1. “Auto da Índia”, de Gil Vicente
“Toda a mensagem desde Auto é uma sátira
(crítica com humor) da sociedade daquele tempo.”
Em traços gerais, a história é sobre uma jovem esposa (a Ama) que trai o seu marido (o Amo) e que
aproveita a ausência dele na viagem e estada na Índia, para continuar, em Lisboa, a traí-lo com dois
homens, o Lemos e o Castelhano. Nesta sua vida de aventuras amorosas, a Ama tem a cumplicidade da
sua criada (a Moça). O Auto começa com a Ama a chorar porque ouviu dizer que o seu marido não tinha
partido no barco para a Índia. Para ter certeza de que essa informação era verdadeira, a Ama manda a
Moça ir saber notícias corretas. A rapariga regressa com a confirmação de que o Amo partiu na armada
para a Índia.
Muito contente com essa informação, a Ama promete oferecer à Moça uma touca de seda e, embora o
marido lhe tenha deixado trigo, azeite, mel e panos “para três anos”, a Ama decide ter uma vida de
prazeres e continuar a enganar o marido com dois amantes.
A Ama recebe em sua casa o Castelhano, um dos dois amantes, que lhe faz uma declaração de amor.
Como fica muito satisfeita com as palavras dele, a Ama combina um novo encontro “às nove horas e não
mais” e pede que ele atire uma pedrinha à janela. O Castelhano vai-se embora e chega o Lemos, o outro
amante, um amor fiel e antigo da Ama.
Tal como combinado, o Castelhano atira as pedrinhas à janela, mas o Lemos está ainda em casa da Ama.
Assistimos, então, a uma situação cómica: a Ama ora fala com um ora fala com outro, enganando os dois,
o que leva a Moça a dizer: “Um na rua, outro na cama”.
Logo a seguir, e apesar das promessas da Ama de que, enquanto o marido estivesse fora, ela “iria fiar e
cantar”, aparece a Moça com a notícia de que a nau (barco) que levou o Amo à Índia tinha chegado e
estava já no Restelo. A Ama fica desesperada e pede à Moça para ir comprar vinho e meio cabrito para
festejar o regresso do marido. O marido chega a casa “negro e tostado”, bastante cansado e cheio de
saudades da sua esposa. O Amo conta-lhe todos os problemas que teve durante a viagem e a Ama mente-
lhe dizendo que “…eu cá esmorecer, fazendo mil devoções, mil choros, mil orações…” Ela diz-lhe
também que teve uma vida tranquila, sem diversões, tendo sido fiel. Logo a seguir, pergunta ao marido
se ele vem rico. No entanto, ele responde que além das histórias para contar, trouxe pouca coisa.
A esposa mente novamente dizendo que o que é importante é que ele tenha chegado vivo e que isso é a
maior riqueza que se pode ter.
2. Análise do "Auto da Índia", de Gil Vicente
O Auto da Índia (1509), apresentado em Almada perante a rainha D. Leonor , é o primeiro texto teatral
onde é representada uma intriga, uma história completa, e ainda por cima atual. Se o tema do adultério
é intemporal, as circunstâncias "deste" adultério são as da primeira década do século XVI, quando, por
trás da glória e da fachada épica da expansão ultramarina, era já possível perceber as profundas
alterações, nem todas positivas, que essa expansão estava a provocar na sociedade portuguesa.
Há outros aspectos que distinguem este auto dos anteriores. Além de ser o primeiro a contar uma
intriga, com princípio e fim, é também a primeira "farsa" escrita por Gil Vicente e a primeira das suas
peças escrita maioritariamente em português. No “Auto da Índia”, a única personagem a falar em
castelhano é o "Castelhano", com o objetivo óbvio de conseguir o efeito de real. Por último, é também o
primeiro auto a pôr em cena personagens femininas.
Estrutura interna
Como vimos, o “Auto da Índia” é o primeiro auto de Gil Vicente que representa uma intriga com
princípio, meio e fim. Por esse motivo é fácil identificar a sua estrutura tripartida. A ação mostra ao
público o adultério da Ama, o que exige a ausência do Marido.
Assim, a 1ª parte corresponde à fase de expetativa da Ama, relativamente à partida ou não do Marido,
e à distensão que se segue à confirmação da saída da armada e que ela aproveita para confessar a sua
predisposição ao adultério. Vai até ao verso 96.
A 2ª parte é a fase do adultério. Sucessivamente, entram em cena os pretendentes, Castelhano e Lemos;
o adultério consuma-se; a Ama revela, sem qualquer escrúpulo ou pudor, toda a sua leviandade,
falsidade e imoralidade.
A partir do verso 393, entramos na 3ª parte, que corresponde à chegada do Marido. Desaparecem as
condições que propiciaram o adultério e a Ama leva ao auge a sua hipocrisia.
Poderá parecer estranho que o crime da Ama fique impune, mas temos que reconhecer que o seu
castigo destruiria o efeito cómico caraterístico da farsa. Por outro lado, parece sensato pensar que o
objetivo de Gil Vicente não era punir o adultério, mas sim preveni-lo. A mensagem implícita parece ser
esta: o castigo do infrator (a Ama) não repara a falta (o adultério); o que interessa é eliminar as
condições objetivas que propiciam a falta.
3. Espaço
Toda a ação decorre num único espaço - a casa da Ama. Os elementos textuais, no entanto, permitem
subdividi-lo em três: a sala da Ama, onde decorre a maior parte da ação; a cozinha, onde se esconde o
Lemos em determinado momento e que é referida no discurso outras vezes; e o quintal, onde o
Castelhano aguarda, noite fora, autorização para entrar.
Por razões de ordem técnica, facilmente compreensíveis, o espaço representado, numa peça de teatro,
é sempre reduzido e neste caso é único. Gil Vicente não chegou a conhecer a estruturação das peças em
atos distintos, que permitem a alternância de espaços diferentes. Daí que tenha concebido a intriga de
forma a poder decorrer contínua no mesmo espaço. Para compensar essa limitação, atribuiu à
personagem da Moça, além de outras, a função de mensageira: é ela que vai ao exterior e de lá traz as
notícias que modificam o desenrolar da ação.
Naturalmente, o espaço aludido é bem mais vasto: estende-se à cidade, ao mar, à Índia, para onde o
Marido se ausenta e de onde regressa no final da representação.
Tempo
O tratamento do tempo, no “Auto da Índia”, constituía para Gil Vicente um problema difícil. O facto de
a ação decorrer de forma contínua num mesmo espaço sugere que os acontecimentos se sucedem ao
longo de um período de cerca de vinte e quatro horas. O Marido ausenta-se de madrugada; logo a seguir
o Castelhano visita a Ama; o Castelhano sai e, pouco depois, Lemos chega e fica para jantar e passar a
noite; entretanto, o Castelhano regressa e aguarda no quintal, durante a noite, autorização para entrar
até desistir e ir embora; no dia seguinte, de madrugada o Lemos vai embora e pouco depois o Marido
regressa.
No entanto, o tempo representado corresponde, não a um dia e uma noite, mas a um período de cerca
de três anos. É o discurso das personagens, principalmente da Moça, que faz a marcação do decorrer
do tempo e leva o público a rejeitar a duração de vinte e quatro horas. Logo de início, somos informados
que o Marido partiu para uma viagem marítima e deixou à mulher mantimentos para três anos:
Leixou-lhe pera tres annos
Trigo, azeite, mel e panos.
A confirmação vem-nos pela boca da Ama, quando recebe Lemos e lhe diz que o marido se ausentou
para a Índia (v. 238). Como na época a duração média de uma viagem de ida e volta à Índia era de dois
4. e meio a três anos, desfaz-se de vez, na mente dos espetadores, a impressão de que o tempo
representado se reduz, neste momento, a algumas horas.
Numa fase mais avançada da representação é a Moça que vai marcando o decorrer do tempo e
prenunciando o regresso do Marido, dizendo:
(...) agora vai em dous annos
Que eu fui lavar os panos
Alem do chão d' Alcami;
E logo partiu a armada (...)
Tres annos ha
Que partio Tristão da Cunha.
Personagens
Ama
É a personagem principal, a única que permanece em cena do início ao fim da representação. É em torna
dela que gira toda a ação. Desse modo, é fácil ao público (e ao leitor) perceber que o objetivo
fundamental do autor é criticar o comportamento imoral das esposas na ausência dos maridos. No
entanto, ao mandar o Marido para a Índia, Gil Vicente, implicitamente, introduz um segundo aspecto
crítico: o efeito perverso que a expansão ultramarina produzia na ordem social e moral do país,
facilitando a degradação moral do ambiente familiar.
A Ama apresenta-se como "moça e fermosa" e serve-se disso como justificação para o seu
comportamento imoral:
Est' era bem graciosa,
Quem se ve moça e fermosa
Esperar pola ira ma.
Partem em Maio daqui,
Quando o sangue novo atiça:
Parece-te que é justiça?
Revela-se uma mulher sensual e leviana, incapaz de controlar os seus desejos sexuais durante a
ausência do marido. Essa licenciosidade leva-a a aceitar sem dificuldade o assédio dos dois namorados
(Castelhano e Lemos); leva-a mesmo a estimular as propostas imorais dos dois:
Vós querieis ficar cá?
Agora he cedo ainda;
5. Tornareis vós outra vinda,
E tudo bem se fará.
Que foi do vosso passear,
Com luar e sem luar,
Toda a noite nesta rua?
Mostra-se, desde o início, uma mulher falsa, mentirosa e hipócrita. Engana, não apenas o marido, mas
os próprios amantes, escondendo a cada um deles a existência do outro. Colocando em cena, não um,
mas dois amantes, o autor sublinha a licenciosidade e leviandade da Ama. E a sua hipocrisia é evidente:
apesar do comportamento manifestamente imoral, procura por todos os meios preservar a imagem
pública de uma mulher honesta e virtuosa:
Foi-se à India meu marido,
E depois homem nacido
Não veio onde vós cuidais;
A vezinhança que dirá,
Se meu marido aqui não 'stá,
E vos ouvirem cantar?
Essa hipocrisia torna-se ainda mais evidente com o regresso do marido. Nessa altura garante-lhe que
sofreu muito a sua ausência, que rezou pela sua segurança e permaneceu esses três anos recatadamente
em casa, aguardando o seu regresso. Vai ao ponto de manifestar ciúme pelas presumíveis aventuras
amorosas do marido na Índia.
A imagem que ela procura transmitir para o exterior, para o marido e para os próprios amantes
contrasta com o seu efetivo comportamento. Só nos monólogos e nos diálogos com a Moça é que ela
revela sem disfarce a sua verdadeira maneira de ser.
E é também uma mulher extremamente manhosa e habilidosa. Consegue esconder o seu
comportamento leviano do marido, mas, de certo modo, também dos amantes. Quando o Castelhano a
procura e ela está com o Lemos em casa, consegue esconder a existência de cada um deles do outro.
Através da personagem Ama, Gil Vicente traça um retrato realista de um determinado tipo de mulher,
bem diferente da imagem feminina, profundamente idealizada, que nos é transmitida pela poesia lírica
da época (cf. poesia lírica de Camões). A Ama representa todas aquelas mulheres que, abandonadas
pelos maridos empenhados na aventura ultramarina, se mostravam incapazes de resistir ao assédio
dos pretendentes, incorrendo em adultério. Nesse sentido, materializa também um dos aspectos
negativos da expansão.
6. Moça
Como personagem-tipo, representa os dependentes domésticos, obrigados a submeter-se aos
caprichos e maus tratos dos patrões, que reagem a essa situação ironicamente, observando e criticando
os comportamentos incorretos dos seus senhores. Mas esta personagem tem, na economia do auto, um
estatuto especial.
Por um lado, é uma personagem, ao mesmo nível das outras, na medida em que intervém no desenrolar
dos acontecimentos. Assume, então, o papel de confidente e amiga.
A sua presença permite à Ama revelar o seu verdadeiro caráter, que ela esconde, quer do marido, quer
dos amantes. É em conversa com ela que a Ama manifesta o seu desagrado pela hipótese de o marido,
afinal, não partir; o desejo de que ele não regresse da Índia; as suas infidelidades anteriores, bem como
a sua intenção de o trair enquanto estiver na Índia.
Como amiga, mostra preocupação com o seu estado de espírito, quando, na primeira cena, a encontra
desolada; procura tranquilizá-la, apressando-se a saber se o Marido, afinal, parte ou não parte; atreve-
se mesmo a aconselhá-la, alertando-a para a fanfarronice e o caráter pouco recomendável do
Castelhano:
Jesu! Como he rebolão!
Dae, dae ó demo o ladrão.
(...)
Não vos fieis vós naquelle,
Porque aquillo he refião.
Mas, ela coloca-se também no papel de espetadora. Observa os comportamentos da Ama, diverte-se
com eles e julga-os severamente. Essa crítica é feita quase sempre em apartes. Desmente as acusações
feitas pela Ama ao marido:
Todas ficassem assi.
Leixou-lhe pera tres annos
Trigo, azeite, mel e panos.
Condena o seu comportamento devasso, a sua manha e hipocrisia:
Quantas artes, quantas manhas,
Que sabe fazer minha ama!
Hum na rua, outro na cama!
Manifesta satisfação, com um certo sabor de vingança pelas humilhações sofridas, quando o regresso
do Marido põe termo aos arranjos da Ama:
7. Raivar, que este he outro jôgo.
Quando interrogada pela Ama sobre os seus apartes, responde-lhe ironicamente, declarando em voz
alta o contrário do que transmitira ao público, o que produz um imediato efeito cómico.
A par disso tudo, funciona como intermediária entre o interior e o exterior. É ela que sai, logo no início,
para confirmar a partida do marido. É ela, igualmente, que traz da rua a notícia do seu regresso. Com a
ação concentrada num espaço único e limitado (a câmara, a cozinha e o quintal da casa da Ama) era
necessária uma personagem que funcionasse como mensageira e introduzisse no diálogo as notícias
que suscitam alterações dramáticas no desenrolar da intriga.
Além disso, como já foi referido, é a ela que o autor atribui a função de marcar o decorrer do tempo
representado: primeiro, prenunciando a duração de três anos; mais tarde, anunciando efetivamente o
decorrer do tempo (dois anos..., três anos...).
É uma mulher de idade indefinida; subserviente, por necessidade; fiel à sua ama, que nunca denuncia;
perspicaz e atenta aos comportamentos da sua senhora; sensata, pois não se deixa iludir pelo aparato
e as falas pomposas do Lemos e do Castelhano; crítica, é a única personagem que mostra ser capaz de
distinguir claramente o certo do errado.
Castelhano
É uma personagem de origem social humilde, provavelmente um vendedor ambulante (é certamente a
ele que a Ama se refere, quando fala no "castelhano vinagreiro"). Oportunista, procura imediatamente
seduzir a Ama, assim que se apercebe da ausência do marido. Utiliza como estratégia de sedução a
lisonja e um discurso empolado, retórico, excessivo e inadequado ao seu estatuto humilde. Ao mesmo
tempo, revela-se um fanfarrão, exagerando a sua valentia. O excesso, quer do discurso, quer da
fanfarronice, tornam-no ridículo, perante o público e perante a Ama.
A imagem de homem culto, civilizado, que procura transmitir com a sua pomposa declaração (culto da
aparência), é desfeita na sua segunda intervenção, ao reagir com grande violência verbal, quando se
sente rejeitado pela Ama, impossibilitada de o receber, devido à presença de Lemos.
O modo como se veste revela a sua origem humilde, que ele procura disfarçar, insinuando ser homem
de posses, apesar do aspecto que apresenta. Através dele (e de Lemos, como veremos), Gil Vicente
aproveita para introduzir um outro tópico de crítica - o culto das aparências, típico duma sociedade
onde os bens materiais são já o valor dominante:
Que aunque tal capa me veis,
8. Tengo mas que pensareis:
Y no lo tomeis en grueso.
Embora não se sinta nada impressionada com a apresentação espalhafatosa do castelhano, a Ama
aceita-lhe a corte e marca-lhe um encontro amoroso, o que serve para acentuar o seu caráter leviano.
Lemos
Lemos, tal como o Castelhano, é introduzido na peça para caraterizar a Ama como uma mulher leviana
e adúltera.
Trata-se de um escudeiro pobre, que procura esconder a decadência, com modos delicados e um
discurso galanteador. Também ele documenta o culto das aparências, com mais sucesso do que o
Castelhano, visto que o estatuto social superior e as suas maneiras delicadas seduzem a Ama e levam-
na a preferi-lo ao Castelhano. Ostenta um desafogo material que não engana a Moça, quando
presunçosamente a manda fazer compras, pois de imediato rejeita os alimentos caros e dá-lhe muito
pouco dinheiro para as despesas.
Vá esta moça à ribeira
E traga-a ca toda inteira,
Que toda s' ha de gastar.
Também ele procura (e consegue) aproveitar-se da ausência do Marido para obter os favores sexuais
da Ama, que, aliás, mostra ter percebido há muito a corte distante de Lemos.
Marido
O Marido está fisicamente ausente, ao longo da maior parte da representação; só no final entra em cena,
encerrando desse modo o conflito dramático. De facto, a sua ausência é condição essencial para que a
intriga se desenvolva no sentido pretendido pelo autor: é ela que cria as condições necessárias para
que a leviandade da Ama se transforme em adultério, o que, provavelmente, já acontecera antes:
Hi se vai elle a pescar
Meia legoa polo mar,
Isto bem o sabes tu;
No contexto, a expressão "Isto bem o sabes tu" perde toda a ambiguidade e fica claro que significa "bem
sabes que lhe sou infiel".
Podemos talvez falar de uma "ausência-presença", já que a sua existência condiciona o desenrolar da
ação: é o seu afastamento que permite os avanços amorosos do Castelhano e do Lemos e o adultério da
Ama, do mesmo modo que o seu regresso põe fim (ao menos por algum tempo) a essa situação.
9. Representa todos aqueles portugueses com experiência marítima, pescadores ou marinheiros, que se
alistavam nas armadas para a Índia, na mira de um enriquecimento fácil, impossível no Reino. A Índia
constituía na época uma miragem, um mundo de riquezas, aparentemente ao alcance de quem tivesse
coragem para enfrentar os riscos e desconfortos da viagem.
Na mira do lucro fácil, dispunham-se a correr todos os riscos: viagens demoradas e perigosas; doenças
fatais; tempestades; climas estranhos e doentios; combates com os habitantes locais. Para os que
conseguiam regressar, quase sempre o lucro era reduzido. A própria personagem o reconhece, dizendo
Se não fôra o capitão,
Eu trouxera, a meu quinhão,
Hum milhão vos certifico.
Daí que muitos entendessem que não se justificava o sacrifício de ir procurar tão longe um lucro
improvável. De certo modo, o Castelhano exprime essa ideia ao dizer:
Que mas India que vos,
Que mas piedras preciosas,
Que mas alindadas cosas,
Que estardes juntos los dos?
Esse desejo insensato de enriquecer rapidamente tem consequências. Com o seu chefe afastado,
algumas famílias passam necessidades. Não foi isso que aconteceu com a Ama, mas a sua acusação,
embora mentirosa, alerta-nos para uma realidade que deveria ser muito frequente:
Leixou-me aquelle fastio
Sem ceitil.
Mas, todas elas ficavam afetivamente desamparadas: famílias sem pais e sem maridos, sujeitas aos
assédios dos oportunistas. Nessas condições, o adultério era sempre possível e muitas vezes
concretizava-se. A personagem-tipo do Marido representa, portanto todos os maridos enganados pelas
esposas, que, na sua ingenuidade, aceitam como boas todas as manifestações de amor e fidelidade das
respetivas consortes. Pode então dizer-se que esta personagem condensa os aspectos negativos da
expansão portuguesa.
10. Cómico
Sendo o Auto da Índia uma farsa, um dos objetivos do autor era divertir o seu público, recorrendo para
isso ao cómico.
Tal como em muitas outras peças de Gil Vicente, é possível encontrar aqui três tipos de cómico.
O cómico de linguagem resulta da exploração de certas virtualidades da língua; aquilo que se diz e o
modo como se diz suscita o riso no espetador. No Auto da Índia está presente ao longo de todo o texto,
por exemplo em algumas expressões insultuosas dirigidas pela Ama à Moça, mas sobretudo na fala do
Castelhano, pomposa, exagerada, cheias de expressões de cunho literário, que, por inadequadas às
personagens e à situação, provocam o riso na Ama e no público.
O cómico de caráter resulta da própria maneira de ser e de se comportar de determinadas personagens.
O Castelhano, pelo seu exagero, pela sua fanfarronice, pelo contraste entre aquilo que diz e aquilo que
é constitui um bom exemplo desse tipo de cómico. Também, o Marido, pelo modo ingénuo como aceita
todas as declarações da Ama, exemplifica este tipo de cómico. Na personagem de Lemos é possível
igualmente encontrar o cómico de caráter, ao apresentar-se com um chapéu ("sombrero")
excessivamente grande e ao ter que revelar a sua sovinice perante o hábil interrogatório da Moça. A
própria Ama, pela hipocrisia com que fala ao Marido e finge ciúmes, documente também este tipo de
cómico.
O cómico de situação surge quando, no decorrer da representação, uma personagem é colocada numa
posição ridícula. É o que acontece com o Castelhano, obrigado a aguardar no quintal, ao frio, durante a
noite, autorização para entrar em casa da Ama. O mesmo acontece, quando Lemos é constrangido a
esconder-se na cozinha para que a Ama possa tranquilamente falar com o Castelhano.
Por outro lado, Gil Vicente lança mão de determinados recursos para obter efeitos cómicos. Consegue-
o pela ironia, sobretudo nas falas da Moça, ao fazê-la dizer em voz alta à Ama o contrário do que tinha
declarado no aparte anterior. Recorre igualmente à caricatura, que consiste em exagerar um ou mais
traços específicos de uma dada personagem, como acontece no caso do Castelhano. Por fim lança mão
da sátira, isto é, da crítica divertida dos comportamentos humanos.
11. Crítica social
Conforme já vimos, com esta farsa Gil Vicente procura criticar situações e comportamentos sociais.
Quais são eles?
Degradação moral da família, traduzida no adultério, facilitado pela ausência prolongada dos
maridos envolvidos na aventura colonial;
Motivações egoístas e interesseiras da expansão ultramarina;
Materialismo da sociedade, traduzido na busca de um enriquecimento rápido;
Culto das aparências, com as pessoas a procurarem ostentar uma posição e uma riqueza que, de
facto, não possuem.
Caráter documental e atualidade do auto
O valor documental deste auto é inegável e resulta evidente das anotações anteriores. Cada uma das
personagens representa um tipo social, com seu comportamento próprio e seus defeitos, que são
habilmente ridicularizados. O texto permite-nos apreender a outra face da gesta dos Descobrimentos,
a face menos heróica, mais prosaica, pondo a nu as motivações materialistas dos agentes da expansão
e os efeitos perversos que ela tinha sobre a estrutura familiar e social.
Por outro lado, há no texto aspectos intemporais que lhe concedem uma inegável atualidade.
Descontados os aspectos circunstanciais, as críticas de Gil Vicente são perfeitamente atuais: é atual a
infidelidade no casamento, a falta de respeito pelos compromissos assumidos; é atual o materialismo
desenfreado, a hiper-valorização dos bens materiais em detrimento de valores mais nobres; atual é
também a crítica da ostentação, do culto das aparências.