemos identificar avanços satisfatórios no processo de escrita do aluno, como podemos constatar abaixo.
Segunda reescrita realizada após as intervenções coletivas em sala de aula. 04/06/2008.
O lobo e o cordeiro
O lobo estava bebendo água no pátio, o cordeiro também estava bebendo.
O lobo escancarou os dentes e falou:
__Você está sujando a minha água.
E o cordeiro respondeu:
__Como eu estou sujando a sua água ser a água vinha dela para cá.
O lobo respondeu:
__A seis mecês meu pai sujou a minha água.
O cordeiro respondeu:
__Mas a seis meses eu não tinha nem nascido.
O lobo não perguntou mais nada e pulou em cima do cordeirinho e o ingolio o cordeirinho.
Observamos que o aluno organizou o seu texto em parágrafos e esses possuem uma sequência lógica dos fatos narrados, empregou adequadamente a organização do discurso direto, as letras maiúsculas e minúsculas quando necessário, pontuou bem seu texto escrevendo de acordo com as normas ortográficas.
10. Podemos afirmar que todas as evoluções apresentadas fazem referência às intervenções realizadas e mostram a escuta do aluno tanto ao bilhete como as aulas ministradas que possibilitaram ao aluno uma oportunidade de rever seu texto e melhorar a sua escrita.
Dessa forma constatamos que a escrita necessita ser trabalhada nas salas de aula de língua portuguesa, de uma forma que possibilite aos alunos o conhecimento e a aplicação da mesma nas mais diversas situações que fazemos uso da língua, tendo também o domínio linguístico discursivo dessa modalidade e o conhecimento das formas que não fazem parte da norma culta da língua e que temos que conhecer e respeitar, tudo isso foi esclarecido e desenvolvido na nossa sequência didática.
Considerações finais.
Na conclusão do presente trabalho constatamos que, através de estudos contextualizados conseguimos passar conhecimentos gramaticais partindo das necessidades apresentadas pela turma, desviando um pouco do cronograma que é passado para a coordenação no início no ano letivo, levando os alunos a refletirem sobre as regularidades da língua portuguesa, em uso e inserida em um texto, pois toda comunicação se dar através de textos como afirma Antunes (2003:97).
“[...] na verdade, o professor deve encorajar e promover a produção e a análise de textos, o mais frequente possível (diariamente!) levando o aluno a confrontar-se com circunstâncias de aplicação das regularidades estudadas.”
E isso só é possível quando esse professor assume uma concepção sócio – interacionista da língua e trabalha as particularidades apresentada pela gramática tradicional envolvida nos usos que fazemos da língua no nosso dia - a – dia.
Constatamos também que com a intervenção mediada pelo bilhete e com as reescritas conseguimos que o aluno avançasse em seu processo de escrita comprovando
11. o que diz Antunes (2005) que o dom de escrever é, na verdade, resultado de muita determinação, de muitas tentativas, de muita prática, afinal. Desde cedo.
E a escola é o espaço primordial de acesso a essas práticas, levando o aluno a ser um sujeito leitor e autor, socializar esses textos produzidos nas aulas de língua portuguesa e despertar nos alunos o interesse por sempre buscar novos conhecimentos.
Por isso, defendemos que a escrita nunca deve se esgotar nela mesma, mas sim ser planejada, corrigida e reescrita com as adequações necessárias; e a escola isso é imprescindível, como nos mostra Ruiz.
Um trabalho que não encarasse a correção como um fim em si mesma e por isso, não se esgota nela. Um trabalho que, enfim, tomasse o professor como mediador importante, e a tarefa de correção como alavanca propulsora de um processo que continua, necessariamente na próprio aluno, com a retomada de seu texto. Ruiz (2010, p. 28).
Atividades como está pode direcionar os alunos para uma atuação ativa na sociedade em que estão inseridos, pois é necessário que os alunos conheçam e façam uso adequado da leitura e da escrita. Em especial a norma padrão que norteia muitas das relações sociais que possuem a escrita como mediadora, mas nunca deixando de explicitar as outras possibilidades de realização que a nossa língua permite nas situações adequadas para seu uso, na oportunidade temos também, na escola um espaço que favorece a quebra de muitos preconceitos, nesse caso o preconceito linguístico.
Com isso identificamos a necessidade de continuar com novas reflexões e socialização, pois quando teorizamos e analisamos a nossa prática pedagógica identificamos os possíveis avanços e recuos, onde poderemos melhorar para alcançarmos cada vez mais uma aprendizagem significativa e prazerosa, pois na medida em que partilhamos nossas experiências temos a oportunidade de ter outros olhares em
12. nosso trabalho, que tanto podem acrescentar como podem através do nosso trabalho acrescentar metodologias na sua própria atuação em sala de aula.
Referências.
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________. Muito além da gramática: por um ensino sem pedras no caminho. São Paulo Parábola, Editorial, 2007.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclo do ensino fundamental: língua portuguesa.
BUZEN, Clecio. Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no ensino médio. In. Português no ensino médio e formação do professor/ Clecio Buzen, Márcia Mendonça (organização); Angela B. Kleiman... (et.al.) – São Paulo: Parábola Editorial, 2006 (Estratégias de ensino: 3).
Geraldi, João Wanderley. O texto na sala de aula. Org. João Wanderley Geraldi. 2º Ed. Cascavel, ASSOESTE, c 1984. 125p.
LOPES, Adna. (org.) Gramática nas fábulas – caderno de atividades. Maceió, SEMED, 2004.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: defininções e funcionalidades. In: DIONÍSIO, Ângela Paiva. Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucena, 2002.
Ruiz, Eliana Donaio. Como corrigir redação na escola: uma proposta textual – interativa/ Eliana Donaio Ruiz. São Paulo: Contexto, 2010.
SOARES, M. Letramento e escolarização. In. Ribeiro. Vera Masagão (org.) Letramento no Brasil. São Paulo: global, 2003. P. 89-113.