1. Imunodeficiências
A primeira imunodeficiência foi identificada em uma linhagem de porcos
da Guiné, por
Moore em 1919, em Burlington.Esta foi, de fato,
a primeira deficiência de uma proteína sérica a ser
descoberta em mamíferos e sua herança mostrou
ser autossômica recessiva24
.
A descoberta dos grupos sanguíneos deve-se
a Landsteiner, em 1930, além de valiosas contribuições sobre a natureza
química da especificidade sorológica, marco inicial da moderna
imunoquímica. A partir de 1940, a microbiologia e a
imunologia evoluíram extraordinariamente, em
relação estreita com a biologia molecular, tendo
sido a imunologia nas décadas de 1930 a 1950
influenciada pelostrabalhos de Heidelbergersobre
os métodos de dosagem de anticorpos12. Bruton,
em 1952,relatou o primeiro caso de agamaglobulinemia em um menino
de 8 anos de idade, com
sepses por Pneumonococos recorrente e ausência
de gamaglobulina, apesar de níveis normais de
proteínas séricas. A doença recebeu o nome de
Agamaglobulinemia de Bruton e foi um marco no
tratamento das imunodeficiências primárias12
2. .
Imunodeficiências primárias e secundárias
resultam em um espectro similar de doenças –
infecções recorrentes ou persistentes. Uma vez que
a relação entre imunidade e infecção é interativa,
infecção pode ser causa e efeito de imunodefici-
ência. Muitos agentes infecciosos, incluindo o vírus
de imunodeficiência humana (HIV ), têm efeitos
específicos e inespecíficos no sistema imune22
.
Classificação das Imunodeficiências
1- Imunodeficiências Primárias:
Deficiências Predominantemente de
Anticorpos:
• Agamaglobulinemia
•Imunodeficiência Comum Variável
• Deficiência de IgA
• Síndrome de Hiper-IgM não ligada aoX
• Deficiência de Subclasse de IgG
• Deficiência de Anticorpos com Imunoglobu-
linas normais
• HipogamaglobulinemiaTransitória da Infância
• Deficiência de cadeia kappa
3. • Deficiência de cadeia pesada
Imunodeficiência Grave Combinada
• Deficiência de Adenosina Deaminase (ADA)
• Deficiência da Fosforilase do Nucleosídeo Purina
(PNP)
• Síndrome de Hiper-IgM ligada aoX
• DisgenesiaReticular
• Deficiências do Complexo Principal de Histo-
compabilidade Classe II,
• Deficiências de CD3g
• Deficiência do receptor gc
• Deficiência da Jak3
• Deficiência deRAG 1 e 2
• Deficiência da ZAP-70
• Deficiência deTAP-2
Imunodeficiências Associadas a outros
Defeitos Maiores
• Síndrome deWiskott-Aldrich
• AtaxiaTelangiectasia
• Anomalia de DiGeorgeImunodefIcIêncIa prImárIa: quando InvestIgar,
como dIagnostIcar
Deficiência de Complemento 57
• Deficiênciados componentes:C1q,C1r eC1s,
C4,C2,C3,C5,C6,C7,C8,C9,Properdina,
4. Fator D,Inibidor de C1,FatorI e Fator H
Deficiências de Fagócitos
• Neutropenia congênita
• Neutropenia cíclica
• Doença Granulomatosa Crônica
• Defeitos de Adesão Leucocitária
• Deficiência de G6PD de Neutrófilos
• Deficiência de Mieloperoxidase
• Deficiência de Grânulos Secundários
• Síndrome de Chediak-Higashi
• Síndrome de Schwachman
2-Imunodeficiências Associadas com ou
Secundárias a outras doenças:
• Instabilidade cromossômica ou defeitos de reparação
o Síndrome de Bloom
o Anemia de Fanconi
o Síndrome ICF (imunodeficiência, instabilidade centromérica, fácies
anormal)
o Síndrome de Nijmegen
o Síndrome de Seckel
oXeroderma pigmentosa
•Defeitos cromossômicos
o Síndrome de Down
o Síndrome de Turner
5. o Deleções do Cromossoma 18
o Anormalidades esqueléticas
o DisplasiaEsquelética com Membros Curtos
o Hipoplasia Cartilagem-Cabelo
•Imunodeficiência com retardo de crescimento generalizado
o Displasia Imuno-Óssea de Schimke
o Imunodeficiência com Ausência de Polegares
o Síndrome de Dubowitz
oRetardo deCrescimento,AnomaliasFaciais e
Imunodeficiência
o Progeria (Síndrome de Hutchinson-Gilford)
•Imunodeficiência com defeitos dermatológicos
o Albinismo Parcial
o Disqueratose Congênita
o Síndrome de Netherton
o Acrodermatite Enteropática
o Displasia Ectodérmica Anidrótica
o Síndrome de Papillon-Lefevre
•Defeitos metabólicos hereditários
• Deficiência deTranscobalamina 2
• Acidemia Metilmalônica
• Acidúria Orótica Hereditária tipo I
•DeficiênciadeCarboxilaseDependentedeBiotina
• Manosidose
6. • Glicogenose tipo Ib
• Hipercatabolismo de imunoglobulinas
o Hipercatabolismo Familiar
o Linfangiectasia Intestinal
Outras
o Síndrome de Hiper-IgE
o Candidíase Muco-Cutânea Crônica
o AspleniaouHipospleniaCongênitaouHereditária
o Síndrome de Ivermark
O primeiro passo para a investigação diagnóstica do paciente com
infecções de repetição é o
reconhecimento de que um defeito imune possa
estar presente e a suspeita surge pela gravidade
de infecções por microorganismos patogênicos ou
pela frequência e/ou duração das infecções22
.
As imunodeficiências compõem um grupo
diverso de doenças que, como resultado de uma ou
mais anormalidades do sistema imune, apresentam
susceptibilidade a infecções. A imunodeficiência
deve ser considerada em qualquer indivíduo que
apresente muitas infecções. Quando não existe
uma explicação aparente para a recorrência das
7. infecções, um defeito primário na defesa do hospedeiro deve ser
considerado.
De acordo com esta definição, pode-se classificar as imunodeficiências
(ID) em primárias ou
congênitas, quando a causa é uma mutação genética,
ou em secundária ou adquirida, quando a origem
advém de uma causa externa ao sistema imunoló-
gico21. O termo imunodeficiências primárias (IDP) pedIatrIa (sÃo pauLo)
2010;32(1):51-62
58 refere-se aos distúrbios resultantes de defeitos
hereditários do sistema imune25-27
.
Com uma incidência maior que 2.000 casos/
semana, é fácil comprovar que na população em
geral, os casos de Síndrome de Imunodeficiência
adquirida (SIDA) excedem em muito os casos
de defeito genético do sistema imune16,28. Atualmente, mais de 80
imunodeficiências são descritas
pelaWHO,sendo que sua real incidência é incerta,
pela ausência de diagnóstico e, consequentemente,
da notificação dos casos existentes28
. A frequência
das imunodeficiências primárias depende do tipo
de alteração, variando de 1:333 a 1:500.000 para
a população em geral. Algumas deficiências, como
8. Imunodeficiência Grave Combinada,Síndrome de
Wiskott-Aldrich e Agamaglobulinemia Congê-
nita ligada ao X, são usualmente encontradas em
lactentes e escolares16,28
.
Imunodeficiências primárias
As IDP eram consideradas como doenças muito
pouco frequentes, caracterizadas por uma expressão
clínica grave21,28, entretanto tem se tornado claro
que essas doenças não são tão raras como originalmente se suspeitava e
que sua expressão clínica
pode, algumas vezes, ser relativamente branda29
.
Apesar de a maioria destas doenças se manifestarem precocemente, há
casos, como na imunodeficiência comum variável, de seu início se dar na
2ª-3ª década de vida28
.
Doenças nas quais a função de linfócitos está
afetada são comumente divididas em três grandes
grupos: as deficiências de anticorpos, as deficiências
celulares e as deficiências combinadas. Existem,
ainda, as deficiências de função de fagócitos e as
deficiências de complemento18, 30,31
.
9. Nas deficiências de anticorpos, também conhecidas como de células B ou
imunodeficiências
humorais, o defeito genético afeta seletivamente
a produção de anticorpo, enquanto a imunidade
mediada por células permanece intacta. As complicações resultantes das
infecções em pacientes com
esta imunodeficiência podem se iniciar durante
os primeiros 6 a 12 meses de vida, quando a IgG
endógena começa a ser produzida e ocorre a queda
da IgG materna, transmitida durante o período
gestacional. São características dessas doenças
infecções bacterianas do trato respiratório superior
ou inferior. As deficiências de anticorpo incluem as
agamaglobulinemiasligadas aoXe as autossômicas
recessivas, as Imunodeficiências comum variáveis,
as deficiências de IgA, as deficiências de subclasses
de IgG, a hipogamaglobulinemia transitória da
infância e a deficiência específica de formação de
anticorpo1,32
.
Nas deficiências celulares, ocorre o oposto em
relação às imunodeficiências humorais: a produção
de imunoglobulinas é normal, enquanto que os
mecanismos efetores celulares estão comprometidos33. Existem vários
defeitos genéticos que
10. seletivamente impedem os mecanismos efetores
celulares envolvidos com células T e NK e células
mononucleares, deixando a produção de anticorpo
intacta. Cinco dos defeitos genéticos já descritos
afetam a mesma via de produção de citocinas: o
eixo interferon-g (IFN-g) / IL12. A IL12 estimula
a produção de IFN-g pelas células Th1 e NK.
O IFN-g estimula o mecanismo de ativação
citotóxica das células mononucleares. Se o eixo
dessas citocinas estiver impedido, o hospedeiro se
torna muito suscetível às infecções por organismos
que se replicam intracelularmente. As deficiências
isoladas de linfócitos T ou de células NK incluem:
os defeitos do eixo interferon-g (IFN-g) - IL12,
a candidíase muco-cutânea crônica (a Síndrome
Poliglandular Auto-imune - APS-1 ou Síndrome
da Poliendocrinopatia – Candidíase – Distrofia
Ectodérmica Auto-imune – APECED) e a deficiência funcional de células
NK18
.
Nas imunodeficiências combinadas, os dois
braços efetores da imunidade adquirida estão
bloqueados. Estes são os defeitos mais profundos
da imunidade específica, e frequentemente não
11. há função linfocítica normal. A Imunodeficiência
Grave Combinada (Severe Combined Immunodeficiency - SCID) é o grupo
de doenças para o qual
o maior número de alterações moleculares já foi
descrito. As manifestações clínicas mais comuns
incluem diarréia crônica associada à desnutrição,
infecções respiratórias crônicas e recorrentes e
infecções oportunistas disseminadas. Alguns
defeitos genéticos das SCID já estão descritos,
como defeitos nas citocinas sinalizadoras, defici-
ênciadoCD45,defeitonosreceptoresdos genesde
recombinação, síndrome de Omenn, deficiência da
proteína Artemis, deficiência da adenosina deaminase (ADA), defeito na
expressão da classe I do
MHC,defeitona transcriçãoda classe IIdoMHC,
disgenesia reticular e outros. Algumas deficiências combinadas têm sido
descritas como menos
graves e dentre elas estão descritas a síndrome de
Hiper-IgM e a doença linfoproliferativa ligada ao
X(Síndrome de Duncam)18,25
.ImunodefIcIêncIa prImárIa: quando InvestIgar, como dIagnostIcar
Quase todos os defeitos primários de fagócitos 59
resultam de uma mutação que afeta a imunidade
inata28. As funções principais dos neutrófilos são a
fagocitose e a destruição de microorganismos. Um
12. número adequado de neutrófilos é necessário para
a defesa normal do hospedeiro. Neutropenia como
consequência de defeitos congênitos, malignidade,
quimioterapia ou outras condições têm como
resultado a susceptibilidade às infecções bacterianas ou fúngicas e uma
baixa resposta ao uso de
antibióticos. Também existem os pacientes que
apresentam número normal de neutrófilos, porém
com função comprometida19,21,34
.
As manifestações clínicas incluem frequência
aumentada às infecções por patógenos comuns
como o Staphilococcos aureus, Pseudomonas, Serratia
e outras enterobactérias, Aspergillus e Candida19
.
A forma clássica das disfunções dos fagócitos
é a doença granulomatosa crônica, que ocorre em
ambas as formas, ligadas ao X (75% dos casos) e
autossômicas recessivas. Todas são causadas por
mutações, alterando elementos do complexo fagó-
cito oxidase, que são necessários para a formação
de substâncias microbicidas, tais como peróxido
de hidrogênio e radicais superóxido18
.
13. A síndrome de Chédiak-Higashi é causada por
mutações, afetando o gene da proteína de transporte do lisossoma,
denominada LYST. Este defeito
impede formação normal de fagolisossomas e melanosomas. Em
esfregaços de sangue periférico, os
neutrófilos apresentam lisossomas gigantes característicos. A evolução
clínica inclui infecções recorrentes por S. aureus, que, eventualmente,
culminam
na “fase acelerada” de linfoproliferação com hemofagocitose que
frequentemente é fatal18,34
.
Deficiência de Adesão Leucocitária tipo 1
(Leukocyte Adhesion Deficiency 1- LAD) resulta de
uma mutação no gene que codifica CD18 ou b2
integrina. Esta molécula, associada com CD11a
(integrina a1), realiza a função do leucócito juntamente com aLFA-1.O LFA-1 é um ligante
para a
ICAM-1emedia a adesão fortedosleucócitos com
as células endoteliais antes da diapedese. Assim, os
leucócitos permanecem presos e não conseguem
alcançar o sítio das infecções18,35
.
Deficiência de Adesão Leucocitária tipo 2
(Leukocyte Adhesion Deficiency 1- LAD) resulta de
uma mutação no transportador da GDP-fucose
que leva a fucose para o complexo de Golgi para
a fucosilação pós-translacional das proteínas
recentemente sintetizadas. Na ausência deste
14. transportador, a molécula sialyl-Lewis-X não é
sintetizada. Essa molécula é um ligante para a
E-selectina, e na sua ausência, os leucócitos não
podem iniciar a fixação ao endotélio vascular18
.
As neutropenias cíclicas resultam da deficiência
de elastase que leva a flutuações regulares (a cada
21 dias aproximadamente) dos níveis de neutró-
filos. Sintomas como febre, estomatite, periodontite e infecções de pele ocorrem no
período de
baixa de neutrófilos. A agranulocitose congênita
ou síndrome de Kostmann resulta de mutações no
gene que codifica o Receptor para o Fator Estimulador de Colônias de Granulócitos
(G-CSFR).
Sintomas clínicos incluem pneumonia, otite média,
gengivo-estomatite e abscessos perineais18,25
.
O defeito da síndrome de HiperIgEainda não
foi descrito. É caracterizada por fácies assimétrica
e grosseira, associada à eczema crônica, superinfecção estafilocócica, infecções
pulmonares por
Aspergillus com formação de pneumatocele36,37
.
As deficiências dos componentes solúveis do
complemento têm sido descritas com exceção do
fator B (fB). Deficiência dos componentes iniciais
da via clássica leva a manifestações inflamatórias
15. autoimunes. Deficiência nos componentes terminais do complemento (C5-C8)tem
sido associada
a infecções recorrentes por Neisseria meningiditis
e a doenças reumáticas. Ausência do complemento central C3 e das proteínas
reguladoras
Fator I e Fator H têm sido associados a complicações infecciosas recorrentes como as
observadas nas deficiências de anticorpo. A glomerulonefrite membrano-
proliferativa e vasculites
também estão associadas à deficiência de C3.Em
alguns pacientes, a deficiência da lectina ligadora
de manose parece estar associada a infecções de
repetição. A deficiência do inibidor de C1 esterase não leva à Imunodeficiência, mas
leva ao
angioedema hereditário18
.
A dificuldade no diagnóstico das IDPs se dá
principalmente pelo desconhecimento sobre as
manifestações clínicas iniciais destas doenças, que
muitas vezes podem ser manifestas por infecções
persistentes, recorrentes ou oportunistas.
Alguns sinais ao exame físico podem servir de
alerta para a possibilidade de IDP: dificuldade de
crescimento e desenvolvimento, ausência de linfonodos e amígdalas palatinas,
lesões cutâneas (exantema, seborreia, piodermites, abscessos, alópecia,
eczemas, telangectasias, petéquias, deramtomiosite,
rash “lupus-like”e úlceras orais26
.
Diante de várias causas de infecções de
16. repetição na criança, é necessário definir quais pedIatrIa (sÃo pauLo) 2010;32(1):51-
62
60 aquelas que devem ser submetidas à investigação do sistema imunológico. Assim
sendo,
estabelecer um roteiro para determinar casos
suspeitos torna-se uma arma poderosa para a
detecção precoce. Cooper et al.28 estabeleceram
um roteiro simples, de fácil assimilação, que se
propõe a sistematizar a investigação de pacientes
com suspeita de IDPs (Figura 2).
Figura 2 - Algoritmo para avaliação de Imunodefici-
ência Primária (Adaptado de Cooper et al., 2007 ).
Considerações finais
As bases genéticas da maioria das IDP têm
sido identificadas nos últimos 10 anos. Cerca de
75% das IDP conhecidas foram diagnosticadas
com comprovação molecular. De 95 doenças
(excluindo-se síndromes complexas nas quais a
imunodeficiência é um componente menor), 71
diferentes defeitos genéticos foram descobertos.
Esse resultado tem mudado significativamente
esta área da Medicina5
.
Muitas das imunodeficiências estão associadas aos defeitos genéticos únicos,
enquanto
outras têm sido descobertas como poligênicas
ou podem representar interações entre determinadas características genéticas15
17. .
Com a conclusão do Projeto Genoma
Humano, esclarecendo 99% das regiões gené-
ticas humanas com uma acurácia de 99,99%, o
esclarecimento das doenças genéticas e, consequentemente, das imunodeficiências
parece estar
cada vez mais próximo de acontecer 38
.
A persistência na investigação de pacientes
com muitas infecções e a suspeita precoce de
IDPs podem ser determinantes no prognóstico
destes pacientes, e, nos casos graves, talvez a
única possibilidade de tratamento.
Referências