1) O documento analisa a obra literária "Os Corumbas" de 1933 do escritor Amando Fontes, que descreve a vida difícil de uma família rural que migra para a cidade industrial de Aracaju em Sergipe escapando da seca.
2) A narrativa retrata as condições precárias de trabalho, baixos salários, doenças e acidentes enfrentados pelos trabalhadores nas fábricas, representando a violência da industrialização.
3) A obra gerou debates entre intelectuais da época, sendo vista por alguns como
A representação da violência na industrialização segundo Amando Fontes
1. CIDADE DOS CORUMBAS
Literatura e política na pena de Amando Fontes.
Cleverton Barros de Lima1.
(IFCH–UNICAMP – Pós-graduando)
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo estudar a figuração estética da população camponês-pobre na
cidade industrial, na obra do escritor Amando Fontes. O fio condutor desta investigação é a obra
Os Corumbas, que foi publicada em 1933 e que por muitos anos foi lida e esteve nas listas dos
melhores livros do denominado romance de trinta. A partir da análise desta literatura é possível
descortinar as especificidades das representações sobre os pobres no quadro da cultura e da
política das primeiras décadas do século XX no Brasil, compreendendo assim os jogos de poder
que estão relacionados na construção desta narrativa. Pois, esta produção foi tratada, para alguns
intelectuais, como representante de uma literatura comunista/proletária, já para outros, não podia
representar por não sugerir a revolta dos proletários. Acompanhando essa trama para designar a
obra deste escritor é possível perceber as sensibilidades políticas relacionadas na construção de
personagens literários.
Ao figurar personagens, os escritores precisam adentrar no campo dos sentimentos e das
representações. Figurar2 implica, portanto, num compromisso político com o sujeito narrado.
Neste sentido, o romance3 é uma expressão cultural importante das sociedades modernas
ocidentais no que concerne a figuração, pois tem um papel imprescindível na formação de
atitudes, sentimentos e referenciais. A figuração de personagens deve ser compreendida como
uma ferramenta política, pois são tecidas por meio de figuras retóricas convincentes. Jugo assim,
que a obra do escritor Amando Fontes defendeu uma estética literária sobre a população
camponesa e sua vida no espaço da cidade urbana, inaugurando o romance urbano4 nordestino
em 1933. Sua busca por figurar o “povo” sofrido trouxe sérios debates para o cenário intelectual
1
Mestrando em História – e-mail: cleverton.lima@gmail.com - IFCH/Unicamp, Orientadora Dra. M. Stella Martins
Bresciani (IFCH - Unicamp).
2
A etimologia do conceito figura, que é radical de figuração, vincula-se à raiz do latim fingere, figulus, fictor e
effigies, estudado por Erich Auerbach, que designa uma forma plástica. Remotamente encontrado em Terêncio, que
em sua obra Eunuchus (317), “diz que uma jovem tem uma nova figura oris [um formato incomum de rosto]”.
Consultar: AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Editora Ática, 1997.
3
Edward Said dá importância ao romance como uma forma cultural que é fonte para formação de sensibilidades e
de atitude; também é tido como um objeto estético de relevante ligação com as sociedades modernas. Para
compreender essa discussão consultar: SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.
4
O historiador Durval Albuquerque Jr., em estudo sobre o nordeste discorreu ligeiramente a respeito do papel deste
primeiro romance do Norte que trazia uma leitura sombria da vida dos sertanejos na cidade que se industrializava.
Consultar: ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste: e outras artes. Recife: Massangana;
São Paulo: Cortez, 1999.
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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2. brasileiro do início da década de 30. Refletindo sobre essa problemática é possível perceber os
jogos políticos que estão vinculados à figuração estética das classes pobres5. Neste sentido, a
literatura permite ao historiador analisar esta “escrita política” 6 como meio de compreensão dos
jogos políticos, que estão envolto na construção de personagens literários no contexto dos anos
30 no Brasil.
Em 1934, o escritor Amando Fontes viajou para Rio de Janeiro para receber seu prêmio
de cinco contos oferecidos em virtude do sucesso dos Corumbas, pela Sociedade Felipe de
Oliveira. Na aquela ocasião, discorreu sobre o que o motivou escrever seu romance, pois desde o
início foi inquirido a respeito de seus personagens, como também da motivação de seu livro, e
em suas palavras tinha evitado debater sobre a leitura da crítica. Seu desconforto pode ser
entendido por meio da crítica, que ora identificava no livro uma literatura proletária, pois foram
enquadradas as experiências terrificantes dos trabalhadores nas cidades urbanas, ou seja, viam
uma expressão cabal de romance comunista; outros viam como um modelo coerente para um
autêntico escritor.
A opção estética de Amando Fontes foi representar as condições sociais do povo
brasileiro das primeiras décadas do século XX em seus romances Os Corumbas e Rua do Siriri,
publicados respectivamente em 1933 e 1937. Ele buscou em sua atividade literária perscrutar a
vida dos mais pobres, e marginalizados no caso das prostitutas, que são os personagens centrais
do segundo romance. Esta figuração estética também permitiu vincular a uma literatura dos
romancistas7 do Nordeste como, por exemplo, Jorge Amado, Graciliano Ramos e Raquel de
Queiroz8, e toda problemática dos intelectuais brasileiros frente ao problema da exclusão social e
política desta sociedade das primeiras décadas do século XX.
A condição humana de suas personagens está perpassada por discriminação e violência,
vivenciada por estes trabalhadores. Em sua narrativa, Amando elucida os níveis de violência que
5
Para uma reflexão sobre os pobres: ARENDT, Hannah. Da Revolução. São Paulo: Ática, 1988. BRESCIANI, M.
Stella Martins “A compaixão pelos pobres no século XIX: um sentimento político”. In: SELIGMAN, Silva (org.).
Palavra e imagem: memória e escritura. Chapecó: Argos, 2006.
6
Segundo Jacques Rancière, “O conceito de escrita é político porque é o conceito de um ato sujeito a um
desdobramento e a uma disjunção essenciais. Escrever é o ato que, aparentemente, não pode ser realizado sem
significar” (...) Ela é coisa política porque seu gesto pertence à constituição estética da comunidade e se presta acima
de tudo a alegorizar essa constituição”. p. 7. Consultar conceito: RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Trad.
Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
7
Os escritores do nordeste são amigos de Amando Fontes, que se reuniram na livraria José Olympio depois de 1934,
ano da inauguração desta editora no Rio de Janeiro. Amando Fontes foi à pessoa que intermediou escritores como
José Lins do Rego e Raquel de Queiroz a publicar na José Olympio.
8
É importante destacar as memórias de Raquel de Queiroz, em conferência proferida na Fundação Joaquim Nabuco
nos anos 80, confirmando a importância de Amando Fontes no quadro de autores convencionados como Geração de
30. Consultar: QUEIRÓS, Rachel. “Literatura, cultura e trópico”. In: Seminário de Tropicologia: Trópico e cultura,
1983, Recife. Anais... Recife: Fundaj, Massangana, 1989. p. 164-168.
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3. a industrialização9 imprimiu nos operários e demais sertanejos. Neste sentido, a fábrica tornou-se
local propulsor desta violência, apresentada por precárias condições de trabalho, salários
insuficientes para a vida na cidade, acidentes, tuberculose, precária assistência médica e
insalubridade. A cidade é o palco dessa narrativa, que encena os dissabores dos sertanejos em
deixar o campo e viver em Aracaju, como única opção de sobrevivência. Num contexto de
cidade que se industrializava naquele período, a capital de Sergipe alegoriza o ritmo de mudança
imposto aos que saiam do campo10 para trabalhar nas fábricas. Até as primeiras décadas do
século XX, Sergipe tinha uma economia rural, sua população como a da maior parte do Brasil,
exercia atividades agrícolas, especialmente a produção açucareira e no cultivo do algodão. Uma
outra parte da sociedade desempenhava atividades nos 630 estabelecimentos industriais11.
Este processo de desenraizamento do mundo natural para um mundo dominado pela
técnica produziu novas sensibilidades, segundo a historiadora Stella Bresciani. Foram marcantes
na vida dos seres humanos que abandonaram a vida do campo, para uma vida nas cidades
urbanas e indústrias. Desde o século XIX, intelectuais vem delineando em seus escritos o
impacto decorrente desse desenraizamento que apontavam para uma “nova era”, onde o “homem
arrancado de sua íntima relação com a natureza, mas paradoxalmente apontam para a nova
condição de vencedor da natureza” 12. Desta feita, emerge o trinômio do progresso, do fascínio e
do medo: as máquinas, multidões e cidades. Vive-se deste momento sob a condição humana de
uma sensibilidade governada pelo “imperativo exterior e transcendente a ele mesmo, embora por
ele produzidos” 13. E a trama histórica mais identificada pelo infortúnio dos Corumbas encontra-
se na vida nas cidades:
(...) o homem, em especial o trabalhador fabril e urbano em geral, arrancado dos vilarejos e
impelidos a levar uma vida agressiva nas cidades. Perda do habitat tradicional, onde conjugava-se
o trabalho artesanal com o labor dos campos.; onde toda a família encontrava condições de
trabalho e onde ávida não aprecia cindida em tempo do padrão e lugar do trabalho contra-postos a
tempo do descanso e lugar de morar14.
No romance Os Corumbas, o leitor encontra a trajetória de uma família do interior
sergipano. Geraldo e Sá Josefa são os protagonistas centrais, juntamente com seus quatro filhos,
9
Para industrialização consultar: DE DECCA, Edgard. O nascimento das fábricas. São Paulo: Brasiliense, 1984.
10
Para uma discussão sobre essa transição da vida do campo para a vida na cidade consultar: NAXARA, Márcia
Regina Capelari. Sobre Campo e Cidade. Olhar, sensibilidade e imaginário: em busca de um sentido explicativo
para o Brasil no século XIX. Campinas, Unicamp, 1999, (tese de doutorado).
11
ROMÃO, Frederico L. Na trama da história: o movimento operário de Sergipe - 1871 a 1935. Aracaju, 2000.
p.93.
12
BRESCIANI, M. Stella Martins. “Metrópoles: as faces do monstro urbano (as cidades no século XIX)”, in:
Revista Brasileira de História, ns 8/9, ANPUH, 1985. p.37.
13
Bresciani. 1985, p.37
14
Idem, p.38.
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4. Pedro, Albertina, Bela e Caçulinha. A imigração ocorre em virtude da seca, que obrigou esta
família a refugiar-se na capital Aracaju. No decorrer da narrativa, Amando Fontes descreve
várias situações de dificuldades e penúria pelas quais esta família vive seja no trabalho, na
fábrica Têxtil ou nas condições da cidade. Neste contexto ficcional, o espaço da fábrica é visto
pelos personagens como um "inferno", pois a insalubridade, a proliferação de doenças e os vários
acidentes tornavam aquele espaço em uma espécie de punição. Acrescenta-se às agruras desta
família, a prisão15 do filho, que militando por melhores condições de trabalho nas fábricas têxteis
foi deportado para o Rio de Janeiro, bem como, a prostituição das filhas dos Corumbas, retratada
no romance Rua de Siriri (1937), onde Amando Fontes trata da área de meretrício da cidade de
Aracaju e dos insucessos da vida na cidade.
A opção de Amando Fontes por enredar a vida dos sertanejos na cidade de Aracaju
trouxe reações dispares entre os intelectuais. O momento político de polarização foi responsável
acredito, por essa visão. Neste sentido, é importante perceber as figuras retóricas envolvidas na
construção do povo sertanejo na literatura denominada de romance de 30. Nesse momento,
grande parte da crítica situou Os Corumbas como um livro que inovou a estética regionalista,
pois agregou ao cenário da seca, a situação da imigração de brasileiros vindos do campo para as
cidades, encontrando os seus respectivos problemas na urbe, como também, a penúria dos
trabalhadores na incipiente industrialização pela qual Sergipe passou nas primeiras décadas do
século XX. Entretanto, é estranho como a obra de Amando Fontes não se conseguiu fincar seu
espaço no cânon literário após a década de 40. Esta constatação é pertinente quando se observa a
leitura do crítico Álvaro Lins16 ao ressalta em 1946, que Os Corumbas "obteve sucesso ao
mesmo tempo na crítica e nas livrarias, bastante elogiado pelos intelectuais e muito lido pelo
público". Ele busca compreender o fato deste romance prolongado há mais de dez anos, tendo
diversas edições.
O escritor João Ribeiro escreveu o primeiro texto na imprensa sobre Os Corumbas que
gerou as primeiras controvérsias de ordem política. Primeiro, o romance seria para Ribeiro “um
dos raros documentos do comunismo incipiente e fatal. É um retrato bem parecido da sociedade
que se dissolve sob a erosão funesta da civilização” 17. Segundo, esta obra seria um exemplo de
“romance proletário infeliz e desesperado” opinião que gerou reações contrárias.
15
Embaso-me nas seguintes obras quanto ao debate histórico: CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência.
Brasília: Ed. Unb, 1993. LENHARO, Alcir. A sacralização da política. Campinas: Papirus, 1986.
16
LINS, Álvaro. "Sagas da Bahia e de Sergipe". In: Os mortos de sobrecasaca. Obras autores e problemas da
literatura brasileira. Ensaios e Estudos. 1940-1960. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S. A. 1963. p. 246.
17
RIBEIRO, João. “Registro Literário”. In: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 03/08/1933.
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5. Otávio de Faria apontou que em 1933 havia sido publicado três importantes livros: Os
Corumbas, Serafim Ponte Grande e Cacau. Sua escolha pautava-se sobre a assertiva de que estes
romances foram criticas contundente a sociedade burguesa, entretanto, aponta o primeiro como o
mais bem sucedido por não esquecer a função elementar do escritor, que estava vinculada a sua
própria ideologia. Deste modo, é possível perceber as implicações ideológicas para o romance na
década de 30, pois João Ribeiro já vinculava Os Corumbas a uma “cor política”, enquanto que,
Otávio de Faria via como uma obra revolucionária, entretanto, imparcial.
Na verdade, a burguesia não teve sorte com nenhum dos três. Mas enquanto o Sr. Amando
Fontes, numa grande fidelidade à sua função de romancista, apresenta apenas o que viu, o que lhe
parece ser a vida proletária de Aracaju, sem nada forçar em beneficio do seu credo pessoal, os
outros dois, esquecidos do papel que devem desempenhar, põem os seus romances ao serviço de
uma corrente social, para denunciar com o Sr. Jorge Amado, para destruir e borrar de preto com o
Sr. Oswald de Andrade18.
É possível perceber esse debate por meio das discussões que datam do lançamento do
livro Cacau do escritor Jorge Amado em 1933. No prólogo deste romance, o autor delineou sua
visão literária: "Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de
honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance
19
proletário?” . O livro de Amando Fontes foi questionado dentro desta perspectiva estética
proposta por Jorge Amado para um romance proletário. Sendo que, o romance de Jorge Amado
propunha a revolta dos trabalhadores como meio de luta política.
Na realidade, Jorge Amado20 traça um projeto estético a respeito do romance moderno
brasileiro. Em sua ótica a tradição literária do romance passava por Lima Barreto, Machado de
Assis, Aloísio de Azevedo, Raul Pompéia, Manoel Almeida e Graça Aranha. Entretanto, o maior
destes romancistas seria Machado de Assis, que não tinha nenhuma relação com Amado e seria:
“é tão brasileiro como inglês, ou menos”. Continua, dizendo sem rodeios seu interesse no
romance, que é a multidão vista primeiramente na obra de Graça Aranha Canaã. E, mesmo a
preocupação com o problema do Brasil, e seu grito aproxima-o do escritor baiano.
Amado afirma que o modernismo21 havia destruído muito da literatura ruim, mas também
pouco havia construído. Esse pouco se resumia: “a Cobra Norato, do Bopp, Macunaíma do
Mario de Andrade, dois romances de Oswald de Andrade, livros de versos de Manuel Bandeira,
Jorge de Lima, Felipe de Oliveira, contos de Antonio Alcântara Machado, uns estudos de Ronald
18
FARIA, Otávio de. “Dois romancistas: Jorge Amado e Amando Fontes”. In: Boletim de Ariel. Rio de Janeiro,
(I,18),1933. pp-7-8.
19
AMADO, Jorge. Cacau. 50ª. Ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. p.ix.
20
AMADO, Jorge. “Apontamentos sobre o moderno romance brasileiro”. In: Lanterna Verde. p.49.
21
Consultar as discussões o debate proposto pelo historiador Daniel Faria no livro O mito modernista. Uberlândia,
EDUFU, 2006.
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6. de Carvalho e outros de Renato Almeida”. Havia um recesso na produção brasileira, pois para
Amado não havia mais nada para destruir. No diagnóstico proposto por Jorge Amado do
romance brasileiro, o modernismo é responsabilizado pelo recesso da produção romancista. Abre
espaço ainda para comentar o romance de Plínio Salgado, O estrangeiro, que trouxe alguma
celeuma entre os escritores, mas essa obra é flagrantemente uma imitação do texto de Oswald de
Andrade, para Amado.
Essa digressão no texto de Jorge Amado a respeito do romance brasileiro enfatiza o papel
dos romancistas do norte como o que expressou o “sentido de documento e de grito”. Era esse o
22
conceito de Amado para o novo romance, que “não é negócio de escola, besteira de grupo” .
Eis a postura do escritor quanto à recusa do modernismo e o quanto os novos romancistas
optavam por uma postura política e estética:
[...] Os novos romancistas, brasileiros, não apenas os do Norte, não acreditam mais em brasilidade e
em verde amarelismo. Viram mais longe. Viram nesse mundo ignorado que é o Brasil. E o Brasil é
um grito, um pedido de socorro. Não falo aqui em frade de deputado baiano na assembléia: “o
Brasil está na beira do abismo”. Isso é literatura de quem tem 6 contos por mês. Grito, sim, de
populações inteiras, perdidas, esquecidas, material imenso para imensos livros.
Daí essa angustia que calca as páginas dos modernos romances brasileiros, servidos todos por um
clima doloroso, asfixiante.
Romancistas novos do Brasil, revolucionários ou reacionários, nos seus livros vive um clamor, um
grito que era desconhecido e que começa a ser ouvido23.
Na realidade, Jorge Amado constrói sua visão sobre o romance como veículo das
transformações sociais. Não cabia mais ao escritor em sua visão, construir o romance sob a
fórmula estética dos antigos romances onde a narrativa girava em torno de um protagonista, o
herói, e seus amores. Nesse aspecto, em sua análise faltava muito a ser construído na literatura
brasileira sobre essa perspectiva estética. O livro de Oswald de Andrade, Serafim Ponte Grande
marca para Amado o fim do modernismo e do café; nele o herói havia expulsado o secretario que
teria se tornado importante, constituindo uma “sátira admirável”. Essa técnica utilizada por
Oswald é enfaticamente destacada como a estética repudiada por Amado, ou seja, um romance
onde “um herói e umas sombras girando em torno dele”.
Hoje, era do comunismo e do arranha-céu, da habitação coletiva, o romance tende para a supressão
do Herói, do personagem. Sei que não estou dizendo coisa nova. Mas não faz mal repetir. O
personagem e sempre uma coisa inanimada que vive da vida dos que nela trabalham ou habitam.
Cito exemplos daqui: em “Menino de Engenho” o personagem não é o menino Carlos de Melo. É o
engenho. Aliás vejam “O ateneu’ e “Doidinho”. No livro de Raul Pompéia o Herói é Sergio. Ele é o
centro. No volume de José Lins do Rego tudo gira em torno do internato inclusive Carlos de Melo.
22
AMADO, Jorge. Apontamentos sobre o moderno romance brasileiro. In: Lanterna Verde. p. 49.
23
AMADO, Jorge. p. 49.
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7. No outro era o Ateneu girando em torno de Sergio. A seca é o personagem de “O Quinze”, a cadeia
o de João Miguel. E não são as fabricas os Heróis de “Os Corumbas”?24 [...]
Jorge Amado tem na atividade romancista um meio de engajamento político e orgulha-se
por ser um escritor político. Ele não acredita na arte pela arte, ou no “romance impolitico”. Na
sua voz ressoa uma visão unilateral para a atividade literária, pois não haveria espaço para ser
“romancista puro”, sem opção política. Não optando, estaria certamente localizado em um dos
lados. Segundo Jorge, o momento trágico não proporcionava outra postura na escrita dos
romances, os autores deveriam optar por uma “cor política” em suas palavras. Ainda diz, que os
que não tem um “caminho a seguir porque ainda amam as camisas de seda a gente só pode rir.
Nós somos essencialmente políticos” 25.
Neste sentido, o debate sobre a obra pode ser compreendido pelo olhar do escritor Renato
Almeida que concluiu em artigo publicado em 1934, sob o título O romance dos Corumbas no
boletim Lanterna Verde da Sociedade Felippe de Oliveira, que era tempo de romance. Para este
autor, havia uma preocupação em demasia pelo desequilíbrio moderno, e neste sentido, a
literatura passaria a agregar escritores preocupados pelas feições de grande dor. Não restaria
espaço para indiferença, a literatura expressava esse caos encontrando no “romance a sua forma
adequada”. Nesta resenha, consagrou os romances do Norte como o grande fenômeno dos
primeiros anos da década de 30. Opostamente, a poesia não teria relacionamento com a
sensibilidade contemporânea, pois se associava com o lirismo que “seria uma forma de
alheamento, ao qual não se pode entregar”. Exemplifica a tradição de alguns poetas que
intencioram inflamar as massas, a exemplo de Maiakovski e dos poetas proletários russos.
Entretanto, esse gênero discursivo teria abandonado a narrativa, configurando-se como cerebral e
difícil, impossível de comover e emocionar. Sua intenção é revelar o caráter do romance na
educação do homem para ação, pois a poesia não proporcionava em sua ótica esta missão.
Acredita assim, no romance como forma de seu tempo para mover “os homens atormentados
pelas grandes soluções”. Continua seu diagnóstico do romance referindo-se aos escritores russos,
Fedor Gladkov com seu livro O Cimento, Gold, Os judeus sem dinheiro e, por fim Malraux, e
seu livro A condição humana, como exemplos de livros que levam uma realidade dura e violenta,
obrigando assim o leitor a tomar partido. Desta forma, o romance para este escritor é sempre
uma atitude “vinda do autor ou da ação ou mesmo das figuras” 26.
24
P. 49
25
P.51.
26
ALMEIDA, Renato. O romance dos Corumbas. In: Lanterna Verde. Rio de Janeiro. Nº. 1 fev. 1934. p.53.
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8. Ao discorrer sobre o romance, Renato Almeida pensa na possibilidade deste como único
mediador da realidade social brasileira. Haveria assim, certa sincronização desta literatura
preocupada pelos novos contornos das sociedades modernas, em meio às convulsões
revolucionárias e sociais. A poesia modernista com sua abstração e abandono, só teriam na voz
de Ronald Carvalho, a preocupação com assuntos sociais, especialmente em sua obra Toda a
América. Entretanto, creditou aos romancistas, a saber, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego,
Jorge Amado, Amando Fontes, como praticantes de uma literatura que trazia a realidade direta,
expressada na literatura proletária, mesmo que atribuindo imprecisão nesta denominação em
moda nos primeiros anos da década de 30. Esses autores trouxeram em sua ótica, “um espetáculo
da miséria e degradação dos meios brasileiros, e a sua atitude pode vir da ideologia ardente, ou
da simples história, como no Os Corumbas” 27.
O diagnóstico do romance proposto por Renato, sublinha o poder deste produto cultural
na formação do cidadão. Mas acima de tudo, este intelectual deixava claro que, o que estava em
jogo era a possibilidade política do romance como veículo de esclarecimento e encaminhador da
ação do leitor. Neste sentido, não interessava se o escritor propunha soluções para as questões
sociais, essa era uma tarefa inadiável do próprio leitor, que seria o verdadeiro dono do romance.
O escritor não teria poder de interferir na realidade proposta por sua narrativa, segundo este
intelectual, mesmo assim, ninguém ficaria indiferente após a leitura, afirma.
[...] A desgraça dos Corumbas não tem traço psicológico é apenas um fato econômico. A
Caçulinha, no dia em que não pôde mais continuar os estudos, porque era preciso ganhar algum
dinheiro para sustentar a casa, nesse dia começou a sua escravização, cuja alforria, como a das
irmãs, seria a desonra. E toda a máquina jurídica, quando a pobre velha pensou em pedir reparação,
amparou o crime do poderoso e esmagou a que, por ser pobre, não podia pensar em justiça e
dignidade. Tinha de conformar-se em ser resíduo social28.
Renato Almeida enfatiza o caráter social do romance Os Corumbas. Seria um livro de
ação, que absorvia os personagens e neste sentido, identifica uma constante psicologia no
enredo. Essa discussão leva aos outros romances do período:
[...] Enquanto Jorge Amado, em Cacau, nos coloca em frente de uma ideologia social e a faz
determinante, e Raquel de Queiroz, no Quinze, nos dá o patético pela tragédia do ambiente,
Amando Fontes limita-se á narrativa, donde brota a impressionante realidade. Por isso mesmo, o
romance é simples e desataviado, estranhamento angustioso e cheio de sugestão. Piedade, revolta
ou ódio, ninguém fechará o livro indiferente ao destino da gente infeliz e vencida. E porque
quiseram tão pouco, o direito à vida, e na obtiveram, tem o direito á melancolia, que é uma forma
nobre da piedade. E naqueles, que não querem concertar o mundo, ficará ao menos essa impressão e
ela justificará o livro. Os outros se deixarão inflamar, e, frementes e audazes, prosseguirão na ânsia
de implantar a justiça e vingar Os Corumbas [....]29
27
ALMEIDA, Renato. P.53.
28
Idem.53
29
Idem. P.54
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
8
9. Amando Fontes rebateu as críticas inicias sobre o fato de seu romance engajar-se da
seguinte maneira na solenidade de entrega de do prêmio na Sociedade Felipe de Oliveira em
1933:
Tive de ceder à verdade, porém; tive que renunciar ao desejo de seguir o caminho de alguns
mestres, para ser fiel na interpretação da alma, dos sentimentos de nosso povo, simples, primitivo,
expressando ainda as suas maiores dores e tragédias por um gesto inacabado, por duas ou três
palavras de resignação ou desconsolo30.
Observa-se nesta postura, que Amando via sua atividade como meio de questionar a opção
estética de Jorge Amado, mas também, que em sua compreensão é possível entrever uma visão
romântica sobre povo como um ente passivo, sem ação, etc. Não deixa dúvidas quanto à
sensibilidade ao figurar personagens, pois em suas palavras resignação e desconsolo são as duas
motivações ao representar. Isto evidencia o papel dos sentimentos na construção dos romances
modernos. São por meio deles que ocorrem à adesão do leitor aos personagens, criando assim
empatia.
A historiadora Márcia Naxara já demonstrou em seu livro Estrangeiro em sua própria
terra: representações do brasileiro 1870/1920, que existia um olhar sobre os nacionais ou
brasileiros na leitura de escritores como Euclides da Cunha e Graça Aranha, vinculada ao
silenciamento e ao isolamento. E que essas pessoas eram “população pobres, (mal) nascida no
31
Brasil, em qual mestiça, pertencente ou egressa da escravidão” . Neste sentido, Euclides da
Cunha foi um dos primeiros a afirmar o “a idéia de abandono e desconhecimento do povo
brasileiro”. Em seu clássico Os Sertões, Euclides investigou o episodio de Canudos, encontrando
nesse espaço que encontra os desconhecidos. Também Graça Aranha em seu romance Canaã,
descreve as impressões de Milkau, um estrangeiro que ao se aproximar de um povoado: “as
primeiras casas iam chegando: eram pobres habitações, como soltas na beira da estrada”. Assim,
na compreensão destes escritores vincula-se uma compreensão por oposições:
civilização/barbárie e progresso/atraso.
o povo brasileiro, visto por suas elites, aproximava-se do atraso e da barbárie, enquanto que o que
se tinha em vista era alcançar o progresso e a civilização. Tal questionamento acabou levando a
identificação do brasileiro pela ausência do que se esperava ele pudesse ser, ou seja, por aquilo
que lhe faltava32.
30
FONTES, Amando. “Discurso de Amando Fontes na Sociedade Felipe de Oliveira”. In: Lanterna Verde. Rio de
Janeiro, 1º de maio de 1934.
31
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Estrangeiro em sua própria terra: representações do brasileiro 1870/1920.
São Paulo: Annablume, 1998. p.15.
32
Idem, p. 18.
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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10. É importante sublinha as possibilidades que a literatura33 pode engendrar nos debates
políticos. Não é isolada a interseção entre política, literatura e direitos sociais. O que estava em
jogo nesses debates era certamente os direitos dos trabalhadores, que viviam vilipendiados por
uma dominação burguesa que confinou esses atores à exploração do capital, bem demonstrado
pelo historiador Alcir Lenharo em seu clássico Sacralização da política. Neste sentido, a obra de
Amando Fontes possibilita observar as nuanças decorrente de uma escrita política preocupada
com as condições dos trabalhadores submetidos ao que filósofa Hannah Arendt34 discorreu como
algo essencial na Condição Humana: estar isolado é estar privado da capacidade de agir. Essa
era a situação dos Corumbas, vistos como pessoas de segunda classe, isolados e que nos intensos
debates entre intelectuais de esquerda como Jorge Amado, e de outras filiações políticas, Renato
Almeida e Amando Fontes, observa-se a dificuldade sobre a vida dos excluídos e de seu espaço
na cidade, tornando-se uma relação conflituosa e bem atual.
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