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Youkai
por Roxane Norris




       1
“Well… bless my soul
                                                                                          You're a lonely soul
                                                                                      Cause you won't let go
                                                                                      Of anything you hold”1

                                                                                            ( Say – OneRepublic)




1
    Bem... abençoe a minha alma/ Você é uma alma solitária/Porque você não deixará ir/Tudo que você tem

                                                           2
@Todos os direitos de reprodução total ou parcial desta obra
pertencem a Roxane Norris e Editora Literata, e a violação dos
mesmos será considerada uma atividade ilegal mediante a LEI Nº
9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998, que regulamenta os Direito
Autorais em território nacional, e portanto, passível de punição
jurídica.




                               3
ERA YAMATO



   — Onii-sama! – Ela corria entre as cerejeiras secas pelo frio intenso. Os olhos molhados de
lágrimas que não conseguia mais conter. – Onegai, onii-sama!2 – berrou uma vez mais, cansada...
Chamando-o, caindo de joelhos na neve.
   As pequenas mãos tentando conter as gotas salgadas que rolavam, em vão.
   — Nii-sama, doutshite3?
   O corpo tombou para frente, deixando a pele da menina se abrigar no manto branco. Os flocos de
neve caíam insistentes, sem que nada além do vazio que a rodeava, os acolhessem. O corpo
tremendo entre suas mãos.
   “Hanya não vá para longe... Irá nevar hoje. Não quero ter que procurá-la num tempo como este”
– ele havia alertado-a, em meio ao sorriso quando aqueles lábios sujos deixaram sua pele. Lábios
que sempre a machucava, desde que sua mãe se fora. Lábios que deveriam protegê-la, mesmo que
não fossem os paternos. Era para isso que ele desposara sua mãe, afinal... O corpo da menina
reagiu à falta de calor quando foi abandonado pelo peso do dele, encolhendo-se conforme puxava
para si, a yukata4 em trapos, cobrindo-se, e ganhando a porta a passos rápidos. Ela não queria dá-lo
ouvidos. Não depois do que ele fizera. Então, correu... Correu para os braços do anjo. Seu anjo
caído.
   Os cabelos pretos, longos, jogados contra seu rosto ferozmente pelo vento. Os passos deixados
na neve até chegar ao corpo frágil da menina. O olhar preocupado ao afastar os cabelos de um tom
peculiar para o oriente - caramelos; e os azuis, que a fitavam intensamente em sua capa branca.
Branca como a neve.
   — Yare... Por que você não pode ouvi-lo? – indagou ao tomá-la nos braços e se erguer. – Ele
avisou que iria nevar... – deixou próximo ao rosto que se aconchegava em seu peito.
   —Eu queria ver o nii-sama... – murmurou sem abrir os olhos, deixando que seus pequenos
braços lhes envolvesse o pescoço, e partes da yukata, revelassem os pontos marcados de sua pele
por lábios. Os azuis que se mortificaram por não chegarem a tempo, por não ser permitido intervir.
— Não me deixe.
   — Hanya – soprou conforme a levava para casa. — Perdoe-me...

    ...xxx...

2
  Por favor, irmão!
3
  Mano, por que?
4
  Vestimenta japonesa de verão.

                                                 4
– Beba isso – ele exigiu ao lhe entregar o chá. – Irá aquecê-la.
   O chocolate intenso nos azuis dele, quando o obedeceu, ainda sob as cobertas que a mantinha
aquecida, preparadas por ele. A paz que seu coração machucado experimentava naqueles braços,
não importando quantas vezes seu corpo fosse ferido. Ele era sua rendição, o único capaz de apagar
os pecados que trazia marcados em sua pele... Pecados que não eram seus - queria apenas esquecer.
   – Por que eu nunca consigo impedir que ele faça isso comigo? – Os pedaços de pano com os
quais ela tentava ocultar dele, as marcas.
   Era a primeira vez que ouvia algo como aquilo; algo que soava como um lamento e a confissão
de um erro seu. Não era o tipo de coisa que diziam quando sabiam de sua presença por perto...
Geralmente, era a ele que perguntavam - por que coisas como aquela aconteciam, e o culpavam em
seguida? Mas Hanya era sempre diferente das outras pessoas. Ela era única.
   – Eu vou crescer, e quando isso acontecer, terei minha liberdade. – Os chocolates se abriram
mais, agora esperançosos, na falta de palavras que os limitou a passear, azuis por seu rosto.
   – Você será uma bela mulher... Quando for a hora – contrapôs simplesmente. A força dela o
surpreendia, ao mesmo tempo, que o assustava.
   – Não quero ser bela, se assim o for, ele não me deixará partir. – O azul que desviou dos
chocolates dela. Ele não devia ter falado do futuro, não era seu direito.
   – Não se preocupe com isso agora, apenas descanse. – Fechou os azuis. – Eu tomarei conta de
você...
   – Então venha... – Ela cedeu o espaço a ele no futon5. – Eu não deveria vê-lo, não é?
   Azuis nos chocolates dela, preocupados.
   – Não... – ele confessou, dissimulando suas reações ao obedecer a seu pedido. Sentando-se sobre
as cobertas, desconfortável. Por que reagia assim? Seria somente pela forma humana que adotara
perante a menina?
   Resignou-se em esconder suas emoções, coisa tão efêmera para uma existência como a dele. –
Mas eu quis assim, já lhe expliquei isso. – De certa forma, sempre se perguntou - por que desejara
isso? Mas era algo que não estava apto a admitir. Não para ela.
   – Gosto que se importe comigo... – Ela deixou sua cabeça no colo branco. – Porque você é tudo
o que eu tenho.
   – Hanya – balbuciou, as emoções já não tão escondidas. O coração acelerando no descompasso
que ele não conhecia. Suor.
   – Mesmo você tendo me assustado, a primeira vez que o vi... – ela continuou sem lhe dar
atenção, os chocolates no infinito. Talvez porque ele não fosse real para ela, como não era para
muitos. Nova resignação. – Você me ensinou que há um gostar sem dor, ao contrário daquele
homem... – Ela abraçou o próprio corpo, apertando-o fortemente. Ele afagou-lhe calmamente os
cabelos caramelos, era dor demais para uma criança, sentia-a em si próprio, como se fosse dele
também aquele fardo. – Ele não me beija com carinho... Não me toca com amor... Ele não me deixa
paz, nunca! – E mais lágrimas escorreram pelo rosto de porcelana, manchando-o, conforme o

5
    Tipo de roupa de cama japonesa.

                                                5
enlaçava pela cintura em soluços. Soluços que passavam do corpo dela ao dele, e agitavam sua alma
enquanto enterrava suas feições no tecido da túnica branca. – Onegai, nii-sama... Não me deixe. –
Suas pequenas mãos segurando as pregas do tecido nos dedos delgados.
   Ele não a deixaria.
   Os azuis fitaram o fusuma6 ao seu lado, nos desenhos de borboleta. As borboletas que eram livres
na curta brevidade de suas vidas, como a menina entre seus dedos nunca seria. Era por isso que a
deixara vê-lo, para que aquele vazio que preenchia a alma da menina, não a levasse antes da hora.
Para que pudesse dividir com ela sua angústia, até o momento que viria buscá-la. A verdadeira
ligação entre ele e ela era a de protetor.
   – Você ficará ao meu lado para sempre, não é?
   – Ficarei – ele consentiu o que não deveria.
   – Conta-me uma história? – Os chocolates alcançaram os azuis, ansiosos. Fitando-os como a
menina de doze anos que era, não como a mulher em que os toques do homem a transformara.
Toque que ele já os vira dar sobre a pele clara, sem que nada pudesse fazer além de observar e sentir
sua parte alma protestar. A mesma parte sua que o fazia protegê-la... Ainda que não fosse seu
direito. Não como ele fazia.
   – Qual?
   – Fale-me de anjos...
   – Por que anjos?
   – Porque você é um deles.
   – Hanya... – chamou-a. A menina já cerrava seus olhos. – Um dia você conhecerá o lugar de
onde venho. E neste dia, talvez você descubra que não sou um anjo.
   – Não pode me levar lá agora? – murmurou de olhos fechados, com um bocejo. – Deve ser tão
belo quanto você.
   – Não. – O sorriso que ele não pôde evitar diante das palavras dela, a sua criança.
   – Akuma...
   – Sim...
   – Não importa o que seja... Para mim, você sempre será um anjo... Meu anjo. – Ele permitiu ser
acariciado pela inocência dela. A inocência que o atraía cada vez mais para seu lado. – Você toma
conta de mim, e me faz feliz... – O rosto da menina no corpo da mulher que o fascinava. – Akuma,
não deixe que ele me toque de novo... Não hoje, eu não quero... – O cansaço venceu-a.
   – Ele não irá tocá-la, Hanya. – Deitou-se ao seu lado. O corpo de homem ao lado da menina. –
Você já sofreu demais por um dia. – Seus olhos molharam pela primeira vez em séculos, que ele
pudesse se lembrar. O gosto do sal. O gosto amargo da impotência.
   Um anjo não deve ser envolver emocionalmente com mortais... Humanos não devem ver anjos
ou demônios. Entretanto, as correntes do destino se movem independentes da vontade de ambos...
   Mas por sua vontade, ele dormiu abraçado a ela.




6
    São painéis retangulares verticais que podem deslizar de lado a lado para redefinir os espaços dentro de um quarto,

                                                              6
...xxx...

   – Não acha que foge às suas responsabilidades, passando tanto tempo preocupado com aquela
humana, Heilel? – a voz do chefe dos guardiões chegou ao seu ouvido, arrastada.
   – Diga-me, Miguel... – Os azuis se voltaram para os dele, indulgentes. – Por que achas que foi
delegado a ti, o cargo mais alto da milícia?
   O silêncio no imenso branco que os cercava, foi toda a resposta do arcanjo.
   – Não é, certamente, para que percas seu tempo comigo, meu amigo... – Pôs uma das mãos em
seu ombro e tomou a direção do ponto iluminado por Vênus. A estrela da manhã. – Ele exige nossa
presença, melhor que deixemos esse assunto para mais tarde... – Sorriu-lhe ao passar pelo louro. Os
azuis intensos sobre o moreno.
   – Não a minha... – murmurou, em desapontamento, o miliciano.
   – Então vos peço que olhe por todos, na minha ausência. – Os azuis que se encontraram,
indecifráveis. – Arigatô – despediu-se cordialmente.
   Miguel e ele nunca foram tão próximos, e aqueles dias em que havia se ausentado do Reikai7,
tornara isso mais evidente. Principalmente, quando ele tocara no assunto de Hanya. Gostaria de
perguntar o que ocorrera à sua protegida enquanto estivera fora, mas havia o chamado, o qual não
poderia ignorar; teria que deixar para outra ocasião, seus afazeres como anjo da guarda. Ainda que
sua mente estivesse voltada para eles... Para ela.
   Há meses não a via, sua menina. Fitava-a do Reikai, das janelas abertas do mundo das almas.
Entretanto, jamais imaginou que Miguel o espreitasse. Jamais supôs que seus passos fossem de
conhecimento da milícia celestial. Teria baixado tanto sua guarda assim, por uma humana?
Segredou a si mesmo enquanto andava sob o chão fofo. Pés em nuvens. Braços cruzados sobre a
túnica branca, e aquela não era mais a hora de ter esse tipo de pensamento. Livrar-se-ia deles...
Todos.
   – Acha que ele irá escolhê-lo, Heilel? – a voz mais urgente o abordou, assim que ascendeu ao
ponto de luz. – Afinal esteve ausente nos últimos meses, imerso em trabalho.
   – Isso o preocupa, Gabriel? – indagou sem fitá-lo, andando num passo calmo. Os cabelos pretos
ondulando sobre as costas.
   – De forma alguma, meu caro. – Um sorriso medido na face do arcanjo mensageiro. – Era tão
somente, minha curiosidade aflorada...
   – Sabe que ele não considera isso, uma virtude...
   – Não serei o escolhido para presidir o Reikai; talvez, assim, esse pequeno deslize em minha
personalidade, passe despercebido. – Sorriu novamente quando Uriel lhe deu passagem às portas do
Céu.
   – Daqui vais sozinho... Heilel – sentenciou o arcanjo que empunhava a espada, barrando o
caminho do mensageiro.
   – Vê o que digo? – disparou Gabriel. – Sirvo melhor a ele, em outros caminhos.
   Com uma breve reverência, Heilel o deixou. O branco ao seu redor misturando-se a sua roupa, a

7
    Mundo Espiritual japonês

                                                7
sua mente, até que não restasse nada além do puro olhar quase transparente de Deus.
   – Chamou-me?
   – Algo urgente precisa ser resolvido, Heilel. – Os cabelos brancos, a voz doce e enigmática.
Benevolência.
   – Se eu puder ser de alguma ajuda... – Ajoelhou-se, vendo seus medos afastados de si.
   – És o único que pode me ajudar – respondeu calmo.
   – Então, rogo que ponha sobre mim, a responsabilidade que lhe atormenta, meu senhor.
   – Tão nobre e tão belo, és tu, Heilel. – Os olhos pousados no oitavo arcanjo, o que sempre o fora
mais fiel. Seu escolhido. – Não penso que outro, mesmo sendo parcimonioso, atenda ao meu pedido
como tu farás.
   – Sinto-me honrado que pense assim. – Os azuis baixos ao chão.
   – Se o que dizes é a verdade em seu coração, então não baixe seus olhos perante a mim. Deixe-
me ver a essência que tanto admiro neles. – Azuis nos benevolentes. – Assim é melhor... – Um
suspiro cansado suprimido por um sorriso sincero. – Dar-te-ei o cargo mais alto do Reikai, Heilel.
   Os azuis alargados sobre ele.
   – Surpreso? – Um sorriso ainda maior nos lábios de luz. – Não pensei que tivesse esse tipo de
reação... O que o faz recear?
   – Lidar com Miguel – rebateu sem hesitar.
   – Ah, sim... – Deus se pôs de pé e andou, tornando-se tudo a sua volta. – Miguel tende a ser
humano demais. Eu o entendo. Releve...
   – Relevar?
   – Exato.
   – Mas ele ficará sob minhas ordens... – retrucou sério. – Será difícil para ele.
   – Preocupa-te em ser o escolhido para essa função, deixa que com Miguel, eu resolverei as
coisas...
   – Não queres ponderar mais um pouco?
   – Julgas minha decisão imprópria? – As palavras ecoaram ao seu entorno.
   – Não cabe a mim, julgá-lo, senhor – resignou-se.
   – Tens muito trabalho pela frente, Enma Dai Oh.
   Com um assentimento e uma nova reverência, Heilel deixou o Céu. Com os pensamentos presos
a Hanya, ele tocou o branco do mundo que agora regia.
   – Não te disse? – Gabriel o abraçou. – Não havia dúvidas que ele esperava apenas seu retorno
para nomeá-lo.
   – Eu não me importaria, se outro fosse escolhido – ponderou preso à figura de Miguel. Os azuis
que o fitavam intensos.
   – Isso é blasfemar – rebateu o louro.
   – Se assim te parece, devo crer que concorda com a escolha dele... – deixou no ar, certo de que
no coração do arcanjo, a verdade era outra.
   – Sim, deves – assentiu de pronto sob o olhar de Gabriel.
   – E quem ousaria discordar, Heilel? – emendou o mensageiro. – Você sempre foi o mais justo de
todos nós, era só uma questão de tempo e oportunidade.

                                                 8
Os azuis que fugiram para longe do rosto do novo Enma Dai Oh.
   – Terás que passar suas responsabilidades como protetor a outro anjo – ponderou secamente o
miliciano.
   – Isso não será problema, não é mesmo, Heilel? – devolveu Gabriel. – Quem tomou conta das
coisas em tua ausência?
   Azuis cruzaram com os dele. Um sorriso do mensageiro.
   – Não há necessidade que busque outro anjo, então, Miguel continuará a fazê-lo...
   – Não és tu, quem decides isso! – protestou o louro.
   – Bastam os dois! – interviu firme o oitavo. – Deus decidirá, não eu ou vós.
   Apressou os passos, queria vê-la ao menos uma última vez... Explicar-te que falharia em sua
promessa. A promessa do anjo dela.
   Os arcanjos que pararam, vendo-o se afastar. Os olhos do louro seguindo-o preocupados.
   – O que há com ele? – indagou o mensageiro.
   – Você não o entende, não é Gabriel? – Sorriu-lhe o miliciano.
   – Entendo que ele chegou aonde qualquer um de nós gostaria de estar...
   Um novo sorriso nos lábios do louro.
   – Você não entende Heilel... Não sabe o que é vagar entre o nosso mundo e o dos humanos.
   – Estás em recaída novamente, Miguel? – Fitou-o preocupado, o quarto arcanjo. – Não deves se
envolver com os mortais, sabe disso.
   – Voltas para os afazeres, Gabriel... – Suspirou o primeiro arcanjo.
   – Ficarás bem?
   – Superarei meu trauma, como sempre – confortou-o.
   Os passos que eclodiram atrás de si, afastando o mensageiro. Os dele que foram na direção do
oitavo. Os azuis voltados á Terra, que ele encontrou dentro das roupas mortais.
   – Vais vê-la? – era um murmúrio entre os dois.
   – Não posso abandonar todos que confiaram em mim – respondeu simplesmente.
   – Sabe que a maioria não se importa quando vais aparecer ou não... Até preferem não ver-te –
recriminou o louro. – Mas ela...
   – O que tem ela? – indagou calmamente o Enma8 enquanto amarrava a yukata.
   – Você a trata diferente...
   – Achas?
   – Sabes que o faz – afirmou em azuis cintilantes. – Assim como sabes que não é permitido tal
comportamento. – Silêncio no qual Heilel deteve-se no rosto do louro, que ainda sublinhou: – A
hora dela está chegando cada vez mais rápido... E tu a julgarás... O que farás neste momento Heilel?
Será seu anjo da guarda ou chefe do Reikai?
   – O que aconteceu a ela na minha ausência? – Os azuis escuros interviram nos claros dele,
cintilantes.
   – Nada...
   – Mentes, Miguel – rebateu o oitavo.
8
 Enma Dai Oh - segundo o Budismo, um dos 10 deuses que julgam os mortos no mundo dos espíritos conhecido pelo
seu grande poder e calma budista.

                                                       9
– Não há nada que possas fazer agora... Minutos aqui são como anos para os humanos, esqueceu-
te? Foi uma longa ausência tua, Heilel – prosseguiu no que dizia.
   – Por que dizes isso? – Deu dois passos até o miliciano.
   – Chegaste tarde, se é o destino dela que te preocupa... Deixe que eu me encarregue deste fardo,
já que a abandonou para te dedicar ao novo posto.
   – Não digas bobagens... – As palavras interrompidas nos azuis que tremeram. – Ela me chamou
enquanto... – O louro impassível a sua frente. – Diga-me o que ela queria! – O arcanjo suspenso do
branco por sua túnica envolta nos dedos do Enma. – O que disse a ela?
   Os azuis correndo os dele, aflitos.
   – O que há contigo?
   – O que disse a ela? – era quase um rosnado.
   – A verdade.
   – Qual delas? A tua? – Largou-o no branco, irritado.
   – Ela sabe que a abandonou, Heilel... – Sorriu. – Ela agora compreende que um protetor não
pode ter qualquer tipo de envolvimento com tua protegida.
   – Idiota! – Voltou a erguê-lo pela túnica até seus olhos. – Cada ser humano tem a hora certa para
teu julgamento...
   – Mesmo? – ironizou. – Deverias ter pensado nisso quando preteriu suas tarefas para ser o Enma.
   – Cala-te! – ordenou, o punho fechado na direção do rosto de Miguel.
   A milícia que os cercou rapidamente, com suas asas abertas em proteção ao seu chefe. Os azuis
que o fitaram entre elas, brilhantes.
   – Os minutos se esvaem pelas veias dela... Heilel. O que irás fazer?

  ...xxx...

   Um anjo não é bom ou mal por sua natureza, apenas vaga entre o mundo mortal e o Reikai,
cuidando de almas humanas. Confortá-las, acompanhá-las... até que chegue sua hora. Mas ela,
Hanya, estava indo cedo demais – pensou ao abrir as asas e alçar voo. – Por quê?
   Os azuis que vasculharam cada pedaço de escuridão do mundo humano. Heilel, o anjo que
carrega a luz, o filho da manhã... O mais belo e fiel de todos os arcanjos de Deus. Akuma. O cheiro
que ele detectou ao entrar no quarto dela, forte... Sem respiração. A presença que ele deixou que ela
sentisse, a sua... conforme espantava as sombras e a via entre os lençóis rubros. Molhados dela.
   – Hanya... – Os azuis alarmados sobre a menina, o corpo da mulher de belos cabelos caramelos
que jazia no futon de sangue. Minutos dele que se tornaram anos longe dela. – Hanya... - a urgência
nos lábios que se moviam enquanto os dedos afastavam os cabelos úmidos de seu rosto. – O que
fez?
   Os olhos fechados do corpo que ele colou ao dela, manchando sua túnica celestial de rubro. Os
riscos escarlates coagulados nos pulsos que ele não poderia mais conter, que faziam seus olhos
molharem na dor que ainda não conhecia. A dor de perder uma vida.
   – Akuma... – um sopro ao seu ouvido. Os azuis voltaram aos chocolates ao seu lado. O esboço
translúcido da menina de dezessete anos em seus braços. A alma de Hanya. – Então é assim que

                                                 10
você realmente é?
   Os dedos da alma dela tocaram seu corpo celeste.
   – Você é ainda mais belo... – Ela sorriu para ele. Ele não sabia o que lhe dizer. – Eu estou feliz
que tenha vindo me buscar. Aquele outro anjo me disse coisas terríveis, mas me mostrou como
trazer-lo, para mim... Estou tão feliz em te ver de novo.
   – Hanya... – Abraçou-a, saindo de seu desespero. – Esqueça isso! Estou aqui e tu ficarás bem.
   – Agora eu posso conhecer o seu mundo, não é? – Os chocolates dela nos azuis do oitavo. – Foi
por isso que tomou conta de mim, não foi? Porque você me amava...
   Amor? Como ela podia entender isso? Como ele poderia dizer que se sentia assim?
   Apertou-a contra si, deixando o corpo mortal dela para trás. A menina sem vida.
   – Heilel-sama, é nosso, o dever de conduzi-la ao Reikai – o chefe da malícia sugeriu em azuis,
colocando-se a sua frente.
   Os azuis que pousaram sobre eles, irritados
   – És o culpado pelo o que aconteceu, Miguel.
   – Em dez dias, descobriremos o veredicto que essa alma sofrerá, Enma-sama...
   – Enma? – a voz dela soou entre seus braços, soltando-se deles surpresa. – Então era verdade?
   – Hanya... – ele tentou impedi-la.
   – Você realmente me abandonou... – Os chocolates o fitaram decepcionados. – Você mentiu para
mim...
   – Não, Hanya. – A mão dele esticada na direção dela, cujo corpo se aproximava do abraço do
primeiro arcanjo. – Espere...
   O rosto que ela deixou sobre a túnica de Miguel, sem voltar a fitar os azuis. As asas que a
acolheram, dissipando anjos e alma no ar.
   – Ela aguardará o julgamento sob minha custódia, Heilel...
   Foi tudo que restou ao seu redor, além do vazio que havia em seu peito.

  ...xxx...

   – O que torna tua expressão tão fechada hoje? – indagou o quarto arcanjo.
   – Preciso de uma audiência com Gabriel – disse-lhe sem volteios.
   – Não se consegue isso de uma hora para outra – retrucou o mensageiro. – Além do mais, soube
que hoje será um dia cheio para os dez do júri...
   – Alegra-te com isso, outra hora – interveio irritado, Heilel.
   – O que está deixando-te assim? – Eram os azuis do arcanjo de cabelos anelados castanhos que
perscrutavam os seus.
   – Sabes o que Miguel fez em minha ausência?
   – Não muito... – ponderou o quarto. – Creio ter tomado conta de teus afazeres como protetor...
Ao menos, foi isso que ele ventilou.
   – Preciso falar com Deus...
   – O que te atormenta, Heilel? Conte-me – exigiu o arcanjo.
   – Lembra-te do pedido que fiz antes de me ausentar? – Encontrou os doces azuis sobre si,

                                                 11
atentos. – A mensagem que te pedi para ser entregue no mundo dos humanos?
   – Sim... – afirmou preocupado, vendo os riscos na expressão do oitavo aumentarem.
   – A moça, a quem deste a mensagem... – Os azuis dele encaravam-no, aflitos. – Como ela estava
quando a encontrou?
   – Normal...
   – Normal? – exasperou-se Heilel. – Como assim normal, Gabriel?
   – Não sei, parecia-me bem dentro de sua expectativa de vida... – ele ponderou, fitando o rosto do
amigo. – Assim Miguel me explicou... Fez-me entender sua preocupação com ela.
   – Miguel estava lá?
   – Sim... estava – assentiu. – Foi ele, na realidade, que entregou tua mensagem à moça. Era o
encarregado dela e estava ali. Achei mais fácil agir através dele... – O rosto do oitavo que se tornou
indecifrável. – Ora, Heilel, diga de uma vez o que está acontecendo?!
   – Você chegou a ouvi-lo dizer, minha mensagem?
   – Não... mas ele a deu, tenho certeza.
   – Eu também... – bufou irritado. – Consiga um encontro com ele, Gabriel... Diga-lhe que imploro
por isso.
   – Às portas de um julgamento de suicidas? – contrapôs o arcanjo, calando-se em seguida ao ver
as duas águas marinhas brilharem em aviso, para que não prosseguisse em sua linha de raciocínio. –
Não me diga que...
   – Apenas me consiga a entrevista...
   – O que queres pedir a ele? – preocupou-se, o quarto.
   – Melhor que não saiba de nada...
   – Não é sobre a menina...
   – Apenas consiga-me a entrevista...
   – Heilel, penses no que irás fazer.
   Ele assentiu, se calando, vendo Gabriel sumir da sua frente em passos apressados.

  ...xxx...

   – Isto que me pedes está fora de questão, Heilel – a voz grave se seguiu a dele, baixa.
   – Mas não peço por mim, meu senhor. – Os azuis no lago profundo que os encarava.
   – Ela é uma suicida, não há como impedir seu julgamento – proferiu brandamente. – Uma alma
que rompeu regras, que renegou o direito que lhe dei.
   – Foi por tua própria vontade que salvou aqueles humanos... que deu a eles o livre arbítrio. –
Heilel estreitou os azuis na luz. – Como, agora, julgas impróprio que o usem para decidir seu
caminho? Ensinou-lhes com tua benevolência.
   – Sim, dei por eles, minha vida, para que vivessem as suas... Mas não interrompê-las como bem
lhes aprouver – retrucou sério. Sua voz eclodindo de cada ponto ao redor do oitavo. – Se assim for,
para que valeu meu sacrifício?
   – Para salvar tua criação; bons ou ruins são teus filhos...
   Os azuis fixos na imensidão ao seu entorno.

                                                 12
– Por que faz isso por uma humana, Heilel? – Era tão profundo quanto o que sentia. Poderia ele,
um arcanjo, chamar aquilo de dor? Desconcentrou-se no desespero de Hanya enquanto o ouvia.
   – Por que fizeste aquilo por todos eles? – rebatou fora de si.
   Deus lhe sorria? Ele não saberia dizer.
   – Eu sempre os amei... – proferiu, enfim. – Mas não posso concordar com tua escolha.
   – Não pode me impedir de fazê-la, Senhor – retrucou baixo, desviando o olhar da luz.
   – Posso lamentar.
   – Sim... – pronunciou já se voltando para o caminho que o trouxera ali. – E um dia me perdoar.
   – Talvez... – aquiesceu ao calor das palavras de seu mais fiel discípulo. – Sabes que há um preço
a se pagar por tua desobediência às regras.
   – Não me importo – respondeu, logo após ter interrompido sua marcha, recomeçando-a uma vez
mais.
   – Tomarás o lugar da alma dela...
   – Se for a forma de salvá-la, aceito a punição – rebateu já á entrada do Mekai.
   As asas pretas abanaram um forte cheiro acre sobre seu rosto, fazendo-o recuar por instantes, e
os azuis se prenderam aos pretos.
   – O que o faz me trazer aqui? – a voz era intensa e grossa, tornando a luz trêmula e difusa.
   O rosto moreno, belo como uma pintura, num corpo de homem coberto de uma grossa túnica
vermelha.
   – Preciso que cuides de uma alma para mim...
   Os pretos que se tornaram brilhantes em desdém.
   – Uma alma, você diz... – E tornou pretos ao oitavo. – E como seria ela? Sabes que não aceito
qualquer um em meus domínios.
   O silêncio da palavra de Deus, o sorriso nos lábios do Diabo.
   – Uma vez mais, abre mão de seu mais fiel seguidor... – Os olhos escuros voltando à bondade
que a luz emanava. – Seria por causas parecidas?
   As asas haviam sumido e o homem, descalço, analisava Heilel pacientemente.
   – Onde está Miguel? – indagou em azuis fixos no arcanjo ao seu lado. – Não o vejo há tempos...
   Era um escárnio, em definitivo. Silêncio do oitavo e o sopro cansado de Deus.
   – Irei aceitá-lo. – O ar quente de seus lábios envolvendo tudo, luz e anjo. Passos que foram na
direção de Deus. – Diga-me, por que fraquejas mais uma vez?
   – Não está no teu direito, julgar-me – rebateu a voz calma.
   Um suspiro do demônio.
   – Sempre será esta, tua resposta. – Deu de ombros enquanto se virava para o Enma. – Quando
poderei levá-lo? Meu tempo é escasso.
   – Em breve...
   – Aquela alma...
   – Desfeito.
   Pretos que correram pelo arcanjo.
   – Entendo. – Circundando-o. – Quer abrir mão mesmo dele? – As palavras contra seu pescoço. –
Parece-me tão puro...

                                                13
– Não posso salvá-lo de si mesmo.
   – E o entregas a mim?! – Novo sorriso. – Tentador. Voltarei, em breve para buscá-lo... Sejas
rápido nos preparativos.
   A túnica vermelha esvoaçou no ar, diante da luz, em asas pretas abertas.
   – Era esse, o destino de Hanya?
   – Não, esse é o teu.
   Não havia mais paz em seu coração quando deixou o Céu. A luz branca, que sempre o seguia, se
apagava paulatinamente conforme andava pelo Reikai... Atravessava o manto branco... Olhava
calmamente cada rosto dos anjos parados lateralmente a si. A visão do juri de Hanya.
   Ela entre os dedos de Miguel, aguardando a sentença que não viria.
   Os azuis que perdiam o brilho nas palavras de cada um deles, na culpa que destinavam a ela. A
culpa que ele abonou com sua decisão, para surpresa do juri e felicidade de Miguel. A sentença final
que saiu de seus lábios já sem cor, dando, a Hanya, sua salvação:
   – Como Enma, considero sua alma inocente.
   Suas vestes se tornando púrpuras conforme os chocolates se erguiam para ele. As asas brancas
tingindo-se de pretas... Tão negras quanto a noite. A luz branca que saía dele, envolvia-a... Que
guiaria ela.
   O cheiro forte e ácido do pecado que cometia, entregando-o ao diabo.
   – Heilel... – a voz dele em seu ouvido. – Arrepende-se do que fez?
   – Traíste teu senhor, o que dirás a teu favor? – Era Miguel, que agora lhe exigia respostas.
   – Eu não traí ninguém... – Sua voz era arrastada e demorava a sair de sua boca. Tão lentos eram
seus movimentos. – Não me arrependo do que fiz. – Onde estava Hanya? Não a via. – O que
fizeram com aquela alma?
   – Está segura – observou a primeira voz, agora num sibilo contra sua nuca. Um sibilo que só ele
podia ouvir e o confortava. Por que havia conforto para ele, ali?
   – Como chefe da milícia, é meu dever bani-lo... – sentenciou o terceiro. – Não deves permanecer
em solo sagrado se não buscar a absolvição de seus erros.
   – Não posso me redimir do que considero justo. – Encarou-o num último lampejo divino dos
seus azuis. – Tu, melhor do que eu, deverias reconhecer a justiça... Miguel.
   – Parece-me que arrumou mais um inimigo, Miguel – a voz quente o envolveu, assim como ar
começava a queimar seus pulmões. – Considere, em teus pensamentos, que nem mesmo os anjos
escapam de um julgamento... Um dia, tu terás o teu. Até breve.
   O corpo do oitavo envolvido por asas pretas, corrompido pelo ar quente e ocre do inferno.
Inferno ao qual um anjo se remetera... Os chocolates em sua mente, ele cerrou os azuis. Quando
voltasse a abri-los, veria o mundo com olhos de um demônio.




                                                14
DIAS ATUAIS...


  Paris, 10 de março de 2006

   Os cabelos pretos bem cortados sobre os ombros ondulavam com o vento. As mãos nos bolsos do
terno caro, italiano. Um terno cinza escuro que realçavam os azuis de seus olhos, naquele terraço
vazio onde gostava de fitar as nuvens. Nuvens que passavam rápidas por sobre sua cabeça, há muito
esquecera como era pisá-las... Fechou os olhos em nostalgia, baixando-os.
   – Monsieur Akuma... – a voz veio como o som da água da fonte ali perto, a sua frente. Veio
como ondas. – Faltam menos de dez minutos para a reunião, senhor.
   – Merci, Nicole – respondeu, os azuis presos ao jardim que mandara construir ali e enfeitar com
cerejeiras. As flores que lhe remetia a ela.
   Um suspiro, o bico do sapato de verniz voltando-se para dentro do prédio. Era engraçado pensar
que a Eden Clinic havia se tornado o centro mundial de estética. Praticamente, todos os médicos
mais conceituados na área trabalhavam para a Eden, quer fosse na matriz ou em alguma das
sucursais espalhadas pelas grandes metrópoles mundiais. Uma, inclusive, na América do Sul, no
polo brasileiro denominado Copacabana's Eden. A melhor vista para seus pacientes relaxarem os
nervos.
   Uma mente tranquila resulta num rejuvenescimento de pelo menos cinco anos, o restante vem
das mãos mágicas dos profissionais da área e, claro, da mente perfeccionista dos clientes que os
procuram. Noventa por cento deles, mulheres na faixa dos 35 a 50 anos, cuja estima foi abalada por
um casamento monótono ou filhos que já alcançaram a adolescência e as fazem se sentirem
“péssimas”. Ouvia sempre essa palavra de suas clientes. Péssimas, estigmatizadas, deprimidas... Um
leque perfeito de opções.
   Atualmente, entretanto, essa variedade diminuíra. Eram poucas, as pacientes, de quem cuidava
pessoalmente. Seu tempo se tornara escasso, principalmente no último mês, quando recebera aquele
chamado. Hesitou, por segundos, quando a porta do elevador se abriu, mas invariavelmente, deixou-
o para trás na direção de seu escritório particular logo abaixo do jardim... Ainda sentia o cheiro das
cerejeiras em flor.
   – Akuma, meu caro... – Os braços roliços atiraram-se ao redor de seu corpo e entre a massa de
cabelos louros, divisou o rosto bonachão conhecido de seu contato com Ali Al Jakai; um dos mais
proeminentes donos de poços de petróleo nos Emirados Árabes. Johnatan Hart era tido como o
número um na indústria de petróleo e um visionário. Além de que, sabiamente, era um dos
investidores da Eden Clinic: – Como estão minhas ações, hein? – Soltou a fumaça do charuto no ar.
– Criando casas de milhar, eu já verifiquei. – Novo tapinha em suas costas e o mais alto saiu de seu
alcance com facilidade, colocando-se junto a sua poltrona, do lado oposto da sala. – Você é um
demônio! – Ouviu às suas costas.
   Um meio sorriso crispou os lábios do moreno, antes que ele se sentasse, fazendo-o fitar o homem
louro, malicioso.
   – Por isso mesmo, não se esqueça... – contrapôs em alerta, o que minimizou o sorriso no rosto do

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louro. – Sem mim, não haveria John Hart. Agora me diga, quem é dessa vez, Johnatan? – deixou no
ar, quando se recostou na poltrona de veludo vinho. – Faz dois meses, desde que saiu daqui com a
loura turbinada.
    – Mais ou menos isso... – assentiu o empresário enquanto tomava o lugar à frente de Akuma.
    – Se me recordo bem, só as unhas dela eram originais quando deixou a clínica... – Havia fechado
os azuis e cruzado os dedos sob o queixo, ao apoiar os cotovelos na mesa. – Foram 10 horas de
cirurgia, John... Para deixá-la atraente aos seus olhos.
    Azuis se abriram repentinamente nos castanhos do louro.
    – O que tem para mim agora?
    – Estou apaixonado... - Suspirou.
    – A morena era sua outra metade... – pausou quase num escárnio. – Disse-me exatamente isso na
última reunião.
    – Estava cego por sua beleza – protestou o louro.
    Ambos se fitaram e sorriram juntos.
    – Sabe quantas mulheres lindas realmente existem nesse mundo, John? – indagou os azuis
serpenteando pelo rosto claro do amigo.
    O homem deu de ombros.
    – Beleza é um ponto de vista – rebateu firme.
    – Tenho que lhe dar os parabéns por ter chegado a esta conclusão – ponderou o moreno. – No
entanto, noventa e cinco por cento das mulheres do mundo conseguem ver algum tipo de
imperfeição em seus corpos e rostos, mas nunca em seu caráter. É aí, meu bom John, que elas
pecam!
    – Não está tentando me demover com alguma daquelas teorias excêntricas de: o que vale é o
interior... – Ergueu as sobrancelhas. – Está?
    – Sendo você, eu jamais ousaria... – retrucou Akuma sob um sorriso discreto. A maioria dos
homens, ele pensava, gosta de ser enganados por essas mulheres. – Diga-me o nome da moça.
    – Marie...
    – Marie? – surpreendeu-se, o moreno. Era a segunda vez, em menos de duas semanas, que ouvia
aquele nome. Seu cenho se tornou impassível sem o louro se dar conta.
    – Isso, Marie. Marie Dupont... – Ele sorriu, os dentes extremamente brancos apesar do tabaco
comprimido entre os dedos. – Marie, a aeromoça mais bela que já vi em minha vida!
    – Uma aeromoça? – Os azuis sorriram. – John, meu bom amigo, John... – Ele havia se erguido e
dera a volta na mesa, parando atrás do louro. Suas mãos em seus ombros atarracados. Sua voz em
seu ouvido: – Ela disse que lhe ama?
    O louro assentiu o mais depressa que pôde.
    – Antes ou depois de presenteá-la com um brilhante? – perguntou resignado, o moreno.
    – Depois, claro – enfatizou sem desespero, o empresário.
    – Devia parar de comprá-las...
    – Você não é um bom conselheiro sentimental, Akuma – retrucou John. – Não consegue arrumar
uma namorada... E nos conhecemos há quanto tempo? Dez? Quinze anos?
    O moreno bufou, vencido. Os azuis voltados para as janelas às suas costas. A única mulher por

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quem se apaixonara estava em sua cabeça há muito mais tempo que qualquer um poderia supor.
   – Você está absolutamente certo, John – concordou com o amigo, indo até ao bar e servindo a
ambos, Whisky. – Traga-a em duas semanas.
   – Tudo isso? – sobressaltou-se o louro. – Achei que a teria perfeita em menos de cinco dias.
   – Eu tenho uma viagem inadiável depois de amanhã... – Não deu muita atenção aos protestos do
amigo. Seus olhos fixaram um ponto na multidão, que se acotovelava para atravessar a rua. Aquela
distância muitos nem identificariam seus corpos, mas ele sabia ser uma mulher no auge dos seus
vinte e quatro anos. Os cabelos levemente avermelhados, preso em um coque. As unhas de um tom
café e o tailleur de um azul escuro que ostentava um pequeno broche onde se lia: Dupont, Marie.
Akuma sorriu, levando o copo de cowboy aos lábios. – Nos vemos na segunda, John.
   – Você não tinha acabado de dizer duas semanas?
   – Sua paixão pela moça me contagiou. Estou inclinado a atender seu pedido o mais rápido
possível, antes que algum mal o acometa. – Dirigiu-se à porta, e antes de atravessá-la, concluiu: –
Não se atrase.
   Enquanto o louro ainda assimilava sua mudança de decisão, a secretária anotava mentalmente
suas novas ordens:
   – Desmarque tudo que tenho para hoje, Nicole...
   – Sim, senhor.
   – E caso algo seja de extrema importância, use o celular que lhe dei. – Piscou-lhe o olho antes de
deixar um leve beijo em sua bochecha e tomar o elevador.
   Ele não viu o rubor na face dela, como sempre. Ela não se importou que seus sentimentos fossem
desconhecidos por ele, bastava-lhe os quinze anos a seu serviço; os presentes de aniversário e Natal;
as rosas do dia da secretária. Ela já tinha quarenta e cinco anos, ele ainda aparentava seus trinta.

  ...xxx...

   A Ferrari F430 conversível disparou na estrada, cortando em riscos vermelhos o asfalto. Ele
baixou a capota quando o cheiro de maresia atingiu-lhe os sentidos, dando-lhe a certeza que chegara
ao seu destino: Le Havre, Normandia.
   Parou à frente da pequena fachada branca no coração residencial de Saint-Andressa. Comparado
aos outros hotéis da cidade, aquele era pequeno, mas suas dependências eram invariavelmente tão
requintadas como a de qualquer outro hotel cinco estrelas. O gerente, em pessoa, veio até ele. O
moreno retirou os óculos escuros, os cabelos pretos fustigavam em seu rosto sob o sol poente e sua
voz se antecipou a do homem:
   – Bon soir, Pierre... – Fechou a porta da Ferrari e lançou as chaves ao manobrista. – Parece que
perdi um lindo dia de sol.
   – Monsieur, o esperávamos amanhã... – Fitou o homem ao seu lado, que trajava uma bermuda
branca com blusa polo azul listrada, e debruçava-se sobre o pequeno porta-malas, retirando dele
uma bolsa de mão branca.
   – Isso quer dizer que ele ainda não chegou. – Sorriu-lhe enquanto o gerente o seguia de perto ao
subir as escadas do hotel.

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– Não senhor.
   – Minha suíte, Pierre – solicitou ao parar no balcão e jogar a mala por cima do ombro esquerdo
enquanto espetava os cabelos com a mão livre.
   – Ainda está sendo arrumada... – pigarreou baixo. – Pardon...
   – Arrume-me qualquer quarto onde eu possa tomar um banho.
   – Mas senhor...
   Ergueu a sobrancelha em advertência.
   – Tente me convencer de que estamos lotados... – redarguiu ao apoiar os braços no tampo de
granito róseo. – Se assim o for, tomarei banho nas suas acomodações.
   O gerente grunhiu baixo, digitando algo no computador.
   – Quarto 205 – anunciou depois de breves momentos.
   – Serve... – ordenou-lhe, em dedos, que lhe desse o cartão magnético. – Avise-me quando a suíte
ficar pronta. Au revoir...
   – Sim, senhor... – escapuliu, num alívio, dos lábios do gerente.

  ...xxx...

   A hidromassagem foi ligada e o corpo submergido na espuma. Os azuis fechados
incondicionalmente. Jacques só chegaria amanhã, até lá, estaria relaxado. Bastava-lhe algumas
horas imerso naquelas notas de alfazema, que tudo estaria perfeito. Repassou, mentalmente os
acontecimentos das duas últimas semanas enquanto era abraçado pela quentura da água.
   Uma ida ao inferno por um dia, não era o que ele podia chamar de divertimento, principalmente,
quando há meses ele não o chamava com tanta urgência:
   – Akuma... – Não era um homem de sorrisos, sua voz ecoava por cada parte daquelas paredes
enegrecidas e quentes... Rochedos, esfriando-os. – Como vão os negócios?
   – Prósperos – respondeu simplesmente. – Não me chamou aqui para isso, não é?
   – Não... – Espreguiçou-se na chaise castanha, deixando que o roupão preto revelasse parte de
suas pernas. – Estava com saudades. – Bebeu do cálice em sua mão direita e deixou os pretos
passearem pelo moreno. – Você prefere os mortais a mim...
   Era um escárnio e o moreno riu.
   – Você me fez assim... – deixou no ar enquanto se sentava na poltrona à frente do Mestre. –
Entretanto, eu sempre retorno aqui, para servi-lo. – Cruzou as pernas em azuis fixos no Diabo.
   – Isso soa cruel, Akuma – rebateu falsamente irritado. – Devia me agradecer... – E se ergueu
languidamente da chaise, desafazendo o nó da faixa que atava o roupão a si... Deixando-o
escorregar ao chão vagarosamente enquanto uma jacuzzi surgia perto dali com água borbulhante,
escura e quente, que faria qualquer corpo ser consumido em segundos como se imerso em lava,
mas não o dele, Nunca o dele. Sorriu para o os azuis, nu. – Eu o deixei fazer o que deseja... –
Afundou na escuridão da água. – Eventualmente, deveria prestar contas de como as coisas andam
lá em cima. – Assoprou as bolhas, que se formavam na superfície da água, no ar. – Já que eu não
posso ir ao mundo humano, como gostaria – amuou-se.
   O dedo do moreno serpenteou pelos lábios antes de devolver-lhe o gracejo:

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– Como se isso o impedisse de ir e vir quando bem entender... – continuou, observando-o da
poltrona. – Por que me chamou?
   – Tem assuntos lá em cima para resolver?
   – Muitos e inadiáveis.
   – Não sei por que o aturo? – Suspirou.
   – Porque sou indispensável aos seus caprichos – retrucou, pondo-se de pé. – Mantenho sempre
as chamas da vaidade, gula, luxúria, cobiça acesas entre os humanos... De uma forma, que eu
qualificaria legal perante Deus.
   – Pare... Você é péssimo, Akuma. – Riu-se o demônio. – Mas gosto do jeito como sua mente
trabalha... Sordidamente.
   – Se só queria me elogiar... – Deu-lhe às costas. – Poderia ter mandado Ezequiel com uma
nota...
   – Traga-me o roupão – exigiu sério, pela primeira vez naquela sala, interrompendo os passos do
moreno.
   Um gesto único, em que Akuma se abaixou para pegar o roupão felpudo e negro ao lado de seus
pés. Os passos que ele teve que retornar até a jacuzzi.
   – Abra-o – nova ordem obedecida pelo moreno. – Você é sempre tão distante... – protestou
enquanto se encolhia entre os braços dele e vestia o roupão colado ao corpo do demônio.
   Os azuis que estavam presos ao espaço escuro à volta deles, sem fitar-lhe. A boca do Diabo que
crispou contrafeita.
   – Está bem, vamos aos negócios. – Puxou o roupão dos dedos do demônio enquanto saía da
jacuzzi e voltava à chaise.
   – Como queira... – Sorriu ao segui-lo. Poderia se valer de sua supremacia com outros, jamais
com ele. Não era tão idiota para ser manipulado contra sua vontade.
   – Há um mês eu visitei o Ningekai9... – Os pretos nos azuis, fechando o roupão displicentemente.
Tinha perdido aquele jogo.
   – E não foi me ver? – desdenhou, vendo-o se ajeitar sobre a chaise.
   – Não brinque comigo... – alertou-o severamente. O demônio apenas manteve uma linha fina de
sorriso nos lábios enquanto ele completava: – Eu gerei uma criança, Akuma.
   O semblante impassível do moreno sobre ele, sem lhe adivinhar os pensamentos.
   – Não vai me recriminar?
   – Pediu-me que não brincasse – retrucou prontamente.
   – Sabe quanto me custou fazer isso? – Pretos cintilaram sobre os azuis.
   – Alguns segundos?
   Azuis inalterados com o queixo apoiado sobre os dedos longos, em cotovelos contra os braços
da poltrona, analisando-o. Os dois homens que se mediram friamente, até que a gargalhada de
ambos se chocassem na escuridão.
   – Demorei mais dessa vez – ponderou, voltando a beber o líquido da taça que deixara
inacabada.

9
    Mundo dos Humanos para os japoneses.

                                                19
– Então, deveria ser bela...
   – Era perfeita – contrapôs seco. – A mulher certa para o tipo de acordo que propus....
   – Enganou-a.
   – Comprei-a, seria mais certo dizer.
   – Com o quê?
   – Uma vida de conforto. – Sorriu na direção de Akuma. – Mortais são tão fáceis de enganar... Eu
lhe darei um excelente marido.
   – Qual o nome dela? – cortou-o.
   – Marie...
   – Deve haver poucas Maries na França – ironizou o demônio.
   – Ruiva e que irá encontrá-lo em um mês na igreja de La Madeleine, sim... Você me subestima,
Akuma.
   – Não tanto quanto gostaria, devo corrigi-lo.
   – Vou deixá-lo preso aqui, aos meus pés... – Fixou os pretos maliciosos no moreno, passeando a
língua sobre a borda da taça, sedutoramente.
   Sem desviar os azuis, ele se aproximou do mestre, mergulhando o indicador no resto do líquido
da taça e provando-o. Os pretos ainda sobre si, aguardando em lábios entreabertos alguma oferta.
O que seria uma grata surpresa, o Diabo admitia para si mesmo.
   – Iria se cansar de mim tão rápido quanto do sangue nessa taça, se me tivesse aos seus pés...
Majestade. – Estalou a língua. – Mande-o trocar... Já está azedo – segredou entre os rostos de
ambos, próximos.
   – Faria o mesmo a você... – sentenciou o Diabo quando ele já se distanciava definitivamente da
chaise.
   O moreno sorriu alto.
   – Se pudesse – o Diabo completou. – Fique de olho nela para mim, e prometo que da próxima
vez que for à superfície, visitarei seu apartamento.
   – Perdê-la-ei de vista...
   – Isso é um rompimento de contrato. – Apontou o dedo para imensidão acima de suas cabeças. –
E ele irá lhe punir novamente e mandar aquela almazinha suicida para longe de você...
   Os azuis suspensos na lembrança que tomou sua mente por segundos.
   – Está vendo como o conheço? Ainda pensa nela...
   – Eu moro numa mansão – disse baixo, já se tornando uma sombra. As lembranças afastadas
dali.
   – O que disse? – o Diabo interpelou-o, interrompendo o fluxo de seus próprios pensamentos.
   – Que moro numa mansão... – era só a voz do moreno que o cercava. – Não num apartamento...
Você, sim, me subestima.
   O senhor do Makai10 encostou seus cabelos pretos, lisos e compridos contra as almofadas de
cetim vermelho, sibilando enquanto sorvia o sangue de doze condenados. Eram sempre doze
condenados por vez, pelos doze mandamentos da boa bebida.

10
     Seria o inferno para os japoneses.

                                               20
– Sei que ainda irá me trair, Akuma... – Sorriu. – Mas não sei quando, e no momento, ainda é o
mais fiel de meus anjos, e o mais indispensável. Será um desperdício, quando sua hora chegar e seu
sangue for derramado dentro desta taça... – Despejou o último fio vermelho sobre sua garganta;
sentindo-o, deliciado, escorrer por sua pele morena e opaca. – Deve ser doce, encorpado... –
Escorregou os dedos pela fenda do roupão, na altura do seu quadril. – Ah, maldição... – praguejou
em bom tom, logo depois, retirando-os dali. – Preciso de Ezequiel.

   Uma porta foi aberta ao longe, sem que ele percebesse, e minutos depois um par de olhos
chocolates estavam sobre si. A boca comprimida sob os dedos, impedindo-lhe de gritar quando
entrou na peça de banho e o encontrou.
   – Monsieur, eu... – Ela desviou o olhar dos azuis dele, que haviam se aberto e a fitavam
atentamente de dentro da hidromassagem. – Não sabia que o quarto estava ocupado, pardon moi.
   A moça de cabelos caramelos e curtos deslizou de volta para a porta do banheiro enquanto
prosseguia com cuidado:
   – Eu deveria arrumá-lo para o próximo hóspede... Então... – gaguejava.
   – Passe-me a toalha, por favor... – pediu em sua voz doce.
   – O quê? – indagou, impedindo o fluxo de suas palavras.
   – A toalha – ele solicitou uma vez mais.
   De costa para a hidromassagem, ela fitou a toalha ao seu lado. Felpuda e branca com o emblema
do hotel. Um A e R sobrepostos em linha dourada. Hesitava ainda presa ao receio do homem nu no
mesmo recinto que ela.
   – Estou congelando, caso não se importe, senhorita... – Desenhou a silhueta dela, sob o uniforme
salmão, com seus azuis curiosos. Busto 90, cintura 82, quadril 98... Anotou mentalmente, era
instintivo para olhos treinados como o dele. Mas, aqueles cabelos... A cor deles. Perdeu-se em
recordações.
   – Carine – ela completou enquanto fechava os dedos sobre a toalha e caminhava, de costas, até a
hidro. – Sou a camareira, Monsieur.
   Ele voltava a si, nas palavras dela.
   – Não sabia que empregava mulheres tão bonitas – murmurou ao encontro de seu pescoço. Ela
arrepiou.
   – Como disse? – contrapôs, trêmula, pelo sopro quente e o cheiro de alfazema que exalava dele.
   – Disse que você é bonita – repetiu paciente, deixando a banheira e parando atrás dela.
   – Antes... – Ela se virou, encarando-o. Não sabia que estavam tão perto.
   Os verdes alargados e ele sorriu.
   – Que sou seu patrão, é isso? – sugeriu ao passar a mão nos cabelos úmidos, fazendo escorrer
gotas d'água sobre seu peito definido. Ela notou sem fala, acompanhando os filetes na pele clara até
borda da toalha, enrolada em sua cintura. – Senhorita? – chamou-a, retirando-a do transe
momentâneo.
   – Precisa de mais alguma coisa? – falou com certo esforço, obrigando-se a se recompor e fitar o
lado oposto ao que ele ocupava.
   – Minha suíte – soprou contra sua bochecha, vendo-a ser preenchida por um leve rubor.

                                                21
– Certamente, Monsieur. – Ela se apressou em se afastar.
   – Você não é daqui, não é? – Deteve-a pelo pulso. Aproximando-os de novo.
   – Não, minha mãe é francesa, mas nasci em Kioto... – Os azuis nos verdes dela, e os dedos dele
que escorregaram até sua mão, aquecendo-a estranhamente. Kioto, era esse o lugar onde se viram a
primeira vez. Num carinho sobre sua pele, fê-la prosseguir: – Meu pai morreu há dois anos e nós
resolvemos voltar para sua cidade natal.
   – Por que não está com ela, em casa? – perguntou preocupado. Não conseguia disfarçar sua
surpresa ao tocá-la.
   – Preciso do emprego para os remédios... – ela balbuciou, sem notar as lágrimas em seus olhos.
Sem saber por que chorava na frente de um estranho como ele.
   – Vá para casa – retrucou seco, retirando sua mão da dela. Há muitos anos não sentia aquele
calor, aquela quentura de pele.
   – Está me despedindo? – tremeu involuntariamente. – Não pode fazer isso, nunca deixei minha
vida pessoal interferir no meu trabalho!
   – Escute... – Tomou os ombros dela entre os dedos. – Vá para casa e só volte quando a
pneumonia dela melhorar.
   Os verdes incrédulos nos azuis dele. Ele não devia ter dito nada, era errado.
   – Como sabe sobre isso?
   – Eu sei tudo sobre quem trabalha para mim – ponderou, tentando esquecer a influência dela
sobre seus sentidos. Seria possível?
   – Disse-me antes, que não sabia que empregava belas mulheres...
   – Menti. – Sorriu-lhe sem vontade. – Queria testá-la.
   – Entendo... – ela desanimou.
   – Não vou despedi-la, fique tranquila – sentenciou, por fim, fitando seus traços uma vez mais. –
Agora vá, Carine. Sua mãe precisa de você.
   – Merci, Monsieur... – ela não sabia como agradecer e saiu do banheiro. Ele deixou os azuis
acompanhá-la até a porta, e depois apoiou os braços contra a borda da pia, encarando a si mesmo no
espelho sobre ela.
   A porta que se fechou distante, anunciando que ela partira. Por que tinha a impressão de que a
conhecia? Aqueles cabelos caramelos... Só o havia visto uma vez em toda sua existência.
   Seria esse, o sinal que esperara por séculos?
   – Hanya...
   Seu hálito quente contra o espelho, esfumaçando-o.

  ...xxx...

   – Parcial de 15/30... – declarou ao erguer a sobrancelha e encará-lo maliciosa. – E se Jacques
fizer esse ponto, você está perdido.
   A mão dele que se fechou ao redor da bola de tênis, quicando-a.
   – Cale a boca, Meline... – exigiu num sorriso mal disfarçado.
   – Meu marido é incapaz de perder uma partida, Akuma. – Esperou a bola do moreno ser lançada,

                                                22
enviesada, pela quadra. O homem de cabelos castanhos bem aparados, porte atlético e bronzeado,
metido num uniforme impecavelmente branco, esticou-se todo para apenas ensaiar uma rebatida
que não ocorreu. A bola passou a sua esquerda, rasgando o ar e aterrissando 5mm dentro da faixa
branca. – Ui... – Ela fez uma careta.
   – Anote, benzinho, match point para o papai aqui. – Piscou-lhe o olho.
   – Ei, Akuma... – Jacques pôs as mãos sobre os olhos, interceptando o sol e alertando-o: – Não
flerte com minha esposa.
   – É, benzinho... – disse a loura às suas costas. – Para você, é Mademoiselle Meline Renée.
Casada e dona de uma barriga de sete meses bem redonda.
   Ela se ergueu da cadeira ao canto da quadra, mostrando-lhe o futuro herdeiro dos Renée.
   – Se disser mais uma gracinha... – Passeou os dedos pelos cabelos escuros. – Mando retirá-la a
força daqui.
   – Não ousaria. – Estreitou seus verdes sobre ele.
   – Experimente – alfinetou-a.
   – Hei... – chamou-os, Jacques, do outro lado da quadra, impaciente. – Detesto interromper a
reunião de família, mas tenho um negócio para fechar daqui há duas horas, em Londres.
   – 15/45 – ela determinou contrafeita, emburrada na cadeira.
   – Boa menina... – ironizou o moreno. – Jacques, péssimas notícias... Ela vai querer caramelos e
chocolates ao invés de proteína de soja.
   – Mande essa bola e acabe com isso – protestou o amigo, colocando-se em posição de defesa a
sua frente.
   – Não entregue os pontos, meu anjo – ela gritou para o marido, acenando-lhe um beijo.
   – Ele é meu maior acionista, se eu perder talvez consiga comprar mais caramelos...
   Os três sorriram e a disputa recomeçou, ao menos até que Akuma ganhasse.
   – Boa partida – disse-lhe o amigo enquanto tomavam água. – Há tempos não o via jogar tão bem,
Akuma.
   – Aposto que estão falando mal de mim – ponderou, assim que colocou a barriga proeminente
entre os dois homens.
   – Totalmente. – Envolveu-lhe o pescoço com a toalha molhada de suor.
   – Tire isso de cima de mim... – retrucou, desviando do abraço do moreno e refugiando-se nos
braços do marido. – Fede! – Entortou o nariz.
   – Quando éramos namorados, não se importava... – alfinetou-a, levando a toalha aos cabelos.
   – Não, eu era cega – retrucou num sorriso, entrelaçando os dedos aos de Jacques.
   – Creio, Meline, que Akuma está de amor novo – foi a vez do amigo ironizar ao pé do ouvido da
esposa.
   – Mesmo? – Os olhos dela brilharam nos do moreno.
   – Isso é coisa da cabeça de seu marido – protestou, desviando os azuis deles e dando-lhes às
costas. – Pura especulação.
   – Estava achando que tinha me livrado de ser a ex-namorada comprometida como desafeto –
desanimou-se.
   – Sem chances... – Voltou-lhes o rosto, sorrindo. – Sou amante de uma causa perdida.

                                               23
– Mas estou grávida de outro... – redarguiu cínica.
   – E serão gêmeos – completou o marido enquanto seguiam Akuma a certa distância.
   Ela ergueu a sobrancelha preocupada, e sussurrou a Jacques:
   – Gêmeos?
   O marido abraçou-a mais forte e se beijaram de leve.
   – Uma pena que se recusou a saber o sexo do bebê...
   – Será uma menina – cortou-os o moreno, ao longe, e o celular tocou.
   Ele parou e atendeu:
   – Pronto... – O azul se perdeu escuro no horizonte. – Tem certeza? – Uma pausa breve e o casal
que se entreolhou atônito. – Quero meu jato pronto em uma hora... É tudo.
   O aparelho foi fechado e devolvido á sacola de couro branca.
   – Problemas?
   – Algo numa das minas de diamante na África do Sul... – Sorriu-lhes. – Nada que eu não consiga
resolver.
   – Ainda não tira férias, não é? – A loura sorriu-lhe.
   – Não – ele consentiu.
   – Foi por isso que não demos certo.
   Estalou um beijo em sua bochecha e abraçou o amigo.
   – É por isso que sou o padrinho de sua filha. – Piscou-lhe o olho. – Cuidem de tudo na minha
ausência.
   – Ele não muda... – sugeriu Jacques, assentindo com a cabeça na direção do moreno, que se
afastou rapidamente. – Mas ainda acho que tem mulher envolvida no fato dele ganhar essa partida.
   – Você também não muda...
   – Mas tiro férias. – Depositou um beijo apaixonado nos lábios dela.

  ...xxx...

   – Nicole? – ele indagou ao entrar na pista do aeroporto, num pequeno carro que o levaria até o
jato. A secretária respondeu algo do outro lado da linha e Akuma completou: – Descubra o endereço
de uma moça que trabalha para mim... Ela é camareira do Akahana Resort's, em Le Havre, e seu
primeiro nome é Carine.
   Uma pausa e ele sorriu. O terno creme contrastando com a pele queimada pelo sol daquela
manhã na quadra de tênis.
   – Continue anotando... – Novo sorriso e o carro parou em frente ao tapete vermelho, estendido
até as escadas do Dassault Falcon azul. – Cabelos curtos caramelos, olhos verdes, pele clara...
Estatura mediana.
   – Bem vindo, Monsieur Akuma – a comissária o recebeu com um sorriso elegante. – Está tudo
pronto para partimos.
   Ele assentiu e prosseguiu a ligação:
   – Quero uma braçada de flores do campo para o endereço que você conseguir, e no nome da mãe
dela... – Ele fechou os azuis enquanto tomava um dos assentos de couro castanho e um martini lhe

                                               24
era servido. – Mande em meu nome, com estimas de boa convalescença.
   O jato ainda continuava parado, aguardando a ordem para decolar.
   – O que seria de mim sem você, Nicole? – Ele sorriu ao ouvir a resposta e finalizar a ligação: –
Au revoir.
   O celular foi largado sobre o tampo de carvalho a sua frente, e os olhos azuis da moça, no
uniforme cinza escuro, fitou-o em espera.
   – Pode decolar.
   Ela sumiu por entre as cortinas vermelhas e a voz do comandante foi ouvida:
   – A viagem será agradável, senhor. Não há motivos para preocupações.
   Ele recostou na poltrona e mentalmente sugeriu: Eu sei, mas ainda assim, prefiro meus pés no
chão.




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Youkai - O anjo e a menina

  • 2. “Well… bless my soul You're a lonely soul Cause you won't let go Of anything you hold”1 ( Say – OneRepublic) 1 Bem... abençoe a minha alma/ Você é uma alma solitária/Porque você não deixará ir/Tudo que você tem 2
  • 3. @Todos os direitos de reprodução total ou parcial desta obra pertencem a Roxane Norris e Editora Literata, e a violação dos mesmos será considerada uma atividade ilegal mediante a LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998, que regulamenta os Direito Autorais em território nacional, e portanto, passível de punição jurídica. 3
  • 4. ERA YAMATO — Onii-sama! – Ela corria entre as cerejeiras secas pelo frio intenso. Os olhos molhados de lágrimas que não conseguia mais conter. – Onegai, onii-sama!2 – berrou uma vez mais, cansada... Chamando-o, caindo de joelhos na neve. As pequenas mãos tentando conter as gotas salgadas que rolavam, em vão. — Nii-sama, doutshite3? O corpo tombou para frente, deixando a pele da menina se abrigar no manto branco. Os flocos de neve caíam insistentes, sem que nada além do vazio que a rodeava, os acolhessem. O corpo tremendo entre suas mãos. “Hanya não vá para longe... Irá nevar hoje. Não quero ter que procurá-la num tempo como este” – ele havia alertado-a, em meio ao sorriso quando aqueles lábios sujos deixaram sua pele. Lábios que sempre a machucava, desde que sua mãe se fora. Lábios que deveriam protegê-la, mesmo que não fossem os paternos. Era para isso que ele desposara sua mãe, afinal... O corpo da menina reagiu à falta de calor quando foi abandonado pelo peso do dele, encolhendo-se conforme puxava para si, a yukata4 em trapos, cobrindo-se, e ganhando a porta a passos rápidos. Ela não queria dá-lo ouvidos. Não depois do que ele fizera. Então, correu... Correu para os braços do anjo. Seu anjo caído. Os cabelos pretos, longos, jogados contra seu rosto ferozmente pelo vento. Os passos deixados na neve até chegar ao corpo frágil da menina. O olhar preocupado ao afastar os cabelos de um tom peculiar para o oriente - caramelos; e os azuis, que a fitavam intensamente em sua capa branca. Branca como a neve. — Yare... Por que você não pode ouvi-lo? – indagou ao tomá-la nos braços e se erguer. – Ele avisou que iria nevar... – deixou próximo ao rosto que se aconchegava em seu peito. —Eu queria ver o nii-sama... – murmurou sem abrir os olhos, deixando que seus pequenos braços lhes envolvesse o pescoço, e partes da yukata, revelassem os pontos marcados de sua pele por lábios. Os azuis que se mortificaram por não chegarem a tempo, por não ser permitido intervir. — Não me deixe. — Hanya – soprou conforme a levava para casa. — Perdoe-me... ...xxx... 2 Por favor, irmão! 3 Mano, por que? 4 Vestimenta japonesa de verão. 4
  • 5. – Beba isso – ele exigiu ao lhe entregar o chá. – Irá aquecê-la. O chocolate intenso nos azuis dele, quando o obedeceu, ainda sob as cobertas que a mantinha aquecida, preparadas por ele. A paz que seu coração machucado experimentava naqueles braços, não importando quantas vezes seu corpo fosse ferido. Ele era sua rendição, o único capaz de apagar os pecados que trazia marcados em sua pele... Pecados que não eram seus - queria apenas esquecer. – Por que eu nunca consigo impedir que ele faça isso comigo? – Os pedaços de pano com os quais ela tentava ocultar dele, as marcas. Era a primeira vez que ouvia algo como aquilo; algo que soava como um lamento e a confissão de um erro seu. Não era o tipo de coisa que diziam quando sabiam de sua presença por perto... Geralmente, era a ele que perguntavam - por que coisas como aquela aconteciam, e o culpavam em seguida? Mas Hanya era sempre diferente das outras pessoas. Ela era única. – Eu vou crescer, e quando isso acontecer, terei minha liberdade. – Os chocolates se abriram mais, agora esperançosos, na falta de palavras que os limitou a passear, azuis por seu rosto. – Você será uma bela mulher... Quando for a hora – contrapôs simplesmente. A força dela o surpreendia, ao mesmo tempo, que o assustava. – Não quero ser bela, se assim o for, ele não me deixará partir. – O azul que desviou dos chocolates dela. Ele não devia ter falado do futuro, não era seu direito. – Não se preocupe com isso agora, apenas descanse. – Fechou os azuis. – Eu tomarei conta de você... – Então venha... – Ela cedeu o espaço a ele no futon5. – Eu não deveria vê-lo, não é? Azuis nos chocolates dela, preocupados. – Não... – ele confessou, dissimulando suas reações ao obedecer a seu pedido. Sentando-se sobre as cobertas, desconfortável. Por que reagia assim? Seria somente pela forma humana que adotara perante a menina? Resignou-se em esconder suas emoções, coisa tão efêmera para uma existência como a dele. – Mas eu quis assim, já lhe expliquei isso. – De certa forma, sempre se perguntou - por que desejara isso? Mas era algo que não estava apto a admitir. Não para ela. – Gosto que se importe comigo... – Ela deixou sua cabeça no colo branco. – Porque você é tudo o que eu tenho. – Hanya – balbuciou, as emoções já não tão escondidas. O coração acelerando no descompasso que ele não conhecia. Suor. – Mesmo você tendo me assustado, a primeira vez que o vi... – ela continuou sem lhe dar atenção, os chocolates no infinito. Talvez porque ele não fosse real para ela, como não era para muitos. Nova resignação. – Você me ensinou que há um gostar sem dor, ao contrário daquele homem... – Ela abraçou o próprio corpo, apertando-o fortemente. Ele afagou-lhe calmamente os cabelos caramelos, era dor demais para uma criança, sentia-a em si próprio, como se fosse dele também aquele fardo. – Ele não me beija com carinho... Não me toca com amor... Ele não me deixa paz, nunca! – E mais lágrimas escorreram pelo rosto de porcelana, manchando-o, conforme o 5 Tipo de roupa de cama japonesa. 5
  • 6. enlaçava pela cintura em soluços. Soluços que passavam do corpo dela ao dele, e agitavam sua alma enquanto enterrava suas feições no tecido da túnica branca. – Onegai, nii-sama... Não me deixe. – Suas pequenas mãos segurando as pregas do tecido nos dedos delgados. Ele não a deixaria. Os azuis fitaram o fusuma6 ao seu lado, nos desenhos de borboleta. As borboletas que eram livres na curta brevidade de suas vidas, como a menina entre seus dedos nunca seria. Era por isso que a deixara vê-lo, para que aquele vazio que preenchia a alma da menina, não a levasse antes da hora. Para que pudesse dividir com ela sua angústia, até o momento que viria buscá-la. A verdadeira ligação entre ele e ela era a de protetor. – Você ficará ao meu lado para sempre, não é? – Ficarei – ele consentiu o que não deveria. – Conta-me uma história? – Os chocolates alcançaram os azuis, ansiosos. Fitando-os como a menina de doze anos que era, não como a mulher em que os toques do homem a transformara. Toque que ele já os vira dar sobre a pele clara, sem que nada pudesse fazer além de observar e sentir sua parte alma protestar. A mesma parte sua que o fazia protegê-la... Ainda que não fosse seu direito. Não como ele fazia. – Qual? – Fale-me de anjos... – Por que anjos? – Porque você é um deles. – Hanya... – chamou-a. A menina já cerrava seus olhos. – Um dia você conhecerá o lugar de onde venho. E neste dia, talvez você descubra que não sou um anjo. – Não pode me levar lá agora? – murmurou de olhos fechados, com um bocejo. – Deve ser tão belo quanto você. – Não. – O sorriso que ele não pôde evitar diante das palavras dela, a sua criança. – Akuma... – Sim... – Não importa o que seja... Para mim, você sempre será um anjo... Meu anjo. – Ele permitiu ser acariciado pela inocência dela. A inocência que o atraía cada vez mais para seu lado. – Você toma conta de mim, e me faz feliz... – O rosto da menina no corpo da mulher que o fascinava. – Akuma, não deixe que ele me toque de novo... Não hoje, eu não quero... – O cansaço venceu-a. – Ele não irá tocá-la, Hanya. – Deitou-se ao seu lado. O corpo de homem ao lado da menina. – Você já sofreu demais por um dia. – Seus olhos molharam pela primeira vez em séculos, que ele pudesse se lembrar. O gosto do sal. O gosto amargo da impotência. Um anjo não deve ser envolver emocionalmente com mortais... Humanos não devem ver anjos ou demônios. Entretanto, as correntes do destino se movem independentes da vontade de ambos... Mas por sua vontade, ele dormiu abraçado a ela. 6 São painéis retangulares verticais que podem deslizar de lado a lado para redefinir os espaços dentro de um quarto, 6
  • 7. ...xxx... – Não acha que foge às suas responsabilidades, passando tanto tempo preocupado com aquela humana, Heilel? – a voz do chefe dos guardiões chegou ao seu ouvido, arrastada. – Diga-me, Miguel... – Os azuis se voltaram para os dele, indulgentes. – Por que achas que foi delegado a ti, o cargo mais alto da milícia? O silêncio no imenso branco que os cercava, foi toda a resposta do arcanjo. – Não é, certamente, para que percas seu tempo comigo, meu amigo... – Pôs uma das mãos em seu ombro e tomou a direção do ponto iluminado por Vênus. A estrela da manhã. – Ele exige nossa presença, melhor que deixemos esse assunto para mais tarde... – Sorriu-lhe ao passar pelo louro. Os azuis intensos sobre o moreno. – Não a minha... – murmurou, em desapontamento, o miliciano. – Então vos peço que olhe por todos, na minha ausência. – Os azuis que se encontraram, indecifráveis. – Arigatô – despediu-se cordialmente. Miguel e ele nunca foram tão próximos, e aqueles dias em que havia se ausentado do Reikai7, tornara isso mais evidente. Principalmente, quando ele tocara no assunto de Hanya. Gostaria de perguntar o que ocorrera à sua protegida enquanto estivera fora, mas havia o chamado, o qual não poderia ignorar; teria que deixar para outra ocasião, seus afazeres como anjo da guarda. Ainda que sua mente estivesse voltada para eles... Para ela. Há meses não a via, sua menina. Fitava-a do Reikai, das janelas abertas do mundo das almas. Entretanto, jamais imaginou que Miguel o espreitasse. Jamais supôs que seus passos fossem de conhecimento da milícia celestial. Teria baixado tanto sua guarda assim, por uma humana? Segredou a si mesmo enquanto andava sob o chão fofo. Pés em nuvens. Braços cruzados sobre a túnica branca, e aquela não era mais a hora de ter esse tipo de pensamento. Livrar-se-ia deles... Todos. – Acha que ele irá escolhê-lo, Heilel? – a voz mais urgente o abordou, assim que ascendeu ao ponto de luz. – Afinal esteve ausente nos últimos meses, imerso em trabalho. – Isso o preocupa, Gabriel? – indagou sem fitá-lo, andando num passo calmo. Os cabelos pretos ondulando sobre as costas. – De forma alguma, meu caro. – Um sorriso medido na face do arcanjo mensageiro. – Era tão somente, minha curiosidade aflorada... – Sabe que ele não considera isso, uma virtude... – Não serei o escolhido para presidir o Reikai; talvez, assim, esse pequeno deslize em minha personalidade, passe despercebido. – Sorriu novamente quando Uriel lhe deu passagem às portas do Céu. – Daqui vais sozinho... Heilel – sentenciou o arcanjo que empunhava a espada, barrando o caminho do mensageiro. – Vê o que digo? – disparou Gabriel. – Sirvo melhor a ele, em outros caminhos. Com uma breve reverência, Heilel o deixou. O branco ao seu redor misturando-se a sua roupa, a 7 Mundo Espiritual japonês 7
  • 8. sua mente, até que não restasse nada além do puro olhar quase transparente de Deus. – Chamou-me? – Algo urgente precisa ser resolvido, Heilel. – Os cabelos brancos, a voz doce e enigmática. Benevolência. – Se eu puder ser de alguma ajuda... – Ajoelhou-se, vendo seus medos afastados de si. – És o único que pode me ajudar – respondeu calmo. – Então, rogo que ponha sobre mim, a responsabilidade que lhe atormenta, meu senhor. – Tão nobre e tão belo, és tu, Heilel. – Os olhos pousados no oitavo arcanjo, o que sempre o fora mais fiel. Seu escolhido. – Não penso que outro, mesmo sendo parcimonioso, atenda ao meu pedido como tu farás. – Sinto-me honrado que pense assim. – Os azuis baixos ao chão. – Se o que dizes é a verdade em seu coração, então não baixe seus olhos perante a mim. Deixe- me ver a essência que tanto admiro neles. – Azuis nos benevolentes. – Assim é melhor... – Um suspiro cansado suprimido por um sorriso sincero. – Dar-te-ei o cargo mais alto do Reikai, Heilel. Os azuis alargados sobre ele. – Surpreso? – Um sorriso ainda maior nos lábios de luz. – Não pensei que tivesse esse tipo de reação... O que o faz recear? – Lidar com Miguel – rebateu sem hesitar. – Ah, sim... – Deus se pôs de pé e andou, tornando-se tudo a sua volta. – Miguel tende a ser humano demais. Eu o entendo. Releve... – Relevar? – Exato. – Mas ele ficará sob minhas ordens... – retrucou sério. – Será difícil para ele. – Preocupa-te em ser o escolhido para essa função, deixa que com Miguel, eu resolverei as coisas... – Não queres ponderar mais um pouco? – Julgas minha decisão imprópria? – As palavras ecoaram ao seu entorno. – Não cabe a mim, julgá-lo, senhor – resignou-se. – Tens muito trabalho pela frente, Enma Dai Oh. Com um assentimento e uma nova reverência, Heilel deixou o Céu. Com os pensamentos presos a Hanya, ele tocou o branco do mundo que agora regia. – Não te disse? – Gabriel o abraçou. – Não havia dúvidas que ele esperava apenas seu retorno para nomeá-lo. – Eu não me importaria, se outro fosse escolhido – ponderou preso à figura de Miguel. Os azuis que o fitavam intensos. – Isso é blasfemar – rebateu o louro. – Se assim te parece, devo crer que concorda com a escolha dele... – deixou no ar, certo de que no coração do arcanjo, a verdade era outra. – Sim, deves – assentiu de pronto sob o olhar de Gabriel. – E quem ousaria discordar, Heilel? – emendou o mensageiro. – Você sempre foi o mais justo de todos nós, era só uma questão de tempo e oportunidade. 8
  • 9. Os azuis que fugiram para longe do rosto do novo Enma Dai Oh. – Terás que passar suas responsabilidades como protetor a outro anjo – ponderou secamente o miliciano. – Isso não será problema, não é mesmo, Heilel? – devolveu Gabriel. – Quem tomou conta das coisas em tua ausência? Azuis cruzaram com os dele. Um sorriso do mensageiro. – Não há necessidade que busque outro anjo, então, Miguel continuará a fazê-lo... – Não és tu, quem decides isso! – protestou o louro. – Bastam os dois! – interviu firme o oitavo. – Deus decidirá, não eu ou vós. Apressou os passos, queria vê-la ao menos uma última vez... Explicar-te que falharia em sua promessa. A promessa do anjo dela. Os arcanjos que pararam, vendo-o se afastar. Os olhos do louro seguindo-o preocupados. – O que há com ele? – indagou o mensageiro. – Você não o entende, não é Gabriel? – Sorriu-lhe o miliciano. – Entendo que ele chegou aonde qualquer um de nós gostaria de estar... Um novo sorriso nos lábios do louro. – Você não entende Heilel... Não sabe o que é vagar entre o nosso mundo e o dos humanos. – Estás em recaída novamente, Miguel? – Fitou-o preocupado, o quarto arcanjo. – Não deves se envolver com os mortais, sabe disso. – Voltas para os afazeres, Gabriel... – Suspirou o primeiro arcanjo. – Ficarás bem? – Superarei meu trauma, como sempre – confortou-o. Os passos que eclodiram atrás de si, afastando o mensageiro. Os dele que foram na direção do oitavo. Os azuis voltados á Terra, que ele encontrou dentro das roupas mortais. – Vais vê-la? – era um murmúrio entre os dois. – Não posso abandonar todos que confiaram em mim – respondeu simplesmente. – Sabe que a maioria não se importa quando vais aparecer ou não... Até preferem não ver-te – recriminou o louro. – Mas ela... – O que tem ela? – indagou calmamente o Enma8 enquanto amarrava a yukata. – Você a trata diferente... – Achas? – Sabes que o faz – afirmou em azuis cintilantes. – Assim como sabes que não é permitido tal comportamento. – Silêncio no qual Heilel deteve-se no rosto do louro, que ainda sublinhou: – A hora dela está chegando cada vez mais rápido... E tu a julgarás... O que farás neste momento Heilel? Será seu anjo da guarda ou chefe do Reikai? – O que aconteceu a ela na minha ausência? – Os azuis escuros interviram nos claros dele, cintilantes. – Nada... – Mentes, Miguel – rebateu o oitavo. 8 Enma Dai Oh - segundo o Budismo, um dos 10 deuses que julgam os mortos no mundo dos espíritos conhecido pelo seu grande poder e calma budista. 9
  • 10. – Não há nada que possas fazer agora... Minutos aqui são como anos para os humanos, esqueceu- te? Foi uma longa ausência tua, Heilel – prosseguiu no que dizia. – Por que dizes isso? – Deu dois passos até o miliciano. – Chegaste tarde, se é o destino dela que te preocupa... Deixe que eu me encarregue deste fardo, já que a abandonou para te dedicar ao novo posto. – Não digas bobagens... – As palavras interrompidas nos azuis que tremeram. – Ela me chamou enquanto... – O louro impassível a sua frente. – Diga-me o que ela queria! – O arcanjo suspenso do branco por sua túnica envolta nos dedos do Enma. – O que disse a ela? Os azuis correndo os dele, aflitos. – O que há contigo? – O que disse a ela? – era quase um rosnado. – A verdade. – Qual delas? A tua? – Largou-o no branco, irritado. – Ela sabe que a abandonou, Heilel... – Sorriu. – Ela agora compreende que um protetor não pode ter qualquer tipo de envolvimento com tua protegida. – Idiota! – Voltou a erguê-lo pela túnica até seus olhos. – Cada ser humano tem a hora certa para teu julgamento... – Mesmo? – ironizou. – Deverias ter pensado nisso quando preteriu suas tarefas para ser o Enma. – Cala-te! – ordenou, o punho fechado na direção do rosto de Miguel. A milícia que os cercou rapidamente, com suas asas abertas em proteção ao seu chefe. Os azuis que o fitaram entre elas, brilhantes. – Os minutos se esvaem pelas veias dela... Heilel. O que irás fazer? ...xxx... Um anjo não é bom ou mal por sua natureza, apenas vaga entre o mundo mortal e o Reikai, cuidando de almas humanas. Confortá-las, acompanhá-las... até que chegue sua hora. Mas ela, Hanya, estava indo cedo demais – pensou ao abrir as asas e alçar voo. – Por quê? Os azuis que vasculharam cada pedaço de escuridão do mundo humano. Heilel, o anjo que carrega a luz, o filho da manhã... O mais belo e fiel de todos os arcanjos de Deus. Akuma. O cheiro que ele detectou ao entrar no quarto dela, forte... Sem respiração. A presença que ele deixou que ela sentisse, a sua... conforme espantava as sombras e a via entre os lençóis rubros. Molhados dela. – Hanya... – Os azuis alarmados sobre a menina, o corpo da mulher de belos cabelos caramelos que jazia no futon de sangue. Minutos dele que se tornaram anos longe dela. – Hanya... - a urgência nos lábios que se moviam enquanto os dedos afastavam os cabelos úmidos de seu rosto. – O que fez? Os olhos fechados do corpo que ele colou ao dela, manchando sua túnica celestial de rubro. Os riscos escarlates coagulados nos pulsos que ele não poderia mais conter, que faziam seus olhos molharem na dor que ainda não conhecia. A dor de perder uma vida. – Akuma... – um sopro ao seu ouvido. Os azuis voltaram aos chocolates ao seu lado. O esboço translúcido da menina de dezessete anos em seus braços. A alma de Hanya. – Então é assim que 10
  • 11. você realmente é? Os dedos da alma dela tocaram seu corpo celeste. – Você é ainda mais belo... – Ela sorriu para ele. Ele não sabia o que lhe dizer. – Eu estou feliz que tenha vindo me buscar. Aquele outro anjo me disse coisas terríveis, mas me mostrou como trazer-lo, para mim... Estou tão feliz em te ver de novo. – Hanya... – Abraçou-a, saindo de seu desespero. – Esqueça isso! Estou aqui e tu ficarás bem. – Agora eu posso conhecer o seu mundo, não é? – Os chocolates dela nos azuis do oitavo. – Foi por isso que tomou conta de mim, não foi? Porque você me amava... Amor? Como ela podia entender isso? Como ele poderia dizer que se sentia assim? Apertou-a contra si, deixando o corpo mortal dela para trás. A menina sem vida. – Heilel-sama, é nosso, o dever de conduzi-la ao Reikai – o chefe da malícia sugeriu em azuis, colocando-se a sua frente. Os azuis que pousaram sobre eles, irritados – És o culpado pelo o que aconteceu, Miguel. – Em dez dias, descobriremos o veredicto que essa alma sofrerá, Enma-sama... – Enma? – a voz dela soou entre seus braços, soltando-se deles surpresa. – Então era verdade? – Hanya... – ele tentou impedi-la. – Você realmente me abandonou... – Os chocolates o fitaram decepcionados. – Você mentiu para mim... – Não, Hanya. – A mão dele esticada na direção dela, cujo corpo se aproximava do abraço do primeiro arcanjo. – Espere... O rosto que ela deixou sobre a túnica de Miguel, sem voltar a fitar os azuis. As asas que a acolheram, dissipando anjos e alma no ar. – Ela aguardará o julgamento sob minha custódia, Heilel... Foi tudo que restou ao seu redor, além do vazio que havia em seu peito. ...xxx... – O que torna tua expressão tão fechada hoje? – indagou o quarto arcanjo. – Preciso de uma audiência com Gabriel – disse-lhe sem volteios. – Não se consegue isso de uma hora para outra – retrucou o mensageiro. – Além do mais, soube que hoje será um dia cheio para os dez do júri... – Alegra-te com isso, outra hora – interveio irritado, Heilel. – O que está deixando-te assim? – Eram os azuis do arcanjo de cabelos anelados castanhos que perscrutavam os seus. – Sabes o que Miguel fez em minha ausência? – Não muito... – ponderou o quarto. – Creio ter tomado conta de teus afazeres como protetor... Ao menos, foi isso que ele ventilou. – Preciso falar com Deus... – O que te atormenta, Heilel? Conte-me – exigiu o arcanjo. – Lembra-te do pedido que fiz antes de me ausentar? – Encontrou os doces azuis sobre si, 11
  • 12. atentos. – A mensagem que te pedi para ser entregue no mundo dos humanos? – Sim... – afirmou preocupado, vendo os riscos na expressão do oitavo aumentarem. – A moça, a quem deste a mensagem... – Os azuis dele encaravam-no, aflitos. – Como ela estava quando a encontrou? – Normal... – Normal? – exasperou-se Heilel. – Como assim normal, Gabriel? – Não sei, parecia-me bem dentro de sua expectativa de vida... – ele ponderou, fitando o rosto do amigo. – Assim Miguel me explicou... Fez-me entender sua preocupação com ela. – Miguel estava lá? – Sim... estava – assentiu. – Foi ele, na realidade, que entregou tua mensagem à moça. Era o encarregado dela e estava ali. Achei mais fácil agir através dele... – O rosto do oitavo que se tornou indecifrável. – Ora, Heilel, diga de uma vez o que está acontecendo?! – Você chegou a ouvi-lo dizer, minha mensagem? – Não... mas ele a deu, tenho certeza. – Eu também... – bufou irritado. – Consiga um encontro com ele, Gabriel... Diga-lhe que imploro por isso. – Às portas de um julgamento de suicidas? – contrapôs o arcanjo, calando-se em seguida ao ver as duas águas marinhas brilharem em aviso, para que não prosseguisse em sua linha de raciocínio. – Não me diga que... – Apenas me consiga a entrevista... – O que queres pedir a ele? – preocupou-se, o quarto. – Melhor que não saiba de nada... – Não é sobre a menina... – Apenas consiga-me a entrevista... – Heilel, penses no que irás fazer. Ele assentiu, se calando, vendo Gabriel sumir da sua frente em passos apressados. ...xxx... – Isto que me pedes está fora de questão, Heilel – a voz grave se seguiu a dele, baixa. – Mas não peço por mim, meu senhor. – Os azuis no lago profundo que os encarava. – Ela é uma suicida, não há como impedir seu julgamento – proferiu brandamente. – Uma alma que rompeu regras, que renegou o direito que lhe dei. – Foi por tua própria vontade que salvou aqueles humanos... que deu a eles o livre arbítrio. – Heilel estreitou os azuis na luz. – Como, agora, julgas impróprio que o usem para decidir seu caminho? Ensinou-lhes com tua benevolência. – Sim, dei por eles, minha vida, para que vivessem as suas... Mas não interrompê-las como bem lhes aprouver – retrucou sério. Sua voz eclodindo de cada ponto ao redor do oitavo. – Se assim for, para que valeu meu sacrifício? – Para salvar tua criação; bons ou ruins são teus filhos... Os azuis fixos na imensidão ao seu entorno. 12
  • 13. – Por que faz isso por uma humana, Heilel? – Era tão profundo quanto o que sentia. Poderia ele, um arcanjo, chamar aquilo de dor? Desconcentrou-se no desespero de Hanya enquanto o ouvia. – Por que fizeste aquilo por todos eles? – rebatou fora de si. Deus lhe sorria? Ele não saberia dizer. – Eu sempre os amei... – proferiu, enfim. – Mas não posso concordar com tua escolha. – Não pode me impedir de fazê-la, Senhor – retrucou baixo, desviando o olhar da luz. – Posso lamentar. – Sim... – pronunciou já se voltando para o caminho que o trouxera ali. – E um dia me perdoar. – Talvez... – aquiesceu ao calor das palavras de seu mais fiel discípulo. – Sabes que há um preço a se pagar por tua desobediência às regras. – Não me importo – respondeu, logo após ter interrompido sua marcha, recomeçando-a uma vez mais. – Tomarás o lugar da alma dela... – Se for a forma de salvá-la, aceito a punição – rebateu já á entrada do Mekai. As asas pretas abanaram um forte cheiro acre sobre seu rosto, fazendo-o recuar por instantes, e os azuis se prenderam aos pretos. – O que o faz me trazer aqui? – a voz era intensa e grossa, tornando a luz trêmula e difusa. O rosto moreno, belo como uma pintura, num corpo de homem coberto de uma grossa túnica vermelha. – Preciso que cuides de uma alma para mim... Os pretos que se tornaram brilhantes em desdém. – Uma alma, você diz... – E tornou pretos ao oitavo. – E como seria ela? Sabes que não aceito qualquer um em meus domínios. O silêncio da palavra de Deus, o sorriso nos lábios do Diabo. – Uma vez mais, abre mão de seu mais fiel seguidor... – Os olhos escuros voltando à bondade que a luz emanava. – Seria por causas parecidas? As asas haviam sumido e o homem, descalço, analisava Heilel pacientemente. – Onde está Miguel? – indagou em azuis fixos no arcanjo ao seu lado. – Não o vejo há tempos... Era um escárnio, em definitivo. Silêncio do oitavo e o sopro cansado de Deus. – Irei aceitá-lo. – O ar quente de seus lábios envolvendo tudo, luz e anjo. Passos que foram na direção de Deus. – Diga-me, por que fraquejas mais uma vez? – Não está no teu direito, julgar-me – rebateu a voz calma. Um suspiro do demônio. – Sempre será esta, tua resposta. – Deu de ombros enquanto se virava para o Enma. – Quando poderei levá-lo? Meu tempo é escasso. – Em breve... – Aquela alma... – Desfeito. Pretos que correram pelo arcanjo. – Entendo. – Circundando-o. – Quer abrir mão mesmo dele? – As palavras contra seu pescoço. – Parece-me tão puro... 13
  • 14. – Não posso salvá-lo de si mesmo. – E o entregas a mim?! – Novo sorriso. – Tentador. Voltarei, em breve para buscá-lo... Sejas rápido nos preparativos. A túnica vermelha esvoaçou no ar, diante da luz, em asas pretas abertas. – Era esse, o destino de Hanya? – Não, esse é o teu. Não havia mais paz em seu coração quando deixou o Céu. A luz branca, que sempre o seguia, se apagava paulatinamente conforme andava pelo Reikai... Atravessava o manto branco... Olhava calmamente cada rosto dos anjos parados lateralmente a si. A visão do juri de Hanya. Ela entre os dedos de Miguel, aguardando a sentença que não viria. Os azuis que perdiam o brilho nas palavras de cada um deles, na culpa que destinavam a ela. A culpa que ele abonou com sua decisão, para surpresa do juri e felicidade de Miguel. A sentença final que saiu de seus lábios já sem cor, dando, a Hanya, sua salvação: – Como Enma, considero sua alma inocente. Suas vestes se tornando púrpuras conforme os chocolates se erguiam para ele. As asas brancas tingindo-se de pretas... Tão negras quanto a noite. A luz branca que saía dele, envolvia-a... Que guiaria ela. O cheiro forte e ácido do pecado que cometia, entregando-o ao diabo. – Heilel... – a voz dele em seu ouvido. – Arrepende-se do que fez? – Traíste teu senhor, o que dirás a teu favor? – Era Miguel, que agora lhe exigia respostas. – Eu não traí ninguém... – Sua voz era arrastada e demorava a sair de sua boca. Tão lentos eram seus movimentos. – Não me arrependo do que fiz. – Onde estava Hanya? Não a via. – O que fizeram com aquela alma? – Está segura – observou a primeira voz, agora num sibilo contra sua nuca. Um sibilo que só ele podia ouvir e o confortava. Por que havia conforto para ele, ali? – Como chefe da milícia, é meu dever bani-lo... – sentenciou o terceiro. – Não deves permanecer em solo sagrado se não buscar a absolvição de seus erros. – Não posso me redimir do que considero justo. – Encarou-o num último lampejo divino dos seus azuis. – Tu, melhor do que eu, deverias reconhecer a justiça... Miguel. – Parece-me que arrumou mais um inimigo, Miguel – a voz quente o envolveu, assim como ar começava a queimar seus pulmões. – Considere, em teus pensamentos, que nem mesmo os anjos escapam de um julgamento... Um dia, tu terás o teu. Até breve. O corpo do oitavo envolvido por asas pretas, corrompido pelo ar quente e ocre do inferno. Inferno ao qual um anjo se remetera... Os chocolates em sua mente, ele cerrou os azuis. Quando voltasse a abri-los, veria o mundo com olhos de um demônio. 14
  • 15. DIAS ATUAIS... Paris, 10 de março de 2006 Os cabelos pretos bem cortados sobre os ombros ondulavam com o vento. As mãos nos bolsos do terno caro, italiano. Um terno cinza escuro que realçavam os azuis de seus olhos, naquele terraço vazio onde gostava de fitar as nuvens. Nuvens que passavam rápidas por sobre sua cabeça, há muito esquecera como era pisá-las... Fechou os olhos em nostalgia, baixando-os. – Monsieur Akuma... – a voz veio como o som da água da fonte ali perto, a sua frente. Veio como ondas. – Faltam menos de dez minutos para a reunião, senhor. – Merci, Nicole – respondeu, os azuis presos ao jardim que mandara construir ali e enfeitar com cerejeiras. As flores que lhe remetia a ela. Um suspiro, o bico do sapato de verniz voltando-se para dentro do prédio. Era engraçado pensar que a Eden Clinic havia se tornado o centro mundial de estética. Praticamente, todos os médicos mais conceituados na área trabalhavam para a Eden, quer fosse na matriz ou em alguma das sucursais espalhadas pelas grandes metrópoles mundiais. Uma, inclusive, na América do Sul, no polo brasileiro denominado Copacabana's Eden. A melhor vista para seus pacientes relaxarem os nervos. Uma mente tranquila resulta num rejuvenescimento de pelo menos cinco anos, o restante vem das mãos mágicas dos profissionais da área e, claro, da mente perfeccionista dos clientes que os procuram. Noventa por cento deles, mulheres na faixa dos 35 a 50 anos, cuja estima foi abalada por um casamento monótono ou filhos que já alcançaram a adolescência e as fazem se sentirem “péssimas”. Ouvia sempre essa palavra de suas clientes. Péssimas, estigmatizadas, deprimidas... Um leque perfeito de opções. Atualmente, entretanto, essa variedade diminuíra. Eram poucas, as pacientes, de quem cuidava pessoalmente. Seu tempo se tornara escasso, principalmente no último mês, quando recebera aquele chamado. Hesitou, por segundos, quando a porta do elevador se abriu, mas invariavelmente, deixou- o para trás na direção de seu escritório particular logo abaixo do jardim... Ainda sentia o cheiro das cerejeiras em flor. – Akuma, meu caro... – Os braços roliços atiraram-se ao redor de seu corpo e entre a massa de cabelos louros, divisou o rosto bonachão conhecido de seu contato com Ali Al Jakai; um dos mais proeminentes donos de poços de petróleo nos Emirados Árabes. Johnatan Hart era tido como o número um na indústria de petróleo e um visionário. Além de que, sabiamente, era um dos investidores da Eden Clinic: – Como estão minhas ações, hein? – Soltou a fumaça do charuto no ar. – Criando casas de milhar, eu já verifiquei. – Novo tapinha em suas costas e o mais alto saiu de seu alcance com facilidade, colocando-se junto a sua poltrona, do lado oposto da sala. – Você é um demônio! – Ouviu às suas costas. Um meio sorriso crispou os lábios do moreno, antes que ele se sentasse, fazendo-o fitar o homem louro, malicioso. – Por isso mesmo, não se esqueça... – contrapôs em alerta, o que minimizou o sorriso no rosto do 15
  • 16. louro. – Sem mim, não haveria John Hart. Agora me diga, quem é dessa vez, Johnatan? – deixou no ar, quando se recostou na poltrona de veludo vinho. – Faz dois meses, desde que saiu daqui com a loura turbinada. – Mais ou menos isso... – assentiu o empresário enquanto tomava o lugar à frente de Akuma. – Se me recordo bem, só as unhas dela eram originais quando deixou a clínica... – Havia fechado os azuis e cruzado os dedos sob o queixo, ao apoiar os cotovelos na mesa. – Foram 10 horas de cirurgia, John... Para deixá-la atraente aos seus olhos. Azuis se abriram repentinamente nos castanhos do louro. – O que tem para mim agora? – Estou apaixonado... - Suspirou. – A morena era sua outra metade... – pausou quase num escárnio. – Disse-me exatamente isso na última reunião. – Estava cego por sua beleza – protestou o louro. Ambos se fitaram e sorriram juntos. – Sabe quantas mulheres lindas realmente existem nesse mundo, John? – indagou os azuis serpenteando pelo rosto claro do amigo. O homem deu de ombros. – Beleza é um ponto de vista – rebateu firme. – Tenho que lhe dar os parabéns por ter chegado a esta conclusão – ponderou o moreno. – No entanto, noventa e cinco por cento das mulheres do mundo conseguem ver algum tipo de imperfeição em seus corpos e rostos, mas nunca em seu caráter. É aí, meu bom John, que elas pecam! – Não está tentando me demover com alguma daquelas teorias excêntricas de: o que vale é o interior... – Ergueu as sobrancelhas. – Está? – Sendo você, eu jamais ousaria... – retrucou Akuma sob um sorriso discreto. A maioria dos homens, ele pensava, gosta de ser enganados por essas mulheres. – Diga-me o nome da moça. – Marie... – Marie? – surpreendeu-se, o moreno. Era a segunda vez, em menos de duas semanas, que ouvia aquele nome. Seu cenho se tornou impassível sem o louro se dar conta. – Isso, Marie. Marie Dupont... – Ele sorriu, os dentes extremamente brancos apesar do tabaco comprimido entre os dedos. – Marie, a aeromoça mais bela que já vi em minha vida! – Uma aeromoça? – Os azuis sorriram. – John, meu bom amigo, John... – Ele havia se erguido e dera a volta na mesa, parando atrás do louro. Suas mãos em seus ombros atarracados. Sua voz em seu ouvido: – Ela disse que lhe ama? O louro assentiu o mais depressa que pôde. – Antes ou depois de presenteá-la com um brilhante? – perguntou resignado, o moreno. – Depois, claro – enfatizou sem desespero, o empresário. – Devia parar de comprá-las... – Você não é um bom conselheiro sentimental, Akuma – retrucou John. – Não consegue arrumar uma namorada... E nos conhecemos há quanto tempo? Dez? Quinze anos? O moreno bufou, vencido. Os azuis voltados para as janelas às suas costas. A única mulher por 16
  • 17. quem se apaixonara estava em sua cabeça há muito mais tempo que qualquer um poderia supor. – Você está absolutamente certo, John – concordou com o amigo, indo até ao bar e servindo a ambos, Whisky. – Traga-a em duas semanas. – Tudo isso? – sobressaltou-se o louro. – Achei que a teria perfeita em menos de cinco dias. – Eu tenho uma viagem inadiável depois de amanhã... – Não deu muita atenção aos protestos do amigo. Seus olhos fixaram um ponto na multidão, que se acotovelava para atravessar a rua. Aquela distância muitos nem identificariam seus corpos, mas ele sabia ser uma mulher no auge dos seus vinte e quatro anos. Os cabelos levemente avermelhados, preso em um coque. As unhas de um tom café e o tailleur de um azul escuro que ostentava um pequeno broche onde se lia: Dupont, Marie. Akuma sorriu, levando o copo de cowboy aos lábios. – Nos vemos na segunda, John. – Você não tinha acabado de dizer duas semanas? – Sua paixão pela moça me contagiou. Estou inclinado a atender seu pedido o mais rápido possível, antes que algum mal o acometa. – Dirigiu-se à porta, e antes de atravessá-la, concluiu: – Não se atrase. Enquanto o louro ainda assimilava sua mudança de decisão, a secretária anotava mentalmente suas novas ordens: – Desmarque tudo que tenho para hoje, Nicole... – Sim, senhor. – E caso algo seja de extrema importância, use o celular que lhe dei. – Piscou-lhe o olho antes de deixar um leve beijo em sua bochecha e tomar o elevador. Ele não viu o rubor na face dela, como sempre. Ela não se importou que seus sentimentos fossem desconhecidos por ele, bastava-lhe os quinze anos a seu serviço; os presentes de aniversário e Natal; as rosas do dia da secretária. Ela já tinha quarenta e cinco anos, ele ainda aparentava seus trinta. ...xxx... A Ferrari F430 conversível disparou na estrada, cortando em riscos vermelhos o asfalto. Ele baixou a capota quando o cheiro de maresia atingiu-lhe os sentidos, dando-lhe a certeza que chegara ao seu destino: Le Havre, Normandia. Parou à frente da pequena fachada branca no coração residencial de Saint-Andressa. Comparado aos outros hotéis da cidade, aquele era pequeno, mas suas dependências eram invariavelmente tão requintadas como a de qualquer outro hotel cinco estrelas. O gerente, em pessoa, veio até ele. O moreno retirou os óculos escuros, os cabelos pretos fustigavam em seu rosto sob o sol poente e sua voz se antecipou a do homem: – Bon soir, Pierre... – Fechou a porta da Ferrari e lançou as chaves ao manobrista. – Parece que perdi um lindo dia de sol. – Monsieur, o esperávamos amanhã... – Fitou o homem ao seu lado, que trajava uma bermuda branca com blusa polo azul listrada, e debruçava-se sobre o pequeno porta-malas, retirando dele uma bolsa de mão branca. – Isso quer dizer que ele ainda não chegou. – Sorriu-lhe enquanto o gerente o seguia de perto ao subir as escadas do hotel. 17
  • 18. – Não senhor. – Minha suíte, Pierre – solicitou ao parar no balcão e jogar a mala por cima do ombro esquerdo enquanto espetava os cabelos com a mão livre. – Ainda está sendo arrumada... – pigarreou baixo. – Pardon... – Arrume-me qualquer quarto onde eu possa tomar um banho. – Mas senhor... Ergueu a sobrancelha em advertência. – Tente me convencer de que estamos lotados... – redarguiu ao apoiar os braços no tampo de granito róseo. – Se assim o for, tomarei banho nas suas acomodações. O gerente grunhiu baixo, digitando algo no computador. – Quarto 205 – anunciou depois de breves momentos. – Serve... – ordenou-lhe, em dedos, que lhe desse o cartão magnético. – Avise-me quando a suíte ficar pronta. Au revoir... – Sim, senhor... – escapuliu, num alívio, dos lábios do gerente. ...xxx... A hidromassagem foi ligada e o corpo submergido na espuma. Os azuis fechados incondicionalmente. Jacques só chegaria amanhã, até lá, estaria relaxado. Bastava-lhe algumas horas imerso naquelas notas de alfazema, que tudo estaria perfeito. Repassou, mentalmente os acontecimentos das duas últimas semanas enquanto era abraçado pela quentura da água. Uma ida ao inferno por um dia, não era o que ele podia chamar de divertimento, principalmente, quando há meses ele não o chamava com tanta urgência: – Akuma... – Não era um homem de sorrisos, sua voz ecoava por cada parte daquelas paredes enegrecidas e quentes... Rochedos, esfriando-os. – Como vão os negócios? – Prósperos – respondeu simplesmente. – Não me chamou aqui para isso, não é? – Não... – Espreguiçou-se na chaise castanha, deixando que o roupão preto revelasse parte de suas pernas. – Estava com saudades. – Bebeu do cálice em sua mão direita e deixou os pretos passearem pelo moreno. – Você prefere os mortais a mim... Era um escárnio e o moreno riu. – Você me fez assim... – deixou no ar enquanto se sentava na poltrona à frente do Mestre. – Entretanto, eu sempre retorno aqui, para servi-lo. – Cruzou as pernas em azuis fixos no Diabo. – Isso soa cruel, Akuma – rebateu falsamente irritado. – Devia me agradecer... – E se ergueu languidamente da chaise, desafazendo o nó da faixa que atava o roupão a si... Deixando-o escorregar ao chão vagarosamente enquanto uma jacuzzi surgia perto dali com água borbulhante, escura e quente, que faria qualquer corpo ser consumido em segundos como se imerso em lava, mas não o dele, Nunca o dele. Sorriu para o os azuis, nu. – Eu o deixei fazer o que deseja... – Afundou na escuridão da água. – Eventualmente, deveria prestar contas de como as coisas andam lá em cima. – Assoprou as bolhas, que se formavam na superfície da água, no ar. – Já que eu não posso ir ao mundo humano, como gostaria – amuou-se. O dedo do moreno serpenteou pelos lábios antes de devolver-lhe o gracejo: 18
  • 19. – Como se isso o impedisse de ir e vir quando bem entender... – continuou, observando-o da poltrona. – Por que me chamou? – Tem assuntos lá em cima para resolver? – Muitos e inadiáveis. – Não sei por que o aturo? – Suspirou. – Porque sou indispensável aos seus caprichos – retrucou, pondo-se de pé. – Mantenho sempre as chamas da vaidade, gula, luxúria, cobiça acesas entre os humanos... De uma forma, que eu qualificaria legal perante Deus. – Pare... Você é péssimo, Akuma. – Riu-se o demônio. – Mas gosto do jeito como sua mente trabalha... Sordidamente. – Se só queria me elogiar... – Deu-lhe às costas. – Poderia ter mandado Ezequiel com uma nota... – Traga-me o roupão – exigiu sério, pela primeira vez naquela sala, interrompendo os passos do moreno. Um gesto único, em que Akuma se abaixou para pegar o roupão felpudo e negro ao lado de seus pés. Os passos que ele teve que retornar até a jacuzzi. – Abra-o – nova ordem obedecida pelo moreno. – Você é sempre tão distante... – protestou enquanto se encolhia entre os braços dele e vestia o roupão colado ao corpo do demônio. Os azuis que estavam presos ao espaço escuro à volta deles, sem fitar-lhe. A boca do Diabo que crispou contrafeita. – Está bem, vamos aos negócios. – Puxou o roupão dos dedos do demônio enquanto saía da jacuzzi e voltava à chaise. – Como queira... – Sorriu ao segui-lo. Poderia se valer de sua supremacia com outros, jamais com ele. Não era tão idiota para ser manipulado contra sua vontade. – Há um mês eu visitei o Ningekai9... – Os pretos nos azuis, fechando o roupão displicentemente. Tinha perdido aquele jogo. – E não foi me ver? – desdenhou, vendo-o se ajeitar sobre a chaise. – Não brinque comigo... – alertou-o severamente. O demônio apenas manteve uma linha fina de sorriso nos lábios enquanto ele completava: – Eu gerei uma criança, Akuma. O semblante impassível do moreno sobre ele, sem lhe adivinhar os pensamentos. – Não vai me recriminar? – Pediu-me que não brincasse – retrucou prontamente. – Sabe quanto me custou fazer isso? – Pretos cintilaram sobre os azuis. – Alguns segundos? Azuis inalterados com o queixo apoiado sobre os dedos longos, em cotovelos contra os braços da poltrona, analisando-o. Os dois homens que se mediram friamente, até que a gargalhada de ambos se chocassem na escuridão. – Demorei mais dessa vez – ponderou, voltando a beber o líquido da taça que deixara inacabada. 9 Mundo dos Humanos para os japoneses. 19
  • 20. – Então, deveria ser bela... – Era perfeita – contrapôs seco. – A mulher certa para o tipo de acordo que propus.... – Enganou-a. – Comprei-a, seria mais certo dizer. – Com o quê? – Uma vida de conforto. – Sorriu na direção de Akuma. – Mortais são tão fáceis de enganar... Eu lhe darei um excelente marido. – Qual o nome dela? – cortou-o. – Marie... – Deve haver poucas Maries na França – ironizou o demônio. – Ruiva e que irá encontrá-lo em um mês na igreja de La Madeleine, sim... Você me subestima, Akuma. – Não tanto quanto gostaria, devo corrigi-lo. – Vou deixá-lo preso aqui, aos meus pés... – Fixou os pretos maliciosos no moreno, passeando a língua sobre a borda da taça, sedutoramente. Sem desviar os azuis, ele se aproximou do mestre, mergulhando o indicador no resto do líquido da taça e provando-o. Os pretos ainda sobre si, aguardando em lábios entreabertos alguma oferta. O que seria uma grata surpresa, o Diabo admitia para si mesmo. – Iria se cansar de mim tão rápido quanto do sangue nessa taça, se me tivesse aos seus pés... Majestade. – Estalou a língua. – Mande-o trocar... Já está azedo – segredou entre os rostos de ambos, próximos. – Faria o mesmo a você... – sentenciou o Diabo quando ele já se distanciava definitivamente da chaise. O moreno sorriu alto. – Se pudesse – o Diabo completou. – Fique de olho nela para mim, e prometo que da próxima vez que for à superfície, visitarei seu apartamento. – Perdê-la-ei de vista... – Isso é um rompimento de contrato. – Apontou o dedo para imensidão acima de suas cabeças. – E ele irá lhe punir novamente e mandar aquela almazinha suicida para longe de você... Os azuis suspensos na lembrança que tomou sua mente por segundos. – Está vendo como o conheço? Ainda pensa nela... – Eu moro numa mansão – disse baixo, já se tornando uma sombra. As lembranças afastadas dali. – O que disse? – o Diabo interpelou-o, interrompendo o fluxo de seus próprios pensamentos. – Que moro numa mansão... – era só a voz do moreno que o cercava. – Não num apartamento... Você, sim, me subestima. O senhor do Makai10 encostou seus cabelos pretos, lisos e compridos contra as almofadas de cetim vermelho, sibilando enquanto sorvia o sangue de doze condenados. Eram sempre doze condenados por vez, pelos doze mandamentos da boa bebida. 10 Seria o inferno para os japoneses. 20
  • 21. – Sei que ainda irá me trair, Akuma... – Sorriu. – Mas não sei quando, e no momento, ainda é o mais fiel de meus anjos, e o mais indispensável. Será um desperdício, quando sua hora chegar e seu sangue for derramado dentro desta taça... – Despejou o último fio vermelho sobre sua garganta; sentindo-o, deliciado, escorrer por sua pele morena e opaca. – Deve ser doce, encorpado... – Escorregou os dedos pela fenda do roupão, na altura do seu quadril. – Ah, maldição... – praguejou em bom tom, logo depois, retirando-os dali. – Preciso de Ezequiel. Uma porta foi aberta ao longe, sem que ele percebesse, e minutos depois um par de olhos chocolates estavam sobre si. A boca comprimida sob os dedos, impedindo-lhe de gritar quando entrou na peça de banho e o encontrou. – Monsieur, eu... – Ela desviou o olhar dos azuis dele, que haviam se aberto e a fitavam atentamente de dentro da hidromassagem. – Não sabia que o quarto estava ocupado, pardon moi. A moça de cabelos caramelos e curtos deslizou de volta para a porta do banheiro enquanto prosseguia com cuidado: – Eu deveria arrumá-lo para o próximo hóspede... Então... – gaguejava. – Passe-me a toalha, por favor... – pediu em sua voz doce. – O quê? – indagou, impedindo o fluxo de suas palavras. – A toalha – ele solicitou uma vez mais. De costa para a hidromassagem, ela fitou a toalha ao seu lado. Felpuda e branca com o emblema do hotel. Um A e R sobrepostos em linha dourada. Hesitava ainda presa ao receio do homem nu no mesmo recinto que ela. – Estou congelando, caso não se importe, senhorita... – Desenhou a silhueta dela, sob o uniforme salmão, com seus azuis curiosos. Busto 90, cintura 82, quadril 98... Anotou mentalmente, era instintivo para olhos treinados como o dele. Mas, aqueles cabelos... A cor deles. Perdeu-se em recordações. – Carine – ela completou enquanto fechava os dedos sobre a toalha e caminhava, de costas, até a hidro. – Sou a camareira, Monsieur. Ele voltava a si, nas palavras dela. – Não sabia que empregava mulheres tão bonitas – murmurou ao encontro de seu pescoço. Ela arrepiou. – Como disse? – contrapôs, trêmula, pelo sopro quente e o cheiro de alfazema que exalava dele. – Disse que você é bonita – repetiu paciente, deixando a banheira e parando atrás dela. – Antes... – Ela se virou, encarando-o. Não sabia que estavam tão perto. Os verdes alargados e ele sorriu. – Que sou seu patrão, é isso? – sugeriu ao passar a mão nos cabelos úmidos, fazendo escorrer gotas d'água sobre seu peito definido. Ela notou sem fala, acompanhando os filetes na pele clara até borda da toalha, enrolada em sua cintura. – Senhorita? – chamou-a, retirando-a do transe momentâneo. – Precisa de mais alguma coisa? – falou com certo esforço, obrigando-se a se recompor e fitar o lado oposto ao que ele ocupava. – Minha suíte – soprou contra sua bochecha, vendo-a ser preenchida por um leve rubor. 21
  • 22. – Certamente, Monsieur. – Ela se apressou em se afastar. – Você não é daqui, não é? – Deteve-a pelo pulso. Aproximando-os de novo. – Não, minha mãe é francesa, mas nasci em Kioto... – Os azuis nos verdes dela, e os dedos dele que escorregaram até sua mão, aquecendo-a estranhamente. Kioto, era esse o lugar onde se viram a primeira vez. Num carinho sobre sua pele, fê-la prosseguir: – Meu pai morreu há dois anos e nós resolvemos voltar para sua cidade natal. – Por que não está com ela, em casa? – perguntou preocupado. Não conseguia disfarçar sua surpresa ao tocá-la. – Preciso do emprego para os remédios... – ela balbuciou, sem notar as lágrimas em seus olhos. Sem saber por que chorava na frente de um estranho como ele. – Vá para casa – retrucou seco, retirando sua mão da dela. Há muitos anos não sentia aquele calor, aquela quentura de pele. – Está me despedindo? – tremeu involuntariamente. – Não pode fazer isso, nunca deixei minha vida pessoal interferir no meu trabalho! – Escute... – Tomou os ombros dela entre os dedos. – Vá para casa e só volte quando a pneumonia dela melhorar. Os verdes incrédulos nos azuis dele. Ele não devia ter dito nada, era errado. – Como sabe sobre isso? – Eu sei tudo sobre quem trabalha para mim – ponderou, tentando esquecer a influência dela sobre seus sentidos. Seria possível? – Disse-me antes, que não sabia que empregava belas mulheres... – Menti. – Sorriu-lhe sem vontade. – Queria testá-la. – Entendo... – ela desanimou. – Não vou despedi-la, fique tranquila – sentenciou, por fim, fitando seus traços uma vez mais. – Agora vá, Carine. Sua mãe precisa de você. – Merci, Monsieur... – ela não sabia como agradecer e saiu do banheiro. Ele deixou os azuis acompanhá-la até a porta, e depois apoiou os braços contra a borda da pia, encarando a si mesmo no espelho sobre ela. A porta que se fechou distante, anunciando que ela partira. Por que tinha a impressão de que a conhecia? Aqueles cabelos caramelos... Só o havia visto uma vez em toda sua existência. Seria esse, o sinal que esperara por séculos? – Hanya... Seu hálito quente contra o espelho, esfumaçando-o. ...xxx... – Parcial de 15/30... – declarou ao erguer a sobrancelha e encará-lo maliciosa. – E se Jacques fizer esse ponto, você está perdido. A mão dele que se fechou ao redor da bola de tênis, quicando-a. – Cale a boca, Meline... – exigiu num sorriso mal disfarçado. – Meu marido é incapaz de perder uma partida, Akuma. – Esperou a bola do moreno ser lançada, 22
  • 23. enviesada, pela quadra. O homem de cabelos castanhos bem aparados, porte atlético e bronzeado, metido num uniforme impecavelmente branco, esticou-se todo para apenas ensaiar uma rebatida que não ocorreu. A bola passou a sua esquerda, rasgando o ar e aterrissando 5mm dentro da faixa branca. – Ui... – Ela fez uma careta. – Anote, benzinho, match point para o papai aqui. – Piscou-lhe o olho. – Ei, Akuma... – Jacques pôs as mãos sobre os olhos, interceptando o sol e alertando-o: – Não flerte com minha esposa. – É, benzinho... – disse a loura às suas costas. – Para você, é Mademoiselle Meline Renée. Casada e dona de uma barriga de sete meses bem redonda. Ela se ergueu da cadeira ao canto da quadra, mostrando-lhe o futuro herdeiro dos Renée. – Se disser mais uma gracinha... – Passeou os dedos pelos cabelos escuros. – Mando retirá-la a força daqui. – Não ousaria. – Estreitou seus verdes sobre ele. – Experimente – alfinetou-a. – Hei... – chamou-os, Jacques, do outro lado da quadra, impaciente. – Detesto interromper a reunião de família, mas tenho um negócio para fechar daqui há duas horas, em Londres. – 15/45 – ela determinou contrafeita, emburrada na cadeira. – Boa menina... – ironizou o moreno. – Jacques, péssimas notícias... Ela vai querer caramelos e chocolates ao invés de proteína de soja. – Mande essa bola e acabe com isso – protestou o amigo, colocando-se em posição de defesa a sua frente. – Não entregue os pontos, meu anjo – ela gritou para o marido, acenando-lhe um beijo. – Ele é meu maior acionista, se eu perder talvez consiga comprar mais caramelos... Os três sorriram e a disputa recomeçou, ao menos até que Akuma ganhasse. – Boa partida – disse-lhe o amigo enquanto tomavam água. – Há tempos não o via jogar tão bem, Akuma. – Aposto que estão falando mal de mim – ponderou, assim que colocou a barriga proeminente entre os dois homens. – Totalmente. – Envolveu-lhe o pescoço com a toalha molhada de suor. – Tire isso de cima de mim... – retrucou, desviando do abraço do moreno e refugiando-se nos braços do marido. – Fede! – Entortou o nariz. – Quando éramos namorados, não se importava... – alfinetou-a, levando a toalha aos cabelos. – Não, eu era cega – retrucou num sorriso, entrelaçando os dedos aos de Jacques. – Creio, Meline, que Akuma está de amor novo – foi a vez do amigo ironizar ao pé do ouvido da esposa. – Mesmo? – Os olhos dela brilharam nos do moreno. – Isso é coisa da cabeça de seu marido – protestou, desviando os azuis deles e dando-lhes às costas. – Pura especulação. – Estava achando que tinha me livrado de ser a ex-namorada comprometida como desafeto – desanimou-se. – Sem chances... – Voltou-lhes o rosto, sorrindo. – Sou amante de uma causa perdida. 23
  • 24. – Mas estou grávida de outro... – redarguiu cínica. – E serão gêmeos – completou o marido enquanto seguiam Akuma a certa distância. Ela ergueu a sobrancelha preocupada, e sussurrou a Jacques: – Gêmeos? O marido abraçou-a mais forte e se beijaram de leve. – Uma pena que se recusou a saber o sexo do bebê... – Será uma menina – cortou-os o moreno, ao longe, e o celular tocou. Ele parou e atendeu: – Pronto... – O azul se perdeu escuro no horizonte. – Tem certeza? – Uma pausa breve e o casal que se entreolhou atônito. – Quero meu jato pronto em uma hora... É tudo. O aparelho foi fechado e devolvido á sacola de couro branca. – Problemas? – Algo numa das minas de diamante na África do Sul... – Sorriu-lhes. – Nada que eu não consiga resolver. – Ainda não tira férias, não é? – A loura sorriu-lhe. – Não – ele consentiu. – Foi por isso que não demos certo. Estalou um beijo em sua bochecha e abraçou o amigo. – É por isso que sou o padrinho de sua filha. – Piscou-lhe o olho. – Cuidem de tudo na minha ausência. – Ele não muda... – sugeriu Jacques, assentindo com a cabeça na direção do moreno, que se afastou rapidamente. – Mas ainda acho que tem mulher envolvida no fato dele ganhar essa partida. – Você também não muda... – Mas tiro férias. – Depositou um beijo apaixonado nos lábios dela. ...xxx... – Nicole? – ele indagou ao entrar na pista do aeroporto, num pequeno carro que o levaria até o jato. A secretária respondeu algo do outro lado da linha e Akuma completou: – Descubra o endereço de uma moça que trabalha para mim... Ela é camareira do Akahana Resort's, em Le Havre, e seu primeiro nome é Carine. Uma pausa e ele sorriu. O terno creme contrastando com a pele queimada pelo sol daquela manhã na quadra de tênis. – Continue anotando... – Novo sorriso e o carro parou em frente ao tapete vermelho, estendido até as escadas do Dassault Falcon azul. – Cabelos curtos caramelos, olhos verdes, pele clara... Estatura mediana. – Bem vindo, Monsieur Akuma – a comissária o recebeu com um sorriso elegante. – Está tudo pronto para partimos. Ele assentiu e prosseguiu a ligação: – Quero uma braçada de flores do campo para o endereço que você conseguir, e no nome da mãe dela... – Ele fechou os azuis enquanto tomava um dos assentos de couro castanho e um martini lhe 24
  • 25. era servido. – Mande em meu nome, com estimas de boa convalescença. O jato ainda continuava parado, aguardando a ordem para decolar. – O que seria de mim sem você, Nicole? – Ele sorriu ao ouvir a resposta e finalizar a ligação: – Au revoir. O celular foi largado sobre o tampo de carvalho a sua frente, e os olhos azuis da moça, no uniforme cinza escuro, fitou-o em espera. – Pode decolar. Ela sumiu por entre as cortinas vermelhas e a voz do comandante foi ouvida: – A viagem será agradável, senhor. Não há motivos para preocupações. Ele recostou na poltrona e mentalmente sugeriu: Eu sei, mas ainda assim, prefiro meus pés no chão. 25