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despedida de uma
                 alma




Antes que comece a ler, lhe aviso que é necessário refugiar-se,
assim como as lebres fazem ante ao barulho. Não importa quem
seja você e em que século esteja lendo essa carta, eu sei e você sabe,
que algum dia lhe foi arrancado dos olhos um véu de fantasia e se
ainda não foi, se prepare para sentir muita dor. Pois seus olhos um
dia já não brilharão com o que agora veem.



 Há uma toca dentro de todos. Acolha-se em silêncio e
experimente-se por esses minutos...



 Para alguns a doçura do campo trás segredos, lágrimas cristalinas
de orvalho. Para outros é mais fácil não olhar ou acreditar que essa
doçura é enjoativa e melancólica. Porém a verdade é que todos um
dia pensaram que há algo oculto em toda parte, aonde quer que a
gente vá.

 O teatro era um entardecer fresco e o primeiro ato consiste em
quando a mocinha o vê pela primeira vez. Bom, a mocinha era eu e
ele... Bom, ele era o homem nocivo ser que destruía tudo que
tocava.

 Naquele instante perdi o ar que preenchia meus pulmões, como
um sopro de morte. Aquela imagem ainda retrocede, a imagem de
quando o vi cavalgar imponente, dividindo espaço com nuvens cor
de laranja naquele céu que denunciava uma noite fria se
aproximar.
Ele tinha gestos de cavalheiros medievais, parecendo estar em
batalha todo tempo, fosse com o vento, com o campo ou com a
própria natureza e com tudo que era maior que ele. Não sei o que
aconteceu naquele momento, mas eu gelei como se assistisse a um
filme de terror, mas diferente do filme eu queria sentir isso todos os
dias e o mais perto que conseguisse.

 Dia de outono tímido foi aquele, depois que o vi não tive mais
nenhum assim.

 Ah, sinto talvez ter lhe causado a impressão de haver transferido a
imagem de algum amor nessas linhas, mas na verdade o que há de
mais real, ou melhor, houve, foi um desejo que me fervia o sangue.

 Os olhos dele se faziam espoja a sugar minha alma e minha
vitalidade. Atava nós em cordas alheias e fazia escravos implícitos
com seus poderes.

 Nada havia em mim de mais limpo que ele não o tirasse por
completo. Nada havia em mim de mais sonhador que ele tudo não
destruísse. Depois de vê-lo levar o cavalo a pisotear até mesmo
minha sombra, não houve um milímetro de descanso em meu peito.

 O bem e o mal... Quanta simplicidade a minha, quanto conto de
fadas não é mais criativo, mas nada posso fazer contra o que eu
quis.
Sim, eu quis... Não podemos dizer que a maioria das coisas não foi
enfim uma escolha.

  Houve tempos amargos que por algum motivo eu apaguei, houve
tempos em que eu fui apenas um ser a desmoronar em muros de
carne e músculos formados por aqueles braços rudes. Eu me
abrigava nele deixando cair minha máscara de ódio e fazendo
surgir de mim pedaços vivos dele já encarnados em meu coração.

  Foi uma briga comigo, foi uma queda e tanto me arrepender todos
os dias de ser feliz com quem não era desse meu jeito, com quem
não era um ser humano de fato humano. Com quem era
considerado apenas um bruto animal da selva, incapaz de não me
fazer mal.

  Foi aí que o primeiro ato acabou e talvez a peça inteira alguém ou
“ele” te conte um dia...

  Deixo-lhe agora a história de minha despedida, o dia da última
visita, minha descrição da lembrança que eu nem sei mais se foi
real. Ele já era parte de mim surgido como um parasita e agora se
fazia órgão vital.

...

Em meu sonho ele entrava em meu quarto. Um gigante sentindo-se
indefeso, olhos fixos no vácuo do meu leito.
Senti em um assombro se aproximar e debruçar leve sobre meu
peito ficando alguns instantes. Senti sua testa com os dedos, sorri e
me fragilizei com minha própria alegria, tanto que o ar já escasso
me faltou no peito quase parado. O marrom dos meus cabelos
laçava o tom de suas mãos que me acariciavam tão unicamente.
Sua boca vinha tão perto que podia absorver o cheiro do ar que
operava aquele organismo. Hálito do homem que me abrigava em
seu pesadelo.

 Era esse dia o começo e o fim das voltas e amarras inúteis. Tanto
símbolo, tanta lei e tudo e nada tem de vida.

 O coração de um feto se forma em pouco tempo e desde que
começa a bater só irá parar uma única vez. Entre a primeira e a
última batida não há nenhuma diferença, pois ele fez nas duas
vezes o que deveria fazer.

 O corpo é como uma tela onde o tempo faz a obra que não cabe
no imaginário e o coração é o relógio programado para despertar
em um secreto momento. Tudo é perecível.

 Em meu sonho ele pegava minha mão e punha os negros olhos
para mergulhar em minha translúcida alma. Sua tristeza e seu
abatimento o deixavam tão diferente ao passo que não
reconhecê-lo era impossível para mim.
Vinha avulso em minha serenidade, não que quisesse me
bambear, mas ele já era assim desde que se lembrava e a última
coisa que iria era me fazer mal.

 Vinha se aproximando intenso ao tempo que se apagava diante de
mim. Um escuro o encobria, assim como a imagem e o toque o
adormecia enquanto meu corpo se tornava um abrigo vazio em
cada segundo que se passava. Mas nem mesmo assim, nem mesmo
se houvesse um céu nublado em torno de nós ou um agito do
trovão, nada quebraria minha forçada paz. Eu estava me
despedindo de mim e já havia me despedido do mundo.

 Quando me trazia sua pele naquele abraço, ele molhava meus
lábios, me sugava com força e me dava o último sabor de sua carne.
Assim eu vinha de volta à vida ainda sabendo que não duraria
nada.

 Esse é o meu sonho, não aquele de quimera, aquele de quando
dormimos e temos alucinações inconscientes.

 Acreditava que algumas coisas acabariam quando a gente
acabasse, mas teimo em contar que algo me ultrapassava a carne às
vezes e me ultrapassa ainda...

 Algo mais perfeito que o funcionamento dos delicados neurônios,
mais inimaginável que o universo dos pensamentos, seus labirintos
escondidos e seus gatilhos... Algo ultrapassa, vai além da pele, além
do sabor, além de todos os sentidos. Existe um viver sem nome, sem
cheiro, sem tamanho, sem refúgio, desconhecido...

 Não me recordo das noites em que ele me aqueceu, mas posso
contar a mim mesma a lembrança saudosa de quando trememos e
suamos pela primeira vez. Não me recordo do som que fazia nossas
bocas unidas, nem do gosto que ficava quando nos separávamos,
mas sei que aconteceu inúmeras vezes. Não me recordo do aroma
de nós levados com o vento, na água dos rios, sujos de terra,
caminhando entre insetos, no mundo das bactérias. Dois animais,
bichos da selva de pedra, também concretos... Eu não me recordo de
ser assim... Mas sei que fui algo e que ainda sou.

 Tive sonhos inconstantes, sonhos e delírios, vontades...

 A febre, os calafrios, as dores, as convulsões... Entre idas e vindas
tive a impressão de não estar em mim. As pessoas entravam e saiam
do hospital e eu me aproveitava de cada segundo de lucidez,
sabendo que eram os últimos.

 Havia fantasmas coloridos em torno de mim, havia monstros que
arrancavam as unhas dos meus pés e gritos onde realmente não
haviam nada...

 Pesquei uma estrela um dia e a chamei de minha. Nela escrevi um
segredo:

“Despi meu corpo, fui mulher, devorei um homem. Fui da
inocência à ignorância, do pecado à remissão. Vivi o tempo que
deveria, ainda que perdido... Um tempo de ser. E eu fui.”

 Sabe, eu tive um sonho. Ele me acompanhava e me levava sendo
também levado. Corríamos e tropeçávamos, caíamos e voávamos
em veredas escuras e desnecessárias.

 Disse-lhe um dia que amor é só isso, precisar. Me olhou mal,
como se minhas palavras lhe parecem frias e eu com minhas
conversas estranhas brinquei um pouco mais. Lhe falei do que
achava dos velórios, sobre o fato de achar que fossem instantes em
que muitos choram, mas que poucos entendem por que. Falei do
pensamento de que o choro não vem pelo morto, não vem pelo que
ele está sentindo ou não está sentindo mais. O choro no velório vem
por que ao ir embora a pessoa deixa um buraco no peito de quem
precisa dela, tornando o ato de chorar em velórios um sinônimo de
auto piedade. As pessoas choram por elas mesmas, com dó de si
próprias e não do pobre que evaporará no tempo.

 Lembro-me que o que disse mudou algo da visão que tinha de
mim, que talvez mais filósofa que em qualquer época, estivesse
crescendo por dentro, sem me preocupar tanto com o que nos
ensinam que devemos nos preocupar.

 Disse-lhe também, após alguma discussão sobre ideologias, que
fosse meu para eu precisar e eu também seria dele e que precisasse
de mim!

 Nós dois fomos uma incerteza mais certa do que naturalmente
deveria ser. A delicadeza do espírito dançava com a violência do
animal. Seu jeito e seu sistema me parecia um tanto arcaico, mas eu
continuava a sorrir para o vento e a questionar tudo, fazendo-o
ficar mudo e outras vezes gargalhar com frases estranhas quando
ele estava acostumado com um manual que a vida o obrigara a ler.

 Nós éramos contrários e ele sabia que me machucava às vezes,
como no casamento da flor com o vento.

 Quando na dança, a ternura pegava por par a paixão e a jovem
descrença no amor se abria a um coração ateu, - coração que se
converteria, se curaria -, tudo o mais se quebrava, inclusive eu...

 Porém eu me entendia bem com tudo de nós quando ninguém
mais era capacitado a isso, e quando nos instantes em que via uma
agulha entrar aguda em meu braço eu me sentia bem, pois eu via
nos olhos dele que tomaria o meu lugar a qualquer momento se lhe
fosse dado essa possibilidade.

 Era incrível ver que seus olhos nunca se molhavam na vida adulta,
ao menos não para que todos vessem e já naquela hora ele parecia
um menino medroso. Eu não sabia mais se acreditava em minha
teoria fúnebre que havia ditado a ele, mas estava formulando outra,
a de que ele sofria quando eu sofria e isso talvez fosse amor.

 Nunca fui do tipo vívida e algo me dizia que esse meu corpo não
duraria muitos anos. É certo que eu nunca quis ouvir essa voz
macabra, mas sempre que me olhava no espelho, eu tinha essa
sensação e estremecia. Nada pôde salvar meu sangue que era
branco demais para tornar rosada minha face outra vez e fui me
apagando dos olhos dele e dos olhos do tempo...

 Em meu sonho não posso vê-lo, ele não tem mais cheiro, não tem
mais forma e não posso ouvi-lo. Seus carinhos vão muito mais
fundo e está muito mais dentro, mais limpo, mais puro e bonito.
Não há tato, nem sabor onde me encontro...

 Eu disse que amor não existia, até ter aquele sonho. Foi preciso
morrer para entender que algo tão perfeito às vezes é temido. Algo
desconhecido às vezes é recusado, mas como disse antes, algo tão
único às vezes ultrapassa também...

 Algo como o amor não seria deixado no corpo.

 Há algo e esse algo não morre. Já teve essa sensação? A sensação
de que alguma coisa permanece viva não importa o que aconteça?
Talvez em nós a eternidade se sustente e cada vida que passa é um
pedaço de outra que começa. Talvez e só talvez, tudo isso continue
e não haja mais dor juntamente com aquilo que não entendemos.

 Sei que fui alguma coisa e que não passei. Não sei me nomear
agora, não sei minha forma, mas sei que sou em algo que sei o que
é em um espaço diferente de tudo, mas não traduzo nada... E se
pudesse traduzir não seria capaz de dizer a um ser humano em
nenhuma língua que ele conheça.

 Desperte agora lebre, tire os enfeites dos olhos, pois um dia o
sonho acaba e você acorda...

 Deixei esta carta enquanto ele dormia, mas não me lembro de
escrevê-la. Não me lembro se escrevi nos ouvidos dele, em sua pele
ou em seus cabelos. Apenas sei que ele leu e logo após eu
desapareci em uns portais molhados e salgados de medo que
vinham em minha direção. Alguns sons agudos, feito apitos, foram
ficando distantes, até que despertei e nunca mais duvidei de que
estava mesmo sonhando.



             Aline Stechitti

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Despedida de uma alma

  • 1. despedida de uma alma Antes que comece a ler, lhe aviso que é necessário refugiar-se, assim como as lebres fazem ante ao barulho. Não importa quem seja você e em que século esteja lendo essa carta, eu sei e você sabe,
  • 2. que algum dia lhe foi arrancado dos olhos um véu de fantasia e se ainda não foi, se prepare para sentir muita dor. Pois seus olhos um dia já não brilharão com o que agora veem. Há uma toca dentro de todos. Acolha-se em silêncio e experimente-se por esses minutos... Para alguns a doçura do campo trás segredos, lágrimas cristalinas de orvalho. Para outros é mais fácil não olhar ou acreditar que essa doçura é enjoativa e melancólica. Porém a verdade é que todos um dia pensaram que há algo oculto em toda parte, aonde quer que a gente vá. O teatro era um entardecer fresco e o primeiro ato consiste em quando a mocinha o vê pela primeira vez. Bom, a mocinha era eu e ele... Bom, ele era o homem nocivo ser que destruía tudo que tocava. Naquele instante perdi o ar que preenchia meus pulmões, como um sopro de morte. Aquela imagem ainda retrocede, a imagem de quando o vi cavalgar imponente, dividindo espaço com nuvens cor de laranja naquele céu que denunciava uma noite fria se aproximar.
  • 3. Ele tinha gestos de cavalheiros medievais, parecendo estar em batalha todo tempo, fosse com o vento, com o campo ou com a própria natureza e com tudo que era maior que ele. Não sei o que aconteceu naquele momento, mas eu gelei como se assistisse a um filme de terror, mas diferente do filme eu queria sentir isso todos os dias e o mais perto que conseguisse. Dia de outono tímido foi aquele, depois que o vi não tive mais nenhum assim. Ah, sinto talvez ter lhe causado a impressão de haver transferido a imagem de algum amor nessas linhas, mas na verdade o que há de mais real, ou melhor, houve, foi um desejo que me fervia o sangue. Os olhos dele se faziam espoja a sugar minha alma e minha vitalidade. Atava nós em cordas alheias e fazia escravos implícitos com seus poderes. Nada havia em mim de mais limpo que ele não o tirasse por completo. Nada havia em mim de mais sonhador que ele tudo não destruísse. Depois de vê-lo levar o cavalo a pisotear até mesmo minha sombra, não houve um milímetro de descanso em meu peito. O bem e o mal... Quanta simplicidade a minha, quanto conto de fadas não é mais criativo, mas nada posso fazer contra o que eu quis.
  • 4. Sim, eu quis... Não podemos dizer que a maioria das coisas não foi enfim uma escolha. Houve tempos amargos que por algum motivo eu apaguei, houve tempos em que eu fui apenas um ser a desmoronar em muros de carne e músculos formados por aqueles braços rudes. Eu me abrigava nele deixando cair minha máscara de ódio e fazendo surgir de mim pedaços vivos dele já encarnados em meu coração. Foi uma briga comigo, foi uma queda e tanto me arrepender todos os dias de ser feliz com quem não era desse meu jeito, com quem não era um ser humano de fato humano. Com quem era considerado apenas um bruto animal da selva, incapaz de não me fazer mal. Foi aí que o primeiro ato acabou e talvez a peça inteira alguém ou “ele” te conte um dia... Deixo-lhe agora a história de minha despedida, o dia da última visita, minha descrição da lembrança que eu nem sei mais se foi real. Ele já era parte de mim surgido como um parasita e agora se fazia órgão vital. ... Em meu sonho ele entrava em meu quarto. Um gigante sentindo-se indefeso, olhos fixos no vácuo do meu leito.
  • 5. Senti em um assombro se aproximar e debruçar leve sobre meu peito ficando alguns instantes. Senti sua testa com os dedos, sorri e me fragilizei com minha própria alegria, tanto que o ar já escasso me faltou no peito quase parado. O marrom dos meus cabelos laçava o tom de suas mãos que me acariciavam tão unicamente. Sua boca vinha tão perto que podia absorver o cheiro do ar que operava aquele organismo. Hálito do homem que me abrigava em seu pesadelo. Era esse dia o começo e o fim das voltas e amarras inúteis. Tanto símbolo, tanta lei e tudo e nada tem de vida. O coração de um feto se forma em pouco tempo e desde que começa a bater só irá parar uma única vez. Entre a primeira e a última batida não há nenhuma diferença, pois ele fez nas duas vezes o que deveria fazer. O corpo é como uma tela onde o tempo faz a obra que não cabe no imaginário e o coração é o relógio programado para despertar em um secreto momento. Tudo é perecível. Em meu sonho ele pegava minha mão e punha os negros olhos para mergulhar em minha translúcida alma. Sua tristeza e seu abatimento o deixavam tão diferente ao passo que não reconhecê-lo era impossível para mim.
  • 6. Vinha avulso em minha serenidade, não que quisesse me bambear, mas ele já era assim desde que se lembrava e a última coisa que iria era me fazer mal. Vinha se aproximando intenso ao tempo que se apagava diante de mim. Um escuro o encobria, assim como a imagem e o toque o adormecia enquanto meu corpo se tornava um abrigo vazio em cada segundo que se passava. Mas nem mesmo assim, nem mesmo se houvesse um céu nublado em torno de nós ou um agito do trovão, nada quebraria minha forçada paz. Eu estava me despedindo de mim e já havia me despedido do mundo. Quando me trazia sua pele naquele abraço, ele molhava meus lábios, me sugava com força e me dava o último sabor de sua carne. Assim eu vinha de volta à vida ainda sabendo que não duraria nada. Esse é o meu sonho, não aquele de quimera, aquele de quando dormimos e temos alucinações inconscientes. Acreditava que algumas coisas acabariam quando a gente acabasse, mas teimo em contar que algo me ultrapassava a carne às vezes e me ultrapassa ainda... Algo mais perfeito que o funcionamento dos delicados neurônios, mais inimaginável que o universo dos pensamentos, seus labirintos
  • 7. escondidos e seus gatilhos... Algo ultrapassa, vai além da pele, além do sabor, além de todos os sentidos. Existe um viver sem nome, sem cheiro, sem tamanho, sem refúgio, desconhecido... Não me recordo das noites em que ele me aqueceu, mas posso contar a mim mesma a lembrança saudosa de quando trememos e suamos pela primeira vez. Não me recordo do som que fazia nossas bocas unidas, nem do gosto que ficava quando nos separávamos, mas sei que aconteceu inúmeras vezes. Não me recordo do aroma de nós levados com o vento, na água dos rios, sujos de terra, caminhando entre insetos, no mundo das bactérias. Dois animais, bichos da selva de pedra, também concretos... Eu não me recordo de ser assim... Mas sei que fui algo e que ainda sou. Tive sonhos inconstantes, sonhos e delírios, vontades... A febre, os calafrios, as dores, as convulsões... Entre idas e vindas tive a impressão de não estar em mim. As pessoas entravam e saiam do hospital e eu me aproveitava de cada segundo de lucidez, sabendo que eram os últimos. Havia fantasmas coloridos em torno de mim, havia monstros que arrancavam as unhas dos meus pés e gritos onde realmente não haviam nada... Pesquei uma estrela um dia e a chamei de minha. Nela escrevi um
  • 8. segredo: “Despi meu corpo, fui mulher, devorei um homem. Fui da inocência à ignorância, do pecado à remissão. Vivi o tempo que deveria, ainda que perdido... Um tempo de ser. E eu fui.” Sabe, eu tive um sonho. Ele me acompanhava e me levava sendo também levado. Corríamos e tropeçávamos, caíamos e voávamos em veredas escuras e desnecessárias. Disse-lhe um dia que amor é só isso, precisar. Me olhou mal, como se minhas palavras lhe parecem frias e eu com minhas conversas estranhas brinquei um pouco mais. Lhe falei do que achava dos velórios, sobre o fato de achar que fossem instantes em que muitos choram, mas que poucos entendem por que. Falei do pensamento de que o choro não vem pelo morto, não vem pelo que ele está sentindo ou não está sentindo mais. O choro no velório vem por que ao ir embora a pessoa deixa um buraco no peito de quem precisa dela, tornando o ato de chorar em velórios um sinônimo de auto piedade. As pessoas choram por elas mesmas, com dó de si próprias e não do pobre que evaporará no tempo. Lembro-me que o que disse mudou algo da visão que tinha de mim, que talvez mais filósofa que em qualquer época, estivesse crescendo por dentro, sem me preocupar tanto com o que nos
  • 9. ensinam que devemos nos preocupar. Disse-lhe também, após alguma discussão sobre ideologias, que fosse meu para eu precisar e eu também seria dele e que precisasse de mim! Nós dois fomos uma incerteza mais certa do que naturalmente deveria ser. A delicadeza do espírito dançava com a violência do animal. Seu jeito e seu sistema me parecia um tanto arcaico, mas eu continuava a sorrir para o vento e a questionar tudo, fazendo-o ficar mudo e outras vezes gargalhar com frases estranhas quando ele estava acostumado com um manual que a vida o obrigara a ler. Nós éramos contrários e ele sabia que me machucava às vezes, como no casamento da flor com o vento. Quando na dança, a ternura pegava por par a paixão e a jovem descrença no amor se abria a um coração ateu, - coração que se converteria, se curaria -, tudo o mais se quebrava, inclusive eu... Porém eu me entendia bem com tudo de nós quando ninguém mais era capacitado a isso, e quando nos instantes em que via uma agulha entrar aguda em meu braço eu me sentia bem, pois eu via nos olhos dele que tomaria o meu lugar a qualquer momento se lhe fosse dado essa possibilidade. Era incrível ver que seus olhos nunca se molhavam na vida adulta,
  • 10. ao menos não para que todos vessem e já naquela hora ele parecia um menino medroso. Eu não sabia mais se acreditava em minha teoria fúnebre que havia ditado a ele, mas estava formulando outra, a de que ele sofria quando eu sofria e isso talvez fosse amor. Nunca fui do tipo vívida e algo me dizia que esse meu corpo não duraria muitos anos. É certo que eu nunca quis ouvir essa voz macabra, mas sempre que me olhava no espelho, eu tinha essa sensação e estremecia. Nada pôde salvar meu sangue que era branco demais para tornar rosada minha face outra vez e fui me apagando dos olhos dele e dos olhos do tempo... Em meu sonho não posso vê-lo, ele não tem mais cheiro, não tem mais forma e não posso ouvi-lo. Seus carinhos vão muito mais fundo e está muito mais dentro, mais limpo, mais puro e bonito. Não há tato, nem sabor onde me encontro... Eu disse que amor não existia, até ter aquele sonho. Foi preciso morrer para entender que algo tão perfeito às vezes é temido. Algo desconhecido às vezes é recusado, mas como disse antes, algo tão único às vezes ultrapassa também... Algo como o amor não seria deixado no corpo. Há algo e esse algo não morre. Já teve essa sensação? A sensação de que alguma coisa permanece viva não importa o que aconteça?
  • 11. Talvez em nós a eternidade se sustente e cada vida que passa é um pedaço de outra que começa. Talvez e só talvez, tudo isso continue e não haja mais dor juntamente com aquilo que não entendemos. Sei que fui alguma coisa e que não passei. Não sei me nomear agora, não sei minha forma, mas sei que sou em algo que sei o que é em um espaço diferente de tudo, mas não traduzo nada... E se pudesse traduzir não seria capaz de dizer a um ser humano em nenhuma língua que ele conheça. Desperte agora lebre, tire os enfeites dos olhos, pois um dia o sonho acaba e você acorda... Deixei esta carta enquanto ele dormia, mas não me lembro de escrevê-la. Não me lembro se escrevi nos ouvidos dele, em sua pele ou em seus cabelos. Apenas sei que ele leu e logo após eu desapareci em uns portais molhados e salgados de medo que vinham em minha direção. Alguns sons agudos, feito apitos, foram ficando distantes, até que despertei e nunca mais duvidei de que estava mesmo sonhando. Aline Stechitti