Nietzsche sobre a origem da tragédia e os limites do conhecimento teórico
1. FILOSOFIA (12ºANO)
“A Origem da Tragédia “, de Nietzsche
Prof. Isabel Duarte
Ano Lectivo: 2003/2004
TEMA: OS LIMITES DO CONHECIMENTO TEÓRICO ( ciência)
A CONCEPÇÃO TRÁGICA E A CONCEPÇÃO TEÓRICA DO MUNDO
Plano organizador:
1- O Significado da Sentença de Sileno
2- A Inversão da Sentença de Sileno
3- A “Arte como a Verdadeira Actividade Metafísica do Homem”
4-Os princípios artísticos são princípios metafísicos
5- A génese da decadência: Eurípedes e Sócrates
6-A valorização da teoria ( abstracção, lógica)
7-Os limites da ciência
8- Críticas
N` A Origem da Tragédia”, de Nietzsche encontramos a oposição entre duas concepções do mundo distintas: a primeira é a
concepção trágica do mundo, presente na Grécia Antiga, e a segunda é a concepção teórica (optimista/racional) do mundo que teve
Sócrates como seu primeiro e principal impulsionador.
Assim, vemos, ao longo da obra, um certo pessimismo de resignação, presente na SENTENÇA DO VELHO SÁTIRO (SILENO),
segundo a qual o Homem não deveria ter nascido (“seres nada”) , mas já que nasceu deveria morrer o mais depressa possível, visto
que nasceu para sofrer.
Estamos perante uma concepção PESSIMISTA da existência, expressa em Schopenhauer quando este defende a infidelidade do
homem à vida por esta gerar grandes sofrimentos. Aliás, Schopenhauer concebe o pessimismo numa tripla dimensão: 1) ao nível da
sensibilidade ( a dor é a medida da lucidez ), 2) a nível da inteligência ( a descoberta da irracionalidade ) e 3) ao nível da moral
( reconhecimento do imoralismo dos impulsos vitais ). Deste modo o espírito trágico seria sinónimo de RESIGNAÇÃO. No entanto,
Nietzsche não concorda com esta posição: o conhecimento trágico é força, fidelidade à vida, à terra e alegria pela reunificação com
o “Uno Primordial”; inversão da sentença de Sileno. A “ARTE É A ACTIVIDADE METAFÍSICA DO HOMEM”, TORNA A VIDA DIGNA
DE SER VIVIDA: a existência e o mundo só podem ser justificados como fenómenos estéticos; 1ºARGUMENTO: Os gregos criaram,
em sonhos, um mundo de belas formas (beleza), de cuja contemplação resulta uma “visão libertadora” dos horrores (sofrimentos) da
existência. A visão das “belas formas” torna-os capazes de suportar a dor e desejar a vida (serenidade).
A arte surge assim como a verdadeira missão da vida pois ela é a única força susceptível de se opor à vontade de aniquilação da
vida. A face luminosa de Apolo é o véu ou mentira indispensável que torna a vida aceitável pela auréola de beleza com que a
reveste;
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2. 2ºARGUMENTO: Os próprios deuses (brutais e irresponsáveis) vivem uma existência semelhante à dos gregos, repleta de dor e
de alegria, sofrimento e prazer. A vida e a obra de arte são o produto de um "combate perpétuo", de uma tensão entre forças em
interacção que só de "modo periódico", provisório e instável, se conciliam e unificam para gerar algo de novo.
A arte trágica (conhecimento trágico) é a prova de que os gregos souberam vencer o “pessimismo de resignação” (Schopenhauer),
pois é através dela que o ser se revela e se apreende (dimensão ontológica da arte). É através do conhecimento trágico
(tragédia), do prazer extraído da contemplação estética (beleza), que o Homem apreende e se reconcilia com
uma “verdade terrível”, a de que o fundamento da existência é a dor. Se o fizéssemos através da razão
(conhecimento teórico) a reconciliação seria impossível, isto é, a vida não seria digna de ser vivida. Temos de ter
presente que a tragédia implica a “união fraternal” entre o espírito apolíneo e o espírito dionisíaco: sonho e embriaguez; forma e
caos; luz e noite; palavra e música; aparência e essência, isto é, a manifestação aparente da essência do mundo.
Por isso, segundo Nietzsche, o Grego é o homem cuja vontade deseja a vida, aceitando-a tal como ela é e com a esperança da
alegria da reunificação com o Uno Primordial, o verdadeiro existente.
Em oposição, a esta concepção trágica do mundo, encontramos a concepção optimista/racional do mundo que surgiu também na
Grécia com Sócrates, o primeiro génio da decadência que tal como Eurípedes não compreendia a tragédia ( “falta de lógica” ),
responsável pelo fim da idade trágica e o início da idade da razão, e o seu “socratismo estético” segundo o qual “tudo deve ser
inteligível - racional - para ser belo” e seus preceitos (1- virtude é ciência, 2- só se erra/peca por ignorância e 3- o homem virtuoso é
feliz), que foi posto em prática por Eurípedes. Aplicando este princípio(CANON ), Eurípedes operou grandes transformações na
tragédia tais como: a substituição do herói Diónisos pelo homem comum e da música (coro trágico) pela palavra (diálogo); a
alteração do tema trágico dos sofrimentos e das paixões dionisíacas pelos do homem comum e da sua vida quotidiana; a inserção
do prólogo e do epílogo de forma a que toda a “acção” seja compreensível para o espectador, etc – que conduziram à sua
decadência e “suicídio”, já que deixou de ser arte (tendência apolínea e emoção dionisíaca) ao tornar-se racional ( esquematismo
lógico e sentimentos naturalistas) após a expulsão de Diónisos ( o desmedido, o excesso...etc) e consequentemente de Apolo, que
só fazia sentido na presença do seu oposto. Eurípedes até introduz um “deus ex-machina” no final para que não restem dúvidas aos
espectadores sobre o futuro dos heróis. Tudo tem de ser lógico, compreensível. Como o próprio Nietzsche afirma “ o espectador
sobe à cena” e ganha a serenidade do homem teórico que crê poder a ciência guiar a vida. Ambos, Sócrates e Eurípedes, operam a
adulteração do espírito trágico a partir da racionalização da tragédia, substituindo a aliança da arte com a vida pela aliança da arte
com a ciência. Logo, é Sócrates (o não místico ou o déspota da lógica) o anormal dado que nele o instinto é crítico e a consciência é
criadora, tendo-se desenvolvido apenas um dos aspectos do espírito, o lógico-racional; o modelo e o inventor do homem teórico,
que fala pela boca de Eurípedes. É ele o verdadeiro assassino da tragédia e o verdadeiro opositor de Diónisos. A razão, a lógica,
hiperdesenvolvida aniquilou completamente o sentido trágico da existência. É nítida a crítica de Nietzsche à ciência: esta, na senda
de Sócrates, cloroformiza a autêntica vida feita de dor e de alegria e de tal modo o faz que dela analogicamente se poderá dizer: "É
um crime contra natura", como o próprio filósofo afirma.
Ora, o homem teórico está na base da cultura moderna, tendo a sua renovação no racionalismo cartesiano e o seu apogeu na
dialéctica de Hegel, caracterizando-se por sobrevalorizar a ideia, o pensamento, a razão e a lógica em oposição aos instintos, à
Se Apolo representa o Princípio de Individuação, fundamento da divisão de tudo o que existe como manifestação aparente da realidade
(Uno), pois dá forma, contornos, às coisas, delimitando-as no tempo e no espaço; identidade pessoal. É o deus que exige o respeito
pela medida e a sua conservação, sendo simultaneamente o “Princípio de luz” ( a partir do caos, desordem faz surgir o mundo, a ordem
) e o “Princípio ordenador” (submete a natureza a uma regra, a uma medida); DIÓNISOS representa o Princípio da Unidade, em que o
estado de embriaguez ou êxtase possibilitado pela ingestão de bebidas narcóticas e pelo desencadeamento dos instintos primaveris,
cânticos e danças, permite o colapso, a abolição do “eu”, das formas ( princípio de individuação ) e a identificação ou o retorno à
unidade primordial ( Uno Primordial, Natureza ). Esta reunificação com a natureza ( estado natural ) provoca um prazer supremo,
mistura de sofrimento e alegria, dor e prazer, vida e morte, que se exprime através de “gritos de espanto” e “gemidos nostálgicos”.
Édipo e Prometeu são apenas máscaras do deus (Diónisos), revelando-nos a unidade fundamental de todos os seres, a ideia de que a
individuação é a causa principal do mal e de que a arte cria a esperança de que a unidade será restaurada.
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3. vontade, à vida; pela crença na universalidade das categorias da razão- optimismo teórico – identificação da virtude, saber e
felicidade –( a posse da verdade universal – ciência – implica a posse da virtude – Bem – e da felicidade, sendo o mal produto da
ignorância ); pela negação do instinto; pela produção da ciência – crê ser possível ao pensamento através da causalidade conhecer
e corrigir a realidade - e pela submissão ao princípio de individuação; captando não a essência das coisas mas a sua APARÊNCIA,
o mundo dos fenómenos ou a realidade empírica.
O homem teórico tem uma só deusa, mas à custa de quê? Do desejo, por isso ele é o homem do recalcamento, da palavra. Ora a
palavra (o conceito) é abstracção e reprodução dos fenómenos, símbolo das aparências, não consegue penetrar na essência das
coisas (Uno Primordial). A realidade não pode ser dita, só pode ser exprimida através da música que é a reprodução imediata da
Vontade, da coisa em si. O que conduz Nietzsche a afirmar que a ópera, produto de “arte” da cultura socrática ou alexandrina, em
oposição ao drama musical de Wagner, ao privilegiar a palavra em detrimento da música, o crítico leigo ao artista e ao revelar uma
visão optimista da existência ( “bom homem”), desclassifica o dionisíaco, tornando-se uma arte da imitação, das aparências.
Nietzsche identifica, erradamente, referindo-se à filosofia socrática, teoria e “sciencia”. Para Nietzsche não há uma diferença
essencial entre a racionalidade filosófica clássica e a racionalidade científica moderna. Ambas são negações" da Vontade de Poder
( próprias do homem “normal" ) e afirmações da Vontade de Conhecer (próprias do homem anormal, do não místico).
O espírito científico atinge os seus limites, metáfora da “serpente que morde a própria cauda”, quando a sua pretensão a uma
validade universal é negada. Lessing, homem teórico honesto, afirma que “ Mais importante do que a posse da verdade é a sua
procura”, o que implica, por um lado, o reconhecimento dos limites da razão (descrença nos poderes da razão) e, por outro lado, a
possibilidade da não existência de verdades universais (absolutos). O próprio Fausto, representante do homem teórico moderno,
ávido da saber universal, apresenta-se descrente nos poderes da razão (Pacto com o Diabo). E o que dizer de Kant e
Schopenhauer que, segundo Nietzsche, expõem claramente os limites da razão pondo em causa o optimismo teórico, ao afirmarem
que a razão através das suas categorias (espaço, tempo e causalidade) apenas capta os fenómenos ou as representações
(Aparência). A realidade ( coisa em si ou vontade ) é incognoscível dado que as categorias da razão não são absolutas.
Esta descoberta, para Nietzsche, inaugura uma nova civilização trágica, pois agora a civilização socrático-científica (concepção
teórica do mundo) já não está "absolutamente convencida da eterna validade dos seus fundamentos". O homem teórico e a
civilização correspondente chegaram ao ponto limite. Aliás segundo Nietzsche a noção de “verdade absoluta" não passa de uma
ficção ( ilusão ). A verdade é uma criação" (“Não há factos, somente interpretações'), uma opção pessoal (perspectiva) resultante de
determinadas experiências de vida. Os conhecimentos são expressões subjectivas da personalidade humana (passagem do pIano
metafísico- lógico/cartesiano para o pIano psicológico - moral).
Consequentemente Nietzsche faz a apologia do retorno ao “homem trágico” (artista trágico) que se deixa seduzir pela vida plena
e completa, ultrapassando o princípio de individuação (“véu de Maia”) e a aparência e captando a verdadeira essência da realidade,
uma esfera anterior e superior a toda a aparência, o “Uno Primordial” ou o verdadeiro existente (coisa em si). A noção de
Schopenhauer de que sob todas as aparências (individualidade/subjectividade) está uma única, fundamentalmente imutável unidade
(vontade universal) e de que o maior erro de que sofremos epistemologicamente é o de concebermos o mundo como objectos
separados está constantemente presente. Ora o espírito dionisíaco através da embriaguez ou do êxtase permite a abolição de toda
a individualidade e subjectividade e consequentemente que o homem se sinta idêntico a tudo o que vive e sofre, a toda a Natureza
(o Uno). A arte ou a concepção trágica revela-nos que a individuação é a causa primeira do mal e a alegre esperança de que o
homem se libertará dela (aparência, barreiras da individuação) e reencontrará o prazer da unidade de tudo quanto existe (realidade,
a vontade).
O próprio Sócrates, inventor do homem teórico, nos seus últimos momentos de vida, na prisão, afirmou que lhe aparecera, em
sonhos, sempre a mesma sombra sempre com as mesmas palavras “ Sócrates cultiva-te na música”; tendo este composto um hino
a Apolo. Não será isto um sinal de uma hesitação acerca dos limites da lógica e o reconhecimento da existência “... de uma região
da sabedoria donde está excluída a lógica?”
Concluindo: o ser é vida e esta é vontade. Vontade universal, eterna, ainda não vontade de poder, mas apenas vontade de viver
marcada pelo dor e pelo prazer (união dos contrários). Apolo e Diónisos são as forças básicas da realidade da vida que se
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princípio cósmico.
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