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Foto: “Colhida” na internet- (acima de tudo, sinceros!)

                                           ANO II
                                         EDIÇÃO V
                                  EDIÇÃO ESPECIAL - CONTOS
A aniversariante*                                                              Por Acton Lobo de Almeida


       “Como é estéril a certeza dos que vivem sem amor...” esperança. Diante daquele espelho, aos olhos marejados e
- pensou Angélica, diante do espelho. Este que por conta    desesperados de Angélica, tais marcas refletiam-se como
do longo e relaxante banho que acabara de tomar,            incicatrizáveis chagas.
apresenta-se levemente condensado pelo ar quente que               Invadida por um tormento aflitivo, sentiu as
dominava todo o banheiro.                                   entranhas dobra-lhe às forças, fazendo lançar em seu
       Durante alguns minutos, após esta breve e profunda   reflexo um imenso e abrupto golfo, que, subitamente,
sentença, Angélica permaneceu paralisada, encarando-se      impregnou todo o espaço com um indefectível amargor
como uma estranha e irreconhecível criatura: entre a        que refletia analogamente a sua vida, os seus projetos
inércia, o silêncio e oindescritível peso com que esta      inconclusos e a sua natureza fingida. “Aquilo” refletia a
inesperada reflexão caia-lhe sobre os ombros doloridos.     aflição sincera daqueles minutos intermináveis onde
Pois, ali naquele exato momento, sozinha e diante de        chegara a indelével conclusão de que tornara-se somente
si,percebeu quão vil, miserável e insensata estava a sua    um ser sem graça, desprovida de valor e significado.
vida após trinta e três anos de existência...               Angélica descobrira que era possuidora, unicamente, de
       O dia foi de festa e intensamente comemorado,        uma pífia existência.
transcorrendo de forma perfeita e peculiar entre os seus           Aniquilada por relacionamentos infrutíferos,
variados grupos de amigos e conhecidos que comumente        decisões penosas e uma influência religiosa que
gravitavam ao seu redor. Adaptável como uma camaleoa,       avidamente usurpava os seus recursos financeiros, Angélica
recebeu a todos com o seu magistral                                              chegara até aquela data alegre e
sorriso solar: este que, eficazmente,             “Lenta e visivelmente festiva, com a certeza solitária e triste
durante toda a vida escondeu e                  destituída de prazer,            de que a sua vida ganhara um aspecto
silenciou uma incômoda angústia e                                                sinistro e melancólico.
aflição, que ali, a sós no banheiro do         encaminhou-se à sua                      Ela sabia quando iniciara aquele
seu apartamento, rompeu-se em um                 imensa, solitária e             lento definhar em sua vida, mas
lento e gradual choro. Tal bramido                                               somente deu-se conta disso, com a
triste censurava a sua necessidade de sepulcral cama. Deitou-se nítida e absoluta clareza, ali, frente a
fazer ecoar pelo mundo a mais genuína como um cão e olhou para frente com o espelho, quando após
dor e insatisfação que clamava                                                   àquela inesperada reflexão tardia tal
soterrada há anos em sua alma, mas               o teto, observando              convicção agarrou-lhe pelos braços,
que vertiginosamente voltara a pulsar catatônica, o minúsculo e rompendo definitivamente a carapaça
com uma intensidade inominável.                                                  que nutriu até aqueles minutos
       Este choro mudo justifica-se,
                                               fluorescente universo             infindos;    deixando-a    plenamente
unicamente, pelo temor de Angélica em         particular que cintilava desprotegida e à beira da total
chamar a atenção do seu mais novo e
desconhecido parceiro sexual, que
                                              uniformemente sobre o decrepitude.        Extasiada em seu pesadelo
naquele instante, deliciava-se assistindo     seu ser absolutamente concreto, Angélica não conseguiu ouvir
deitado na cama de sua anfitriã, um                                              os insistentes chamados de seu mais
ordinário programa de TV na                     fragmentado.”                    novo mancebo; ao contrário, preferiu
madrugada de quarta-feira.                                                       ficar ali no banheiro, este agora frio,
       Como único recurso, Angélica soluçou baixinho        opressivo e contaminado pelo odor nauseabundo que
diante de si, dos seus desacertos e da sua absurda          exalava indomável por todo ambiente, como um sinal
arrogância ao longo daqueles anos. Suas lágrimas            explícito que indicava quão enfermo estava o seu sôfrego
assemelhavam-se as de uma criança abandonada,               ser.
esquecida por dias em um quarto de aspectolúgubre e                Naufragada em um silêncio que jamais encontrara
sombrio. E, foi nesse estado de agonizante reflexão, que se em momento algum de paz, Angélica sentiu a decepção, o
sentiu condenada a mais abjeta podridão.                    arrependimento, o ressentimento e o ódio alfinetar-lhe
       Olhando para o seu corpo nu, viu-se marcada por      todo o seu corpo. Diante da ignota realidade, viu-se
pequenos nódulos avermelhados; estes, surgidos em           envelhecer, decompondo-se vagarosamente perante o
decorrência de mais uma transa ordinária e sem qualquer     espelho impassível; em uma extinção lenta e piedosa.
Toda essa insólita viagem durou      absolutamente fragmentado.                       Com calma, serenidade e
exatamente quarenta e dois minutos.                Concentrada em tudo que            plenitude, gradativamente, desligava-
Angélica,          após            muito    estava sentindo, não tinha mais           se daquele passado insensato e
esforço,recobrou        os      sentidos    dúvidas do irreparável prejuízo que       injurioso, encontrando em sim
dispersos e naufragados. Recobrou os        causou a si e a vida de tantas outras     mesma, a força e coragem que
sentidos, sim, mas, não as suas forças.     pessoas que fatalmente cruzaram o         comumente          depositava        em
Sofregamente levantou do chão               seu caminho. A única certeza que          suplicantes      orações,       cânticos
imundo, abrindo a porta que àquela          acariciava o corpo de Angélica e          religiosos e oferendas inúteis.
altura pesava uma tonelada e, ao final      ecoava uníssona em sua alma, era a               E assim, Angélica adormecia
daquele desgostoso movimento,               da mudança, da revisão de vida, da        graciosamente, transmutada por
deparou-se com o seu parceiro, que          chance de recuperar o vigor físico e      completo, absolutamente consciente
impassível e sem esboçar qualquer           espiritual.                               de si e de vigor. Acariciando-se
atitude de auxílio para com ela,                   Angélica fixou o olhar muito       delicadamente, demonstrava para
perguntou-lhe: - “ Está tudo bem            além do que estava aparente aos seus      cada partícula que estava ao seu
neguinha?”                                  marejados olhos. Respirou fundo,          redor, uma sincera e inabalável prova
       Naquele momento um silêncio          ecoando por todo quarto o som do ar       de amor-próprio. Este que há anos
fatídico transpassou a alma daquela         que era absorvido e, posteriormente,      estava esquecido em seu interior, mas
mulher, explodindo violentamente            expelido     juntamente      com     as   que agora, pulsava em suas veias com
todos os átomos que compunha o              desagradáveis reminiscências que          vitalidade e generosamente irradiava
cenário      daquele       apartamento      tivera naquela noite. Lentamente          em cada carícia sua, arrepiando-a de
candidamente decorado. Novamente            aplacava os pensamentos, que, como        excitação      consigo    mesma        e
os seus sentidos foram arrebatados          uma tempestade silenciosa, movia-se       expandindo por todo quarto como
ao dar-se conta que durante toda a          violentamente na tentativa vã de          uma esplêndida e maravilhosa áurea.
sua vida, foi só e, unicamente, uma         dilacerar a sua vigorosa e astuta                 “Este momento...” - pensou
caricatural “neguinha”.                     percepção.                                Angélica em êxtase. - “Foi o melhor e
       Cambaleando lentamente até o                E, revendo cada cena de tudo       mais importante presente que recebi
quarto, sob o olhar entediado da sua        que acabara de lhe acontecer,             durante a minha vida. E com um
mais recente aventura estéril,              identificou     naquela     inesperada    sorriso enigmático expressava a
Angélica, de maneira áspera e               experiência,       a      oportunidade    consciência plena de si mesma..
agressiva, solicitou a saída deste de       retumbante que tanto almejava para
seu apartamento. Foi uma expulsão           corrigir erros tão grotescos, advindos,          _______________________
ríspida, desprovida de qualquer             unicamente, da ominiosa fraqueza e               *Dedico este texto para todos
“formalismo litúrgico”. O pobre             sórdida decadência que teimava em         os seres errantes e desleais que
mancebo saiu, mas não sem ao                não reconhecer em si mesma, mas           absorvem o que há de iluminado e
menos, desferir na face humilhada           sempre, nas outras pessoas.               criativo em todos que passam por
daquela mulher, uma injuriosa ofensa               Angélica         delicadamente     suas repugnantes vidas, fazendo-os,
verbal. Angélica nada disse para            enxugou as lágrimas de seu rosto e, já    covardemente, cambalear sob o
contra-atacar, nem sequer pensou.           restabelecida em consciência e            olhar obsequioso e melancólico da
Apenas com toda a força que ainda           plenitude, agradeceu com um vago          decepção. Para vocês, seres ignotos,
restava em sua alma, aspirou o ar           sorriso de gratidão, àquele que           desejo     superação    e   graciosa
denso e gelado, sentindo-se tremer          minutos atrás, fora um dos momentos       plenitude.
de frio e de horror.         Visivelmente   mais sofríveis de sua vida ao longo
destituída de prazer, Angélica              daquela trajetória, tornando-se uma             _______________________
lentamente encaminhou-se à sua              experiência indescritível, inexplicável   Acton Lobo é licenciado em geografia
imensa e solitária cama, deitou-se          e incomunicável a qualquer pessoa         pela Universidade do Estado da Bahia
como um cão, olhou para o teto e            que fosse, pois, justamente na noite      UNEB Campus V. Atualmente reside
observou catatônica, o minúsculo            do seu trigésimo aniversário, pôde,       em Salvador.
universo particular (feito de plástico      finalmente, livrar-se da virulenta,       E-mail:actonlobo@hotmail.com
fluorescente),       que        cintilava   incômoda e imprestável máscara que
uniformemente sobre o seu ser               tanto evidenciou orgulhosamente.
A faminta                                                             Por Jean Michel Ferreira Santos


       Não sei seu nome, não o perguntei... Naquele                  Passei então a perscrutar o meu campo de visão
momento era a história de Lagartixa que se misturava com      como só os verdadeiros observadores dentre os meus
a minha. Só agora, dias depois, quando a viagem já passa a    leitores poderão entender, mas que me valem os outros? -
ser depurada nas maneirices da racionalidade é que me         “o resto é apenas a humanidade”! Olhava atentamente e
vem ela perturbar os sentidos, me pedindo atenção: uma        tentava adivinhar como a visão do calor que se desprendia
mulher jovem, magríssima, suja, descabelada... Estava         daquela chapa e juntamente com a luz que a cercava
sentada ao lado da pequena barraca de lanches que             formavam um ambiente de suposta segurança: e o que é a
paramos para comer algo após uma noite de muito               segurança senão uma pequena ilusão provocada pelo calor,
conhaque e reflexões sobre o caráter fálico do monumento      pela luz e por tudo que é familiar e aconchegante no meio
erguido no meio da Praça do Campo Grande, e que “nós”         de um mundo com tantas outras coisas que não queremos
logo transferimos (o caráter fálico) para o homem de modo     ver, pois são tão inseguras e imprevisíveis? Desenhava
geral e todas as suas construções e toda a sua ação, pois a   então na minha imaginação o caminho da luz e do calor e
natureza do homem é (ou pelo menos tem sido até hoje)         pude observá-los se desprendendo daquela barraquinha e
fálica. Após embriagar-me no e com o Campo Grande e de        traçando lenta, vagarosamente sua trajetória a caminho
encontrar, ou melhor, ser encontrado por Lagartixa, eu e      dos outros bares e lanchonetes ainda abertos à direita (no
meus “amigos descartáveis” procuramos uma larica, visto       caminho de volta ao Campo Grande): já que foi de lá que
que era tarde e sem ter comido nada a noite toda o fino       viemos e por certo era para lá que tendíamos regressar: -
que fumamos aliado ao conhaque com Coca que bebíamos          “Sempre de volta para casa!”. Mas nessa acalentadora
compulsivamente, atacavam de forma voraz o estômago,          visão me veio um calafrio: como uma alfinetada no espírito;
psicológica e fisicamente.                                    uma pergunta trazida pelo vento; uma pergunta sobre o
       Então, depois de sermos expulsos da praça, que há      vento: quem é que sopra esse calor e essa luz para lá, pro
muito tempo não é mais do povo, “decidimos” seguir a luz      caminho de volta para casa? Voltei o olhar (entenda-se: um
de volta ao conforto e segurança da familiaridade             novo olhar!) para a esquerda (ai do meu pescoço que
consumista. Não sabia quantas coisas                                               carregava agora o peso de toda
aconteceriam ainda naquela noite;                     “...e o que é a              consciência deturpada de uma geração
uma, e talvez a mais importante (já                                                inteira, ou talvez duas.) e lá estava ela:
que agora insiste em martelar minha
                                              segurança senão uma                  a faminta.
memória), foi observar aquela jovem         pequena ilusão provocada                      Qual não foi minha surpresa ao
sentada ao lado da barraquinha na
qual um rapaz, também jovem,
                                             pelo calor, pela luz e por ver que Lagartixa (uma psicóloga sem
                                                                                   teoria, uma psicóloga da práxis,
moreno, com uma tendência adiposa              tudo que é familiar e               formada pela práxis.) estava também
que deduzi em suas costas, preparava        aconchegante no meio de sentada junto a nossa protagonista...
hambúrgueres: estes, muito vistosos                                                Cumprimentei-a e ofereci o restante
por sinal...                                  um mundo com tantas                  de conhaque com coca que ainda trazia
       E foi este meu alimento naquela        outras coisas que não                comigo, ela não respondeu... Pensei (e
noite: a visão saborosa daquelas                                                   como é maravilhoso constatar que
bombas de coliformes fecais, que nós,      queremos ver, pois são tão realmente o tempo refletido é um
jovens “terceiro-mundistas”, temos inseguras e imprevisíveis?”. tempo dentro do tempo) que ela não
que engolir satisfeitos, junto com                                                 me tivesse visto... Acenei de novo, mas
outras transplantações... Mas felizmente nesta noite meu      mais uma vez ela se manteve neutra ao meu
estômago e espírito se satisfizeram de “luz”.                 cumprimento... Só então percebi que estava ocupada:
       Encostado no capô de um carro, enquanto esperava       estava cumprindo uma tarefa (que é algo muito maior que
ansioso o meu pedido, alimentava minha gula vendo as          um trabalho) e a ética que ninguém, além da vida e sua
outras pessoas se deliciarem, mordendo suas “bombas”          dureza, a ensinou, não a permitia -naquele momento-
ainda quentes, e aquelas expressões híbridas de prazer e      realizar seu desejo de ir correndo pegar o que a oferecem
dor me fizeram intuir o fato das pequenas queimaduras na      (atitude que ela tomou depois com a naturalidade de quem
boca serem tão insignificantes ao faminto que talvez até      conhece o tempo e suas dádivas, a naturalidade de quem
sejam mesmo necessárias...                                    sabe esperar).
Lagartixa consolava aquela        gestação adolescente, irresponsável e     e da minha mente jamais se apagou o
jovem, tentava mostrar a ela              egoísta, mas, para surpresa da mãe        eco de sua voz espalhafatosa e
caminhos, saídas onde na verdade só       assassina,      a     criança/problema    renitente        aconselhando          nossa
havia “dor, angústia e sofrimento”...     sobrevive e chora: deduz-se daí que       pequena gestante sem nome:
Mas quem será que Lagartixa               não é muda, pelo contrário, é muito                -Amiga, não chore, nós somos
consolava naquele momento se não a        barulhenta. No entanto a “nova mãe”       lindas, estamos vivas...
si mesma, e onde ela procurava poder      não quer chamar a atenção, então                   - ÊEEEEeeeei! (num grito que
frente ao espelho: da miséria, do         pede carinhosamente, com ares de          provocou uma revoada de pardais
desprezo, da infinita solidão do frio,    boa mãe e a ingenuidade de todo           abrigados numa árvore próxima)
do vento, aquele mesmo vento que          adulto que pensa ter poder sobre a                 - É minha!... (Lagartixa falava da
aos poucos trás a madrugada e o           criança: -“Calma filhinho, você não       comida         “colhida”      de       algum
apagar das luzes, que nos expulsa das     quer prejudicar sua mãe, não é?”. E       consumidor,           freqüentador         do
ruas de volta para casa, onde             pela primeira vez ela percebe que o       território onde ela exercia poder na
podemos de novo buscar luz e calor...     menino se calou, pois a ouviu, e como     noite da cidade, e que provavelmente
Esse vento só encontrava resistência      também estava de olhos abertos a          já a conhecia e costumava ajudá-la
ali (em minhas duas amigas), muito        pode ver: essa tranqüilidade, essa        com a penitência dos restos de
além do consumo e suas mentiras           confiança, essa certeza, assustam!        refeição que viram esmola ao invés de
atraentes.                                      Todo esse pensamento brotou         lixo...)
        Ainda esperando, serpenteou       como a lembrança de uma música que                 E eu o vi, esticando o braço para
em minha consciência com a                escutei silenciosa e solitariamente em    fora de seu belo carro e entregando
tranqüilidade dos grandes rios que        meio a todas aquelas pessoas:             um saco plástico para nossa psicóloga
cortam o país e deslizam se                                                         sem título...
entregando na voluptuosidade de                         “Um índio descerá de                 Retornava então orgulhosa e
nossas terras, encharcando-as da                uma estrela colorida e brilhante    irrefutável, em sua demonstração que
tênue, mas também abundante e não                     De uma estrela que virá       prescindia qualquer teoria, para
programada        ou    “racionalizada”          numa velocidade estonteante        colher junto a paciente os louros da
fertilidade (assim como me parecem                    E pousará no coração do       estratégia que se justificava tão
tênues,        mas     paradoxalmente                  hemisfério sul...”           arrebatadora e infalivelmente:
abundantes as teias que compõem as                                                           -Tome amiga, tá veno como
afinidades) a idéia que todos os atores        Estava então consumado, bem          num tem motivo pra chorar?
sociais      já     sabem,      mesmo     como consumado estava o preparo da                 E depois disso, ela se foi...
inconscientemente em alguns casos,        “minha bomba” e o “índio” assim                    Nossa! (“essa tranqüilidade,
que “dentro da massa existe o             como                                      essa       confiança,     essa     certeza”
homem, e o homem é difícil de                                                       realmente “assustam!”)
dominar, mais difícil do que a massa”;          “Brás pastor inda donzelo,                   Estava só e segurava, já sem
a idéia de “nós” como uma nação - e             querendo descabaçar-se,             fome, meu “super X alguma coisa” e o
isso não é novo!                                viu Betica a recrear-se             único ponto que ainda me chamava a
        Nós: “desterrados na própria            vinda ao prado de amarelo:          atenção era a faminta... Ela havia
terra”; caranguejos que ante a                  e tendo duro o pinguelo,            devorado tudo que Lagartixa a tinha
impossibilidade do mar fomos                    foi lho metendo já nu,              dado de uma só vez, e agora me
obrigados a adentrar o sertão,                  fossando como Tatu:                 olhava, e a sensação mesma que tive
conhecê-lo e amá-lo, e formamos e               gritou Brites, inda bem,            foi que o próximo prato tanto poderia
fomos formados pelo manguezal de                que tudo sofre, quem                ser o hambúrguer quanto meu “eu”
onde é difícil nos transplantar,                 temrachadura junto ao cu.”         mais estimado... Não seria a fome de
endurecemos         nossa     carapaça,                                             quinhentos anos que me espreitava
cavamos mais fundo, e alguns dos                E no pequeno intervalo de           naquele momento?
nossos “coringas” já traduziram, o        tempo, que numa “perspectiva                        Mas logo me despreocupei...
que, a partir da experiência explode      sistêmica” pode representar um                     Lembrei que não tenho
em avalanches de analogias: a             universo inteiro de possibilidades, que   ambições de “mestre”, sempre preferi
mensagem da mais bela flor que            me distraí para pagar a refeição,         ser discípulo, pois sei dos perigos de
nasce no meio da lama. No nosso caso      Lagartixa tinha me deixado sozinho        me           “profissionalizar”...        Nas
um “lodaçal de macadame”, pois            novamente na noite soteropolitana...      “experiências” que pude observar de
somos o filho não planejado que                 Ainda consigo vê-la adentrando      perto, sempre, os indivíduos, de um
nasceu prematuro, fruto de uma            tranquilamente o “lado escuro da lua”     modo geral, intelectuais, de forma
particular, que pautam a vida numa perspectiva de              prenhe de outro baiano/brasileiro (mais um faminto) que
mercado têm demonstrado sintomaticamente uma                   meu espírito se pôs novamente a cantar:
patologia que é degenerativa tanto do corpo como do
espírito [“quem, de três mil anos não vê, está à mercê dos                 “Ói! ói o trem. Vai surgindo de trás das
dias e do tempo”]: a aceitação incondicional e incontestável         montanhas azuis, ói o trem...
de tudo que lhes empurram goela a baixo através da moda.                   Ói, já évem, não precisa bagagem nem mesmo
Com a singela desculpa que “o intelectual/indivíduo                  passagem no trem...”
também precisa comer” eles a polícia do pensamento por
excelência, ou seja, o homem moderno ou pós- correm                   Essa música de poder me colocou de volta nos
atrás, além da comida, do luxo prometido, a esmola eterna -    trilhos...
“sanctas simplicitas!”. Parece, porém, que “novos tempos”             Repeti em silêncio o mantra fraternal: “cautela e
estão começando a despontar e talvez surja...                  prudência!”
       Ou melhor, nada surge, apenas passa a ser visto...             Então pensei: “caminhe para ela e a dê de comer...”,
        “aquilo que nesse momento se revelará aos povos/       foi o que fiz:
surpreenderá a todos, não por ser exótico/ mas pelo fato              -Boa noite, meu nome é Pedro, “Lagartixa” pediu que
de poder ter sempre estado oculto/ quando terá sido o          lhe entregasse isto: (dei a ela o hambúrguer que tinha
óbvio”                                                         comprado...)
       ...uma classe de “baianos” ainda “mais preguiçosos”,           E foram essas as palavras da faminta:
e preguiçosos ao ponto de não requerer mais nada a não                -“Deus abençoe!”
ser a liberdade total do indivíduo. E “nossos irmãos”, os             Incomodou-me um pouco a resposta, mas logo
intelectuais-profissionais-terceiro-mundistas-modernos,        esqueci... (era com Lagartixa que eu queria “falar”).
talvez enfim percebam que a resposta está bem aqui, basta
parar de esticar o pescoço para tentar ver o outro lado do           ______________________
oceano, sempre!                                                Jean Michel F. Santos é licenciado em história pela
       Podia então olhar sem medo, mais com ternura e          Universidade do Estado da Bahia UNEB Campus V,
admiração, a essa potência que é nossa fome. Esse traço        Mestrando em Cultura, Memória e Desenvolvimento
interessante da identidade brasileira de modo geral e          Regional, também pela UNEB Campus V e Graduando do
baiana de uma forma tão poeticamente peculiar. Foi assim,      curso de Direito da UNEB Campus XV. Atualmente reside
olhando fixamente para ela e em especial para sua barriga      em Santo Antonio de Jesus.
                                                               E-mail: jeansaj@hotmail.com
ANA                                                            Por Manoel Souza das Neves


                                                            Parecia muito mais velha, mais cansada, e ao ouvir de
       Que ela nunca foi uma pessoa das mais normais, isso  minha boca aquelas velhas perguntas, respondeu que o
todo mundo sempre soube, mas daí a vir a se acabar          casamento ia muito bem, que o filho era maravilhoso e que
daquela maneira foi no mínimo enigmático, e para mim        sua família era sua grande válvula motivadora. Quando
então, que pude tomar conhecimento das verdadeiras          perguntei que expressão então era aquela em seu rosto,
razões, a princípio foi um grande choque, logo eu que dizia inventou umas histórias meio sem sentido e em dois
já ter visto de tudo na vida.                               monossílabos encerrou a conversa.
       Ana era uma pessoa legal, geógrafa, adorava                 Nos víamos pouco, pois agora eu já não cabia no
lecionar, vivia viajando para dar aula nos mais diversos    interior e me mudei para Salvador. Quando alguma coisa
lugares. Menina do interior, sempre preferiu as cidades     me fazia cortar aquelas estradas esburacadas novamente,
pequenas ao movimento das grandes capitais. Já havia        sempre dava um jeito de lhe fazer uma visita e constatar
passado por lugares que até hoje procuro no mapa dessa      que algo estava errado. Insistia então: “Ana, o que é que
Bahia de meu Deus e nunca os acho. “Tenho medo do           há? Agora até um cachorro você tem e nada te deixa feliz.
asfalto ela dizia um dia ele acaba me matando”, e eu        O que passa contigo, meu amor?”. Mas a maldita não me
entendia aquilo como uma espécie de receio que é típico     contava, dizia apenas que iam da maneira certa, que
de alguém que nasceu e passou quase toda a sua vida         tinham uma boa casa, uma boa família, dinheiro, sexo e
curtindo o bucolismo do interior.                           tudo mais que alguém precisava ter. Só lamentava que
       Vivia solta no mundo, numa espécie de nomadismo      depois de nascido o segundo filho, teve de parar de
sem fim, até que por uns anos atrás resolveu casar e ter um trabalhar para se dedicar exclusivamente à criação das
filho.     Por     esta    época      nos                                         crianças, conforme a vontade do seu
encontrávamos de vez em quando e,                                                 marido. Dizia que quase não saía mais
como a intimidade me permitia, não                                                de casa, que sentia, de certa forma,
perdia a oportunidade de lhe perguntar        “Meu último prazer foi              falta de suas viagens, do tempo em
como ia a sua vida de casada, já que                                              que não parava num lugar e eu
desde os tempos mais remotos,                usurpado, meu último e               brincava dizendo que ia arranjar pra
quando a conheci na faculdade, aquela       grande prazer foi tomado ela um emprego numa empresa de
mulher sempre pendia para a
promiscuidade          e      a      vida
                                            de mim, de uma maneira viagens. a partir daí que comecei a
                                                                                         Foi
descompromissada.                         cruel, rápida, à traição, sem perceber. A vida de Ana havia
       Em      resposta     às    minhas
perguntas, ela sempre dizia que ia
                                          chance de defesa, um crime mudado, e com isso, algo ficado para
                                                                                  muito importante havia
                                                                                                            que lhe era

levando, que depois que o menino qualificado, onde eu, sendo trás, e por mais que tentasse
nasceu não podia mais lecionar em talvez a única vítima, sangro esconder, mesmo dela própria, ela
tantos lugares e que sua vida agora se                                            estava sentindo falta e aquilo a
ancorava          numa        cidadezinha        agora até morrer. ”              angustiava cada vez mais, dia após
promissora, cujo nome eu nunca                                                    dia. Naquele mesmo ano voltei a São
memorizei. Dizia que a felicidade, pelo                                           Paulo para me doutorar e levei em
menos aquele tipo de felicidade que ia implícita nas minhas minha retina a imagem de uma mulher decadente. Pouco
perguntas, não dependia necessariamente da satisfação       mais de cinco anos, volto eu a passeio para a Bahia. Sampa
que se podia obter no relacionamento conjugal, e antes      tinha finalmente me conquistado, me dado mulher, filhos,
que eu pudesse esboçar qualquer reação ela me dizia pra     cabelos brancos, barriga, um apartamento de dois quartos,
não pensar besteiras.                                       pressa, fadiga, mau humor, brigas de torcida, metrô,
       Lembro-me de tê-la deixado linda quando fui para     decepção, insônia, televisão e mais um monte de coisa
São Paulo a fim de cursar meu mestrado. Ela fez questão de  chata, sem falar no sotaque.
vir a minha festa de despedida, trouxe a família toda e            Mas continuando, volto eu à Bahia a fim de
pareciam estar muito bem, foi o que todos comentaram.       apresentar minha nova família aos meus parentes e,
Pouco mais de dois anos depois, quando retornei, era        sozinho, dei um jeito de interiorizar para ver o que tinha
notável na expressão facial de Ana que algo não ia bem.     sucedido daquela mulher, já que há muito ninguém ouvia
mais falar dela. Chego lá e descubro       nos separar, e que as lembranças          traição, sem chance de defesa, um
que a danada havia morrido a cerca         daquelas aventuras loucas que             crime qualificado, onde eu, sendo
de uns oito meses, de tristeza,            vivemos desde os tempos da                talvez a única vítima, sangro agora até
inanição ou sei lá o que. O marido         faculdade irão parar no fundo de um       morrer.
tinha se mudado para outra cidade e        baú de memórias, onde serão                      Meu último prazer, aquele que
levado as crias. Na casa agora morava      progressivamente comidas por um           acho que somente eu no mundo
uma tia, que tomava conta das coisas       conjunto de traças insensíveis. Mas       sentia...     Um      prazer    solitário,
que o peso diário de uma triste            ainda me recordo muito bem da             descoberto por acaso no espaço
lembrança        certamente        havia   última vez que esteve aqui, você          intenso existente entre duas poltronas
impedido os herdeiros de levar.            estava bonito, mais intelectual, mais     vazias de um ônibus em movimento.
       Bati na porta, entrei, bebi água,   um monte de tanta coisa, fiquei           Ai, como era bom, melhor que
café, suco, comi bolo, biscoito,           orgulhosa de você, meu amigo mestre       transar. Sempre foi melhor do que
conversei um bocado com a velha que        e à uma hora dessas, sei lá, talvez já    qualquer trepada. E eu podia
queria me engordar de qualquer jeito       até doutor.                               desfrutar daquilo sozinha, conduzir do
e fiquei sabendo que a mulher que eu              Me senti como se tivesse lhe       meu jeito, ali, quase todos os dias,
sempre tive a impressão de que             traído quando me perguntou o motivo       sentadinha, indo dar minhas aulas,
amava tinha morrido mesmo de uma           da minha cara estar parecendo uma         num veículo parcialmente cheio, o
tristeza estranha, uma espécie de          ameixa seca, mas confesso que na          que dava ainda mais tesão.
banzo, praticamente comendo terra          hora eu não tive o mínimo de                     Ia sempre de saias, vestidos,
no jardim. Dois anos antes da morte,       coragem necessária pra te dizer. E        sentava        na     poltrona,     onde
havia contraído uma tuberculose que        mesmo agora, ainda não tenho,             discretamente retirava a calcinha,
a debilitou física e espiritualmente,      mesmo sabendo que irei me deparar         sentava com as penas abertas, já toda
confinando a pobre coitada cada vez        com o único destino irremediável.         molhada, em posição no mínimo
mais dentro de casa.                       Mas sim, o fato é que vou morrer e sei    interessante, com minha xana quente
       Havia objetos pessoais dela na      exatamente do que é. Na verdade eu        a roçar na pequena elevação
casa, os quais a velha fez questão de      sempre soube... e agora vou te contar.    provocada pela junção dos assentos. E
me mostrar. Um monte de papel              Não vai rir de mim, ta bom? Pra você      ficava esperando o asfalto se findar e
velho, livros velhos, roupas velhas,       eu conto, você que sabe tanta coisa a     entrarmos na prazerosa atmosfera
lembranças velhas, parecia que Ana         meu respeito, que poderia até me por      que somente a pavimentação à
tinha morrido com uns duzentos anos,       na fogueira da Santa Inquisição. Você     paralelo, mais nada, nenhum homem,
e aí, no meio disso, não é que achei       a quem eu deveria ter dado, e dado        animal, fruta ou qualquer outra coisa
um pacotinho com meu nome escrito?         somente a você, dado até morrer de        que tenha testado pôde me inserir,
Fiquei meio sem graça, mas mostrei à       cansaço, de prazer, de falta de           gozando louca e disfarçadamente,
tia que aquele embrulho tinha meu          líquidos,    afogada    nos     fluidos   entregando-me apenas com um leve
nome e que eu gostaria de levá-lo          corporais, morrer com um câncer nas       suor nas mãos e na testa, o que não
comigo. A velhinha não fez objeção e       cordas vocais de tanto gritar com você    levantava desconfiança, pois se
depois de mais uns dois cafezinhos         me deixando louca.                        ninguém dali havia trepado comigo,
vim embora deixando para trás o                   Desculpa por isso, mas eu          logo não sabiam desse meu pequeno
fantasma decrépito de alguém que           também precisava dizer. Agora vamos       segredo.
tinha sido tão cheia de vida.              lá: Não estou satisfeita, não estou              Pois bem, meu grande e
       Ainda no ônibus de volta, e         realizada, sou um ser rejeitado por       delicioso amigo, como você sabe, a
pensando no que ia dizer pra minha         aqueles poucos momentos felizes que       família, os filhos, foram me impedindo
mulher a respeito de ter passado um        possuem o dom de fazer a gente            cada vez mais de trabalhar, e quando
dia inteiro fora de casa, resolvi          esquecer a mazela que é a vida.           nasceu o segundo menino eu já não
ascender aquela luzinha fraca que fica     Ninguém me obrigou a ser o que sou,       podia mais sair de casa. Meus únicos
acima de nossas cabeças e investigar o     fui eu quem quis, e fui me enfiando       consolos eram as visitas às tias que
conteúdo do pacote. Abri e vi mais         numa droga de caminho que me              vez em quando dava pra fazer sem ter
coisa velha, papel velho, uns poemas       trouxe até esta mesa, com esta            de levar criança e marido, e te digo:
que não sei até hoje se são dela e uma     maldita caneta em punho.                  Valia muito a pena enfrentar tardes
cartinha pra mim, cuja leitura me                 Estou praticamente escrevendo      inteiras de conversa com aquelas
deixou muito intrigado. Eis o texto:       meu epitáfio, mas que seja. Meu           mulheres chatas, enchendo a barriga
                                           ultimo prazer foi usurpado, meu           de café e bolachas.
      “Meu querido amigo, não é de         último e grande prazer foi tomado de             Porém, como não poderia
agora que a vida da sinais de que vai      mim, de uma maneira cruel, rápida, à      deixar de ser, não só minha rotina ia
mudando, mas as coisas ao meu redor também. E de
repente, num dia cinzento, quando consegui finalmente me
desvencilhar da tralha familiar, descubro que a última
estrada que me ligava à minha última tia, meu último
reduto de verdadeiro prazer intenso, estava sendo
asfaltada, como também as outras já haviam sido
anteriormente. Não demorou para que concluíssem as
obras e a última via a paralelo desaparecesse para sempre
levando consigo praticamente a minha razão de viver.
       Tempos difíceis, de infelicidade extremada e
decadência corporal e espiritual. Ainda por cima veio a
droga da tuberculose. Gostaria que estivesse aqui agora,
para que pudesse lhe dar o que sempre deveria ter lhe
dado em demasia. Fiz muita besteira na vida e gostaria de
morrer sem ter feito mais esta, que é justamente o não
fazer, o não ter feito com você. Não vou escrever mais, isto
é tudo que gostaria de ter lhe dito naquele dia, mas a
frouxidão impediu. Naquele tempo eu ainda viajava... Hoje
vivo trancada em mim, acorrentada a um mundo de casa,
comida, filhos, e nem uma gozadinha de verdade sequer.
       Adeus, tomara que você nunca leia esta carta, se isso
ocorrer, esteja onde estiver, estarei com vergonha. Que sua
sorte seja diferente da minha. Sua Ana.”

      Após concluir a leitura, confesso que estava muito
excitado. Sempre a desejei, mas as vicissitudes do destino
não deixaram a coisa acontecer. Olhei para baixo e fiquei
durante alguns minutos observando a divisão das poltronas              Equipe Outras Farpas:
e naquele momento então pensei, “meu Deus, o progresso                      Acton Lobo;
                                                                           Jean Michel;
acabou com a vida desta mulher!”.
                                                                     Leandro Bulhões (Leo Pó);
                                                                     Manoel “Durrel” das Neves;
      Tempos depois percebi que, na verdade, se tratava
de algo mais.
                                                               E-mail: outrasfarpas@gmail.com
                 ____________________
Manoel Souza das Neves
E-mail: manoelsaj@hotmail.com

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Um despertar para a verdadeira essência

  • 1. Foto: “Colhida” na internet- (acima de tudo, sinceros!) ANO II EDIÇÃO V EDIÇÃO ESPECIAL - CONTOS
  • 2. A aniversariante* Por Acton Lobo de Almeida “Como é estéril a certeza dos que vivem sem amor...” esperança. Diante daquele espelho, aos olhos marejados e - pensou Angélica, diante do espelho. Este que por conta desesperados de Angélica, tais marcas refletiam-se como do longo e relaxante banho que acabara de tomar, incicatrizáveis chagas. apresenta-se levemente condensado pelo ar quente que Invadida por um tormento aflitivo, sentiu as dominava todo o banheiro. entranhas dobra-lhe às forças, fazendo lançar em seu Durante alguns minutos, após esta breve e profunda reflexo um imenso e abrupto golfo, que, subitamente, sentença, Angélica permaneceu paralisada, encarando-se impregnou todo o espaço com um indefectível amargor como uma estranha e irreconhecível criatura: entre a que refletia analogamente a sua vida, os seus projetos inércia, o silêncio e oindescritível peso com que esta inconclusos e a sua natureza fingida. “Aquilo” refletia a inesperada reflexão caia-lhe sobre os ombros doloridos. aflição sincera daqueles minutos intermináveis onde Pois, ali naquele exato momento, sozinha e diante de chegara a indelével conclusão de que tornara-se somente si,percebeu quão vil, miserável e insensata estava a sua um ser sem graça, desprovida de valor e significado. vida após trinta e três anos de existência... Angélica descobrira que era possuidora, unicamente, de O dia foi de festa e intensamente comemorado, uma pífia existência. transcorrendo de forma perfeita e peculiar entre os seus Aniquilada por relacionamentos infrutíferos, variados grupos de amigos e conhecidos que comumente decisões penosas e uma influência religiosa que gravitavam ao seu redor. Adaptável como uma camaleoa, avidamente usurpava os seus recursos financeiros, Angélica recebeu a todos com o seu magistral chegara até aquela data alegre e sorriso solar: este que, eficazmente, “Lenta e visivelmente festiva, com a certeza solitária e triste durante toda a vida escondeu e destituída de prazer, de que a sua vida ganhara um aspecto silenciou uma incômoda angústia e sinistro e melancólico. aflição, que ali, a sós no banheiro do encaminhou-se à sua Ela sabia quando iniciara aquele seu apartamento, rompeu-se em um imensa, solitária e lento definhar em sua vida, mas lento e gradual choro. Tal bramido somente deu-se conta disso, com a triste censurava a sua necessidade de sepulcral cama. Deitou-se nítida e absoluta clareza, ali, frente a fazer ecoar pelo mundo a mais genuína como um cão e olhou para frente com o espelho, quando após dor e insatisfação que clamava àquela inesperada reflexão tardia tal soterrada há anos em sua alma, mas o teto, observando convicção agarrou-lhe pelos braços, que vertiginosamente voltara a pulsar catatônica, o minúsculo e rompendo definitivamente a carapaça com uma intensidade inominável. que nutriu até aqueles minutos Este choro mudo justifica-se, fluorescente universo infindos; deixando-a plenamente unicamente, pelo temor de Angélica em particular que cintilava desprotegida e à beira da total chamar a atenção do seu mais novo e desconhecido parceiro sexual, que uniformemente sobre o decrepitude. Extasiada em seu pesadelo naquele instante, deliciava-se assistindo seu ser absolutamente concreto, Angélica não conseguiu ouvir deitado na cama de sua anfitriã, um os insistentes chamados de seu mais ordinário programa de TV na fragmentado.” novo mancebo; ao contrário, preferiu madrugada de quarta-feira. ficar ali no banheiro, este agora frio, Como único recurso, Angélica soluçou baixinho opressivo e contaminado pelo odor nauseabundo que diante de si, dos seus desacertos e da sua absurda exalava indomável por todo ambiente, como um sinal arrogância ao longo daqueles anos. Suas lágrimas explícito que indicava quão enfermo estava o seu sôfrego assemelhavam-se as de uma criança abandonada, ser. esquecida por dias em um quarto de aspectolúgubre e Naufragada em um silêncio que jamais encontrara sombrio. E, foi nesse estado de agonizante reflexão, que se em momento algum de paz, Angélica sentiu a decepção, o sentiu condenada a mais abjeta podridão. arrependimento, o ressentimento e o ódio alfinetar-lhe Olhando para o seu corpo nu, viu-se marcada por todo o seu corpo. Diante da ignota realidade, viu-se pequenos nódulos avermelhados; estes, surgidos em envelhecer, decompondo-se vagarosamente perante o decorrência de mais uma transa ordinária e sem qualquer espelho impassível; em uma extinção lenta e piedosa.
  • 3. Toda essa insólita viagem durou absolutamente fragmentado. Com calma, serenidade e exatamente quarenta e dois minutos. Concentrada em tudo que plenitude, gradativamente, desligava- Angélica, após muito estava sentindo, não tinha mais se daquele passado insensato e esforço,recobrou os sentidos dúvidas do irreparável prejuízo que injurioso, encontrando em sim dispersos e naufragados. Recobrou os causou a si e a vida de tantas outras mesma, a força e coragem que sentidos, sim, mas, não as suas forças. pessoas que fatalmente cruzaram o comumente depositava em Sofregamente levantou do chão seu caminho. A única certeza que suplicantes orações, cânticos imundo, abrindo a porta que àquela acariciava o corpo de Angélica e religiosos e oferendas inúteis. altura pesava uma tonelada e, ao final ecoava uníssona em sua alma, era a E assim, Angélica adormecia daquele desgostoso movimento, da mudança, da revisão de vida, da graciosamente, transmutada por deparou-se com o seu parceiro, que chance de recuperar o vigor físico e completo, absolutamente consciente impassível e sem esboçar qualquer espiritual. de si e de vigor. Acariciando-se atitude de auxílio para com ela, Angélica fixou o olhar muito delicadamente, demonstrava para perguntou-lhe: - “ Está tudo bem além do que estava aparente aos seus cada partícula que estava ao seu neguinha?” marejados olhos. Respirou fundo, redor, uma sincera e inabalável prova Naquele momento um silêncio ecoando por todo quarto o som do ar de amor-próprio. Este que há anos fatídico transpassou a alma daquela que era absorvido e, posteriormente, estava esquecido em seu interior, mas mulher, explodindo violentamente expelido juntamente com as que agora, pulsava em suas veias com todos os átomos que compunha o desagradáveis reminiscências que vitalidade e generosamente irradiava cenário daquele apartamento tivera naquela noite. Lentamente em cada carícia sua, arrepiando-a de candidamente decorado. Novamente aplacava os pensamentos, que, como excitação consigo mesma e os seus sentidos foram arrebatados uma tempestade silenciosa, movia-se expandindo por todo quarto como ao dar-se conta que durante toda a violentamente na tentativa vã de uma esplêndida e maravilhosa áurea. sua vida, foi só e, unicamente, uma dilacerar a sua vigorosa e astuta “Este momento...” - pensou caricatural “neguinha”. percepção. Angélica em êxtase. - “Foi o melhor e Cambaleando lentamente até o E, revendo cada cena de tudo mais importante presente que recebi quarto, sob o olhar entediado da sua que acabara de lhe acontecer, durante a minha vida. E com um mais recente aventura estéril, identificou naquela inesperada sorriso enigmático expressava a Angélica, de maneira áspera e experiência, a oportunidade consciência plena de si mesma.. agressiva, solicitou a saída deste de retumbante que tanto almejava para seu apartamento. Foi uma expulsão corrigir erros tão grotescos, advindos, _______________________ ríspida, desprovida de qualquer unicamente, da ominiosa fraqueza e *Dedico este texto para todos “formalismo litúrgico”. O pobre sórdida decadência que teimava em os seres errantes e desleais que mancebo saiu, mas não sem ao não reconhecer em si mesma, mas absorvem o que há de iluminado e menos, desferir na face humilhada sempre, nas outras pessoas. criativo em todos que passam por daquela mulher, uma injuriosa ofensa Angélica delicadamente suas repugnantes vidas, fazendo-os, verbal. Angélica nada disse para enxugou as lágrimas de seu rosto e, já covardemente, cambalear sob o contra-atacar, nem sequer pensou. restabelecida em consciência e olhar obsequioso e melancólico da Apenas com toda a força que ainda plenitude, agradeceu com um vago decepção. Para vocês, seres ignotos, restava em sua alma, aspirou o ar sorriso de gratidão, àquele que desejo superação e graciosa denso e gelado, sentindo-se tremer minutos atrás, fora um dos momentos plenitude. de frio e de horror. Visivelmente mais sofríveis de sua vida ao longo destituída de prazer, Angélica daquela trajetória, tornando-se uma _______________________ lentamente encaminhou-se à sua experiência indescritível, inexplicável Acton Lobo é licenciado em geografia imensa e solitária cama, deitou-se e incomunicável a qualquer pessoa pela Universidade do Estado da Bahia como um cão, olhou para o teto e que fosse, pois, justamente na noite UNEB Campus V. Atualmente reside observou catatônica, o minúsculo do seu trigésimo aniversário, pôde, em Salvador. universo particular (feito de plástico finalmente, livrar-se da virulenta, E-mail:actonlobo@hotmail.com fluorescente), que cintilava incômoda e imprestável máscara que uniformemente sobre o seu ser tanto evidenciou orgulhosamente.
  • 4. A faminta Por Jean Michel Ferreira Santos Não sei seu nome, não o perguntei... Naquele Passei então a perscrutar o meu campo de visão momento era a história de Lagartixa que se misturava com como só os verdadeiros observadores dentre os meus a minha. Só agora, dias depois, quando a viagem já passa a leitores poderão entender, mas que me valem os outros? - ser depurada nas maneirices da racionalidade é que me “o resto é apenas a humanidade”! Olhava atentamente e vem ela perturbar os sentidos, me pedindo atenção: uma tentava adivinhar como a visão do calor que se desprendia mulher jovem, magríssima, suja, descabelada... Estava daquela chapa e juntamente com a luz que a cercava sentada ao lado da pequena barraca de lanches que formavam um ambiente de suposta segurança: e o que é a paramos para comer algo após uma noite de muito segurança senão uma pequena ilusão provocada pelo calor, conhaque e reflexões sobre o caráter fálico do monumento pela luz e por tudo que é familiar e aconchegante no meio erguido no meio da Praça do Campo Grande, e que “nós” de um mundo com tantas outras coisas que não queremos logo transferimos (o caráter fálico) para o homem de modo ver, pois são tão inseguras e imprevisíveis? Desenhava geral e todas as suas construções e toda a sua ação, pois a então na minha imaginação o caminho da luz e do calor e natureza do homem é (ou pelo menos tem sido até hoje) pude observá-los se desprendendo daquela barraquinha e fálica. Após embriagar-me no e com o Campo Grande e de traçando lenta, vagarosamente sua trajetória a caminho encontrar, ou melhor, ser encontrado por Lagartixa, eu e dos outros bares e lanchonetes ainda abertos à direita (no meus “amigos descartáveis” procuramos uma larica, visto caminho de volta ao Campo Grande): já que foi de lá que que era tarde e sem ter comido nada a noite toda o fino viemos e por certo era para lá que tendíamos regressar: - que fumamos aliado ao conhaque com Coca que bebíamos “Sempre de volta para casa!”. Mas nessa acalentadora compulsivamente, atacavam de forma voraz o estômago, visão me veio um calafrio: como uma alfinetada no espírito; psicológica e fisicamente. uma pergunta trazida pelo vento; uma pergunta sobre o Então, depois de sermos expulsos da praça, que há vento: quem é que sopra esse calor e essa luz para lá, pro muito tempo não é mais do povo, “decidimos” seguir a luz caminho de volta para casa? Voltei o olhar (entenda-se: um de volta ao conforto e segurança da familiaridade novo olhar!) para a esquerda (ai do meu pescoço que consumista. Não sabia quantas coisas carregava agora o peso de toda aconteceriam ainda naquela noite; “...e o que é a consciência deturpada de uma geração uma, e talvez a mais importante (já inteira, ou talvez duas.) e lá estava ela: que agora insiste em martelar minha segurança senão uma a faminta. memória), foi observar aquela jovem pequena ilusão provocada Qual não foi minha surpresa ao sentada ao lado da barraquinha na qual um rapaz, também jovem, pelo calor, pela luz e por ver que Lagartixa (uma psicóloga sem teoria, uma psicóloga da práxis, moreno, com uma tendência adiposa tudo que é familiar e formada pela práxis.) estava também que deduzi em suas costas, preparava aconchegante no meio de sentada junto a nossa protagonista... hambúrgueres: estes, muito vistosos Cumprimentei-a e ofereci o restante por sinal... um mundo com tantas de conhaque com coca que ainda trazia E foi este meu alimento naquela outras coisas que não comigo, ela não respondeu... Pensei (e noite: a visão saborosa daquelas como é maravilhoso constatar que bombas de coliformes fecais, que nós, queremos ver, pois são tão realmente o tempo refletido é um jovens “terceiro-mundistas”, temos inseguras e imprevisíveis?”. tempo dentro do tempo) que ela não que engolir satisfeitos, junto com me tivesse visto... Acenei de novo, mas outras transplantações... Mas felizmente nesta noite meu mais uma vez ela se manteve neutra ao meu estômago e espírito se satisfizeram de “luz”. cumprimento... Só então percebi que estava ocupada: Encostado no capô de um carro, enquanto esperava estava cumprindo uma tarefa (que é algo muito maior que ansioso o meu pedido, alimentava minha gula vendo as um trabalho) e a ética que ninguém, além da vida e sua outras pessoas se deliciarem, mordendo suas “bombas” dureza, a ensinou, não a permitia -naquele momento- ainda quentes, e aquelas expressões híbridas de prazer e realizar seu desejo de ir correndo pegar o que a oferecem dor me fizeram intuir o fato das pequenas queimaduras na (atitude que ela tomou depois com a naturalidade de quem boca serem tão insignificantes ao faminto que talvez até conhece o tempo e suas dádivas, a naturalidade de quem sejam mesmo necessárias... sabe esperar).
  • 5. Lagartixa consolava aquela gestação adolescente, irresponsável e e da minha mente jamais se apagou o jovem, tentava mostrar a ela egoísta, mas, para surpresa da mãe eco de sua voz espalhafatosa e caminhos, saídas onde na verdade só assassina, a criança/problema renitente aconselhando nossa havia “dor, angústia e sofrimento”... sobrevive e chora: deduz-se daí que pequena gestante sem nome: Mas quem será que Lagartixa não é muda, pelo contrário, é muito -Amiga, não chore, nós somos consolava naquele momento se não a barulhenta. No entanto a “nova mãe” lindas, estamos vivas... si mesma, e onde ela procurava poder não quer chamar a atenção, então - ÊEEEEeeeei! (num grito que frente ao espelho: da miséria, do pede carinhosamente, com ares de provocou uma revoada de pardais desprezo, da infinita solidão do frio, boa mãe e a ingenuidade de todo abrigados numa árvore próxima) do vento, aquele mesmo vento que adulto que pensa ter poder sobre a - É minha!... (Lagartixa falava da aos poucos trás a madrugada e o criança: -“Calma filhinho, você não comida “colhida” de algum apagar das luzes, que nos expulsa das quer prejudicar sua mãe, não é?”. E consumidor, freqüentador do ruas de volta para casa, onde pela primeira vez ela percebe que o território onde ela exercia poder na podemos de novo buscar luz e calor... menino se calou, pois a ouviu, e como noite da cidade, e que provavelmente Esse vento só encontrava resistência também estava de olhos abertos a já a conhecia e costumava ajudá-la ali (em minhas duas amigas), muito pode ver: essa tranqüilidade, essa com a penitência dos restos de além do consumo e suas mentiras confiança, essa certeza, assustam! refeição que viram esmola ao invés de atraentes. Todo esse pensamento brotou lixo...) Ainda esperando, serpenteou como a lembrança de uma música que E eu o vi, esticando o braço para em minha consciência com a escutei silenciosa e solitariamente em fora de seu belo carro e entregando tranqüilidade dos grandes rios que meio a todas aquelas pessoas: um saco plástico para nossa psicóloga cortam o país e deslizam se sem título... entregando na voluptuosidade de “Um índio descerá de Retornava então orgulhosa e nossas terras, encharcando-as da uma estrela colorida e brilhante irrefutável, em sua demonstração que tênue, mas também abundante e não De uma estrela que virá prescindia qualquer teoria, para programada ou “racionalizada” numa velocidade estonteante colher junto a paciente os louros da fertilidade (assim como me parecem E pousará no coração do estratégia que se justificava tão tênues, mas paradoxalmente hemisfério sul...” arrebatadora e infalivelmente: abundantes as teias que compõem as -Tome amiga, tá veno como afinidades) a idéia que todos os atores Estava então consumado, bem num tem motivo pra chorar? sociais já sabem, mesmo como consumado estava o preparo da E depois disso, ela se foi... inconscientemente em alguns casos, “minha bomba” e o “índio” assim Nossa! (“essa tranqüilidade, que “dentro da massa existe o como essa confiança, essa certeza” homem, e o homem é difícil de realmente “assustam!”) dominar, mais difícil do que a massa”; “Brás pastor inda donzelo, Estava só e segurava, já sem a idéia de “nós” como uma nação - e querendo descabaçar-se, fome, meu “super X alguma coisa” e o isso não é novo! viu Betica a recrear-se único ponto que ainda me chamava a Nós: “desterrados na própria vinda ao prado de amarelo: atenção era a faminta... Ela havia terra”; caranguejos que ante a e tendo duro o pinguelo, devorado tudo que Lagartixa a tinha impossibilidade do mar fomos foi lho metendo já nu, dado de uma só vez, e agora me obrigados a adentrar o sertão, fossando como Tatu: olhava, e a sensação mesma que tive conhecê-lo e amá-lo, e formamos e gritou Brites, inda bem, foi que o próximo prato tanto poderia fomos formados pelo manguezal de que tudo sofre, quem ser o hambúrguer quanto meu “eu” onde é difícil nos transplantar, temrachadura junto ao cu.” mais estimado... Não seria a fome de endurecemos nossa carapaça, quinhentos anos que me espreitava cavamos mais fundo, e alguns dos E no pequeno intervalo de naquele momento? nossos “coringas” já traduziram, o tempo, que numa “perspectiva Mas logo me despreocupei... que, a partir da experiência explode sistêmica” pode representar um Lembrei que não tenho em avalanches de analogias: a universo inteiro de possibilidades, que ambições de “mestre”, sempre preferi mensagem da mais bela flor que me distraí para pagar a refeição, ser discípulo, pois sei dos perigos de nasce no meio da lama. No nosso caso Lagartixa tinha me deixado sozinho me “profissionalizar”... Nas um “lodaçal de macadame”, pois novamente na noite soteropolitana... “experiências” que pude observar de somos o filho não planejado que Ainda consigo vê-la adentrando perto, sempre, os indivíduos, de um nasceu prematuro, fruto de uma tranquilamente o “lado escuro da lua” modo geral, intelectuais, de forma
  • 6. particular, que pautam a vida numa perspectiva de prenhe de outro baiano/brasileiro (mais um faminto) que mercado têm demonstrado sintomaticamente uma meu espírito se pôs novamente a cantar: patologia que é degenerativa tanto do corpo como do espírito [“quem, de três mil anos não vê, está à mercê dos “Ói! ói o trem. Vai surgindo de trás das dias e do tempo”]: a aceitação incondicional e incontestável montanhas azuis, ói o trem... de tudo que lhes empurram goela a baixo através da moda. Ói, já évem, não precisa bagagem nem mesmo Com a singela desculpa que “o intelectual/indivíduo passagem no trem...” também precisa comer” eles a polícia do pensamento por excelência, ou seja, o homem moderno ou pós- correm Essa música de poder me colocou de volta nos atrás, além da comida, do luxo prometido, a esmola eterna - trilhos... “sanctas simplicitas!”. Parece, porém, que “novos tempos” Repeti em silêncio o mantra fraternal: “cautela e estão começando a despontar e talvez surja... prudência!” Ou melhor, nada surge, apenas passa a ser visto... Então pensei: “caminhe para ela e a dê de comer...”, “aquilo que nesse momento se revelará aos povos/ foi o que fiz: surpreenderá a todos, não por ser exótico/ mas pelo fato -Boa noite, meu nome é Pedro, “Lagartixa” pediu que de poder ter sempre estado oculto/ quando terá sido o lhe entregasse isto: (dei a ela o hambúrguer que tinha óbvio” comprado...) ...uma classe de “baianos” ainda “mais preguiçosos”, E foram essas as palavras da faminta: e preguiçosos ao ponto de não requerer mais nada a não -“Deus abençoe!” ser a liberdade total do indivíduo. E “nossos irmãos”, os Incomodou-me um pouco a resposta, mas logo intelectuais-profissionais-terceiro-mundistas-modernos, esqueci... (era com Lagartixa que eu queria “falar”). talvez enfim percebam que a resposta está bem aqui, basta parar de esticar o pescoço para tentar ver o outro lado do ______________________ oceano, sempre! Jean Michel F. Santos é licenciado em história pela Podia então olhar sem medo, mais com ternura e Universidade do Estado da Bahia UNEB Campus V, admiração, a essa potência que é nossa fome. Esse traço Mestrando em Cultura, Memória e Desenvolvimento interessante da identidade brasileira de modo geral e Regional, também pela UNEB Campus V e Graduando do baiana de uma forma tão poeticamente peculiar. Foi assim, curso de Direito da UNEB Campus XV. Atualmente reside olhando fixamente para ela e em especial para sua barriga em Santo Antonio de Jesus. E-mail: jeansaj@hotmail.com
  • 7. ANA Por Manoel Souza das Neves Parecia muito mais velha, mais cansada, e ao ouvir de Que ela nunca foi uma pessoa das mais normais, isso minha boca aquelas velhas perguntas, respondeu que o todo mundo sempre soube, mas daí a vir a se acabar casamento ia muito bem, que o filho era maravilhoso e que daquela maneira foi no mínimo enigmático, e para mim sua família era sua grande válvula motivadora. Quando então, que pude tomar conhecimento das verdadeiras perguntei que expressão então era aquela em seu rosto, razões, a princípio foi um grande choque, logo eu que dizia inventou umas histórias meio sem sentido e em dois já ter visto de tudo na vida. monossílabos encerrou a conversa. Ana era uma pessoa legal, geógrafa, adorava Nos víamos pouco, pois agora eu já não cabia no lecionar, vivia viajando para dar aula nos mais diversos interior e me mudei para Salvador. Quando alguma coisa lugares. Menina do interior, sempre preferiu as cidades me fazia cortar aquelas estradas esburacadas novamente, pequenas ao movimento das grandes capitais. Já havia sempre dava um jeito de lhe fazer uma visita e constatar passado por lugares que até hoje procuro no mapa dessa que algo estava errado. Insistia então: “Ana, o que é que Bahia de meu Deus e nunca os acho. “Tenho medo do há? Agora até um cachorro você tem e nada te deixa feliz. asfalto ela dizia um dia ele acaba me matando”, e eu O que passa contigo, meu amor?”. Mas a maldita não me entendia aquilo como uma espécie de receio que é típico contava, dizia apenas que iam da maneira certa, que de alguém que nasceu e passou quase toda a sua vida tinham uma boa casa, uma boa família, dinheiro, sexo e curtindo o bucolismo do interior. tudo mais que alguém precisava ter. Só lamentava que Vivia solta no mundo, numa espécie de nomadismo depois de nascido o segundo filho, teve de parar de sem fim, até que por uns anos atrás resolveu casar e ter um trabalhar para se dedicar exclusivamente à criação das filho. Por esta época nos crianças, conforme a vontade do seu encontrávamos de vez em quando e, marido. Dizia que quase não saía mais como a intimidade me permitia, não de casa, que sentia, de certa forma, perdia a oportunidade de lhe perguntar “Meu último prazer foi falta de suas viagens, do tempo em como ia a sua vida de casada, já que que não parava num lugar e eu desde os tempos mais remotos, usurpado, meu último e brincava dizendo que ia arranjar pra quando a conheci na faculdade, aquela grande prazer foi tomado ela um emprego numa empresa de mulher sempre pendia para a promiscuidade e a vida de mim, de uma maneira viagens. a partir daí que comecei a Foi descompromissada. cruel, rápida, à traição, sem perceber. A vida de Ana havia Em resposta às minhas perguntas, ela sempre dizia que ia chance de defesa, um crime mudado, e com isso, algo ficado para muito importante havia que lhe era levando, que depois que o menino qualificado, onde eu, sendo trás, e por mais que tentasse nasceu não podia mais lecionar em talvez a única vítima, sangro esconder, mesmo dela própria, ela tantos lugares e que sua vida agora se estava sentindo falta e aquilo a ancorava numa cidadezinha agora até morrer. ” angustiava cada vez mais, dia após promissora, cujo nome eu nunca dia. Naquele mesmo ano voltei a São memorizei. Dizia que a felicidade, pelo Paulo para me doutorar e levei em menos aquele tipo de felicidade que ia implícita nas minhas minha retina a imagem de uma mulher decadente. Pouco perguntas, não dependia necessariamente da satisfação mais de cinco anos, volto eu a passeio para a Bahia. Sampa que se podia obter no relacionamento conjugal, e antes tinha finalmente me conquistado, me dado mulher, filhos, que eu pudesse esboçar qualquer reação ela me dizia pra cabelos brancos, barriga, um apartamento de dois quartos, não pensar besteiras. pressa, fadiga, mau humor, brigas de torcida, metrô, Lembro-me de tê-la deixado linda quando fui para decepção, insônia, televisão e mais um monte de coisa São Paulo a fim de cursar meu mestrado. Ela fez questão de chata, sem falar no sotaque. vir a minha festa de despedida, trouxe a família toda e Mas continuando, volto eu à Bahia a fim de pareciam estar muito bem, foi o que todos comentaram. apresentar minha nova família aos meus parentes e, Pouco mais de dois anos depois, quando retornei, era sozinho, dei um jeito de interiorizar para ver o que tinha notável na expressão facial de Ana que algo não ia bem. sucedido daquela mulher, já que há muito ninguém ouvia
  • 8. mais falar dela. Chego lá e descubro nos separar, e que as lembranças traição, sem chance de defesa, um que a danada havia morrido a cerca daquelas aventuras loucas que crime qualificado, onde eu, sendo de uns oito meses, de tristeza, vivemos desde os tempos da talvez a única vítima, sangro agora até inanição ou sei lá o que. O marido faculdade irão parar no fundo de um morrer. tinha se mudado para outra cidade e baú de memórias, onde serão Meu último prazer, aquele que levado as crias. Na casa agora morava progressivamente comidas por um acho que somente eu no mundo uma tia, que tomava conta das coisas conjunto de traças insensíveis. Mas sentia... Um prazer solitário, que o peso diário de uma triste ainda me recordo muito bem da descoberto por acaso no espaço lembrança certamente havia última vez que esteve aqui, você intenso existente entre duas poltronas impedido os herdeiros de levar. estava bonito, mais intelectual, mais vazias de um ônibus em movimento. Bati na porta, entrei, bebi água, um monte de tanta coisa, fiquei Ai, como era bom, melhor que café, suco, comi bolo, biscoito, orgulhosa de você, meu amigo mestre transar. Sempre foi melhor do que conversei um bocado com a velha que e à uma hora dessas, sei lá, talvez já qualquer trepada. E eu podia queria me engordar de qualquer jeito até doutor. desfrutar daquilo sozinha, conduzir do e fiquei sabendo que a mulher que eu Me senti como se tivesse lhe meu jeito, ali, quase todos os dias, sempre tive a impressão de que traído quando me perguntou o motivo sentadinha, indo dar minhas aulas, amava tinha morrido mesmo de uma da minha cara estar parecendo uma num veículo parcialmente cheio, o tristeza estranha, uma espécie de ameixa seca, mas confesso que na que dava ainda mais tesão. banzo, praticamente comendo terra hora eu não tive o mínimo de Ia sempre de saias, vestidos, no jardim. Dois anos antes da morte, coragem necessária pra te dizer. E sentava na poltrona, onde havia contraído uma tuberculose que mesmo agora, ainda não tenho, discretamente retirava a calcinha, a debilitou física e espiritualmente, mesmo sabendo que irei me deparar sentava com as penas abertas, já toda confinando a pobre coitada cada vez com o único destino irremediável. molhada, em posição no mínimo mais dentro de casa. Mas sim, o fato é que vou morrer e sei interessante, com minha xana quente Havia objetos pessoais dela na exatamente do que é. Na verdade eu a roçar na pequena elevação casa, os quais a velha fez questão de sempre soube... e agora vou te contar. provocada pela junção dos assentos. E me mostrar. Um monte de papel Não vai rir de mim, ta bom? Pra você ficava esperando o asfalto se findar e velho, livros velhos, roupas velhas, eu conto, você que sabe tanta coisa a entrarmos na prazerosa atmosfera lembranças velhas, parecia que Ana meu respeito, que poderia até me por que somente a pavimentação à tinha morrido com uns duzentos anos, na fogueira da Santa Inquisição. Você paralelo, mais nada, nenhum homem, e aí, no meio disso, não é que achei a quem eu deveria ter dado, e dado animal, fruta ou qualquer outra coisa um pacotinho com meu nome escrito? somente a você, dado até morrer de que tenha testado pôde me inserir, Fiquei meio sem graça, mas mostrei à cansaço, de prazer, de falta de gozando louca e disfarçadamente, tia que aquele embrulho tinha meu líquidos, afogada nos fluidos entregando-me apenas com um leve nome e que eu gostaria de levá-lo corporais, morrer com um câncer nas suor nas mãos e na testa, o que não comigo. A velhinha não fez objeção e cordas vocais de tanto gritar com você levantava desconfiança, pois se depois de mais uns dois cafezinhos me deixando louca. ninguém dali havia trepado comigo, vim embora deixando para trás o Desculpa por isso, mas eu logo não sabiam desse meu pequeno fantasma decrépito de alguém que também precisava dizer. Agora vamos segredo. tinha sido tão cheia de vida. lá: Não estou satisfeita, não estou Pois bem, meu grande e Ainda no ônibus de volta, e realizada, sou um ser rejeitado por delicioso amigo, como você sabe, a pensando no que ia dizer pra minha aqueles poucos momentos felizes que família, os filhos, foram me impedindo mulher a respeito de ter passado um possuem o dom de fazer a gente cada vez mais de trabalhar, e quando dia inteiro fora de casa, resolvi esquecer a mazela que é a vida. nasceu o segundo menino eu já não ascender aquela luzinha fraca que fica Ninguém me obrigou a ser o que sou, podia mais sair de casa. Meus únicos acima de nossas cabeças e investigar o fui eu quem quis, e fui me enfiando consolos eram as visitas às tias que conteúdo do pacote. Abri e vi mais numa droga de caminho que me vez em quando dava pra fazer sem ter coisa velha, papel velho, uns poemas trouxe até esta mesa, com esta de levar criança e marido, e te digo: que não sei até hoje se são dela e uma maldita caneta em punho. Valia muito a pena enfrentar tardes cartinha pra mim, cuja leitura me Estou praticamente escrevendo inteiras de conversa com aquelas deixou muito intrigado. Eis o texto: meu epitáfio, mas que seja. Meu mulheres chatas, enchendo a barriga ultimo prazer foi usurpado, meu de café e bolachas. “Meu querido amigo, não é de último e grande prazer foi tomado de Porém, como não poderia agora que a vida da sinais de que vai mim, de uma maneira cruel, rápida, à deixar de ser, não só minha rotina ia
  • 9. mudando, mas as coisas ao meu redor também. E de repente, num dia cinzento, quando consegui finalmente me desvencilhar da tralha familiar, descubro que a última estrada que me ligava à minha última tia, meu último reduto de verdadeiro prazer intenso, estava sendo asfaltada, como também as outras já haviam sido anteriormente. Não demorou para que concluíssem as obras e a última via a paralelo desaparecesse para sempre levando consigo praticamente a minha razão de viver. Tempos difíceis, de infelicidade extremada e decadência corporal e espiritual. Ainda por cima veio a droga da tuberculose. Gostaria que estivesse aqui agora, para que pudesse lhe dar o que sempre deveria ter lhe dado em demasia. Fiz muita besteira na vida e gostaria de morrer sem ter feito mais esta, que é justamente o não fazer, o não ter feito com você. Não vou escrever mais, isto é tudo que gostaria de ter lhe dito naquele dia, mas a frouxidão impediu. Naquele tempo eu ainda viajava... Hoje vivo trancada em mim, acorrentada a um mundo de casa, comida, filhos, e nem uma gozadinha de verdade sequer. Adeus, tomara que você nunca leia esta carta, se isso ocorrer, esteja onde estiver, estarei com vergonha. Que sua sorte seja diferente da minha. Sua Ana.” Após concluir a leitura, confesso que estava muito excitado. Sempre a desejei, mas as vicissitudes do destino não deixaram a coisa acontecer. Olhei para baixo e fiquei durante alguns minutos observando a divisão das poltronas Equipe Outras Farpas: e naquele momento então pensei, “meu Deus, o progresso Acton Lobo; Jean Michel; acabou com a vida desta mulher!”. Leandro Bulhões (Leo Pó); Manoel “Durrel” das Neves; Tempos depois percebi que, na verdade, se tratava de algo mais. E-mail: outrasfarpas@gmail.com ____________________ Manoel Souza das Neves E-mail: manoelsaj@hotmail.com