O documento discute a inclusão de todos em Deus, independente de raça ou cultura. A primeira leitura mostra que Deus aceita estrangeiros no seu povo. O evangelho apresenta Jesus curando a filha de uma mulher cananéia, mostrando que a fé não tem fronteiras. A segunda leitura diz que a compaixão de Deus salvará todos, judeus e não-judeus.
1. A EXCLUSÃO NÃO VEM DE DEUS, POIS ELE É O DEUS DE TODOS
Pe. José Bortoline – Roteiros Homiléticos Anos A, B, C Festas e Solenidades - Paulos, 2007
* LIÇÃO DA SÉRIE: LECIONÁRIO DOMINICAL *
ANO: A – TEMPO LITÚRGICO: 20° DOMINGO TEMPO COMUM – COR: VERDE
I. INTRODUÇÃO GERAL
1. Muitos grãos de trigo formam um único pão; muitos grãos
de uva formam o mesmo vinho. Pão e vinho compõem a
mesma realidade na Eucaristia: o corpo e o sangue de Jesus
Cristo. Muitas pessoas, na diversidade de raças e culturas,
formam a comunidade que celebra a vida e, apesar das dife-
renças, ora em comum “Pai nosso”. Isso porque Deus não
exclui ninguém. E se nós ousássemos fazê-lo, estaríamos
pervertendo o direito e a justiça de Deus (cf. 1ª leitura: Is
56,1.6-7). A fé não depende de raças, fronteiras ou culturas.
Quem está aberto à fé em Jesus Messias constitui família com
todos os que crêem em todas as partes do mundo (cf. evange-
lho: Mt 15,21-28). Mesmo aqueles que não aceitam Jesus
como o Messias não foram abandonados por Deus, que é mi-
sericordioso para com todos (cf. 2ª leitura: Rm 11,13-15.29-
32).
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1ª leitura (Is 56,1.6-7): Deus não exclui ninguém
2. Com o fim do exílio na Babilônia (538 a.C.), a maioria
dos judeus pôde voltar à terra (Esd 1,1ss) e reconstruir, a duras
penas e ainda sob a dominação persa, sua identidade nacional.
É nesse tempo que surge o judaísmo, construído sobre algu-
mas sólidas bases, como a Lei, o Templo e a nítida separação
de raças, geradora de um nacionalismo fanático e excludente.
Este último aspecto interessa sobremaneira para a compreen-
são de Is 56. A política de Esdras e Neemias, líderes da re-
construção, obrigava os judeus a desfazerem os casamentos
com estrangeiras (Esd caps. 9-10) e ao abandono total dessa
prática para o futuro (Ne 10,31).
3. Nem todos concordaram com essa determinação que
tornava a religião dos judeus uma religião de raça (quase uma
religião xenófoba) e fazia do Deus de Israel uma divindade
presa a uma terra, a uma raça, a uma cultura etc. O livro de
Rute, por exemplo, é dessa época e, junto com outros textos,
combate esse integrismo racial que faz do Deus Javé uma
caricatura.
4. Aquele que costumamos chamar de Terceiro Isaías (Is 56-
66) também anda na contramão da rigidez de Esdras e Neemi-
as. O Terceiro Isaías pode ser chamado de profeta da recons-
trução, e está aberto à participação dos não-judeus, de modo
que a reconstrução da identidade do povo de Deus não passa
pela questão da raça que exclui as demais, e sim pela inclusão
de quantos haviam sido anteriormente postos à margem por
serem mutilados (eunucos) ou pertencentes a outras raças
(estrangeiros).
5. É disso que falam os 3 versículos desta leitura (é lamen-
tável que tenham sido omitidos os vv.2-5), começo do Tercei-
ro Isaías. Trata-se de um apelo, não sabemos se dirigido aos
judeus em geral ou especificamente aos eunucos e estrangei-
ros. Se for dirigido aos judeus de modo geral, soa como um
puxão de orelhas contra o nacionalismo fechado de Esdras e
Neemias e, mais ainda, como violação das cláusulas da Alian-
ça. Em outras palavras, os judeus que excluem os eunucos e os
estrangeiros estão violando o compromisso da Aliança com
Javé, isto é, o compromisso com o direito e a justiça: “Obser-
vem o direito e pratiquem a justiça, porque a minha salvação
está para chegar e a minha justiça vai se manifestar” (v. 1.
Estranhamente o Lecionário traz: “Cumpri o dever e praticai a
justiça”). Se o apelo for dirigido aos eunucos e estrangeiros,
temos, então, a grande novidade: para ser aliado de Javé não é
necessária a integridade física nem a pertença à raça dos ju-
deus; imprescindível é o compromisso com o direito e a justi-
ça.
6. Os vv. 6-7 referem-se ao estrangeiro que, nesse período
da história, começa a ser tachado de impuro justamente por
causa da religião do puro/impuro. Deus aceita e se agrada com
o culto, os holocaustos e sacrifícios que os estrangeiros lhe
oferecem — portanto, não são impuros — desde que os es-
trangeiros amem a Javé e observem o sábado, sem profaná-lo.
Eles serão hóspedes felizes na casa de Deus, aberta para todos
(cf. Ap 21,24-25).
Evangelho (Mt 15,21-28): A fé não tem fronteiras
7. No evangelho de Mateus, a seção 13,53 a 17,27 é a parte
narrativa do quarto livrinho, e pode ser sintetizada assim: O
seguimento do Mestre da justiça. O trecho de hoje pertence a
essa parte narrativa. Isso nos fornece imediatamente uma pista
importante: em terra estrangeira, contra todos os preconceitos
farisaicos de modo geral, surge uma discípula qualificada de
Jesus.
8. Provavelmente as comunidades de Mateus herdaram esse
trecho do evangelho de Marcos, mais antigo (Mc 7,24-30), e o
modificaram (as duas narrativas não são exatamente iguais), e
o conservaram com carinho por se tratar de uma mulher “con-
terrânea”. De fato, as comunidades de Mateus, fugindo da
destruição de Jerusalém no ano 70, instalaram-se no norte da
Galiléia e sul da Síria, terra dessa mulher cananéia.
9. Estamos diante de uma incursão de Jesus em território
pagão — fato que recorda um episódio na vida do profeta
Elias (1 Reis 17,7ss) — e logo nos damos conta de alguns
detalhes importantes. Além de salientar que a mulher é pagã,
Mateus quer chamar a atenção para outro aspecto, como se
quisesse dizer-nos: “Prestem atenção. Tudo é puro para quem
é puro”, ligando desse modo este episódio ao anterior (15,10-
20, a discussão acerca do puro/impuro).
10. É a primeira vez que, no texto grego, esse evangelho
emprega a palavra “mesa” (nas traduções já apareceu em
8,10). E já não é a mesa da cultura judaica, normalmente um
tapete ou toalha estendidos no chão, nem uma mesa no estilo
romano (cf. 8,10), mas uma mesa com pernas e vão, no qual
misturam-se pernas de pessoas, rabos, patas e bocas de cães
domésticos, disputando migalhas ou bocados.
11. Para o judeu, isso seria bastante improvável e até inad-
missível, pois os cachorros eram contados entre os mais impu-
ros animais, aos quais eram atiradas carnes impuras. Normal-
mente, na cultura dos judeus, os cães não tinham donos, me-
nos ainda casa.
12. Diferentemente de Marcos, que mostra Jesus escondido
numa casa, mas não consegue ficar oculto, Mateus omite esses
detalhes e põe logo a mulher cananéia em primeiro plano e
gritando: “Senhor, filho de Davi, tem piedade de mim. Minha
filha está sendo cruelmente atormentada por um demônio” (v.
22). Chamam a atenção alguns aspectos: a sensibilidade da
mulher/mãe: o sofrimento da filha repercute nela como se
2. fosse somente seu; por isso não pede piedade pela filha, mas
por ela. Os títulos que dá a Jesus também são interessantes
(Senhor e filho de Davi). Parece reconhecer em Jesus o Mes-
sias servidor da vida, e não o messias poderoso e guerreiro de
Pedro (cf. 16,21-23). Finalmente, é útil observar que se trata
de duas mulheres (mãe e filha), e isso tem alguma importância
num contexto patriarcal como o de então.
13. A coragem dessa mulher pagã a associa ao grupo dos
intercessores, que não pedem para si, mas pelos outros (8,6;
9,18; 17,15). Sua atitude contrasta com a cegueira dos discípu-
los por um lado, e com o policiamento das lideranças por
outro. É nesse sentido que se pode entender o pedido dos
discípulos a Jesus: “Manda embora essa mulher, porque ela
vem gritando atrás de nós” (v. 23; outros estudiosos vêem
nesse “manda embora” um pedido para que a mulher fosse
atendida).
14. A reação de Jesus é mais estranha em Mateus que em
Marcos, e se manifesta em dois momentos. Primeiramente
responde aos discípulos, afirmando ter sido enviado somente
às ovelhas perdidas do povo de Israel; a seguir, responde à
mulher, reforçando o tema com a oposição filhos-
cachorrinhos.
15. Os judeus chamavam depreciativamente os de outras
raças (pagãos) de “cães”, e nessa cena, as palavras de Jesus
ressaltam, por contraste, a ousadia da mulher. Jesus havia
estabelecido prioridades; a mulher crê que estabelecer priori-
dades não significa criar exclusões. Se na casa dela o pão era
prioritariamente destinado às crianças, isso não significa que
os cachorrinhos devessem morrer de fome. Jesus responde em
nível de prioridade; a mulher rebate em termos de direito: na
cultura dela, também os cães “fazem parte” da família, o que
não acontecia na cultura dos judeus. E, como toda dona de
casa, sabe que cotidianamente tem de pensar no pão para os
filhos e também para os cachorrinhos.
16. Evidentemente, por trás dessa metáfora escondem-se as
seguintes questões: Para quem Jesus é Boa Notícia? Somente
para os judeus? A parábola da semente de mostarda, que brota,
cresce e acolhe “aves” em sua sombra para que sejam fecun-
das (13,31-32), na hora de ser posta em prática, poderá ser
esterilizada?
17. Vários estudos desse trecho deixam entrever na cena o
jeito estranho de Jesus, sobretudo em se tratando de mulher
pagã. Talvez o impacto seja atenuado se imaginarmos estar
diante de um homem e uma mulher sábios, como os autores
dos livros sapienciais, na linha do que afirma uma possível
tradução de Eclesiástico 21,15a: “Quando o inteligente ouve
uma palavra sábia, acrescenta outra” (Bíblia do Peregrino).
Nunca se duvidou da sabedoria de Jesus, mas nunca se aquila-
tou suficientemente a sabedoria dessa mulher. Jesus a provo-
cou a dar um salto de qualidade, superando o preconceito
judaico em relação aos estrangeiros, mulheres e cachorros. E
ela não o decepcionou, dando um salto de qualidade que ne-
nhum conterrâneo de Jesus (nem seus discípulos) foi capaz de
dar. De fato, não se deve esquecer a constatação de Jesus:
“Mulher, é grande a sua fé! Seja feito como você quer” (v. 28;
cf. também a fé do oficial romano, em 8,10: “Eu garanto a
vocês: nunca encontrei fé igual a essa em ninguém de Israel”).
18. Aquela que era considerada impura mostrou-se mais pura
do que todos nós. Sem dúvida, nessa região “pagã” Jesus
passa a ter mais uma discípula, um terreno fértil que pode
render trinta, sessenta ou cem por um (cf. 13,8).
2ª leitura (Rm 11,13-15.29-32): A compaixão de Deus sal-
vará a todos
19. Os caps. 9-11 de Romanos tratam da fidelidade de Deus e
da incredulidade de Israel. A vida inteira de Paulo foi ator-
mentada por grande angústia: a rejeição que seus irmãos na
carne (judeus) opuseram ao anúncio do Evangelho. De fato,
do começo ao fim de sua atividade evangelizadora ele se es-
forçou por anunciar o projeto de Deus aos de sua raça. Em
troca recebeu rejeições, acusações e muitas vezes perseguição
(cf. 2Cor 11,24ss).
20. Estando em Corinto (ano 56), escreve aos romanos, fa-
zendo-os partilhar de sua angústia e dor. A rejeição do Evan-
gelho por parte dos parentes de Paulo “segundo a carne” cria-
va obstáculos à própria evangelização no meio dos pagãos. De
fato, em Roma havia cristãos de origem gentia que se pergun-
tavam: Por que justamente os judeus rejeitaram o Messias? E
por que rejeitaram também o Evangelho de Paulo? Não é isso
um escândalo? (Escândalo é algo que faz a gente tropeçar,
desanimar e desistir.)
21. Paulo conhece todas essas objeções dos cristãos oriundos
do paganismo, e se dirige a eles, tentando argumentar a partir
de sua experiência missionária em meio aos pagãos, atividade
que ele chama de “ministério”, em grego, diakonia (11,13).
Evangelizando os pagãos, ele espera provocar ciúmes nos
judeus, de modo que alguns deles dêem sua adesão a Jesus
Cristo. Não que Paulo tenha como princípio provocar ciúmes,
mas crê que “Deus escreve direito por linhas tortas”. Antes, na
carta aos Filipenses usara o mesmo critério, ao falar dos que
evangelizam para provocar ciúmes nele, que está na cadeia (Fl
1,17s). Rejeitando o Messias (cf. Jo 1,11), sem querer os ju-
deus abriram o caminho para os pagãos (é uma constante em
Atos), e Paulo prevê uma “ressurreição” geral, de judeus e
não-judeus, provocada pela adesão dos pagãos (v. 15).
22. Sem perder a esperança e ancorado nas promessas irrevo-
gáveis de Deus (v. 29), Paulo encerra sua argumentação reto-
mando o tema dos primeiros capítulos da carta: tanto judeus
quanto não-judeus foram, em tempos diferentes, desobedien-
tes a Deus (vv. 30-31). A desobediência de ambos ressalta a
compaixão divina: “Deus encerrou todos na desobediência,
para ser misericordioso com todos” (v. 32).
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
23. O Deus em quem acreditamos e que nos foi revelado por Jesus Messias não está ligado a uma raça, cul-
tura ou nação. Que bom que seja assim. Dessa forma, podemos, na celebração da fé comum, olharmo-nos ca-
ra a cara, abraçar-nos na paz, com a certeza de estarmos vendo e abraçando um(a) irmão (irmã). A fé que nos
reúne, também nos une em comunidade que celebra. Deus, por sua vez, não exclui ninguém. Diante disso
podemos perguntar-nos por que há tanta exclusão no país e no mundo, e examinarmo-nos se de alguma for-
ma não estamos também nós sendo coniventes com a exclusão, violando desse modo a Aliança de Deus, in-
fringindo o direito divino e sua justiça. A casa do Senhor é casa de oração para todos os povos (cf. 1ª leitura:
Is 56,1.6-7), e quem acredita em Jesus Messias forma a grande família de Deus, não por causa do sangue que
corre nas veias, mas pela fé (cf. evangelho: Mt 15,21-28). E aqueles que não crêem em Jesus Messias? Deus
exercerá misericórdia também para com eles (cf. 2ª leitura: Rm 11,13-15.29-32).