Este documento descreve um curso de especialização em capelania hospitalar oferecido pela Faculdade Teológica Bereana Internacional (FATBI). O curso aborda tópicos como a didática do ensino superior, a construção do conhecimento profissional, as relações de poder na educação, e o papel do professor na sociedade contemporânea.
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CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU
ESPECIALIZAÇÃO EM CAPELANIA HOSPITALAR
APOSTILA = 05
DIDÁTICA DO ENSINO
SUPERIOR
BRASÍLIA
2010
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APRESENTAÇÃO GERAL DO CURSO
[Escrever um prefácio geral, para todos os módulos do curso]
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SUMÁRIO
CAPÍTULO I
A DIDÁTICA DO ENSINO SUPERIOR
1. PRELÚDIO METODOLÓGICO
2. BASE DA DIDATICA
CAPÍTULO II
DIDÁTICAS ESPECÍFICAS E CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO PROFISSIONAL
1. FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL
2. O PAPEL DA DIDÁTICA NA FORMAÇÃO
3. O PROBLEMA E UMA POSSÍVEL SOLUÇÃO
4. ATIVIDADES DE FORMAÇÃO ORIENTADAS
5. O PROFESSOR E A COMPETÊNCIA
CAPÍTULO III
A EDUCAÇÃO E AS RELAÇÕES DE PODER
1. AS RELAÇÕES DE PODER
2. RELAÇÕES DE PODER NO COTIDIANO DAS INSTITUIÇÕES
3. PARA ALÉM DO PODER DISCIPLINAR E BIOPODER
4. DIFERENÇA ENTRE PODER E SABER
CAPÍTULO IV
O PODER COMO IDEAL NARCÍSICO NA RELAÇÃO EDUCATIVA
CAPÍTULO V
O PROFESSOR COMO INTELECTUAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS
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CAPÍTULO I
A DIDÁTICA DO ENSINO SUPERIOR
1. PRELÚDIO METODOLÓGICO
A disciplina de Didática do Ensino Superior pretende contribuir para formação do
professor e pesquisador, mediante a compreensão das especificidades do trabalho
docente, na situação institucional formativa e curricular do ensino superior.
Supõe compreender o trabalho docente, tanto na perspectiva da construção de
saberes sociais, pedagógicos e docentes tácitos, construídos nas diversas relações
pedagógicas no contexto da sociedade, bem como no sentido da sua formalização,
através da Didática.
Entende-se esta disciplina, como campo de estudo sistematizado, intencional, de
investigação e de prática, na ótica do ensino, numa perspectiva contextualizada que
considere a historicidade dos fatores condicionantes econômicos, sócio-culturais,
políticos e educacionais contemporâneos, como também, as influências das diversas
subjetividades individuais e coletivas envolvidas numa determinada prática
pedagógica.
Esta proposta elege a sala de aula, como núcleo de referência da Didática, e
enseja a análise de práticas pedagógicas docentes concretas, com o objetivo de
apreender as suas relações (professor-aluno, ensino-apredizagem, ensino-pesquisa,
teoria-prática, conteúdo-forma, educação-sociedade) e os seus significados
ideológico-políticos, sócio-culturais e pedagógico-didáticos.
Espera-se assim, que a disciplina venha oferecer elementos teórico-práticos que
possibilitem condições para (re)significar práticas pedagógicas no ensino superior,
apontando alternativas de atuação que se voltem para sinalização de uma nova
prática, na perspectiva da formação de um homem pensante (crítico, independente,
autônomo), criativo (sensível) e comprometido ética e politicamente com as mudanças
na sociedade contemporânea.
A maioria dos professores do ensino superior teve uma formação pautada por
preceitos da ciência moderna, influenciando seu modo de ver o mundo e marcando
suas relações com o conhecimento e com os alunos.
No entanto, percebemos hoje um mundo globalmente interligado, sendo preciso
uma mudança nas percepções e concepções diante da realidade, do ser, da
educação. Assim, a Didática do Ensino Superior passa necessariamente pela reflexão
sobre o papel e os novos paradigmas que a ciência vem desenvolvendo e sua
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interferência nas concepções educacionais.
2. BASE DA DIDATICA
O professor precisa dispor de conhecimentos e habilidades pedagógicas, que
podem ser obtidas e aperfeiçoadas mediante leituras e cursos específicos. Estes
conhecimentos e habilidades podem ser definidos como requisitos técnicos e
envolvem:
a) Estrutura e Funcionamento do Ensino Superior — O professor deve ser capaz
de estabelecer relações entre o que ocorre em sala de aula com processos e
estruturas mais amplas. Isto implica a análise dos objetivos a que se propõe o ensino
universitário brasileiro, bem como dos problemas que interferem em sua
concretização. E exige conhecimentos relativos à evolução histórica das instituições e
à legislação que as rege.
b) Planejamento de Ensino — A eficiência na ação docente requer planejamento.
O professor precisa ser capaz de prever as ações necessárias para que o ensino a
ser ministrado por ele atinja os seus objetivos. Isto exige a cuidadosa preparação de
um plano de disciplina e de tantos planos de unidade quantos forem necessários.
c) Psicologia da Aprendizagem — O que o professor espera de seus alunos é
que aprendam o conteúdo da disciplina que pretende lecionar. Neste sentido
conhecimentos de Psicologia poderão ser muito úteis, pois esclarecem acerca dos
fatores facilitadores da aprendizagem.
d) Métodos de Ensino — A moderna Pedagogia dispõe de inúmeros métodos de
ensino. Convém que o professor conheça as vantagens e limitações de cada método
para utilizá-los nos momentos e sob as formas mais adequadas.
e) Técnicas de Avaliação — Não se pode conceber ensino sem avaliação. Não
apenas a avaliação no final do curso, mas também a avaliação formativa, que se
desenvolve ao longo do processo letivo e que tem por objetivo facilitar a
aprendizagem. Assim, o professor universitário e pesquisador precisa estar
capacitado para elaborar instrumentos para a avaliação dos conhecimentos e também
das habilidades e atitudes dos alunos.
Outro fator a ser vislumbrado é o domínio cognitivo, o qual envolve seis
categorias:
1. Memorização — Evocação de algo que tenha sido aprendido. Os objetivos
desta categoria podem ser expressos pelos verbos: citar, identificar, listar, definir etc.
Por exemplo: “Definir o conceito de Administração Científica”.
2. Compreensão — Reafirmação do conhecimento sob novas formas. Neste
nível, o indivíduo conhece o que está sendo comunicado e pode fazer uso do
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respectivo material ou idéia. Não se torna, porém, capaz de relacioná-lo a outro
material ou de perceber suas implicações mais complexas. Os objetivos desta
categoria podem ser expressos pelos verbos: ilustrar, exemplificar, traduzir etc.
3. Aplicação — Uso de abstrações em situações particulares e concretas. As
abstrações podem apresentar-se sob a forma de idéias gerais, princípios técnicos ou
regras de procedimento que devam ser aplicadas. Os objetivos desta categoria
podem ser expressos pelos verbos: aplicar, demonstrar, usar, inferir etc.
4. Análise — Separação de um todo em partes componentes. Em sua forma mais
elementar, a análise envolve uma simples relação de elementos. Num nível mais
elevado implica determinar a natureza do relacionamento entre esses elementos. Os
objetivos desta categoria podem ser expressos pelos verbos: analisar, distinguir,
categorizar, discriminar etc.
5. Síntese — Combinação conjunta de certo número de elementos para formar
um todo coerente. Envolve o processo de trabalhar com peças, partes ou elementos,
dispondo-os de forma a constituir um padrão ou estrutura que antes não estava
evidente. Os objetivos desta categoria podem ser expressos pelos verbos: resumir,
compor, formular, deduzir etc.
6. Avaliação — Julgamento acerca do valor do material e dos métodos para
propósitos determinados. Esta categoria constitui o mais alto nível da taxionomia no
domínio cognitivo. Seus objetivos podem ser expressos pelos verbos: avaliar, criticar,
julgar, decidir etc.
No que se refere ao domínio afetivo, vale mencionar que este envolve cinco
categorias:
1. Receptividade — Disposição para tomar consciência de um fato e de prestar
atenção ao mesmo. Esta categoria constitui o nível mais baixo da taxionomia, e seus
objetivos podem ser expressos pelos verbos: escutar, atender, perceber, aceitar etc.
2. Resposta — Reação a um fato. Neste nível o estudante vai além da simples
receptividade; ele está disposto a receber o estímulo dado, não o evitando. Os
objetivos desta categoria podem ser expressos pelos verbos: concordar, acompanhar,
responder etc.
3. Valorização — Reconhecimento do valor de uma coisa, fenômeno ou
comportamento. Dentre os verbos que expressam objetivos desta categoria estão:
reconhecer, apreciar, aceitar etc.
4. Organização — Organização de valores num sistema. Quando o estudante
encontra mais de um valor relevante para uma situação, ele os organiza, determina a
inter-relação e aceita um como o dominante. Os verbos organizar, pesar, formar,
desenvolver e discutir são utilizados para expressar objetivos desta categoria.
5. Caracterização por um valor ou complexo de valores — Neste nível, que é o
mais elevado do domínio afetivo, o estudante age firmemente de acordo com os
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valores que aceita, tornando-se este comportamento parte de sua personalidade. Os
verbos revisar, mudar, rejeitar e acreditar expressa objetivos desta categoria.
CAPÍTULO II
DIDÁTICAS ESPECÍFICAS E CONSTRUÇÃO DO
CONHECIMENTO PROFISSIONAL
1. FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL
Nos últimos anos, nas Ciências da Educação, tem-se afirmado a importância do
papel do professor como educador, permanentemente atento às necessidades e ao
desenvolvimento dos seus alunos, e como membro da comunidade escolar,
empenhado na construção do projeto educativo da escola.
Em contrapartida, ocupar-se da Didática e preocupar-se com o ensino de
disciplinas específicas chega a ser visto com desconfiança, como se se tratasse de
algo do passado que nada de importante teria para trazer à formação de professores.
No entanto, a aprendizagem de conhecimentos, o desenvolvimento de
capacidades, atitudes e valores de ordem disciplinar e a organização por áreas do
saber marca decisivamente a vida escolar. Os programas de formação (tanto inicial
como contínua) que não tenham em conta esta realidade conduzem necessariamente
os seus formandos à frustração e ao desencanto quando se confrontam com as
situações da prática.
Os jovens professores sofrem então o efeito do processo de socialização
profissional, que acaba por constituir um segundo momento de formação
(normalmente de “sinal contrário” ao da formação inicial), com força mais do que
suficiente para exercer um efeito dominante nas suas concepções e práticas
profissionais.
Os professores não podem exercer o seu papel com competência e qualidade
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sem uma formação adequada para lecionar as disciplinas ou saberes de que estão
incumbidos, sem um conjunto básico de conhecimentos e capacidades profissionais
orientados para a sua prática letiva.
Não negando a importância das outras vertentes da formação, há que continuar a
valorizar a formação didática, que apóia o ensino de saberes específicos. É
importante fazê-lo de modo convergente com os restantes domínios e objetivos da
formação e com o que se sabe acerca do desenvolvimento profissional dos
professores.
A formação dos professores é o problema-chave do sistema educativo. Ela
influencia a orientação da escola não apenas no plano de transmissão dos
conhecimentos, mas também no das normas e valores, constituindo um lugar de forte
concentração ideológica. No discurso de crise crônica que desde há muito se instalou
na área educativa, a formação de professores aparece frequentemente como solução
que, uma vez posta em prática, permitiria resolver de uma só vez todos os problemas.
Devemos ter, no entanto, uma clara noção das suas possibilidades e limites. A
formação não permite ultrapassar todas as dificuldades. A formação de professores só
pode influenciar as suas práticas em determinadas condições e dentro de
determinados limites. O que não quer dizer que não seja essencial e não mereça por
isso o melhor da nossa atenção.
Diversos modelos têm sido propostos para a formação de professores. Num
trabalho que marcou toda uma época, Marcel Lesne contrasta diversos grandes
modos de trabalho de formação sob o ponto de vista da natureza do ato pedagógico,
tendo em conta o processo de socialização que lhes está associado.
Na formação de tipo transmissivo (que corresponde a uma orientação normativa),
a pessoa em formação é, sobretudo, considerada como objeto de socialização, ou
seja, é um produto social.
Na formação de tipo incitativo (onde sobressai uma orientação pessoal), a
pessoa em formação é considerada, sobretudo sujeito da sua própria socialização,
determinando-se e adaptando-se de forma ativa aos diferentes papéis sociais.
Finalmente, na formação de tipo apropriativo (centrada na inserção social do
indivíduo), o formando é considerado como agente de socialização, simultaneamente
determinado e determinante. É possível considerar igualmente diversos modelos
teóricos, tendo por referência não os propósitos nem os objetivos da formação, nem a
estrutura do dispositivo, nem a natureza dos conteúdos, mas o tipo de processos e a
sua dinâmica formativa. Distingue assim um modelo de formação centrado nas
aquisições, outro na experimentação e outro ainda na análise.
Um tema que tem marcado profundamente as discussões mais recentes sobre a
formação é o do professor reflexivo. A sua origem deve-se, sobretudo a Donald Schön
(1983) que sublinha a importância da reflexão na ação e da reflexão sobre a ação,
como dois dos traços distintivos mais importantes dos profissionais competentes. A
reflexão respeita, sobretudo, aos processos e capacidades de pensamento do
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professor.
No entanto, para ensinar, não basta saber pensar bem, é preciso um vasto
conjunto de saberes e competências, que podemos designar por conhecimento
profissional. Reagindo contra as tendências que proclamavam o primado da vertente
pedagógica na formação de professores, Shulman (1986) chama a atenção para a
necessidade que o professor tem de conhecer bem os conteúdos que ensina.
Para ele, o professor não tem de conhecer estes conteúdos do mesmo modo que
o cientista, mas de um modo diferente. Muito em especial tem de conhecer as boas
maneiras de torná-los compreensíveis e relevantes para os alunos.
Na verdade, podemos dizer que o conhecimento profissional do professor inclui
uma parte fundamental que intervém diretamente na prática letiva. Trata-se de um
conhecimento essencialmente orientado para a ação e que se desdobra por quatro
grandes domínios:
(1) o conhecimento dos conteúdos de ensino, incluindo as suas interrelações
internas e com outras disciplinas e as suas formas de raciocínio, de argumentação e
de validação;
(2) o conhecimento do currículo, incluindo as grandes finalidades e objetivos e a
sua articulação vertical e horizontal;
(3) o conhecimento do aluno, dos seus processos de aprendizagem, dos seus
interesses, das suas necessidade e dificuldades mais freqüentes, bem como dos
aspectos culturais e sociais que podem interferir positiva ou negativamente no seu
desempenho escolar;
(4) o conhecimento do processo instrucional, no que se refere à preparação,
condição e avaliação da sua prática letiva. Este conhecimento, longe de estar isolado,
relaciona-se de um modo muito estreito com diversos aspectos do conhecimento
pessoal e informal do professor da vida quotidiana como o conhecimento do contexto
(da escola, da comunidade, da sociedade) e o conhecimento que ele tem de si
mesmo.
Um outro tema que tem emergido nas discussões sobre a formação é o do
desenvolvimento pessoal, profissional e organizacional do professor. Nóvoa (1991),
um dos autores portugueses que melhor tem abordado esta questão, sublinha a
importância da noção de desenvolvimento pessoal, na dupla valência de investir a
pessoa e a sua experiência e investir a profissão e os seus saberes.
Indica que a formação contínua deve estimular os professores a apropriarem-se
dos seus próprios dos saberes, no quadro duma autonomia contextualizada e
interativa, trabalhando-os de um ponto de vista teórico e conceptual. Sublinha que
cabe ao desenvolvimento pessoal produzir a vida do professor e para isso é preciso
estimular uma perspectiva crítico-reflexiva, que lhe forneça os meios de um
pensamento autônomo e facilite as dinâmicas de autoformação participada.
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Este mesmo autor critica as práticas de formação contínua organizadas em torno
dos professores individuais, que favorecem o isolamento e reforçam uma imagem dos
professores como transmissores de um saber exterior, e endossa as práticas que
tomam como referência as dimensões coletivas. Subscreve também a posição de
Schön, segundo a qual a prática docente implica a resolução de situações
problemáticas, o que exige capacidades de autodesenvolvimento reflexivo aos
professores.
Reclama a dinamização de dispositivos de investigação-ação e investigação-
formação, conjugando uma formação de tipo clínico com uma formação de tipo
investigativo, afirmando que a formação não se faz antes da mudança, mas sim
durante a mudança.
Finalmente, Nóvoa sublinha a importância do desenvolvimento organizacional.
Para ele, “não basta mudar o [professor], é preciso mudar também os contextos em
que ele intervém”. Isto significa, nomeadamente, que a formação deve ser concebida
como um processo permanente, integrada no dia-a-dia dos professores e das
escolas. Ele sublinha a importância da noção de participação, indicando que os
professores têm de ser protagonistas ativos na concepção, realização e avaliação da
formação.
Aponta a necessidade de criar uma nova cultura da formação de professores, da
qual participem as escolas e as instituições de ensino superior, no quadro de
colaborações que caracteriza como de “partenariado pela positiva”.
2. O PAPEL DA DIDÁTICA NA FORMAÇÃO
A Didática, no Brasil, tem tido um estatuto de menoridade relativamente a outras
áreas da educação. Para isso concorre certamente a perspectiva, ainda hoje
dominante em muitos sectores da sociedade (incluindo os professores universitários
das diversas disciplinas ditas “científicas” e, muitas vezes, os próprios docentes das
áreas “generalistas” das Ciências da Educação) que a Didática não é mais do que um
repositório de receitas sobre os modos de transmitir o conhecimento disciplinar,
resultantes da acumulação da experiência de longos anos de vida profissional.
A Didática, hoje em dia, é mais do que um simples domínio da prática
profissional. Ela constitui um campo científico, onde se realiza trabalho de
investigação e de produção de novo conhecimento. Como em todo o campo científico,
na Didática reconhecem-se duas características: um objeto bem definido e uma
metodologia de trabalho própria.
Como refere Isabel Alarcão (1989), o objeto da Didática é o conjunto dos
fenômenos de ensino-aprendizagem das várias disciplinas e dos vários níveis de
ensino, com o objetivo último de contribuir para a melhoria do processo educativo.
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O seu método de investigação corresponde a um modo de trabalho sistemático
que inclui numerosas variantes, desde a investigação de cunho quantitativo baseada
em procedimentos de análise estatística e outros processos de modelação
matemática, à investigação de cunho qualitativo que inclui estudos de caso,
entrevistas clínicas e estudos etnográficos e, cada vez mais, estudos de investigação-
ação, que envolvem processos colaborativos onde se implicam docentes e
investigadores de diferentes instituições.
Assim, enquanto que o conhecimento didático (dos professores) se desenvolve
de modo natural na formação inicial e na prática profissional, a Didática (como
domínio científico) desenvolve-se através duma prática deliberada de investigação
teórica e empírica.
As fronteiras entre os dois domínios não são muitas vezes claras, já que o
principal propósito da Didática é informar e estimular o crescimento do conhecimento
didático e a própria Didática precisa do conhecimento didático como ponto de
referência fundamental para o seu desenvolvimento. Nesta perspectiva, a Didática
assume-se como um saber científico que, numa lógica que Boaventura Sousa Santos
(1987) designa por pós-moderna, procura constituir-se como senso comum
profissional.
A Didática não assume, nesta perspectiva, um cunho estritamente normativo.
Antes desempenha o papel de ferramenta conceptual para a análise de situações de
ensino-aprendizagem (Alarcão, 1989). Constitui um domínio de teorização,
investigação empírica e reflexão que se debruça sobre a natureza do saber próprio de
cada disciplina ou área de conhecimento, sobre os seus objetivos, métodos e
conteúdos enquanto saber escolar, bem como sobre a dinâmica do processo de
ensino-aprendizagem e a sua avaliação.
O seu objeto é irredutivelmente complexo, relacionando-se com um domínio de
prática, o conhecimento profissional a ele associado (o conhecimento didático) e os
numerosos fatores que com eles interagem diretamente. Por isso, a Didática de uma
disciplina específica necessita de recorrer ao concurso de múltiplas disciplinas e
domínios6 e daí o seu forte caráter interdisciplinar.
A Didática constitui um campo científico emergente que tem percorrido um
caminho semelhante ao de outras áreas científicas que estudam fenômenos
transversais ou sociais (Alarcão, 1989).
Ela começou por ser uma simples disciplina aplicada (principalmente da
Pedagogia e da Psicologia), para se tornar depois num campo pluridisciplinar. Estuda
uma variedade de questões diretamente associadas ao ensino-aprendizagem, como a
elaboração dos currículos e materiais, os processos de construção dos saberes, a
influência dos fatores contextuais, incluindo as representações sociais da escola e do
conhecimento científico, a influência dos sistemas de avaliação, etc.
A Didática, como campo científico, envolve trabalho empírico (uma perspectiva
experimental e uma íntima ligação com a prática) e teórico (os estudos sobre a
natureza do conhecimento e a aprendizagem, as interações e grupos humanos), ao
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mesmo tempo em que assume como referência permanente os grandes valores e
objetivos da educação e uma forte preocupação de auto-análise.
3. O PROBLEMA E UMA POSSÍVEL SOLUÇÃO
Verificamos assim que, por um lado, o processo de formação de professores, nos
seus diversos níveis (formação inicial, formação contínua, formação especializada) é,
sobretudo um processo de desenvolvimento profissional, que segue necessariamente
o seu ritmo e dinâmica próprios. O processo formativo envolve o progressivo
desenvolvimento das potencialidades de cada professor, a construção de novos
saberes, sendo fortemente marcado pelas dinâmicas sociais e coletivas.
Por outro lado, a Didática tem contributos essenciais a dar à atividade profissional
de cada professor. Ela sugere conceitos centrais para fazer uma leitura das situações
de ensino-aprendizagem, e fornece também pistas e orientações para a atuação do
professor.
Ignorar a natureza dos processos de desenvolvimento profissional do professor
leva facilmente a conceber programas de formação de tipo escolar, procurando impor
conceitos, práticas e teorias de que o professor não sente necessidade ou para os
quais o seu interesse não está desperto. É o que faz muita da formação (inicial e
contínua) que continuamos a praticar no nosso país.
Ignorar os contributos da Didática, significa pôr de parte um conjunto de
perspectivas poderosas para o ensino de cada disciplina e um conjunto de conceitos
fundamentais para analisar e intervir nas situações de prática. É desbaratar um
importante capital de experiência e de investigação que poderia ser desde já investido
na formação e na prática profissional.
O problema consiste, então, no modo de articular a Didática com o
desenvolvimento profissional. Como tirar partido da primeira numa lógica que não
contrarie a natureza dos processos próprios do segundo.
Este problema, aparentemente, é impossível. Trata-se de movimentos que
evoluem em sentidos opostos, um de dentro para fora, outro de fora para dentro. No
entanto, este problema tem muitas soluções, desde que haja capacidade de
compreender as escalas de tempo em que pode ser abordado ou, noutros termos,
desde que identifique o que pode ser o contributo específico de cada momento
formativo para o desenvolvimento do professor.
Ele pode ser abordado, por exemplo, do ponto de vista que as pessoas
aprendem a partir da sua atividade e da reflexão sobre a sua atividade, uma
perspectiva defendida, por exemplo, pela escola vygostkiana sobre a aprendizagem
conhecida por “Teoria da Atividade”.
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E também pela perspectiva subscrita por autores da Psicologia cultural que
sustentam que o conhecimento profissional dos professores se forma através da
participação nas práticas educacionais. De acordo com estas perspectivas, um aluno
aprende Matemática trabalhando em tarefas matemáticas que define para si próprio
ou que lhe são propostas pelo professor e falando sobre elas com os seus colegas ou
refletindo sobre os seus raciocínios e os seus resultados. Do mesmo modo um aluno
aprende Ciências, Francês, História ou Geografia.
Também os professores e os futuros professores aprendem, sobretudo a partir da
sua atividade e da reflexão sobre a sua atividade realizada num contexto de práticas
enquadradas numa cultura profissional bem definida. No entanto, neste caso o objeto
da atividade do professor não é a Matemática, o Francês, a História ou a Geografia,
mas a atividade dos alunos em tarefas e em reflexões sobre essas disciplinas.
Ou seja, os professores (e futuros professores) aprendem por processos
basicamente análogos aos processos usados pelos alunos. O que é muito diferente é
o objeto fundamental da sua atividade.
Esta perspectiva sugere a importância da presença da prática nos processos de
formação. Mas a presença da prática, só por si, não é garantia de qualidade de
formação. É preciso saber de que modos a prática está presente e qual o papel que
pode desempenhar.
4. ATIVIDADES DE FORMAÇÃO ORIENTADAS
Tem-se procurado encontrar formas de lidar com este problema num curso de
formação contínua para professores de Matemática. O grande objetivo do curso é
proporcionar aos participantes uma experiência de realização de um projeto orientado
para a realização de atividades de investigação matemática pelos alunos na sala de
aula.
Estabelece-se assim um paralelo entre o trabalho investigativo que se propõe
para os alunos (que irão explorar situações e relações matemáticas) e os professores
(que irão explorar modos de fazer investigação sobre a sua própria prática).
A realização de trabalho investigativo pelos alunos dos diversos níveis de ensino
é uma das orientações atuais mais importantes na Didática da Matemática. A reflexão
sobre a Epistemologia da Matemática e as investigações na Psicologia da
aprendizagem trouxe para o primeiro plano a importância da atividade criativa na
resolução de problemas, na elaboração e reformulação das teorias e na aplicação de
conceitos matemáticos a novas situações.
A atividade de investigação matemática envolve tipicamente a definição de uma
situação a explorar, a formulação de questões para responder, a produção de
conjecturas, o seu teste e, caso estes testes se revelem positivos, a procura de uma
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demonstração convincente. No decurso deste processo é muitas vezes redefinida a
situação a investigar, são reformuladas as questões de interesse e são
experimentadas diversas estratégias de elaboração de conjecturas.
Com as atividades de investigação pretende-se que os alunos contatem de algum
modo com os aspectos mais genuínos da experiência matemática, tal como ela é
vivida pelos investigadores profissionais e por aqueles que usam criativamente esta
ciência na sua atividade profissional.
O curso destina-se a professores do 2º e 3º ciclo do ensino básico e do ensino
secundário com os mais diversos níveis de experiência. Procura-se ter como público-
alvo professores que manifestem abertura para a reflexão e desejo de
aperfeiçoamento das suas práticas letivas. É dado a conhecer com clareza aos
possíveis candidatos os objetivos do curso de modo a que as suas expectativas não
venham a ser defraudadas, porque afinal o que pretendiam era algo de muito
diferente.
O trabalho a realizar divide-se em seis fases principais. Primeiro, é feito um ponto
da situação sobre as atuais orientações curriculares para o ensino da disciplina, com
especial incidência na resolução de problemas e na realização de atividades de
investigação matemática.
É igualmente traçado um quadro do que é um projeto educativo e são
apresentados alguns exemplos. Alternam-se as introduções de natureza teórica, as
atividades de natureza prática (realizadas em pequeno grupo) e as discussões
coletivas. Na maior parte do tempo, os formadores desempenham aqui o papel
“clássico” de introduzir novas perspectivas e sugerir tarefas para realizar nas próprias
sessões.
Numa segunda fase são definidos e programados os temas a trabalhar pelos
professores. A homogeneidade dos grupos que se constituem em termos de anos
letivos e matérias que lecionam tem-se revelado uma condição importante. Elaboram-
se as tarefas a apresentar, os respectivos suportes, etc.
Ainda nesta fase é feita uma abordagem ao que podem ser os processos de
recolha de dados a usar no decurso de um projeto educativo desta natureza. Aqui o
trabalho é realizado principalmente em grupo, embora uma vez ou outra se façam
introduções de natureza teórica em trabalho coletivo. Na maior parte do tempo, os
formadores retiram-se para a retaguarda.
Trabalham à vez com cada um dos grupos, colocando questões, indicando
possíveis fontes de material a consultar, sugerindo novas possibilidades, mas
vincando sempre que a responsabilidade das decisões cabe agora aos grupos.
Numa terceira fase, os diversos grupos apresentam uns aos outros os seus
projetos. São discutidos aspectos relacionados, sobretudo com os objetivos a que se
propõem e as tarefas a apresentar aos alunos. São ponderadas alternativas
relativamente aos processos de recolha de dados. Discute-se em coletivo. Os
formadores participam nas discussões em pé de igualdade com os formandos.
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A quarta fase é a de realização. Os grupos ultimam a escolha dos métodos de
recolha de dados (que pode incluir observação, entrevistas, questionários escritos,
trabalho escrito dos alunos, registros vídeo e áudio, etc.). As tarefas são realizadas,
normalmente nas turmas de todos ou quase todos os professores. São feitas
observações de aulas e recolhidos dados, etc. Os professores fazem uma forte
assistência mútua uns aos outros. De novo, o grupo de trabalho constitui a unidade
fundamental, desempenhando nesta fase os formadores essencialmente o papel de
“consultores”.
Surge então a quinta fase, que corresponde à análise de dados. Esta fase
prolonga-se sempre por muito mais tempo do que o inicialmente previsto pelos
grupos. É iniciada nas sessões de trabalho na Faculdade, mas acaba por ter de
continuar em sessões extra programadas pelos próprios grupos. Os formadores
apóiam naturalmente o trabalho, mas não interferem nas conclusões que são
retiradas pelos professores.
Finalmente, tem lugar a fase de apresentação que é feita primeiro oralmente nas
últimas sessões da ação e depois por escrito, num relatório final da ação. A esta fase
pode ainda seguir-se uma outra de divulgação da experiência em artigos ou encontros
de professores ou de definição de novos projetos, agora completamente a cargo dos
participantes.
Este trabalho evidencia usualmente aspectos que, muito embora não constituam
novidade para os investigadores, representam muitas vezes significativas
aprendizagens para os participantes. Por exemplo:
1 - a importância de definir bem os objetivos; os professores aprendem à sua
custa que definir muitos objetivos de forma vaga e imprecisa torna extremamente
difícil a reflexão e avaliação final do trabalho feito;
2 - não interessa ter muitos meios de recolha de dados; interessa ter alguns
meios bem escolhidos que permitam responder aos objetivos propostos;
3 - as tarefas de investigação para os alunos não precisam ser demasiado
“complicadas”; muitas vezes, em investigação, a simplicidade nos objetivos e nos
processos é uma importante virtude;
1. o modo como a tarefa é apresentada tem uma enorme influência na relação
que os alunos estabelecem com ela e com o ambiente de trabalho que se cria; trata-
se de uma fase da aula é que requer um particular cuidado;
2. estimulados por tarefas interessantes, os alunos ultrapassam com freqüência e
largamente as nossas expectativas;
3. diferentes tipos de alunos reagem a este tipo de trabalho por vezes de modo
muito diferente – variando da grande adesão e entusiasmo ao cepticismo e reserva –
e isso impõe, naturalmente, a necessidade de estratégias diferenciadas da sua parte.
Do ponto de vista dos modelos teóricos é possível colocar muitas questões e este
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tipo de trabalho de formação. Não estaremos a determinar muito os objetivos? Do
ponto de vista do desenvolvimento profissional dos professores estamos a
proporcionar uma primeira experiência de trabalho investigativo (pelos menos para a
grande maioria dos participantes trata-se de uma primeira experiência).
Do ponto de vista da Didática, os objetivos enquadram-se nas suas perspectivas
atuais, ou seja, constituem parte importante daquilo que a Didática tem a dizer
presentemente aos professores.
O curso determina de maneira muito estrita a natureza do trabalho a realizar? Por
outras palavras, trata-se do problema da maior ou menor estrutura de uma ação desta
natureza. Nas primeiras vezes que o curso funcionou, a estrutura era menor. Os
professores eram menos orientados quanto à natureza das tarefas a realizar com os
alunos e quanto às démarches a realizar no processo investigativo.
Embora mais perto de alguns dos modelos teóricos de formação mais
interessantes, esse tipo de trabalho não resultava com alguns dos professores, que
se sentiam perdidos e acabavam por aproveitar relativamente pouco das experiências
realizadas. Ao proporcionar uma maior estrutura a formação procura dar um passo no
sentido certo. Não pretende percorrer de uma só vez todo o caminho necessário para
se alcançar a plena autonomia profissional.
Estamos a trabalhar para um público-alvo muito restrito? A adequação entre o
público-alvo e os objetivos é uma das principais condições de sucesso de uma ação
de formação. Não pretendemos oferecer este modelo como o mais indicados para
todos os tipos de público. Pretendemos ilustrar como ele se adequa a um público que
existe, pelo menos na disciplina de Matemática, e que tem as suas necessidades
específicas de formação.
Uma outra situação que gostaria de referir corresponde ao trabalho feito na
disciplina de Ações Pedagógicas de Observação e Análise do curso de formação
inicial de professores de Matemática. Os objetivos da disciplina são
1. desenvolver nos alunos a capacidade de observação da realidade escolar (e
em particular a realidade do ensino da sua disciplina), proporcionando-lhes os
necessários instrumentos conceptuais de análise;
2. levar os alunos a desenvolver a sua sensibilidade para a natureza e a
diversidade dos problemas com que o professor se confronta no seu dia a dia
profissional; e
3. levar os alunos a compreender o ciclo de concepção, execução e reflexão
pedagógica, através da realização de pequenas atividades de ensino, integrando
conhecimentos e capacidades educativas de ordem muito diversa.
Os alunos desta disciplina – futuros professores – vão realizando numerosas
atividades ao longo do ano, que incluem a discussão da problemática da observação
e uma abordagem muito geral ao processo de investigação educacional, a realização
de observações sobre determinados aspectos da vida das escolas, incluindo o
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funcionamento dos seus órgãos de gestão, os sistemas de apoios pedagógicos e
materiais aos alunos, e as diversas facetas do trabalho dos professores da sua área
disciplinar.
No caso da Matemática observam aulas, sessões de apoio pedagógico
acrescido, o funcionamento de clubes de Matemática e participam em realizações
como o dia ou a semana da Matemática, etc. Todas estas atividades de observação
são objeto de discussão em sessões que se realizam na Faculdade.
Já perto do fim do ano letivo, organizados em grupos de 3 ou 4 alunos cada, eles
prepararam – em articulação com o respectivo professor cooperante – um conjunto de
aulas a lecionar numa turma, constituindo, tanto quanto possível uma unidade
didática. Trata-se, não só de lecionar um conjunto de aulas, mas também de as
analisar em profundidade, tentando perceber quais os fenômenos educativos que se
evidenciaram, qual a correspondência entre os objetivos propostos e os resultados
conseguidos e qual a origem de eventuais dificuldades.
Esta atividade constitui para os futuros professores o ponto culminante de todo o
trabalho realizado ao longo do ano, sendo motivo de grande investimento e de grande
entusiasmo. De tal modo eles a levam a sério que as restantes disciplinas se
começaram a ressentir (em termos de assiduidade e de preparação das tarefas
propostas para casa), que se decidiu concentrar este trabalho numa única semana
em que são suspensas as atividades letivas usuais.
Nas semanas seguintes as experiências realizadas pelos alunos são objeto, em
cada turma de APOA (constituída em regra por 12 a 16 alunos), de cuidada discussão
e reflexão. Para além disso, realiza-se uma sessão coletiva com todos os alunos e
professores do curso, onde se faz um balanço da atividade e se discutem aspectos
relacionados com as suas preocupações relativas ao seu próximo ingresso na vida
profissional.
Este trabalho envolve um contacto com a prática profissional altamente
significativo para os futuros professores. O trabalho de preparação das aulas e
realização de uma aula constitui para eles um forte incentivo que proporciona uma
intensa situação de aprendizagem.
As múltiplas instâncias em que este trabalho é preparado e discutido — no grupo,
na turma, pelos professores cooperantes, por todo o curso, pelo conjunto dos
professores do curso — proporcionam momentos de reflexão e análise que fazem
igualmente parte integrante da experiência formativa.
No caso da APOA, a Didática está presente pela forte relação que esta disciplina
tem com a Metodologia do Ensino da Matemática (muitos dos assuntos tratados em
MEM são retomados pela APOA). As experiências a realizar pelos futuros professores
devem ter em consideração as orientações gerais da Didática, proporcionando tarefas
de aprendizagem válidas, criando um adequado ambiente de aprendizagem e
utilizando os materiais e recursos adequados tanto aos objetivos e conteúdos como
às características dos alunos.
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Além disso, a Didática oferece importantes instrumentos de análise para o que se
passa nestas aulas, evidenciando a importância de ter em atenção a natureza do
discurso dos diversos atores, os processos de comunicação e de construção dos
significados e a adequada combinação de modos de trabalho dos alunos (em
situações de trabalho coletivo, em grupos, pares ou trabalho individual).
Este trabalho coloca, também, as suas questões. Levar os futuros professores a
fazer uma investigação, mesmo incipiente, sem conhecer os instrumentos e os
procedimentos do ofício não envolve muitas armadilhas? Não há o perigo de
assumirem uma postura negativista em relação aos professores cooperantes?
O paralelo entre o trabalho investigativo que se propõe para os alunos
(explorando situações e relações matemáticas) e dos futuros professores (explorando
modos de fazer investigação sobre a sua própria prática) não será demasiado
simplista, tendo em conta a natureza muito diferente do saber matemático e do saber
profissional dos professores? A verdade é que o exemplo das investigações
matemáticas – mais facilmente interiorizável pelos futuros professores – pode servir
de modelo contrastante que em vez de dificultar, ajuda a compreender o que é uma
investigação no terreno educativo.
Em ambos os casos os formandos formam-se participando em práticas sociais –
que se estabelecem de novo, segundo o dispositivo formativo no primeiro exemplo,
que são em grande medida preexistentes, no segundo exemplo. Em ambos os casos
os formandos aprendem a partir da sua atividade e da sua reflexão sobre essa
mesma atividade.
Estes dois exemplos permitem-me ilustrar dois aspectos:
• tanto na formação inicial como na formação contínua a Didática pode
constituir um conteúdo simultaneamente orientador e problematizador;
• tanto na formação inicial como na formação contínua, o trabalho de
natureza investigativa encerra grandes as possibilidades formativas.
A Didática dá um contributo, fornecendo orientações, mas não se apresenta
fechada, com “certezas” ou receitas. Fornece um quadro geral onde se evidenciam
diversas propostas abertas, cuja concretização precisa sempre de ser
cuidadosamente estudada em função das condições concretas, para além de
proporcionar um conjunto de ferramentas conceptuais para analisar o processo de
ensino-aprendizagem.
A forma de trabalhar é investigativa, inquiridora e reflexiva. Existe uma
permanente abertura para questionar os grandes objetivos, os objetivos específicos,
os meios e as técnicas a utilizar. Procura-se questionar uma coisa de cada vez, cada
coisa no seu tempo e no seu lugar.
Na verdade, não serve de muito estar todo o tempo a questionar os grandes
objetivos e, por falta de atenção aos meios, avançar para uma prática desastrada. Tal
como não adianta muito avançar com meios e técnicas muito aperfeiçoadas para a
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concretização de objetivos que, pensando bem, deveríamos recusar.
5. O PROFESSOR E A COMPETÊNCIA
Um professor é um profissional multifacetado que tem de assumir competências
em diversos domínios. Não basta possuir conhecimentos na sua área disciplinar,
dominar duas ou três técnicas para transmiti-los a uma classe e ter um bom
relacionamento com os alunos.
Um professor tem de ter conhecimentos na sua área de especialidade e
conhecimentos e competências de índole educacional. Tem de ser capaz de conceber
projetos e artefatos — nomeadamente, aulas e materiais de ensino. Tem de ser capaz
de identificar e diagnosticar problemas — tanto problemas de aprendizagem de
alunos e grupos e de alunos, como problemas organizacionais e de inserção da
escola na comunidade.
A atividade do professor requer uma combinação de conhecimentos científicos e
acadêmicos de base na sua especialidade com conhecimentos de ordem
educacional. Requer também o desenvolvimento da capacidade de análise e de
concepção, realização e avaliação de soluções de ordem prática. O professor é
chamado a desenvolver uma atividade muito específica, onde há um tempo para
planear e refletir, mas onde também há um tempo onde é preciso agir e tomar
decisões sobre os acontecimentos, muitas vezes com conseqüências irreversíveis.
Parece-me, por isso, pertinente sublinhar duas idéias fundamentais:
1. a importância de uma boa relação com os conteúdos de ensino por parte dos
professores;
2. a interiorização do processo investigativo como componente fundamental da
formação (inicial e contínua) do professor.
Os professores têm de dominar perfeitamente as matérias que ensinam. Uma
boa relação com os conteúdos de ensino não se consegue, na minha perspectiva,
com “muita” matéria, mas com “boa” matéria. É preciso que o trabalho de formação
não destrua o gosto pela disciplina, antes o desenvolva e o ajude a amadurecer.
É importante que as instituições do ensino superior, para além de transmitirem
conhecimento, ensinem os grandes valores das diversas disciplinas e ensinem a
produzir novo conhecimento.
A afirmação do processo investigativo na formação inicial e contínua de
professores é bastante problemática. Ela contraria as expectativas relativamente à
formação da generalidade dos formandos e implica mudanças significativas nas
práticas das instituições de ensino superior e dos próprios centros de formação. Um
jovem biólogo, químico, psicólogo ou sociólogo completa o seu curso e conhece o
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essencial do processo de investigação na sua área.
O mesmo não acontece, de um modo geral, com o jovem professor. Por vezes
existem disciplinas de métodos e técnicas de investigação nos cursos de formação de
professores, mas centra-se habitualmente muito mais na parte instrumental do que no
significado do que é investigar em educação. Ensinados de modo escolar e
desenquadrados das necessidades e interesses dos formandos, são um bom meio de
conseguir que eles jamais se venham a interessar pela investigação.
Mas o que é, afinal, investigar?
Tal como em Matemática, em educação investigar começa por ser definir
questões de interesse e elaborar conjecturas preliminares que irão sendo
sucessivamente modificadas com o decurso do processo investigativo. Novas
questões podem ser introduzidas e as questões iniciais podem ser reformuladas.
Finalmente, há um momento em que é preciso sistematizar os resultados obtidos,
relacioná-los com o conhecimento existente, e fazer uma avaliação geral do trabalho
feito. Os métodos e as técnicas são a parte menos interessante. Temos de ir à
procura deles no momento próprio, quando são necessários e aí, sim, é preciso saber
escolher.
De uma maneira geral, a investigação é um trabalho feito de modo sistematizado
e rigoroso, com o objetivo de resolver um dilema ou responder a uma questão
pessoalmente significativa. Os investigadores profissionais procuram produzir
conhecimentos gerais, organizados e transmissíveis no âmbito de uma dada disciplina
científica ou área do saber. No entanto, não é nesta perspectiva que os professores
têm interesse em se envolver em trabalho investigativo, pois o seu principal objetivo é
resolver problemas de natureza local, modificar aspectos concretos da sua situação
de trabalho, da sua prática, ou dos seus resultados.
Ao debater esta questão, Perrenoud (1993) chama a atenção para dois sentidos
muito diferentes da noção de investigação: como processo cognitivo e como prática
social. Como processo cognitivo (sentido usado, por exemplo, por Piaget), investigar é
procurar conhecer: “... a investigação é uma seqüência de dese-seqüências e
equilíbrios, de desorganizações e reestruturações, de momentos de generalização, de
diferenciação, de coordenação dos conhecimentos e dos esquemas de pensamento
adquiridos”.
Como prática social, a investigação envolve um processo complexo de produção
e validação, que exige a indicação dos pressupostos e dos procedimentos envolvidos,
a apresentação pormenorizada de evidência obtida, e a apresentação nos fóruns
próprios de debate da comunidade investigativa (encontros, revistas).
Não se deve confundir a investigação enquanto processo cognitivo de todo o ser
humano com a investigação como prática social numa comunidade científica. Numa
aula ou numa situação de formação, pode-se ir buscar à investigação como prática
social certas características que dão sentido, finalidade, enquadramento e métodos a
uma atividade de investigação enquanto processo cognitivo.
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Entre a investigação mais sofisticada e a reflexão mais informal existe todo um
continuum que envolve níveis diversos de preocupações metodológicas. A
investigação usada como estratégia formativa, procura tomar como referência muito
mais os processos cognitivos utilizados no processo investigativo do que os rituais
próprios da construção e validação do conhecimento nas comunidades acadêmicas.
Podemos agora sistematizar diversas razões que justificam a integração da
investigação na formação de professores. Em primeiro lugar, a investigação é
importante porque ajuda a construir conhecimento relevante do ponto de vista da
prática profissional na medida em que obriga a manusear conceitos, variáveis e
hipóteses de uma maneira mais profunda e mais exigente do que noutro tipo de
trabalho e ajuda a perceber o valor da investigação produzida nas diversas
disciplinas.
Só compreendendo a sua própria aprendizagem, investigando sobre ela, se pode
compreender esses processos nos próprios estudantes. Também neste caso se
aprende fazendo — os conhecimentos profissionais constroem-se na ação e na
interação e só são realmente úteis se forem mobilizáveis na ação.
Em segundo lugar, a prática da investigação é importante para desenvolver
competências e valores decisivos ao professor, como seja o espírito crítico e a
autonomia dos professores face ao discurso das Ciências Humanas, incentivando
uma atitude exigente e pragmática relativamente às investigações em educação e
para desenvolver as competências profissionais dos professores com mais segurança
e mais possibilidade de se tornarem eficazes nas situações de prática.
E, em terceiro lugar, a investigação é deve ser valorizada porque se trata de um
paradigma de trabalho que pode servir de base a uma prática refletida.
Finalmente, há que apontar pistas sobre o modo como a investigação pode estar
presente nos programas de formação. Apresentei dois exemplos, mas,
evidentemente, muitos mais são possíveis. Na linha do que referi ao longo desta
conferência, gostaria de sugerir quatro princípios fundamentais:
1. a investigação não é a recusa da teoria, mas a busca de uma permanente
articulação entre teoria e prática;
2. no trabalho investigativo, é decisivo dar especial atenção às fases mais
conceptuais e não aos métodos e técnicas;
3. a própria experiência de investigação deve ser transformada em objeto de
análise e de reflexão;
4. a investigação não deve ser encarada, ela própria, como a solução universal
para a formação dos docentes, mas como uma peça de um dispositivo de formação
multifacetado e dinâmico.
Tem-se falado e escrito muito sobre formação. No entanto, tem-se feito
relativamente pouca investigação associada a processos concretos de formação
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inicial e contínua. Não é possível terminar esta intervenção sem sugerir que uma
formação mais marcada pela investigação coloca também uma forte responsabilidade
aos formadores, enquanto investigadores.
Há também aqui um paralelo que não será inútil salientar. A reduzida presença da
investigação educacional na formação inicial e contínua está provavelmente
relacionada com a reduzida atenção que, como objeto de estudo, os próprios
investigadores em Ciências de Educação têm dedicado ao fenômeno formativo, um
terreno de trabalho inegavelmente difícil, tanto em termos empíricos como teóricos.
Mas promover essa ligação é a única forma do discurso e da prática formativa
assumirem toda a sua coerência. É um passo que é necessário dar, não só para
favorecer o desenvolvimento profissional dos professores, mas para promover o
desenvolvimento das próprias Ciências de Educação.
CAPÍTULO III
A EDUCAÇÃO E AS RELAÇÕES DE PODER
1. AS RELAÇÕES DE PODER
No contexto da escola pública de ensino fundamental, desenrolam-se relações de
poder, às vezes inconscientes e subliminares, sob a forma do poder simbólico de
Bourdieu, outras vezes claramente identificadas, como o poder formal e impessoal,
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como o poder legal, como o uso da força ou como a influência social, política ou
ideológica abordados por Weber.
Instância onde a circulação de capital econômico e social é restrita e cuja
exigência do capital cultural é menor do que em outros níveis e ambientes, a escola
pública de séries iniciais do ensino fundamental de periferia é um lugar no qual se
travam lutas pelo poder e se fazem relações de poder, de forma clara e, às vezes, até
mesmo impositiva.
Para Weber (1984), o conceito de poder é sociologicamente amorfo, havendo
uma série de circunstâncias que colocam uma pessoa na posição de impor sua
vontade devendo, portanto, o conceito de dominação ser mais preciso: dominação é a
probabilidade de que um mandado seja obedecido. Segundo ele, o poder é a
possibilidade de que um homem, ou um grupo de homens, realize sua vontade
própria numa ação comunitária, até mesmo contra a resistência de outros que
participam da ação. (Weber, 1982)
Ao analisar o poder nas estruturas políticas, Weber enfatiza o uso da força,
comum a todas elas, diferindo apenas a forma e a extensão como a empregam contra
outras organizações políticas.
Analisa o clientelismo, o nepotismo e a influência social, política ou ideológica
exercida pelos detentores do poder econômico e político. O poder na sociedade de
classes é analisado a partir da concepção de ordem jurídica, cuja estrutura influi,
diretamente, na distribuição do poder econômico, ou de qualquer outro, dentro de
uma comunidade.
O poder econômico distingue-se do poder como tal, podendo ser conseqüência
ou causa do poder existente por outros motivos. Para Weber (1982), as classes têm
sua oportunidade determinada pela existência ou não de maior ou menor poder para
dispor de bens ou habilidades em seu próprio benefício.
O poder na burocracia é abordado a partir da consideração de que,
tecnicamente, a burocracia é o meio de poder mais altamente desenvolvido nas mãos
do homem que o controla.
Weber a considera como o modo mais racional de exercer o poder, servindo a
interesses políticos, econômicos ou de qualquer outra natureza. Analisa as
características da burocracia, onde é exercido um poder formal e impessoal.
Bourdieu aborda a questão do poder a partir da noção de campo, considerando o
campo do poder como um "campo de forças" definido em sua estrutura, pelo estado
de relação de forças entre formas de poder ou espécies de capital diferentes.
É um campo de lutas pelo poder, entre detentores de poderes diferentes; um
espaço de jogo, onde agentes e instituições, tendo em comum o fato de possuírem
uma quantidade de capital específico (econômico ou cultural especialmente)
suficiente para ocupar posições dominantes no seio de seus respectivos campos,
afrontam-se em estratégias destinadas a conservar ou a transformar essa relação de
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forças.
Segundo ele, o poder exercido no Sistema de Ensino é o poder simbólico. Poder
invisível que só pode se exercer com a cumplicidade daqueles que não querem saber
que a ele se submetem ou mesmo que o exercem.
Para ele, este poder é quase mágico, na medida em que permite obter o
equivalente ao que é obtido pela força, graças ao efeito específico de mobilização.
Todo poder simbólico é um poder capaz de se impor como legítimo, dissimulando a
força que há em seu fundamento e só se exerce se for reconhecido.
Ao contrário da força nua, que age por uma eficácia mecânica, todo poder
verdadeiro age enquanto poder simbólico. A ordem torna-se eficiente porque aqueles
que a executam, com a colaboração objetiva de sua consciência ou de suas
disposições previamente organizadas e preparadas para tal, a reconhecem e crêem
nela, prestando-lhe obediência.
O poder simbólico é, para Bourdieu, uma forma transformada, irreconhecível,
transfigurada e legitimada das outras formas de poder. As leis de transformação que
regem a transmutação de diferentes espécies de capital em capital simbólico e, em
particular, o trabalho de dissimulação e transfiguração que assegura uma verdadeira
transformação das relações de força, transformam essas forças em poder simbólico,
capaz de produzir efeitos reais, sem gasto aparente de energia.
2. RELAÇÕES DE PODER NO COTIDIANO DAS INSTITUIÇÕES
Aliar o poder simbólico ao poder formal e impessoal das organizações
burocráticas pode parecer, à primeira vista, uma tarefa impossível. No entanto, foi
esta a realidade detectada nas escolas analisadas, nas relações do dia-a-dia: os
atores interagem sob o comando do diretor, cujas decisões ou são colegiadas ou são
referendadas pelo Colegiado.
Enquanto autoridade maior e presidente do Colegiado, o diretor exerce um poder
simbólico, reconhecido por todos e vivenciado sem muitos questionamentos. As
resistências e antagonismos naturais existem, é claro, mas não se manifestam no dia-
a-dia ou, pelo menos, não se opõem em situações de embate ou luta aberta pela
imposição de idéias ou pontos de vista.
Existem hierarquias a serem respeitadas, tarefas a serem executadas, regras a
serem cumpridas e todo um aparato burocrático, definido em estatutos e regimento,
que norteiam as ações e interações dos atores dentro da Instituição Escolar.
Desde o momento em que entram na escola até a hora da saída, são submetidos
a uma série de regras para o exercício de suas atividades, as quais acatam, em sinal
de conivência com a ordem estabelecida, mesmo que não se conformem muito com
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ela.
Nesta rotina, os chefes colocam a responsabilidade pelas inconveniências das
ordens que emitem sempre na autoridade mais distante. Por exemplo: o professor
exige dos alunos e pais porque recebeu orientação do supervisor, este exige do
professor porque tem que prestar contas ao diretor que, por sua vez, recebeu ordens
da Secretaria de Educação, por intermédio do Inspetor Escolar.
E, nesta cadeia hierárquica, onde todos têm um ponto de origem da exigência
fora de sua própria pessoa, é exercido um poder aparentemente impessoal, apoiado
nas normas regimentais, nas leis e nas ordens vindas dos órgãos administrativos do
sistema de ensino.
Todos são bons, compreensivos e gostariam de colaborar, mas não podem,
porque a ordem vem de cima; todos são funcionários e estão no mesmo barco,
sujeitos ao mesmo estatuto e aos mesmos órgãos administrativos. Internamente, os
arranjos e acordos são feitos, na medida do possível, desde que não firam as normas
estabelecidas.
Além disso, todos estão envolvidos em um processo educativo, em torno do qual
há uma mobilização dos atores, em uma prática do poder simbólico, reconhecido, não
conhecido como arbitrário, exercido com a conivência de todos.
Alguns momentos críticos, vividos pela Instituição, revelam todas as
incompatibilidades e divergências entre os atores e desvendam o poder que, ao invés
de existir em sua forma simbólica do dia-a-dia, torna-se manifesto e revelado
expressando-se nas lutas pela imposição de idéias, que não se travam mais nos
bastidores, mas abertamente.
Em tais, lutas, o uso da força, o apelo à legitimidade jurídica, a utilização das
situações e habilidade em benefício próprio e a influência social, política ou ideológica
colocadas por Weber substituem o poder do dia-a-dia, ao mesmo tempo formal,
impessoal e simbólico. Foram identificados três momentos críticos: o movimento
grevista, a eleição de diretores e a extensão de séries.
A escola, pelo que observamos, nem sempre, ou diria, raramente, é pautada pelo
princípio de que deva ser governada por interesses dos que estão envolvidos. Será
que existe, na verdade, interesse em uma gestão democrática? Qual seria então o
papel da democracia na escola?
Dentro de um contexto da rede pública, observa-se pelo que tenho notado, que o
gestor ou diretor escolar assume uma nova centralidade organizacional, sendo o que
deve prestar contas pelos resultados educacionais conseguidos, transformando-se no
principal responsável pela efetiva concretização de metas e objetivos, quase sempre
centrais e hierarquicamente definidos.
Neste sentido, esta concepção de gestão introduz uma nova nuance na
configuração das relações de poder e autoridade nos sistemas educativos. Trata-se
de uma autoridade cuja legitimidade advém agora da revalorização neoliberal do
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“direito a gerir” — direito este, por sua vez, apresentado como altamente convergente
com a idéia neoconservadora que vê a gestão ao serviço de uma nova ordem social,
política e econômica, com formas de avaliação que facilitam a comparação e o
controle de resultados, embora no primeiro modelo se exija sempre a sua divulgação
pública e no outro essa prestação de contas se faça diretamente às hierarquias de
topo da administração.
Democracia refere-se à “forma de governo” ou a “governo da maioria”; então,
torna-se claro, que as relações cotidianas no âmbito escolar, deveriam explicitar esta
linha de ação, porém sabendo-se que toda gestão, pressupõe uma AÇÃO e a palavra
ação é justamente o oposto da inércia, do comodismo, espera-se do gestor
educacional atitudes compromissadas de construir, de fazer e o que observa-se são
atitudes autoritárias, seguindo diria, uma linha horizontal, onde os princípios
democráticos não se inserem; visto que a escola deve ser vista como um lugar
privilegiado para a construção do conhecimento e como eixo base das relações
humanas, viabilizando não só a produção de conhecimentos como também de
atitudes necessárias à inserção neste novo mundo com exigências cada vez maiores
de cidadãos participativos e criativos,
Seria para muitos, um exagero em considerar a gestão escolar na esfera pública,
autoritária. Porém, partindo-se que o autoritarismo está ligado a práticas
antidemocráticas e anti-sociais e estas, permeiam sutilmente a gestão das escolas
públicas, creio sim, que este termo não estaria sendo utilizado aqui, neste artigo, de
forma errada, a afrontar a administração pública.
A questão do controle, do poder aprisionado nas mãos de diretores e superiores
ainda é prática constante. Administrar escolas é tarefa árdua, porém, dentro dos
moldes do autoritarismo, legitima-se então, traumas antigos em que a sociedade se
mostra ainda fragilizada, com medo, sem liberdade de se expressar e covardemente
cedendo lugar às ideologias.
Percebe-se na gestão educacional, uma administração voltada com ações na
verdade, reprodutoras de uma sociedade infelizmente alienada e passiva, ditando
regras e não estabelecendo uma relação dialógica ideal com os envolvidos,
estabelecendo meramente uma transmissão de ordens, alegando na maioria das
vezes cumprirem determinações que lhes vem de cima não proporcionando assim,
momentos para discussão.
Todas as iniciativas de política educacional, apesar de sua aparente autonomia,
têm um ponto em comum: o empenho em reduzir custos, encargos e investimentos
públicos, buscando senão transferi-los e/ou dividi-los, com a iniciativa privada e
organizações não governamentais.
A participação é muitas vezes, limitada, controlada e puramente formal. A
estrutura técnica se sobrepõe aos indivíduos envolvidos e o poder e a autoridade
(leia-se: autoridade : como não prática social- sem visão crítica) se instalam de forma
sutil , com obediência, dentro de uma perspectiva clássica de administração que
repudia a participação, o compartilhar idéias, a liberdade para expressar-se , a
deliberação de decisões e o respeito às iniciativas.
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A questão do controle ainda é muito forte e mesmo sabendo que o poder e a
autoridade são necessários em muitos momentos dentro de várias organizações,
intermediando e viabilizando ações criativas para melhora, observa-se ainda um
controle rígido, um descompromisso e muito pouca participação da comunidade
escolar como um todo (professores, pais, funcionários, lideranças de bairro) no
processo da gestão escolar, causando assim automaticamente uma acomodação, em
que as pessoas não se mobilizam para nada e ficam alheias, esperando sempre
serem orientadas ou então aceitando passivamente tudo que venha das “autoridades
competentes”, sem quer que seja , nenhum questionamento crítico construtivo.
As atuais discussões sobre gestão escolar têm como dimensão e enfoque de
atuação: a mobilização, a organização e a articulação das condições materiais e
humanas para garantir o avanço dos processos socio-educacionais, priorizando o
conhecimento e as relações internas e externas da escola.
No contexto das instituições escolares, o mecanismo de disciplina produz um tipo
de máquina, que se organiza como uma pirâmide e opera como uma rede com sua
forma hierarquizada, contínua e funcional. Para Foucault, a vigilância também
estabelece uma simetria crescente ente poder e produção, poder e saber.
No contexto escolar, os dispositivos disciplinares são sanções normalizadoras.
Nele funciona um pequeno mecanismo penal. O castigo tem a função de reduzir os
desvios, ele é corretivo.
Na medida em que a visibilidade constante dos indivíduos e a invisibilidade
permanente do poder disciplinar fazem com que os indivíduos se adestrem, se
ajustem e se corrijam inicialmente por motor próprio, pode-se afirmar que a vigilância
substitui a violência e a força. Sem essas, passa a ser ainda possível se falar em um
adestramento ou readestramento espiritual, das almas, e não dos corpos.
Para Pogrebinschi (2004) a escola é o espaço onde as relações de poder são
nítidas, embora não represente o próprio poder: Com a vigilância, o poder discipilinar
torna-se um sistema integrado, converte-se no conceito de diagrama. Não há um
centro, não há um chefe no topo da forma piramidal desse poder: a engrenagem
como um todo produz poder. Trata-se de um poder em essência relacional.
O psicanalista J. Lacan ,observou que a partir do momento em que alguém se vê
"rei", ele muda sua personalidade. Um cidadão qualquer quando sobe ao poder, altera
seu psiquismo. Seu olhar sobre os outros será diferente; admita ou não ele olhará "de
cima" os seus "governados", os "comandados", os "coordenados", enfim, os demais.
Estar no poder, diz Lacan, "dá um sentido interiormente diferente às suas
paixões, aos seus desígnios, à sua estupidez mesmo". Pelo simples fato de agora ser
"rei", tudo deverá girar em função do que representa a realeza. Também os
"comandados" são levados pelas circunstâncias a vê-lo como o "rei do pedaço".
La Boétie parecia indignado em perceber o quanto o lugar simbólico de poder faz
o populacho se oferecer a uma certa "servidão voluntária". Bourdieu chama-nos
atenção para a força que o símbolo exerce sobre os indivíduos e grupos. Antes de
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ocupá-lo, o poder atrai e fascina; depois de ocupado tende a colar a alguns como se
lhes fossem eterno. Aí está a diferença entre um Fidel Castro e um Nelson Mandela.
O primeiro e a maioria dos ditadores pretendem se eternizar no poder, o
segundo, mais sábio, toma-o como transitório, evitando ser possuído pelo próprio.
("Possuído", sim, pois o poder tem algo de diabólico, que tenta, que corrompe, etc).
Uma vez no poder, o sujeito precisará de personas (máscaras) e molduras de
sobrevivência. A persona serve para enganar a si e aos outros. A moldura, é algo
necessário para delimitar simbolicamente a ação dele enquanto representante do
poder. A ausência de moldura ou o seu mau uso fará irromper a força pulsional do
sujeito que anseia por mais e mais poder, podendo vir a se tornar uma patologia
psíquica. A história coleciona exemplos: Hitler, Stalin, Mobutu, Collor de Melo, Pol Pot,
Idi Amim, etc.
O poder faz fronteira com a loucura, afirma Lima (2002). Não é sem motivo que
muitos loucos se julgam Napoleão ou o Rei Luis XV. Parece que há algo de "loucura
narcísica" nas pessoas que anseiam chegar ao poder político (governante de uma
cidade, estado ou país, ministro, membro do secretariado local), ou ao poder de uma
instituição, empresa, departamento, pequeno setor de uma organização qualquer ou
grupo qualquer.
O narcisismo de quem ocupa o poder, revela-se na auto-admiração (o amor a si e
aos seus feitos), na recusa em aceitar o que vem dos outros e no gozo que ele extrai
do poder, que, levado ao extremo poderia revelar loucura. R. Kurz, é direto ao
declarar que "o poder torna as pessoas estúpidas e muito poder, torna-as
estupidíssimas".
No contexto da instituição escolar e nas instâncias superiores que controlam o
processo, é bem visível essa manifestação medíocre de poder.
O sociólogo M. Tragtenberg certa vez observou como muitos intelectuais
discursam uma preocupação pelo "social", mas estão mesmo preocupados com a
sua "razão do poder". Há uma espécie de "gozo louco" pelo poder, que faz subir a
cabeça dos que estão jogando para ganhá-lo um dia.
Os sujeitos quando no poder protege-se da crítica reforçando pactos de auto-
engano com seus colegas de partido. Reforçam a crença de que representam o Bem
contra o Mal, recusam escutar o outro que lhe faz crítica e que poderia norteá-lo para
corrigir seus erros e ajudar a superar suas contradições.
Se entrincheirarem no grupo narcísico, o discurso político tornar-se-á dogmático,
duro, tapado, e podemos até prever qual será o seu futuro se tomar o caminho de
também eliminar os divergentes internos e fazer mais ações de governo contra o
povo, "em nome do povo".
Infelizmente assim é o poder: seduz, corrompe, decepciona e faz ponto cego e
surdo nos seus ocupantes temporários.
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3. PARA ALÉM DO PODER DISCIPLINAR E BIOPODER
O conceito de poder foucaultiano se situa, entretanto, em algum lugar
entre o direito e a verdade. Foucault quer estudar o modo pelo qual o poder se
exerce, o “como do poder”, conforme ele mesmo explica – em outras palavras, isso
equivale a compreender os mecanismos do poder balizados entre os limites impostos
de um lado pelo direito, com suas regras formais delimitadoras, e de outro pela
verdade, cujos efeitos produzem, conduzem eeconduzem novamente ao poder.
É nesse sentido que Foucault menciona a relação triangular que se estabelece
entre esses três conceitos: poder, direito e verdade.
Como bem observa Habermas, o que se passa é que Foucault torna a verdade
dependente do poder – invertendo uma relação que, no âmbito da filosofia do sujeito,
supostamente se exerceria no sentido contrário.
O poder, portanto, institucionaliza a verdade. Ou, ao menos, ele institucionaliza a
busca da verdade ao institucionalizar seus mecanismos de confissão e inquirição. A
verdade se profissionaliza, pois, afinal, no seio daquela relação triangular, a verdade é
a norma: nesse sentido, e antes de mais nada, são os discursos verdadeiros que
julgam, condenam, classificam, obrigam, coagem, trazendo sempre consigo efeitos
específicos de poder.
Na visão de Pogrebinschi (2004): “O poder produz: ele destrói e reconstrói, ele
transforma, acrescenta, diminui, modifica a cada momento e em cada lugar a si
mesmo e a cada coisa com a qual se relacione em uma rede múltipla, móvel,
dinâmica, infinita... o poder é produção em ato, é a imanência da produtividade”.
A questão aqui, neste trabalho é relacionar as relações de poder no âmbito das
instituições escolares as quais produzem um sintoma inconsciente ou não que
culminam na repulsa pela ordem e pela disciplina por parte de alguns alunos e até
mesmo dos professores.
O poder como modo de disciplinar o sujeito seja em todas as esferas sociais
nasceu com o próprio sujeito que experimenta uma posição superior em relação aos
outros, evoluindo conforme exigências dos novos tempos.
Fazendo uma análise de Foucault, Pogrebinschi (2004) questiona sobre as
transformações ocorridas nas relações de poder: “Ao longo dos séculos XVII e XVIII
portanto, no que tange às relações de poder, muitas transformações passam a ser
operadas. A mais importante delas consiste certamente na constatação foucaultiana
de que o poder da soberania é substituído gradativamente pelo poder disciplinar e,
por conseguinte, as monarquias soberanas se convertem aos poucos em verdadeiras
sociedades disciplinares.
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Mas a que se deve esta transformação longo desses dois séculos, multiplicaram-
se por todo o corpo social verdadeiras instituições de disciplina, tais como as oficinas,
as fábricas, as escolas e as prisões – que passam a constituir seu objeto de
investigação em Vigiar e punir.
Nino, afirma Foucault (2001): “o poder disciplinar é com efeito um poder
que, em vez de se apropriar e retirar, tem como função, maior adestrar, ou sem dúvida
adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor”.
Para compreensão da noção de poder disciplinar, que nos leva à vigilância
constante, Foucault (1999) utilizou o conceito de panoptismo O termo “panóptico” foi
sugerido pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham. Em uma prisão que possui
uma arquitetuta que permite aos guardas verem continuamente o que se passa no
interior de cada cela, o panóptico é a torre de observação central. Os presos não
podem ver se estão ou não sendo observados dessa torre. Essa incerteza faz com
que eles mesmos se disciplinem.
Foucault observou que os séculos XVII e XVIII também assistiram a uma efusão
de dispositivos disciplinares ao longo de toda a extensão da estrutura da
sociedade. Mas em que consistem esses dispositivos disciplinares? Em que consiste,
afinal, a disciplina? A disciplina é uma tecnologia específica do poder, ela é “um tipo
de poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporta todo um conjunto de
instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é
uma física ou uma anatomia do poder, uma tecnologia”.
Na medida em que o poder disciplinar é uma modalidade de poder múltipla,
relacional, automática e anônima, a disciplina, por sua vez, também faz crescer e
multiplicar aquilo e aqueles que estão a ela submetidos.
Nesse sentido, pode-se dizer que a disciplina é uma técnica que fabrica
indivíduos úteis. A disciplina faz crescer e aumentar tudo, sobretudo a produtividade.
E aqui se fala em produção não apenas em um sentido econômico. Além de ampliar a
produtividade dos operários nas fábricas e oficinas, a disciplina faz aumentar a
produção de saber e de aptidões nas escolas, de saúde nos hospitais e de força no
exército, por exemplo.
São por esses motivos, principalmente, que Foucault fala em um triplo objetivo da
disciplina: ela visa tornar o exercício do poder menos custoso – seja econômica ou
politicamente –, busca estender e intensificar os efeitos do poder o máximo possível
e, ao mesmo tempo, tenciona ampliar a docilidade e a utilidade de todos os indivíduos
submetidos ao sistema.
Quanto aos dispositivos disciplinares, ou instrumentos do poder disciplinar,
também são em número de três os seus principais, quais sejam: o olhar hierárquico, a
sanção normalizadora e o exame. O olhar hierárquico consiste antes na idéia mais
ampla de vigilância.
A vigilância é a mais importante máquina, a principal engrenagem do poder
disciplinar: ela contribui para automatizar e desindividualizar o poder, ao passo que
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contribui para individualizar os sujeitos a ele submetidos. Ao mesmo tempo, a
vigilância produz efeitos homogêneo de poder, generaliza a disciplina, expandindo-a
para além das instituições fechadas. Nesse sentido, pode-se dizer que ela assegura,
como explica Foucault, uma distribuição infinitesimal do poder.
O poder disciplinar, portanto, passa, a partir da segunda metade do século XVIII,
a ser complementado pelo biopoder. Complementado porque não se opera
efetivamente uma substituição, mas apenas uma pequena modificação - ou
adaptação –, e jamais uma exclusão. Em outras palavras, o biopoder implanta-se de
certo modo no poder disciplinar, ele embute e integra em si a disciplina,
transformando-a ao seu modo.
O biopoder “não suprime a técnica disciplinar simplesmente porque é de outro
nível, está noutra escala, tem outra superfície de suporte e é auxiliada por
instrumentos totalmente diferentes”. Ambas as espécies de poder passam assim,
portanto, a coexistir no mesmo tempo e no mesmo espaço.
São muitas as variações, entretanto, encontradas entre as duas mecânicas de
poder em questão. Ao passo que o poder disciplinar se faz sentir nos corpos dos
indivíduos, o biopoder aplica-se em suas vidas. Enquanto a disciplina promove a
individualização dos homens, o biopoder acarreta uma massificação, tendo em vista
que ele se dirige não aos indivíduos isolados, mas à população.
Daí que os efeitos do biopoder se fazem sentir sempre em processos de
conjunto, coletivos, globais... processos esses que fazem parte da vida, da vida de
uma população: os nascimentos, as doenças e as mortes constituem exemplos
desses processos. E o biopoder trata exatamente do conjunto desses processos de
natalidade, longevidade e mortalidade, seja comparando a proporção dos
nascimentos e dos óbitos, seja verificando a taxa de fecundidade de uma população.
Enfim, são vários os exemplos cedidos por Foucault para explicar essa modalidade de
poder.
O que é importante perceber é que em todos esses processos nos quais se
exerce o biopoder há concomitantemente uma extensa produção de saber. Entram
em campo as ciências exatas e biológicas: a Estatística e a Biologia, principalmente,
passam a ser extremamente importantes nesse momento em que se necessitam de
demografias, políticas de natalidade, soluções para endemias, entre outras coisas
mais.
Há, portanto, um elemento em comum que transita entre o poder disciplinar e
biopoder, entre a disciplina e a regulamentação, e que possibilita a manutenção do
equilíbrio entre a ordem disciplinar do corpo e a ordem aleatória da população. Esse
elemento é a norma, “que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar
quanto a uma população que se quer regulamentar”.
A norma da disciplina e a norma da regulamentação dão origem ao que Foucault
chama de sociedade de normalização, uma sociedade regida por essa norma
ambivalente, na qual coexistem indivíduo e população, corpo e vida, individualização
e massificação, disciplina e regulamentação.
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Foucault teceu para compreender historicamente o poder tal como ele se
manifestou ao longo dos séculos (estamos falando, evidentemente, do poder
disciplinar e do biopoder) e o significado do conceito de poder, este apenas em forma
abstrata, que criou para lograr opor-se às teorias tradicionais do poder e, assim,
promover a limpeza de terreno necessária para colocar em prática a sua analítica –
ou genealogia – do poder.
O poder disciplinar e o biopoder, portanto, assim como o poder da soberania,
operam como categorias historicamente constituídas, ou melhor, são chaves de
análise e interpretação do poder tal como ele se manifestou através de seus efeitos
na história da sociedade ocidental. Enquanto categorias analíticas, descritivas,
contudo, o poder disciplinar e o biopoder servem como instrumentos para que
Foucault crie ainda uma nova categoria; na verdade, um novo conteúdo, um novo
significado para o conceito de poder.
Pode-se pensar, por conseguinte, que, com Foucault, o conceito de poder passa
a ganhar um sentido emancipatório, libertador, ao liberar-se do estigma, do falso
estigma, da repressão. Ao emancipar-se desse falso atributo e passar a conter em si
mesmo o ideal de emancipação, o poder, agora visto como algo positivo, irrompe
também como pura e plena produtividade.
4. DIFERENÇA ENTRE PODER E SABER
Foucault reconhece a diferença entre poder e saber, mesmo referindo-se sempre
às suas interconexões. Distancia esses conceitos das concepções correntes, nas
quais o poder funciona apenas de forma negativa e a verdade ou o saber podem
inverter, apagar ou desafiar a dominação do poder repressivo. Quem de nós não
viveu essa concepção negativa de poder dos movimentos sociais do passado, como o
movimento estudantil, e que ainda se mantém viva até hoje entre muitos teóricos e
ativistas?
A relação entre poder e saber encontra-se em muitos dos discursos educacionais
que se reconhecem radicais; segundo o que acreditam,através do processo de
conscientização e educação, os poderes dominantes podem ser desmascarados para
revelar "a verdade" e assim, aumentar o potencial para derrubar o "sistema": o saber
serve de contra-ataque aos males do poder.
Foucault utiliza-se da expressão poder/ saber - para deixar claro a relação entre
ambos - a qual desafia a suposição de que alguma verdade não-distorcida pode ser
alcançada:
O poder não é necessariamente repressivo; ele incita, induz, seduz, torna mais
fácil ou mais difícil, amplia ou limita, torna mais provável ou menos provável. O poder
é exercido ou praticado em vez de possuído e, assim, circula, passando através de
toda força a ele relacionada. Gore diz que na educação o poder não está apenas ao
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alcance dos professores, mas os pais, os estudantes, os administradores e o governo
exercem poder nas escolas.
Outro conceito na obra de Foucault importante de ser considerado nessa
discussão sobre educação diz respeito a governo. Gore (1994) retoma a visão de
governo do século XVI a qual se refere tanto às estruturas políticas e à administração
dos estados, como à forma pela qual a conduta dos indivíduos ou grupos podia ser
dirigida; governar seria, pois, estruturar o campo possível de ação dos outros.
Existiria, pois, o governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos
doentes, entre outras formas.
Sobre isso, Foucault na obra Vigiar e Punir mostra que as formas modernas de
governo mudaram passando do poder soberano – aberto, visível e localizado na
monarquia - para o poder disciplinar, exercido de modo a não aparecer.
Quando levadas para as reflexões do contexto escolar, esta idéia de poder
disciplinar possibilita a explicação sobre a auto-regulação dos estudantes em muitas
situações de sala de aula.
Para Foucault, as escolas e a educação formal exercem um papel importante no
poder disciplinar. É o que ele trata pormenorizadamente em "Vigiar e punir", na parte
referente à disciplina, ao descrever as inovações pedagógicas iniciais e o modelo que
elas forneceram para a economia, a medicina e a teoria militar do século XVIII. É
importante destacar que, para ele, as relações de poder se referem aos mecanismos
que constroem instituições e experiências institucionais, e não às pessoas no interior
dessas instituições, como comumente se pensa nesse poder exterior ao indivíduo.
Em relação à educação, o processo pedagógico corporifica relações de poder
entre professores e aprendizes - e não apenas alunos, já que não se trata apenas de
relações escolares, mas educacionais de modo geral, que ocorrem em outros
espaços.
A pedagogia se baseia em técnicas particulares de governo, e produz e reproduz,
em diferentes momentos, regras e práticas particulares; cada vez mais tem enfatizado
o autodisciplinamento, pelo qual os estudantes devem conservar a si e aos outros sob
controle; principalmente no ensino das séries iniciais esses mecanismos são mais
claros. Na Universidade, são camuflados pela autonomia e liberdade que "são dadas"
e reforçadas por muitos professores.
As técnicas/práticas que induzem a esse comportamento são denominadas por
Foucault de tecnologias do eu, as quais agem sobre o corpo: olhos, mãos, boca,
movimento. Diz Gore (1994), que as pedagogias produzem regimes corporais
políticos particulares e funcionam como regimes de verdade. As relações disciplinares
de poder-saber são fundamentais aos processos da pedagogia, sejam elas impostas
pelos professores, auto-impostas, ou impostas sobre os professores.
O mais interessante para nós, em termos de perspectivas de compreensão e
interpretação do fazer pedagógico é a defesa foucaultiana de que os discursos
radicais e emancipatórios não estão isentos dessa análise.
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Nos séculos XIX e XX, o projeto do progresso universal através da educação foi
pensado por filantropos, igrejas e governos progressistas, no sentido de transformar
as pessoas em cidadãos moral e politicamente úteis. Neste sentido, foi fundamental a
contribuição de ciências emergentes como a Psicologia, Sociologia e Ciência Política,
as quais desenharam as metodologias empíricas e cientificamente verificáveis que
possibilitariam identificar de modo objetivo sistemas sociais mais racionais, mais de
acordo com a modernidade.
Predominava uma visão utilitária de educação e os governos progressistas da
Europa e dos Estados Unidos se responsabilizaram pela administração das escolas e
das universidades, fazendo com que alguns pensadores da época considerassem
benevolência desinteressada a educação patrocinada por um Estado racional, "não
permitindo o mal que seria uma multidão vagando pelas ruas numa ignorância pouco
iluminada.
A visão da educação como benevolência desinteressada foi ampliada pelos
teóricos coletivistas liberais e socialistas, para os quais a educação era uma questão
de eficiência nacional e uma preocupação nacional assumida no interesse de uma
comunidade como um todo" (Jones, 1994).
A ciência educacional imaginava uma educação científica que transformaria o
capital humano; essa é a visão iluminista de Kant, influência direta do Emílio de
Rousseau: "uma educação corretamente ordenada revelaria ou recuperaria a
natureza verdadeira do homem e criaria em todo indivíduo a capacidade latente para
a liberdade moral" (Jones, 1994).
CAPÍTULO IV
O PODER COMO IDEAL NARCÍSICO NA RELAÇÃO
EDUCATIVA
A educação deve levar à supremacia da razão sobre os impulsos, em detrimento
do recalque, isto é, ajudar o homem a vencer a ilusão – reforçada pela religião – e o
recalque, possibilitando um pensamento racional livre, que funcione como juízo
consciente.