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E-FINANCEIRA – QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO
Marco Aurélio Bicalho de Abreu Chagas
A Receita Federal do Brasil editou a Instrução
Normativa n. 1.571, publicada em julho de 2015, encarregando as instituições
financeiras e de seguro atuantes no Brasil da entrega ao Fisco, através da
plataforma eletrônica Sped – Sistema Público de Escrituração Digital -, de
documentos com movimentações feitas pelos seus clientes e correntistas.
Segundo a Receita Federal trata-se de um método
de captação de dados pelo órgão e que deve constituir instrumento de
fiscalização através de um “cruzamento fiscal” entre as declarações entregues
pelas instituições e aquelas feitas pelos contribuintes.
Essa declaração e-Financeira, em realidade, vem
para substituir a declaração de informação sobre movimentações financeiras –
DIMOF. Os especialistas entendem que se trata de uma “Dimof ampliada”.
Antes a obrigação era de fornecer o saldo anual de seus clientes, em 31/12,
agora os bancos e outras instituições devem comunicar toda a movimentação,
observados os limites de valores, se reportando à data das respectivas
ocorrências.
A constitucionalidade da e-Financeira é questionada,
em face da inviolabilidade da intimidade e da vida privada expressa na
Constituição Federal, mais precisamente no artigo 5º, incisos X e XII.
A Carta Magna permite apenas uma exceção à
regra, estampada ainda no inciso XII, que é a existência de autorização judicial
e justificada para violação, segundo interesses públicos maiores.
A respeito desse tema o Supremo Tribunal Federal
julgou em Recurso Extraordinário, considerando que quando o Fisco acessa
documentos bancários em curso de procedimento administrativo de
fiscalização de tributos sem autorização judicial, há conflito com as previsões
constitucionais. A exemplo da ementa de acórdão aqui transcrita:
“SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA
FEDERAL. Conflita com a Carta da República
norma legal atribuindo à Receita Federal – parte
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na relação jurídico-tributária – o afastamento do
sigilo de dados relativos ao contribuinte.”
Em artigo intitulado: “Declaração e-Financeira fere
direito constitucional à privacidade”, o articulista Saulo Vinícius de Alcântara
assevera:
“A Carta Magna prevê, ao postular a reserva de jurisdição, ‘que importa em
submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de
determinados atos cuja realização (...) somente pode emanar do juiz’,a
capacidade única dos magistrados de ponderar, caso a caso, o embate entre o
direito individual e o interesse público.
São nesses termos que decidiu recentemente a Justiça Federal de Rondônia,
em mandado de segurança movido pela Ordem dos Advogados daquele
estado, ao conceder liminar suspendendo a eficácia da norma instituidora da
declaração. Entendeu o juiz responsável que o acesso pela Receita, sem
autorização judicial, de informações bancárias configura quebra do sigilo
bancário constitucionalmente garantido.
Entretanto, ao julgar o RE 601.314, com repercussão geral, e outras quatro
ADIs — movidas pelo PSL, PTB e pelas Confederações Nacionais da Indústria
e do Comércio (CNI e CNC) — o STF autorizou o Fisco a obter dados
bancários sem decisão judicial, dando guarida à declaração e-Financeira,
contrariando decisões anteriores proferidas pelo mesmo tribunal, entre elas a
mencionada acima. O julgamento ainda não está concluído e o julgamento será
retomado dia 24 de fevereiro, mas a maioria dos ministros do Supremo já
decidiu pela constitucionalidade do acesso a dados financeiros dos
contribuintes pelo Fisco sem decisão judicial.
Diante disso, o argumento atual que prevalece em nossa corte suprema
considera que as informações fornecidas ao Fisco pelas instituições financeiras
não configuram quebra de sigilo de dados, pois o Fisco já possui a obrigação
de sigilo e, portanto, a Constituição Federal não estaria sofrendo afronta pela
declaração e-financeira. Aliás, a relativização dos direitos individuais tem sido
uma tônica da atual composição do Supremo Tribunal Federal, ficando o
ministro Marco Aurélio isolado na defesa dos direitos individuais protegidos
constitucionalmente, aja vista recente decisão da Corte permitindo a prisão do
acusado antes de decisão irrecorrível.”
O trecho transcrito acima se refere à data de
julgamento: o dia 24 de fevereiro, acontece que essa decisão do STF no RE
601.314 aconteceu no dia 24 de fevereiro de 2016, em que aquele Tribunal,
por maioria e nos termos do voto do Relator, apreciando o tema 225 da
repercussão geral, conheceu do recurso e a este negou provimento, vencidos
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os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello. Por maioria, o Tribunal fixou,
quanto ao item “a” do tema em questão, a seguinte tese: “O art. 6º da Lei
Complementar 105/01 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza
a igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da
capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o
translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal”, e, quanto ao
item “b”, a tese: “A Lei 10.174/01 não atrai a aplicação do princípio da
irretroatividade das leis tributárias, tendo em vista o caráter instrumental da
norma, nos termos do artigo 144, § 1º, só CTN”, vencidos os Ministros Marco
Aurélio e Celso de Mello. Ausente, justificadamente, a Ministra Cármem Lúcia.
Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 24.02.2016.
Fonte: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2689108
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil - CFOAB ajuizou, em 05 de julho de 2017, Ação Ordinária, com pedido
de concessão e tutela de urgência, perante a Justiça Federal, Seção Judiciária
de Brasília-DF, afirmando que a IN 1.571/2015 contraria a interpretação que o
STF deu ao artigo 6º da Lei Complementar 105/2001. Em fevereiro de 2016, o
Plenário da Corte determinou que as informações financeiras
mencionadas naquele dispositivo só podem ser transferidas ao Fisco
depois da citação do contribuinte sobre processo administrativo fiscal já
instaurado.
A OAB, em sua petição, enfatiza que “conforme se
extrai da ementa do julgado e da tese fixada, no que pese assenta da
constitucionalidade do art. 6º da LC 105/2001, o STF concedeu
interpretação conforme à Constituição e fixou alguns requisitos, em
respeito aos direitos fundamentais dos contribuintes, para validação da
transferência de sigilo bancário entre instituições financeiras e o Fisco
Federal. Dentre eles, em especial, está a necessidade de instauração de
processo administrativo prévio com a cientificação do contribuinte e
desde que precedido de decisão fundamentada.”
Eis a Ementa do julgado (RE 601.314 de 24/02/2016):
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. DIREITO TRIBUTÁRIO. DIREITO
AO SIGILO BANCÁRIO. DEVER DE PAGAR IMPOSTOS. REQUISIÇÃO DE INFORMAÇÃO
DA RECEITA FEDERAL ÀS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. ART. 6º DA LEI
COMPLEMENTAR 105/01. MECANISMOS FISCALIZATÓRIOS. APURAÇÃO DE CRÉDITOS
RELATIVOS A TRIBUTOS DISTINTOS DA CPMF. PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE DA
NORMA TRIBUTÁRIA. LEI 10.174/01.
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1. O litígio constitucional posto se traduz em um confronto entre o direito ao sigilo bancário e o
dever de pagar tributos, ambos referidos a um mesmo cidadão e de caráter constituinte no que
se refere à comunidade política, à luz da finalidade precípua da tributação de realizar a
igualdade em seu duplo compromisso, a autonomia individual e o autogoverno coletivo.
2. Do ponto de vista da autonomia individual, o sigilo bancário é uma das expressões do direito
de personalidade que se traduz em ter suas atividades e informações bancárias livres de
ingerências ou ofensas, qualificadas como arbitrárias ou ilegais, de quem quer que seja,
inclusive do Estado ou da própria instituição financeira.
3. Entende-se que a igualdade é satisfeita no plano do autogoverno coletivo por meio do
pagamento de tributos, na medida da capacidade contributiva do contribuinte, por sua vez
vinculado a um Estado soberano comprometido com a satisfação das necessidades coletivas
de seu Povo.
4. Verifica-se que o Poder Legislativo não desbordou dos parâmetros constitucionais, ao
exercer sua relativa liberdade de conformação da ordem jurídica, na medida em que
estabeleceu requisitos objetivos para a requisição de informação pela Administração
Tributária às instituições financeiras, assim como manteve o sigilo dos dados a respeito das
transações financeiras do contribuinte, observando-se um translado do dever de sigilo da
esfera bancária para a fiscal.
5. A alteração na ordem jurídica promovida pela Lei 10.174/01 não atrai a aplicação do
princípio da irretroatividade das leis tributárias, uma vez que aquela se encerra na atribuição de
competência administrativa à Secretaria da Receita Federal, o que evidencia o caráter
instrumental da norma em questão. Aplica-se, portanto, o artigo 144, §1º, do Código Tributário
Nacional.
6. Fixação de tese em relação ao item “a” do Tema 225 da sistemática da repercussão geral:
“O art. 6º da Lei Complementar 105/01 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois
realiza a igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade
contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o translado do dever de sigilo
da esfera bancária para a fiscal”.
7. Fixação de tese em relação ao item “b” do Tema 225 da sistemática da repercussão geral:
“A Lei 10.174/01 não atrai a aplicação do princípio da irretroatividade das leis tributárias, tendo
em vista o caráter instrumental da norma, nos termos do artigo 144, §1º, do CTN”.
8. Recurso extraordinário a que se nega provimento.
(grifos da transcrição).
Só que a IN 1.571/2015 não exige esses requisitos
para que instituições financeiras repassem dados de seus clientes.
A OAB alega que e-Financeira, de apresentação
obrigatória por bancos, também contraria os entendimentos do Supremo nas
ações diretas de inconstitucionalidade 2.859, 2.390, 2.386 e 2.397, e os artigos
3º, inciso II e 50, da Lei 9.784/1999.
A Corte Constitucional entendeu que não haveria,
verdadeiramente, a quebra do sigilo bancário pela administração tributária,
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mas, tão somente, a sua transferência, o que afastaria a necessidade de
autorização prévia do poder judiciário.
Após esse emblemático julgamento, outra importante
questão vem sendo debatida, qual seja, saber se as informações obtidas
mediante acesso direto do Fisco, para fins de constituição do crédito tributário,
poderiam ser utilizadas para fins penais.
Recentemente, o STJ teve a oportunidade de enfrentar
essa matéria, por ocasião do julgamento do Recurso em HC 42.332/PR. Na
ocasião, a ministra Maria Thereza de Assis Moura, instada a exercer eventual
juízo de retratação, em razão de aparente divergência entre o acórdão
prolatado pela 6ª Turma e o entendimento consolidado pelo STF, manteve
sua decisão, concluindo que a quebra do sigilo bancário para fins de
investigação criminal, não prescinde da competente ordem judicial do
magistrado, que deverá proferir decisão fundamentada e em observância
aos artigos 5º, XII e 93, IX, da Carta Magna.
O acórdão concluiu que não cabe à Receita Federal,
órgão interessado no processo administrativo tributário e sem competência
constitucional específica, fornecer os dados que foram obtidos através de
seu acesso direto às instituições bancárias, sem prévia autorização do
juízo criminal, para fins penais, o que tornaria nula toda prova decorrente
dessa quebra.
De modo que, partindo do pressuposto de que a e-
Financeira contraria e infringe os sublinhados ditames constitucionais máximos
e intrínsecos a efetivação das garantias e dos direitos fundamentais dos
contribuintes brasileiros, constata-se a flagrante inconstitucionalidade de tal
regulamentação proposta pela Receita Federal do Brasil.
A famigerada exigência da Receita, portanto, colide
frontalmente com a Norma Maior e ainda se choca com o artigo 12 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, que traz em seu texto normativo a
privacidade do ser humano como direito fundamental a ser protegido pelas
nações comprometidas com o referido pacto internacional, atestando que
“ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no
seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação.
Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou
ataques.”
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De todo o exposto, a e-Financeira, edificadora da
obrigação tributária acessória introduzida pela Instrução Normativa nº
1.571/2015, editada pela Receita Federal do Brasil, é, a nosso ver,
inconstitucional, posto que infringe de forma cabal os princípios constitucionais
pátrios e se configura como medida contraditória à legislação
infraconstitucional. Lembrando que a citada decisão do Supremo (RE 601.314)
declarou constitucional o art. 6º da LC 105/2001, fixando alguns requisitos, em
respeito aos direitos fundamentais dos contribuintes, para validação da
transferência de sigilo bancário entre instituições financeiras e o Fisco Federal,
não cabendo à Receita Federal fornecer os dados que foram obtidos através
de seu acesso direto às instituições bancárias, sem a necessária instauração
de processo administrativo ou prévia autorização do juízo.
Naquela Decisão do Supremo se discutia a
constitucionalidade do art. 6º da LC da LC 105/2001, declarada constitucional.
Agora, com o ajuizamento da Ação movida pela
OAB, questionando a constitucionalidade da IN nº 1.571/2015, caso o tema
chegue ao Supremo, aquela Corte Constitucional dará a palavra final sobre a
questão em tela.
Logo, entendemos que a Receita com a e-
Financeira, ao estabelecer o confronto das informações obtidas, com as
declarações de bens das pessoas físicas, quebra, como dito, o sigilo bancário,
direito do cidadão, garantido constitucionalmente, aqui exaustivamente
demonstrado, a não ser que o Supremo, ao julgar a mencionada Instrução
Normativa, se posicione de outra forma.