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1
O Velório I: Sobre a Percepção da Realidade
JOÃO VICTOR SOARES SANTOS
A sala era envolvida por uma carregada atmosfera enquanto o corpo de Simão era
velado. Algumas pessoas – como de costume – não aceitavam o fato de que Simão havia
partido para uma melhor, enquanto outros pareciam um pouco mais conformados e volta e
meia ouviam-se algumas risadas baixinhas na porta da casa que, a partir daquele dia,
nunca mais seria a mesma.
Alguns amigos da família apareceram aos poucos para o velório, enquanto Jeane,
mãe de Simão, desfalecia em lágrimas, acariciando os cabelos de seu filho e implorando
para que ele voltasse. Uma cena que poucos conseguiram ver sem lacrimejar. Enquanto
Jeane chorava, seu marido estava encostado na parede da cozinha, sem qualquer
companhia, fitando a geladeira, ele queria mais uma.
O corpo havia chegado a casa por volta das 19 horas, agora o relógio marcara em
torno de 2:45. Jeane ainda não havia secado suas lágrimas ou sequer saído do lugar,
continuava acariciando os cabelos de seu filho sem aceitar que era a última vez que ela
estivera fazendo isso. Algumas pessoas tentavam consolar Jeane, que ignorava qualquer
palavra de conforto, afinal, a morte de seu filho não foi das mais compreensivas, diziam as
más línguas que ele havia gritado por horas antes de falecer, chegando a implorar para
que alguém o matasse. O quarto de Simão permanecera intacto desde que ele se mudou
da cidade para se tratar em um médico especialista. A cidade onde ele morava não
oferecia uma estrutura adequada para as necessidades que ele possuía, mas nem uma
metrópole conseguiu resolver o problema de Simão. Agora ele estava no caixão esperando
para ser enterrado, onde quer que ele estivesse.
Jeane parou de chorar por alguns minutos, aproveitando o tempo, uma amiga de
longa data da família, que inclusive havia estudado com Jeane o ensino médio se
aproximou lentamente, com feições de quem não fazia a menor ideia do que estava
fazendo.
– Você não quer descansar um pouco? – disse Simone, calma e lentamente.
– Eu quero morrer. – a voz de Jeane mal passava por suas pregas vocais, ela
estava definitivamente exausta.
– Não diga isso. Há pessoas aqui que precisam de você.
– Pois eu não preciso de mais ninguém.
Obviamente, Jeane permanecia inconsolável, sem rumo.
2
– Descanse um pouco, minha amiga. Tome um banho e durma por algumas horas,
ainda estaremos aqui quando você voltar.
Jeane queria recusar, mas estava suficientemente cansada para sequer conseguir
declinar o pedido com a cabeça, então se levantou lentamente e uma leve tontura a fez
cambalear para o lado, fazendo com que se debruçasse nos braços de sua amiga,
aproveitou o abraço que ainda não havia recebido de ninguém para secar as lágrimas que
ainda lhe faltavam extrair.
– Eu não vou conseguir viver sem meu filho...
– Vai sim, Jeane. Estamos com você nessa. Agora descanse um pouco.
Jeane se deslocou até a cozinha para tomar um pouco d’água e se deparou com
seu marido encostado na parede, ainda sem tirar os olhos da geladeira. Não demorou para
que Jeane percebesse no que José estava pensando.
– Nem pense nisso. – disse Jeane.
– Ele me pediu para fazer. – os olhos de José estavam à beira de desmoronar em
lágrimas.
– Não quero saber o que ele lhe pediu, não vou aceitar que você arrisque a vida de
mais ninguém por causa dessa merda.
– Você não tem que decidir nada por mim.
– Tudo bem, faça como quiser, mate mais algumas pessoas por diversão e depois
fique bêbado no velório delas.
Jeane virou as costas para se dirigir ao quarto, José a segurou pelo braço e a virou,
encarando-a, Jeane, por um instante, pensou estar olhando para Simão, – os dois eram
muito parecidos – mas logo após olhar nos olhos de José, caiu em si. Nunca havia visto
tanto remorso em apenas um olhar durante toda sua vida. Agora as lágrimas arrastavam-
se flamejantes sobre a face de José e ele não as quisera controlar. Não mais.
– Você acha que eu gosto disso? – José tinha agora estampado em sua face todos
os seus pecados remoídos sobre sua consciência que agora pesava mais do que ele
poderia aguentar.
– Não sei, e não me importo.
– Não adianta mais chorar por isso, ele não vai voltar!
No fundo, Jeane sabia disso, mas ainda ninguém havia lhe dito. Agora era mesmo
uma realidade, Simão nunca mais voltaria, e ela não estava disposta a aceitar esse fato.
– Me solta, José! Quero dormir um pouco...
3
– Tenha cuidado Jeane, você nunca sabe quando pode acordar de um sono
profundo.
Jeane não deu a mínima importância para o que José lhe falou, na verdade, sequer
fez sentido. Seus passos batiam no assoalho, lentos e deprimentes, ao passar novamente
pela sala onde Simão estava sendo velado, olhou em um relance um jornal que parecia
velho e datava o dia 31/12/96. Jeane então, sem pensar qualquer coisa, continuou
andando e passou a sala onde ocorria o velório como se estivesse vazia, não olhou para
ninguém, apenas passou, como um fantasma de carne e osso.
Abriu a porta de seu quarto, que agora parecia um templo de repouso, Jeane se
encontrara tão cansada naquele dia que mal conseguia andar em passos lentos sem
quase desabar no chão. Aos poucos, conseguia se aproximar de sua cama, seus olhos já
estavam fechando-se sozinhos, o sono parecia proporcionar um efeito retardante e a visão
de Jeane começara a confundir realidade com sonho. Deitou-se. Encostou a cabeça no
travesseiro e um segundo depois de fechar os olhos já caíra em sono profundo.
Um sono tão profundo capaz de separar as memórias de Jeane e colidir o que
restava de sua sanidade com o início de uma loucura.
O sol bateu levemente em seu rosto. Os pássaros cantavam suas melodias que
naquele dia pareciam especialmente melancólicas. As árvores sopravam suas folhas de
outono que formavam uma paisagem cinematográfica de manhã perfeita e céu azul.
Jeane acordou. Seus olhos estavam secos, mas ainda estavam inchados e escuros.
Alguns segundos depois da inconsciência, Jeane lembrou-se de onde estava, e o que
havia acabado de acontecer. Rapidamente levantou-se da cama e já preparara os olhos
para continuar a chorar a morte de seu filho, mas ao chegar à sala e vê-la vazia, pensou
ainda estar sonhando. Aquela cena que acabara de ver se encaixaria em uma manhã
qualquer, mas não naquela manhã. Dirigiu-se novamente ao quarto para ver se estava
morta ou algo parecido, mas a única coisa que havia perdido era que seu marido estava
deitado ao seu lado todo o tempo em que ela havia dormido. “Estou sonhando, só posso
estar sonhando.” Jeane não aceitava a manhã absolutamente cotidiana na qual estava
vivendo naquele instante. Fitou José por alguns segundos, desmaiado na cama em sono
pesado. Decidiu não acordá-lo.
Tentando recapitular a noite anterior, esforçava-se para lembrar se aquele sol de
outono seria comum, tentou lembrar se no dia anterior ela vira folhas caindo pelo chão,
depois refez cada passo de seu dia para saber se havia chovido, mas de nada se lembrou.
Porém, Jeane tinha certeza de que alguma coisa não estava certa, além do fato de que
4
sua sala estava completamente vazia ao passo em que um corpo deveria estar sendo
velado ali. Arrastou os olhos pela parede da sala procurando o relógio japonês que ela
havia ganhado de casamento, os ponteiros marcavam exatas 7:12 da manhã, em um
relance insignificante de memória constatou que havia dormido aproximadamente 4 horas
contando uns 15 minutos que se passaram após ela olhar no relógio pela última vez
durante o velório de seu filho.
Uma lembrança nítida explodiu na memória de Jeane. Na noite anterior ela havia
visto um jornal que datava o mês de dezembro, logo, não poderia ser outono. Agora ela
tinha certeza, estava sonhando. Se deu alguns beliscos para acordar, mas doeu mais do
que ela imaginara, e não acordou, nem sequer mudou de lugar ou ambiente. Tudo estava
muito real para ser um sonho, e Jeane começara a se preocupar com aquilo.
A única forma de constatar o que estava acontecendo seria olhar outro jornal, um
atual, daquela manhã. Sem pensar muito nas roupas que estava vestindo ou na situação
em que se encontrava seu cabelo, Jeane correu para fora para apanhar o jornal do dia, ao
correr pelo jardim até o portão, ela se lembrou de que poderia estar parecendo um
fantasma de roupas pretas e sombra borrada, apanhou o jornal do chão da calçada
rapidamente e voltou em passos rápidos para casa sem checar a data do jornal. Correu
para o espelho e teve mais uma surpresa, seu cabelo estava solto e liso, e ela vestia uma
camisola de dormir que até ontem ela não tinha em seu guarda-roupa. Por um momento
considerou a possibilidade de estar enlouquecendo, mas depois a descartou, pensando ser
ridículo que alguma coisa desse tipo estivesse acontecendo sem que ela ao menos
percebesse algo de estranho – exceto a manhã de outono em pleno verão.
Lembrou-se do jornal. E por um instante desejou não ter se lembrado. A data do
jornal era do dia 20/05/99. Agora estar louca não era algo tão descartável quanto havia
pensado há alguns segundos, a menos que ela tivesse dormido por três anos sem se dar
conta. Pelo menos a manhã de outono já estava explicada. Jeane não viu outra opção se
não acordar seu marido, mas um pressentimento ruim a tomou por completo por alguns
segundos, depois se foi como se nunca tivesse existido. Uma estranha calmaria se
estendia pelos corredores e cômodos da grande casa, Jeane até se esquecera por breves
momentos de que seu filho havia morrido um dia antes.
– Acorde! José! Acorde! – disse Jeane, estapeando levemente o braço de José para
que ele acordasse.
5
Aos poucos José ia despertando de um sono que parecia ter sido absolutamente
restaurador. Enquanto Jeane desesperava-se aos poucos por aparentemente estar no
lugar, dia e ano errado.
– O que você quer? – disse José por entre os lábios grudentos de saliva matinal.
– Tem alguma coisa errada por aqui! Eu não estou entendendo nada!
– O que é que está errado, Jeane?
– Eu não sei! Preciso que você acorde e veja com seus próprios olhos!
Já quase completamente despertado, José esfregou os olhos grudados de ramela,
piscou duro por duas vezes e arregalou-os olhando para o rosto de Jeane. Parecia estar
em outra órbita procurando por alguma coisa estranha que fosse motivo suficiente para
que Jeane o acordasse daquela maneira. Levantou-se e sentou na cama.
– O que é que está errado? Cadê?
– Vá até a sala e veja!
O propósito de Jeane era que José se assustasse com a sala vazia, mas,
previsivelmente, não foi o que aconteceu. José voltou irritado.
– O que é que tem na sala, mulher? Está como sempre foi!
– Como assim? Ontem mesmo velamos nosso filho e cadê todo mundo?
José arregalou os olhos, mais do que faz quando acorda.
– De que diabos você está falando? – Seu tom era o clássico tom que se usa
quando estamos reagindo a um absurdo que acabamos de ouvir.
A expressão de Jeane enrijeceu e permaneceu imóvel por breves – porém longos –
cinco segundos. José se aproximou lentamente, sentou ao lado de sua mulher na cama e
a abraçou, agora falara como se estivesse a consolando.
– Não se preocupe meu amor, você vai superar isso, eu estou com você.
Jeane estava há um passo de aceitar sua loucura e se jogar de um penhasco.
– Como isso pode estar acontecendo? Eu não me lembro de nada! – Jeane agora
tentava entender aos poucos o motivo de sua insanidade controlada.
– Mas o que é que está acontecendo? Não estou entendendo.
– O que fizemos ontem? Eu não me lembro, pra mim ontem foi o dia em que Simão
morreu. Meus olhos ainda estão inchados!
José agora olhava para Jeane como se entendesse o que ela estava passando.
– Jeane. Você chorou dormindo esta noite.
– O que? – disse Jeane, surpresa por ter confundido realidade com sonho, ou vice-
versa.
6
– Nosso filho morreu há anos, querida. Você deve ter sonhado com isso.
Ao primeiro instante, a última coisa que Jeane faria naquele momento era aceitar o
que José lhe dizia, e obviamente não foi o que ela fez.
– Não! – falou com volume de voz mais alto que o de costume. – Eu não sonhei! Eu
só posso estar sonhando agora! Eu me lembro muito bem que aquilo não foi um sonho!
– Querida, eu sinto muito.
Em um impulso, Jeane levantou da cama ao mesmo tempo em que lágrimas
começaram a cair de seus olhos, virou-se já de pé para José e agora gritava
desesperadamente.
– Não! Você não sente muito! Por que é que está mentindo pra mim? Que tipo de
brincadeira é essa?
– Acalme-se Jeane.
Jeane seguiu para o lado oposto do conselho de José e agora estava mais histérica
do que nunca.
– Não me mande me acalmar! Não vou me acalmar! Eu quero ver meu filho agora!
– Pare com isso Jeane, nosso filho já se foi! Ele não vai mais voltar!
José sentiu na alma a bofetada que levou no rosto, como se Jeane estivesse
cansada de ouvir aquela frase.
– Não me diga isso! Nunca mais repita isso! Estou cansada de você ficar me
dizendo coisas que eu já sei! – Jeane se retirou do quarto em meio a passos rápidos e
lágrimas de dor. Os olhos de José refletiam um cansaço de repetição. José levantou-se
vagarosamente e discou um número no telefone, que ficava em cima do criado mudo, ao
lado da cama.
– Alô?... O Rodrigo está?... Obrigado. – José aguardou na linha. Seus pés batiam no
chão em ritmo acelerado de desespero. – Alô? Rodrigo?... Tudo péssimo, Jeane está
tendo outra recaída... Será que vai funcionar?... Tudo bem, vou fazer. Tchau.
José desligou o telefone e dirigiu-se até a sala rapidamente para encontrar Jeane.
Levou um susto ao vê-la portando uma faca de açougueiro em mãos, aproximando-a de
seu pescoço. Gritou em um impulso de desespero:
– Não faça isso!
Jeane olhou para trás e, em poucas frações de segundo, José correu ao seu
encontro e tirou a faca de suas mãos. Jeane ajoelhou-se e chorou.
– O que está acontecendo comigo, José?
– Se acalme Jeane. Vou leva-la a um lugar que vai te fazer melhorar.
7
– Que lugar é esse? Um hospício?
– Não, fique tranquila. Iremos voltar pra casa juntos, ainda hoje.
José estendeu a mão para Jeane, que a pegou e levantou-se do chão. Os dois
caminharam abraçados, mais uma vez, sendo protegidos pelo sol, rumo ao cemitério.

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  • 1. 1 O Velório I: Sobre a Percepção da Realidade JOÃO VICTOR SOARES SANTOS A sala era envolvida por uma carregada atmosfera enquanto o corpo de Simão era velado. Algumas pessoas – como de costume – não aceitavam o fato de que Simão havia partido para uma melhor, enquanto outros pareciam um pouco mais conformados e volta e meia ouviam-se algumas risadas baixinhas na porta da casa que, a partir daquele dia, nunca mais seria a mesma. Alguns amigos da família apareceram aos poucos para o velório, enquanto Jeane, mãe de Simão, desfalecia em lágrimas, acariciando os cabelos de seu filho e implorando para que ele voltasse. Uma cena que poucos conseguiram ver sem lacrimejar. Enquanto Jeane chorava, seu marido estava encostado na parede da cozinha, sem qualquer companhia, fitando a geladeira, ele queria mais uma. O corpo havia chegado a casa por volta das 19 horas, agora o relógio marcara em torno de 2:45. Jeane ainda não havia secado suas lágrimas ou sequer saído do lugar, continuava acariciando os cabelos de seu filho sem aceitar que era a última vez que ela estivera fazendo isso. Algumas pessoas tentavam consolar Jeane, que ignorava qualquer palavra de conforto, afinal, a morte de seu filho não foi das mais compreensivas, diziam as más línguas que ele havia gritado por horas antes de falecer, chegando a implorar para que alguém o matasse. O quarto de Simão permanecera intacto desde que ele se mudou da cidade para se tratar em um médico especialista. A cidade onde ele morava não oferecia uma estrutura adequada para as necessidades que ele possuía, mas nem uma metrópole conseguiu resolver o problema de Simão. Agora ele estava no caixão esperando para ser enterrado, onde quer que ele estivesse. Jeane parou de chorar por alguns minutos, aproveitando o tempo, uma amiga de longa data da família, que inclusive havia estudado com Jeane o ensino médio se aproximou lentamente, com feições de quem não fazia a menor ideia do que estava fazendo. – Você não quer descansar um pouco? – disse Simone, calma e lentamente. – Eu quero morrer. – a voz de Jeane mal passava por suas pregas vocais, ela estava definitivamente exausta. – Não diga isso. Há pessoas aqui que precisam de você. – Pois eu não preciso de mais ninguém. Obviamente, Jeane permanecia inconsolável, sem rumo.
  • 2. 2 – Descanse um pouco, minha amiga. Tome um banho e durma por algumas horas, ainda estaremos aqui quando você voltar. Jeane queria recusar, mas estava suficientemente cansada para sequer conseguir declinar o pedido com a cabeça, então se levantou lentamente e uma leve tontura a fez cambalear para o lado, fazendo com que se debruçasse nos braços de sua amiga, aproveitou o abraço que ainda não havia recebido de ninguém para secar as lágrimas que ainda lhe faltavam extrair. – Eu não vou conseguir viver sem meu filho... – Vai sim, Jeane. Estamos com você nessa. Agora descanse um pouco. Jeane se deslocou até a cozinha para tomar um pouco d’água e se deparou com seu marido encostado na parede, ainda sem tirar os olhos da geladeira. Não demorou para que Jeane percebesse no que José estava pensando. – Nem pense nisso. – disse Jeane. – Ele me pediu para fazer. – os olhos de José estavam à beira de desmoronar em lágrimas. – Não quero saber o que ele lhe pediu, não vou aceitar que você arrisque a vida de mais ninguém por causa dessa merda. – Você não tem que decidir nada por mim. – Tudo bem, faça como quiser, mate mais algumas pessoas por diversão e depois fique bêbado no velório delas. Jeane virou as costas para se dirigir ao quarto, José a segurou pelo braço e a virou, encarando-a, Jeane, por um instante, pensou estar olhando para Simão, – os dois eram muito parecidos – mas logo após olhar nos olhos de José, caiu em si. Nunca havia visto tanto remorso em apenas um olhar durante toda sua vida. Agora as lágrimas arrastavam- se flamejantes sobre a face de José e ele não as quisera controlar. Não mais. – Você acha que eu gosto disso? – José tinha agora estampado em sua face todos os seus pecados remoídos sobre sua consciência que agora pesava mais do que ele poderia aguentar. – Não sei, e não me importo. – Não adianta mais chorar por isso, ele não vai voltar! No fundo, Jeane sabia disso, mas ainda ninguém havia lhe dito. Agora era mesmo uma realidade, Simão nunca mais voltaria, e ela não estava disposta a aceitar esse fato. – Me solta, José! Quero dormir um pouco...
  • 3. 3 – Tenha cuidado Jeane, você nunca sabe quando pode acordar de um sono profundo. Jeane não deu a mínima importância para o que José lhe falou, na verdade, sequer fez sentido. Seus passos batiam no assoalho, lentos e deprimentes, ao passar novamente pela sala onde Simão estava sendo velado, olhou em um relance um jornal que parecia velho e datava o dia 31/12/96. Jeane então, sem pensar qualquer coisa, continuou andando e passou a sala onde ocorria o velório como se estivesse vazia, não olhou para ninguém, apenas passou, como um fantasma de carne e osso. Abriu a porta de seu quarto, que agora parecia um templo de repouso, Jeane se encontrara tão cansada naquele dia que mal conseguia andar em passos lentos sem quase desabar no chão. Aos poucos, conseguia se aproximar de sua cama, seus olhos já estavam fechando-se sozinhos, o sono parecia proporcionar um efeito retardante e a visão de Jeane começara a confundir realidade com sonho. Deitou-se. Encostou a cabeça no travesseiro e um segundo depois de fechar os olhos já caíra em sono profundo. Um sono tão profundo capaz de separar as memórias de Jeane e colidir o que restava de sua sanidade com o início de uma loucura. O sol bateu levemente em seu rosto. Os pássaros cantavam suas melodias que naquele dia pareciam especialmente melancólicas. As árvores sopravam suas folhas de outono que formavam uma paisagem cinematográfica de manhã perfeita e céu azul. Jeane acordou. Seus olhos estavam secos, mas ainda estavam inchados e escuros. Alguns segundos depois da inconsciência, Jeane lembrou-se de onde estava, e o que havia acabado de acontecer. Rapidamente levantou-se da cama e já preparara os olhos para continuar a chorar a morte de seu filho, mas ao chegar à sala e vê-la vazia, pensou ainda estar sonhando. Aquela cena que acabara de ver se encaixaria em uma manhã qualquer, mas não naquela manhã. Dirigiu-se novamente ao quarto para ver se estava morta ou algo parecido, mas a única coisa que havia perdido era que seu marido estava deitado ao seu lado todo o tempo em que ela havia dormido. “Estou sonhando, só posso estar sonhando.” Jeane não aceitava a manhã absolutamente cotidiana na qual estava vivendo naquele instante. Fitou José por alguns segundos, desmaiado na cama em sono pesado. Decidiu não acordá-lo. Tentando recapitular a noite anterior, esforçava-se para lembrar se aquele sol de outono seria comum, tentou lembrar se no dia anterior ela vira folhas caindo pelo chão, depois refez cada passo de seu dia para saber se havia chovido, mas de nada se lembrou. Porém, Jeane tinha certeza de que alguma coisa não estava certa, além do fato de que
  • 4. 4 sua sala estava completamente vazia ao passo em que um corpo deveria estar sendo velado ali. Arrastou os olhos pela parede da sala procurando o relógio japonês que ela havia ganhado de casamento, os ponteiros marcavam exatas 7:12 da manhã, em um relance insignificante de memória constatou que havia dormido aproximadamente 4 horas contando uns 15 minutos que se passaram após ela olhar no relógio pela última vez durante o velório de seu filho. Uma lembrança nítida explodiu na memória de Jeane. Na noite anterior ela havia visto um jornal que datava o mês de dezembro, logo, não poderia ser outono. Agora ela tinha certeza, estava sonhando. Se deu alguns beliscos para acordar, mas doeu mais do que ela imaginara, e não acordou, nem sequer mudou de lugar ou ambiente. Tudo estava muito real para ser um sonho, e Jeane começara a se preocupar com aquilo. A única forma de constatar o que estava acontecendo seria olhar outro jornal, um atual, daquela manhã. Sem pensar muito nas roupas que estava vestindo ou na situação em que se encontrava seu cabelo, Jeane correu para fora para apanhar o jornal do dia, ao correr pelo jardim até o portão, ela se lembrou de que poderia estar parecendo um fantasma de roupas pretas e sombra borrada, apanhou o jornal do chão da calçada rapidamente e voltou em passos rápidos para casa sem checar a data do jornal. Correu para o espelho e teve mais uma surpresa, seu cabelo estava solto e liso, e ela vestia uma camisola de dormir que até ontem ela não tinha em seu guarda-roupa. Por um momento considerou a possibilidade de estar enlouquecendo, mas depois a descartou, pensando ser ridículo que alguma coisa desse tipo estivesse acontecendo sem que ela ao menos percebesse algo de estranho – exceto a manhã de outono em pleno verão. Lembrou-se do jornal. E por um instante desejou não ter se lembrado. A data do jornal era do dia 20/05/99. Agora estar louca não era algo tão descartável quanto havia pensado há alguns segundos, a menos que ela tivesse dormido por três anos sem se dar conta. Pelo menos a manhã de outono já estava explicada. Jeane não viu outra opção se não acordar seu marido, mas um pressentimento ruim a tomou por completo por alguns segundos, depois se foi como se nunca tivesse existido. Uma estranha calmaria se estendia pelos corredores e cômodos da grande casa, Jeane até se esquecera por breves momentos de que seu filho havia morrido um dia antes. – Acorde! José! Acorde! – disse Jeane, estapeando levemente o braço de José para que ele acordasse.
  • 5. 5 Aos poucos José ia despertando de um sono que parecia ter sido absolutamente restaurador. Enquanto Jeane desesperava-se aos poucos por aparentemente estar no lugar, dia e ano errado. – O que você quer? – disse José por entre os lábios grudentos de saliva matinal. – Tem alguma coisa errada por aqui! Eu não estou entendendo nada! – O que é que está errado, Jeane? – Eu não sei! Preciso que você acorde e veja com seus próprios olhos! Já quase completamente despertado, José esfregou os olhos grudados de ramela, piscou duro por duas vezes e arregalou-os olhando para o rosto de Jeane. Parecia estar em outra órbita procurando por alguma coisa estranha que fosse motivo suficiente para que Jeane o acordasse daquela maneira. Levantou-se e sentou na cama. – O que é que está errado? Cadê? – Vá até a sala e veja! O propósito de Jeane era que José se assustasse com a sala vazia, mas, previsivelmente, não foi o que aconteceu. José voltou irritado. – O que é que tem na sala, mulher? Está como sempre foi! – Como assim? Ontem mesmo velamos nosso filho e cadê todo mundo? José arregalou os olhos, mais do que faz quando acorda. – De que diabos você está falando? – Seu tom era o clássico tom que se usa quando estamos reagindo a um absurdo que acabamos de ouvir. A expressão de Jeane enrijeceu e permaneceu imóvel por breves – porém longos – cinco segundos. José se aproximou lentamente, sentou ao lado de sua mulher na cama e a abraçou, agora falara como se estivesse a consolando. – Não se preocupe meu amor, você vai superar isso, eu estou com você. Jeane estava há um passo de aceitar sua loucura e se jogar de um penhasco. – Como isso pode estar acontecendo? Eu não me lembro de nada! – Jeane agora tentava entender aos poucos o motivo de sua insanidade controlada. – Mas o que é que está acontecendo? Não estou entendendo. – O que fizemos ontem? Eu não me lembro, pra mim ontem foi o dia em que Simão morreu. Meus olhos ainda estão inchados! José agora olhava para Jeane como se entendesse o que ela estava passando. – Jeane. Você chorou dormindo esta noite. – O que? – disse Jeane, surpresa por ter confundido realidade com sonho, ou vice- versa.
  • 6. 6 – Nosso filho morreu há anos, querida. Você deve ter sonhado com isso. Ao primeiro instante, a última coisa que Jeane faria naquele momento era aceitar o que José lhe dizia, e obviamente não foi o que ela fez. – Não! – falou com volume de voz mais alto que o de costume. – Eu não sonhei! Eu só posso estar sonhando agora! Eu me lembro muito bem que aquilo não foi um sonho! – Querida, eu sinto muito. Em um impulso, Jeane levantou da cama ao mesmo tempo em que lágrimas começaram a cair de seus olhos, virou-se já de pé para José e agora gritava desesperadamente. – Não! Você não sente muito! Por que é que está mentindo pra mim? Que tipo de brincadeira é essa? – Acalme-se Jeane. Jeane seguiu para o lado oposto do conselho de José e agora estava mais histérica do que nunca. – Não me mande me acalmar! Não vou me acalmar! Eu quero ver meu filho agora! – Pare com isso Jeane, nosso filho já se foi! Ele não vai mais voltar! José sentiu na alma a bofetada que levou no rosto, como se Jeane estivesse cansada de ouvir aquela frase. – Não me diga isso! Nunca mais repita isso! Estou cansada de você ficar me dizendo coisas que eu já sei! – Jeane se retirou do quarto em meio a passos rápidos e lágrimas de dor. Os olhos de José refletiam um cansaço de repetição. José levantou-se vagarosamente e discou um número no telefone, que ficava em cima do criado mudo, ao lado da cama. – Alô?... O Rodrigo está?... Obrigado. – José aguardou na linha. Seus pés batiam no chão em ritmo acelerado de desespero. – Alô? Rodrigo?... Tudo péssimo, Jeane está tendo outra recaída... Será que vai funcionar?... Tudo bem, vou fazer. Tchau. José desligou o telefone e dirigiu-se até a sala rapidamente para encontrar Jeane. Levou um susto ao vê-la portando uma faca de açougueiro em mãos, aproximando-a de seu pescoço. Gritou em um impulso de desespero: – Não faça isso! Jeane olhou para trás e, em poucas frações de segundo, José correu ao seu encontro e tirou a faca de suas mãos. Jeane ajoelhou-se e chorou. – O que está acontecendo comigo, José? – Se acalme Jeane. Vou leva-la a um lugar que vai te fazer melhorar.
  • 7. 7 – Que lugar é esse? Um hospício? – Não, fique tranquila. Iremos voltar pra casa juntos, ainda hoje. José estendeu a mão para Jeane, que a pegou e levantou-se do chão. Os dois caminharam abraçados, mais uma vez, sendo protegidos pelo sol, rumo ao cemitério.