5. PREFACIO
Será que o Cristo da fé é também o Jesus da his
tória, será que a mensagem dos apóstolos coincide
com a de Jesus, será que a Igreja está vinculada re-
ahnente à comunidade messiânica reunida por Je
sus, e será que o cristianismo não passa de um esse-
nismo que teria tido êxito? Estas graves questões,
que tocam o próprio cerne da nossa fé, situam-se
no centro dos debates contemporâneos. São delas
que o professor Jeremias trata diretamente neste
opúsculo, que temos a felicidade de aqui apresen
tar. Isto basta para dizer a importância desta obra,
cujo peso não se mede pelo número das páginas.
A exposição do professor Jeremias apresenta-se,
todavia, com tanta simplicidade, e com uma erudi
ção tão discreta, que o alcance das conclusões do
Autor corre o risco de escapar ao leitor não adverti
do. Parapressentir seu significado,épreciso,cremos,
conhecer pelo menos em suas grandes linhas o con
texto histórico em que se situam estes estudos.
No decorrer do século XIX,o estudo crítico ehis
tórico do Novo Testamento levou os exegetas e os
6. Prefácio
teólogos a tomarem mais claramente consciência do
corte profundo que foi - na evolução do cristianis
mo das origens - o evento pascal, ou seja, o duplo
fato da morte e da ressurreição de Jesus. A vinda
do reino de Deus constituíra o tema maior da pre
gação de Jesus. Depois da Páscoa, a mensagem dos
apóstolos resume-se essencialmente no anúncio de
Jesus como Messias e Senhor. Os textos o demons
tram de modo evidente. Como o frisa R.Schnacken-
BURG, no seu grande livro Gottes Herrschaft und
Reich, os sermões missionários dos Atos dos Após
tolos não mencionam nem sequer uma vez o reino
de Deus, e, no conjunto dos Atos, ele não é evocado
mais do que sete vezes, ao passo que aparece trinta
e nove vezes no Evangelho de Lucas. Pelo contrá
rio, a pregação da ação salvadora de Jesus desde o
seu batismo, a pregação da sua crucifixão e ressur
reição, constitui regularmente o cerne dos discur
sos de Pedro e dos apóstolos.
Da pregação de Jesus à dos apóstolos, o centro
de gravidade deslocou-se incontestavelmente. Evi-
denciou-se difícil uma justa interpretação deste fato
e os exegetas ainda não chegaram a determinar de
modo satisfatório a relação entre a pregação de Je
sus e a dos apóstolos.
H arnack e os teólógos protestantes liberais consi
deravam a pregação apostólica como um desenvol
vimento üegítimo e mitologizante da mensagem de
Jesus. Para estes teólogos, o ensinamento do Novo
TestamentosobreJesusMessias,Senhor,FühodeDeus,
Redentor, Juiz escatológico, não conteria nada de
7. Prefácio
especificamente cristão,pelo contrário, violaria os tra
ços individuais e concretos da figura histórica de Je
sus, sobre a qual aquele ensinamento estaria distante.
Hoje, inversamente,para Bultmann e seus discípulos,
o evento pascal marcaria o começo absoluto do cristi
anismo. Jesus, afirmam eles, não teria sido um "cris
tão", mas um judeu, e sua pregação se moveria intei
ramenteem quadrosdeidéiaseconceitosdojudaísmo,
mesmo quando entra em oposição à religião judaica
tradicional. Esta solução radical de Bultmann susci
tou vivas reações eaté mesmo alguns de seusdiscípu
los se recusam a segui-lo neste ponto. Como admitir,
com efeito, que apessoa eo ensinamento deJesusnão
se situem no centro da mensagem cristã? Além disto,
se é verdade que a pregação dos apóstolos não se li
mitou a repetir a de Jesus, não é menos verdade que
elasempre sereferiu à deJesuse que osprimeiros dis
cípulos sentiram a necessidade de escrever "evange
lhos".Enfim,comoKàsemann objetacomrazãoa Bult
mann, "somente se a pregação de Jesus coincide de
modo decisivo com a pregação sobre Jesus, é que se
pode compreender que o ressuscitado é oJesushistó
rico. A partir daí, somos constrangidos,comohistoria
dores, a remontar para além da Páscoa. Verificare
mos se Jesus está detrás da palavra de sua Igreja ou
não, e se o querigma cristão é um nüto inteiramente
separável da sua palavra e dele próprio, ou se ele está
vinculado indissoluvelmente ao Jesus histórico".
E precisamente esta coincidência decisiva entre
a pregação de Jesus e a da sua Igreja que o professor
Jeremias sepropõe mostrarna presente obra. Partindo
8. P refácio
dos temas maiores da pregação apostólica (oração
endereçada ao Pai, justificação pela fé, morte de Je
sus como sacrifício), ele remonta, passo a passo, até
as camadas mais antigas da tradição na tentativa
de determinar em que medida estas doutrinas fun
damentais estão vinculadas à pregação de Jesus. E
depois destas pacientes análises que ele se crê auto
rizado a afirmar a unidade real da mensagem cris
tã quanto ao essencial, e a continuidade da doutri
na dos apóstolos com a de Jesus.
Seninguém jamais pôs em dúvida a qualidade ex
cepcionaldas pesquisas do professorJeremias eo rigor
do seu método exegético, fundado particularmente
num conhecimento notável do aramaico, alguns au
tores católicos e protestantes recentemente julgaram
poder formular reservas quanto ao seu alcance teoló
gico. Alguns,por exemplo, questionaram se o interes
se que o professor Jeremias dirige ao Jesus da história
não implicaria uma certa depreciação da tradição
apostólica. Outros julgam que o caráter decisivo do
evento pascal não se acharia suficientemente acentu
ado; perguntam-se se o professor Jeremias não viria,
como outrora osjudeu-cristãos, a considerar a ressur
reição de Jesus mais como a confirmação da mensa
gem de Jesus do que como o objeto central da fé. Al
guns, enfim, temem que o peso que ele atribui às
provas históricas não venha a pôr a fé na dependên
cia da crítica histórica e literária.
Seja lá o que for, nada na presente obra justifica
essas críticas ou esses temores. O Autor, neste opús
culo,sepropõe unicamentemostrarqueJesussesitua
9. P refáck)
por detrás daspalavras da sua Igreja, e, da nossa
parte, cremos que ele realiza o seu propósito de ma
neira tão convincente como magistral. Expresse
mos-lhe aqui a nossa gratidão.
F.Refoulé, o .P.
10. INDICE GERAL
C a p ít u l o I- ABBÁ......................................................13
1. Deus "Pai" no Antigo Testamento....................13
2. O judaísmo palestinense....................................19
3. "Abbá" nas orações de Jesus.............................. 22
4. A paternidade de Deus nos Evangelhos..........27
5. A oração do Senhor..............................................34
6. Conclusão.............................................................36
C a p ít u l o II - A MORTE DEJESUSCOMO
SACRIFÍCIO.............................................................39
1.A paixão na Epístola aos Hebreus e na
primeira Epístola de Pedro................................39
2.Apóstolo Paulo.................................................... 45
3.A Igreja das origens.............................................55
4.Qual a interpretação que o próprio Jesus
deu de sua morte?................................................57
C a p ít u l o III- AJUSTIFICAÇÃOPELAFÉ..............67
1.0 sentido da fórmula........................................67
2.Justificação e nova criação..................................74
3.A origem da doutrina paulina da justificação ....84
11. C apítulo IV - O VERBO REVELADOR...................91
1.A forma literária do prólogo de João.................91
2.0 encadeamento das idéias...............................100
A segunda estrofe (vv. 6-8)................................102
A terceira estrofe (vv. 9-13)................................102
A quarta estrofe (vv. 14-18).........;.....................104
3.0 sentido da designação de Jesus como
Lógos....................................................................108
C apítuloV - A ORIGINALIDADE DA
MENSAGEM DO NOVO TESTAMENTO...........113
Qumran e a Teologia..............................................113
1.Cresceu o conhecimento do meio em que
viveu Jesus......................................................123
2.Analogias com a comunidade cristã das
origens..............................................................130
3.0 que separa os essênios de Jesus..............136
ÍNDICE DOSAUTORES...........................................145
ÍNDICE DOSTEXTOS BÍBLICOS...........................147
1 2 Ín d ic e
12. Capítulo I
ABBÁ
1. Deus "Pai" no Antigo Testamento
No Oriente Próximo, por mais que retornemos
no tempo, sempre é familiar a idéia mitológica do
deus pai da humanidade ou de certos seres huma
nos. Povos, tribos e famílias se dizem proceder de
um ancestral divino. É particularmente ao rei, en
quanto representante do seu povo, que se atribui
uma parte especial da dignidade e do poder de um
pai divino. Toda vez que a palavra "pai" é usada
para a divindade, neste contexto, implica a pater
nidade no sentido de autoridade incondicional e
irrevogável.
Estes são fatos muito conhecidos na história das
religiões, mas o que é menos conhecido é que muito
cedo já a palavra "pai", enquanto epíteto atribuído
à divindade, está carregada de uma tonalidade par
ticular. Num célebre hino sumério eacádico de Ur, o
deus Lua, Sin, é invocado como "Pai misericordioso.
13. 14 A bba
em suas disposições que retém em sua mão a vida
de todo opaís". Edo deus sumério-babilônico se diz;
Sua cólera é como o dilúvio,
Ele se reconcilia como um pai
misericordioso.
Para os orientais, por mais que recuemos no
tempo, a palavra "pai" aplicada para Deus evoca
- algo semelhante ao que a palavra "mãe" signifi
ca para nós.
Isto ainda é mais verdade no Antigo Testamen
to. Aí, raramente se chama a Deus de "pai", apenas
catorze vezes, mas cada uma delas é importante.
Para começar, quando Deus é chamado de "pai"
ele é honrado como criador;
Não é ele,porventura, teupai,
que te fez seu,
que te formou e te consolidou?
(Dt 32.6).
Porventura não é um mesmo o Pai
de todosnós?
Não é um só Deus que nos criou?
(Ml 2.10).
Como criador. Deus é o Senhor. Ele pode espe
rar receber a obediência em homenagem.
Por outro lado, sendo um pai. Deus é considera
do misericordioso;
14. Deus "P ai" o Axtigo Tetamexto 15
Como um paise compadece dos filhos,
assim dos que o temem se apieda o Senhor.
Pois ele bem conhece de que massa
somos feitos:
recorda-se que somospó (SI 103.13s).
Porque Deus é o criador, está cheio de indulgên
cia paternal para com a fraqueza de seus filhos.
É evidente que todas estas citações do Antigo
Testamento refletem o velho conceito oriental da
paternidade divina. Há, porém, diferenças funda
mentais. O fato de que no Antigo Testamento Deus
não é o ancestral, mas o criador, não é a menor di
ferença. E o que é ainda mais importante: no Anti
go Testamento, a paternidade divina atribui-se só a
Israel e de uma maneira que não encontra nenhum
equivalente. Israel tem uma relação toda particu
lar com Deus. Israel é o primogênito de Deus, esco
lhido entre todos os povos (Dt 14.Is). Além disto,
esta eleição de Israel como filho primogênito de
Deus se originava, cria-se, num fato histórico con
creto: o êxodo do Egito. Associar a paternidade de
Deus com um fato histórico implica uma profunda
revisão do conceito de Deus como Pai; A certeza de
que Deus é Pai e Israel seu filho não se fundamenta
no mito, mas em um ato línico de salvação realiza
do por Deus, do qual Israel foi o alvo na história.
Contudo, somente nos profetas é que o conceito
de Deus como Pai adquire todo o seu sentido no
Antigo Testamento. Quantas vezes os profetas não
foram obrigados a repetir que Israel só correspondia
15. 16 A bbâ
ao amor paternal de Deus por uma constante in
gratidão. A maior parte dos textos proféticos refe
rentes a Deus como Pai denunciam com insistência
e paixão a contradição que se manifesta entre a filia
ção de Israel e sua impiedade...
Eagora me invocas, não é verdade?:
"Meu Pai,
vós sois o companheiro da minha
juventude!
Terá que guardar eterno rancor?
Terá que conservar ressentimento
para sempre?"
Assim falas;mas depois fazes o mal
quepodes! (Jr 3.4s).
E eu disse: "Comoposso colocar-te
entre os meus fílhos
e dar-te uma terra invejável,
a gema das nações como herança?"
E acrescentei: "Chamar-me-eispai,
e não hesitareis em vir após mim
Como,porém, uma mulheréinfiel
ao seu amante,
assim vós me fostes infíéis,
ó filhos de Israel, diz o Senhor
(Jr 3.19s).
Um fílho honra seupai
e um servo teme o seu senhor.
Masse eu sou Pai,
onde está a honra que me corresponde?
16. Deus "F ai" o Amic.o Tftamexto 17
Ese sou senhor,
onde está o temor que se me deve?
(Ml 1.6)
A resposta constante de Israel a este apelo ao
arrependimento é: "Tu és o meu (ou o nosso) Pai" -
Abbinu atta.No trito-Isaías, este grito tornou-se um
apelo supremo à misericórdia e ao perdão de Deus:
Contemplaido céu e observai
da vossa santa, magnífica morada:
Onde estão o vosso zelo e a vossa força,
a ternura de vossas entranhas
e a vossa misericórdia?
Não fiqueis insensível,
porque sois nosso Pai(abbinu atta).
Não é Abraão que sepreocupa conosco,
Israelnem sabe quem somos,
mas vós. Senhor, sois o nosso Pai,
enosso Víndice, desde todos os tempos,
é o vosso nome (Is 63.15s).
E, no entanto. Senhor, vóssois
onosso Pai,
nós somos a argila e vós o nosso oleiro;
somos todos obra de vossasmãos.
Não vos irriteis em extremo. Senhor,
e não vos lembreis eternamente da culpa
(Is 64.7s).
Deus responde a este apelo de Israelpelo perdão.
Os 11.1-11 faz disto uma descrição comovente.
17. 18 A bba
Compara-se Deus com um pai que, ensinando a an
dar ao seu filho Efraim, carregava-o nos braços:
E eu ensinava Efraim a andar,
tomava-o nos braços...
Como te hei de abandonar, Efraim?
Deixar-te à mercê de outros, ó Israel?
(Os 11.3,8).
Do mesmo modo o profeta Jeremias encontrou
as intensidades mais comoventes para expressar o
perdão de Deus:
Com lágrimaspartiram,
no meio de consolações os trareide volta;
levá-los-eiaos arroios de água,
por um caminho reto, que os não cansará,
pois serei um paipara Israel
e Efraim será meuprimogênito (Jr 31.9).
A misericórdia paternal de Deus ultrapassa toda
compreensão humana:
Mas é Efraim para mim um filho tão caro,
filhinho de caricias...
Com efeito, apenas falo dele,
ou mesmo quando tão só dele me lembro,
basta-me isto para que se me comovam
por ele as entranhas
sinto deveras compaixão dele (Jr 31.20).
18. OJüDAÍSMO P aLESTINENSE 19
A última palavra do Antigo Testamento sobre a
paternidade divina é esse "saber" da incompreen
sível misericórdia de Deus e de seu perdão.
2. O judaísmo palestinense
Assim como o Antigo Testamento, também oju
daísmo palestinense anterior a Jesus Cristo é sóbrio
em falar de Deus como Pai. Assim, por exemplo, em
toda a literatura de Qiimran, que deve ser anterior a
68a.C., só existe uma passagem em que se dá o nome
de pai a Deus^ O judaísmo rabínico serve-se mais li
vremente do título, mas sem excesso. Procurando sa
ber o que os judeus contemporâneos de Jesus enten
diam quando davam a Deus o nome de Pai,
precisamos frisar duas notas características. Em pri
meiro lugar, tendo a menor familiaridade com o ju
daísmo destaépoca,nãoacharemosestranhoverener
gicamente sublinhada a obrigação de obedecer ao Pai
celeste. Os rabinos ensinavam que Deus estende sua
paternidade unicamente àqueles que cumprem a Lei
(Tora). Ele é pai dos que fazem sua vontade, dos jus
tos. Contudo, encontra-se ainda e sempre a certeza
formidável dos profetas: o amor paternal de Deus é
sem limites e ultrapassa toda culpabilidade humana.
Quando o rabi Jehuda (cerca de 150 a.C.) ensinava:
Se agisseis como íilhos,
serieis chamados de filhos.
QH 9.55 S
19. 20 A bba
Se não agisseis como filhos,
não serieis chamados de filhos.
O seu colega e adversário rabi Meir lhe opunha
esta frase de audaz brevidade:
De uma maneira ou de outra - sois
chamados de filhos^.
O amor paternal de Deus é sua primeira e últi
ma palavra, por maior que seja a culpabilidade de
seus filhos.O segundo traço que caracteriza os tes
temunhos judaicos desta época sobre a paternida
de de Deus é o seguinte: Deus é chamado de Pai
várias vezes de cada israelita em particular, e a ele
se dirigem nas orações litúrgicas: abbinu, malkenu
- "nosso Pai, nosso Rei". Assim é possível ler em
uma oração que pode facilmente ser situada na
mesma época de Jesus:
Nosso Pai,nosso Rei,
em vista de nossospais
que crêem em ti
e a quem ensinas as leis da vida -
tem piedade de nós e ilumina-no^.
- Talmud Babilónico, tratado Qidduschim, 36‘
^(Baraitha).
’ Oração Ahabba rabba, a segunda bênção que introduzia o
Shema recitado diariamente de manhã e de tarde. Prova
velmente já fazia parte da liturgia do Templo {Mischna,
Tratado Tamid, 5.L). Textos: W. B. H eidenheim, Siddur Se-
phath Emeth, Rodelheim, 1886, pp. 17a.l3s.
20. o Judaísmo Palestinexse 21
Isto é novidade com referência ao Antigo Testa
mento. Contudo, há um certo número de coisas que
nãodevem sernegligenciadas.Primeiramente,estetex
to está em hebraico, língua sacra, da qual não se abdi
cava na vida cotidiana. Considere-se também o duplo
título de "nosso Pai, nosso Rei", que sublinha tanto a
majestade de Deus enquanto Rei como sua paternida
de,emuitomais. Para terminar,éo conjunto da comu
nidade que se dirige a Deus como "nosso Pai".
Até hoje ninguém forneceu um único exemplo
com origem no judaísmo palestinense em que Deus
seja chamado de "meu Pai" por um indivíduo^.En-
contram-se alguns casos no judaísmo helenístico,
mas são de influência grega. Entre os escritos pa-
lestinenses, só se pode citar um texto, de dois versí
culos, muito semelhante do c. 23 do livro de Bern
Sira (começo do séc. II a.C.), que infelizmente só há
em grego. Aí se pode ler: "Ó Senhor, Pai e dono da
minha vida..." (v. 1) e: "O Senhor, Pai e Deus da
minha vida..." (v. 4). Estes dois versículos são os
únicos que fazem exceção à regra, e nós o acataría
mos como sendo um prelúdio ao Evangelho, se não
houvesse sido descoberta, há cerca de uns 30 anos,
uma paráfrase hebraica deste texto. Nela não se diz:
"Ó Senhor, Pai...", mas: "Ó Deus de meu pai^..." Te
mos aí evidentemente os termos do texto hebraico
^Existem alguns casos isolados no Sedher Eliyahu Rabba,
mas é um texto medieval (séc. 10?) do sul da Itália.
" J. M a r c u s, A fifth MS of Ben Sira, in; Jewish Quarterly Re
view 21 (1930) p. 238.
21. 22 A b b á
original,porque a expressão "Deus de meu pai", que
provém de Ex 15.2 estava muito dispersa e acha-se
alhures no Sirácida. Pode-se, portanto, dizer que
não existe até agora nenhuma prova de que no ju
daísmo palestinense alguém se tenha dirigido a
Deus, chamando-o de "meu Pai".
3. "Abbá" nas orações de Jesus
Ora, é exatamente o que fez Jesus. Os discípulos
devem ter achado muito extraordinário Jesus se di
rigir a Deus dizendo "meu Pai". Não só os quatro
evangelhos atestam que Jesus se dirigia a Deus nes
tes termos, mas todos eles relatam que o fazia em
todas as suas orações^ Há uma única oração de Je
sus onde falta o "meu Pai", e trata-se do grito na
cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abando
naste?" (Mc 15.34, paral. Mt 27.46), citando o SI22.1.
Ainda não dissemos tudo: o que é mais notável
é o fato de Jesus, em suas orações, se dirigir a Deus
como ao seu Pai, servindo-se da palavra aramaica
abbá^.Marcos o afirma categoricamente no seu re
lato da oração no Getsêmani: "Abbá (Pai)! tudo te é
possível: afasta de mim este cálice; todavia, não se
façao que eu quero, mas o que tu queres" (Mc 14.36).
Que Jesus tenha utilizado esta mesma palavra abbá
também nas suas outras orações, prova-se por uma
comparação das formas diferentes que a palavra
* 21 vezes (16 vezes se os paralelos forem contados uma só vez).
^O acento está ma última sílaba.
22. " A bbá" nas orações de Jesus 23
"pai" toma no grego. Ao lado do vocativo correto
jtárep / páte^ ou íráxep pm) / páter m oif, encon
tramos o nominativo ó jiatfip / hopatér rva.função
de vocativo, o que é incorreto^“.Estas passagens do
vocativo ao nominativo, que aparecem num só e
mesmo lógion (Mt 11.25,26, parai. Lc 10.21) não se
podem explicar sem se considerar o fato de que a
palavra abbá - como o veremos - servia corrente
mente no aramaico da Palestina no primeiro sécu
lo, não só como invocativo, mas também para di
zer "o pai" {status emphaticus). Digamos, enfim,
que sem contar Mc 14.34 e as variantes da palavra
"pai" em grego, possuímos uma terceira peça que
prova que Jesus dizia Abbá quando orava. São as
duas passagens de Paulo, em Rm 8.15 e G14.6. Elas
nos informam que as comunidades cristãs diziam
"Appá, ó íiaxfip / Abbá, ho patér" (Abbá, Pai) e ti
nham-no como expressão produzida pelo Espírito
Santo. Aplica-se isto tanto às comunidades pauli-
nas (Gálatas) como às não-paulinas (Romanos), e
não há dúvida de que esta invocação seja um eco
das próprias orações de Jesus.
Não se encontra nada de comparável nas orações
judaicas do primeiromilênio antes de Cristo.Não exis
tenenhum exemplono conjuntodasoraçõesdojudaís
mo antigo - imenso tesouro muito pouco explorado -
» Mt 11.25 parai. Lc 10.21; Lc 11.2; 22.42; 23.34,46; Jo 11.41;
12.27s; 17.1,5,11,24,25.
’ Mt 26.39,42.
Mt 14.36; Mt 11.26 parai. Lc 10.21; Rm 8.15; G1 4.6; sem o
artigo unicamente nas variantes: Jo 17.5,11,21,24,25.
23. 24 A bba
desta invocação dirigida a Deus coma Abbá,nem nas
orações propriamente litúrgicas nem nas outras.
Existe apenas uma passagem da literatura ju
daica tardia, onde a palavra abbá se refere a Deus.
É a narração de um acontecimento que se deu pelo
fim do séc. I a.C. Refere-se a Hanin ha-Nehba, um
homem famoso por seu sucesso em orações para
obter chuva:
"Quando o mundo precisava de chuva, nos
sos mestres tinham o costume de lhe mandar as
crianças das escolas, que se agarravam ao seu
manto e imploravam; Abbá, abbá habh lan m i
tra-. papai, papai, dá-nos a chuva". E ele lhe (a
Deus) dizia: "Senhor do universo, concede-nos
(a chuva) em vista destes que não são ainda ca
pazes de distinguir entre um abbáque tem o po
der de dar a chuva e um abbá que não tem"“.
À primeira vista, parece que temos aí uma
amostra em que Deus é chamado de Abbá.Mas de
vemos considerar duas coisas. Em primeiro lugar,
a palavra abbáé aplicada a Deus como que a modo
de brincadeira. Hanin apela à misericórdia de
Deus, adotando o grito: "Papai, papai, dá-nos a
chuva", que as crianças repetem em coro, e cha
ma a Deus de um "Abbá que tem o poder de dar a
chuva", como o fariam as crianças na sua lingua
gem. Em segimdo lugar, e isto é o mais importante.
Talmud Babilónico, Tratado Ta^anith, 23b.
24. "A bba" nas orações de Jesus 25
Hanin não se dirige absolutamente a Deus como
Abbá; pelo contrário, invoca-o como "Senhor do
universo". Sem dúvida, a história constitui, de cer
to modo, um prelúdio à afirmação de Jesus dizen
do que o Pai celeste sabe do que precisam seus fi
lhos (Mt 6.32 parai.), que ele envia a chuva sobre
os justos e os injustos (Mt 5.45), e dá coisas boas
aos filhos que lhas pedem (Mt 7.11 parai., Lc 11.13).
Mas isso não nos fornece a prova de um uso de
abbá para invocar a Deus. Deste modo não temos
nenhum testemunho do uso deste termo com tal
referência em todo o judaísmo.
Chegamos a um resultado de importância capi
tal. De um lado, as orações judaicas não contêm um
só exemplo do emprego de abbá para dirigir-se a
Deus; por outro lado, Jesus a usava sempre quando
orava (com a exceção do grito na cruz em Mc 15.34).
Significaque temos aí,incontestavelmente,um traço
característico do modo como Jesus, e somente Je
sus, se expressava, da sua ipsissima vox.
As razões pelas quais as orações judaicas não
se dirigiam a Deus como Abbá, se encontram ao
se considerar o fundo lingüístico da palavra. Origi
nalmente, abbáíazm parte do balbucio infantil.O Tal
mud diz; "Quando a criança começa a comer trigo
(isto é, quando é desmamada), aprende a dizer abbá
e iiTuná"(ou seja, papai e mamãe são as primeiras
palavras que ela diz)^^. Igualmente, Pais da Igreja,
Talmud Babilónico, Tratado Berachoth, 40a (Bar.) paral.
Tratado Sanhedrin, 70b (Bar.).
25. 26 A bbá
como João Crisóstomo, Teodoro de Mopsuéstia e
Teodoreto de Ciro, os três nascidos em Antioquia
de pais ricos, mas, segundo todas as possibilidades,
educados por amas sírias, nos dizem, por sua pró
pria experiência, que as criancinhas tinham o cos
tume de chamar seu pai de Abbá. Quando comecei
este estudo, que me exigiu alguns anos de trabalho,
pensava que Jesus tinha simplesmente adotado este
balbucio infantil. Mas não demorei a constatar que
esta conclusão era muito apressada, pois ignorava
o fato de que já na época pré-cristã, esta palavra,
que se originava da linguagem dos bebês, tinha re
cebido um sentido mais amplo no aramaico da Pa
lestina. Para dirigir-se a seu pai, a forma abbá su
plantou a antiga forma abbi, usada no aramaico
palestinense até pelo menos o séc. II a. C ., como
constatamos pela documentação. Além disso, abbá
tomou o sentido de "meu pai", e de "o pai", e subs
tituiu na época até mesmo "seu pai" e "nosso pai".
De tal modo que a palavra não era apenas parte do
linguajar das crianças. Os jovens de ambos os sexos
também chamavam o próprio pai de Abbá (cf. Lc
15.21), não recorrendo à palavra "Senhor" (Kúpie
/ Kyriê) a não ser em uso cerimonioso (cf.Mt 21.29-
30). Mas, apesar destes desenvolvimentos, jamais
caiu no esquecimento o fato de que esta palavra
provinha do linguajar infantil.
Eis-nos, pois, autorizados a dizer porque abbá
não se usa nas oraçõesjudaicas para invocar a Deus:
seria desrespeitoso, e portanto impensável para
uma mentalidade judaica, chamar a Deus com um
26. A PATERNIDADE DE D e US NOS E v a NGELHOS 27
nome tão familiar^^. Foi algo de novo, linico e inau
dito, ter Jesus ousado tomar essa iniciativa e falar a
Deus como uma criança fala ao seu pai, com sim
plicidade, intimidade e sem temor. Portanto, não há
dúvida alguma de que a palavra abbá,utilizada por
Jesus para dirigir-se a Deus, revela o próprio fun
damento de sua comunhão com ele.
4. Á paternidade de Deus nos Evangelhos
Dever-se-ia considerar esta maneira infantil de
se dirigir a Deus como a última etapa do desenvol
vimento geral das relações do homem com Deus,
ou não haveria aí algo mais? Para obter a resposta,
ampliemos o nosso exame das fontes.
Até agora nos restringimos à invocação de Deus
como Pai nas orações de Jesus. Daremos um passo
adiante, considerando as palavras em que Jesus fala
de Deus como de um pai. Ou seja, nossa intenção
vai passar da invocação "meu Pai" à maneira pela
qual Jesus diz que Deus é "Pai".
Encontramos, nos Evangelhos, nada menos do
que sessenta vezes a palavra Paipara Deus nos lábios
de Jesus. À primeira vista, não parece haver a me
nor dúvida de que, para Jesus, "Pai" seja a designa
ção de Deus. Mas será assim mesmo? Ao se classifi
car os textos de acordo com as cinco camadas da
Só existe no hassidismo (que surgiu no séc. 18) este modo
familiar de se dirigir a Deus (utilizando-se, por exemplo,
os diminutivos), como notou ao autor o Dr. Ja co b T au bes
de New York.
27. 28 A bba
tradição que se podem discernir nos Evangelhos,
achamo-nos diante do seguinte quadro (os parale
los sínóticos são contados uma só vez, e a invoca
ção 'Tai" é excluída):
Marcos 3 vezes
Ditos comuns a Mateus e
a Lucas (coleção dos Lógià) 4 vezes
Ditos próprios de Lucas 4 vezes
Ditos próprios de Mateus 31 vezes
João 100 vezes
Este exame mostra que houve uma crescente ten
dência a introduzir a designação de Deus como Pai
nas palavras de Jesus. Marcos, a coleção dos Lógia e
os elementos próprios de Lucas, todos estão de acor
do, de modo que sepode dizer que Jesus se servia da
palavra "Pai" para designar a Deus somente em cer
tas circunstâncias. Em Mateus, acha-se uma progres
são sensível no uso do termo, e em João "Pai" quase
que setomou sinônimode Deus.Jesus,aparentemen
te, servia-se do nome de "Pai" unicamente em cir
cunstâncias particulares. Mas por quê?
Os poucos casos de uma designação de Deus
como Pai, que as camadas mais antigas da tradição
testemunham, são de dois tipos: um primeiro gru
po, em que Jesus fala de Deus como "vosso Pai", e
um segundo grupo em que Jesus o chama de "meu
Pai". Os ensinamentos sobre "vosso Pai" apresentam
Deus como o pai que sabe do que necessitam seus
filhos (Mt 632 e paral. Lc. 12.30), que é misericordioso
28. APATERNIDADE DE D e US NOS E v ANGELHOS 29
(Lc 6.36) e de bondade infinita (Mt 5.45), que pode
perdoar (Mc 11.25), e cujo prazer é conceder o rei
no ao pequeno rebanho (Lc 12.32). Nas camadas
mais antigas da tradição, as afirmações sobre "vos
so Pai" parecem terem sido todas dirigidas aos dis
cípulos. É uma das características da ôiôaxfi / di-
daché (instrução) reservada aos discípulos, do
ensinamento ao discipulado de Jesus. Àqueles que
estavam fora do círculo, parece que Jesus não falou
de Deus como Pai a não ser por meio de parábolas e
figuras.
Entre estes ditos, o mais importante é Mt 11.27
e o paral. Lc 10.22:
Tudo me foientreguepormeu Paf
eninguém conhece o Filhosenão o Pai,
e ninguém conhece o Paisenão o Filho
e aquele a quem o Filho o quiserrevelar.
Em sua História deJesud^,Karl von Base, que há
cem anos era professor de História da Igreja em lena,
foi o primeiro a comparar este trecho sinótico com as
características textuais joaiünas. Neste destacavam-
se saltavam à vista como joânicas: primeiramente, a
frase sobre o conhecimento mútuo que era considera
da como um termo técnico tirado do misticismohele-
nístico; a seguir, a designação de Jesus como "o Fi
lho" que caracteriza a cristologia joânica. Por muito
tempo se teve como certo que Mt 11.27 era produto
Die GeschichteJesu, Leipzig, 1876, 2"‘ed., p. 422.
29. 30 A bba
do cristianismo helenístico. Todavia, recentemente a
tendência começou a mudar. Reconheceu-se cada vez
mais que, como o expressou T. W. M anson, "a passa
gem está cheia de semitismos e certamente de origem
palestinense", ou, como o disse W. L. Knox, é "pura
mente semítico"^^ De fato, a linguagem, o estilo e a
estrutura possibilitam situar este trecho num meio de
língua semita“.Épossível responder, num plano pu
ramente lingüístico, às duas objeções que acabam de
ser mencionadas. Já em 1898, G. Dalman^^ chamou a
atenção para o fato de que o hebraico e o aramaico
não têm pronomes que expressem a reciprocidade
("um e outro", "cada um"). Servem-se, no seu lugar,
de uma circunlocução para falar de ação recíproca.
Além disto, é preciso lembrar-se de que em aramaico,
e em particular com referência às figuras e às compa
rações, o artigo indefinido é muitas vezes usado num
sentido genérico. Levando-se em conta estes fatos, é
T . W. M a n so n , The Sayings ofJesus, Londres, 1937-1950,
79; W. L. K n o x , SomeHellenisticElementsinprimitive Chris
tianity (Schweich Lectures 1942), Londres, 1944, p. 7.
W. D. D a v ie s chega à mesma conclusão, quando compara
o papel do "conhecimento" em Mt 11.27 e nos manuscri
tos; ele mostra que nos dois casos encontra-se a mesma
mistura de intuição escatológica e de conhecimento de
Deus ( "Knowledge in the Dead Sea Scrolls and Matthew
11.25-30", in: Harvard Theological Review 46 (1953)
pp. 113-139, reeditado em W. D . D a v ie s, Christian Origins
andJudaism, Filadélfia e Londres, 1962, pp. 119-144).
G . D a l m a n , Die WorteJesu I, Leipzig, 1898 T ecf. - 1930,
pp. 231s (tr. inglesa: The Words ofJesus I, Edimburgo,
1902, pp. 282s).
30. A PATERNIDADE DE D e u S NOS E v ANGELHOS 31
preciso traduzir Mt 11.27 do seguinte modo: "Como
só um pai conhece o seu filho, assim só um füho co
nhece seu pai". Isto significa que o textonão fala mais
de uma união mística {imiomysticà) fundada em um
conhecimento recíproco, e não emprega o título cris-
tológico"oFilho".AspalavrasdeJesusexpressamsim
plesmente uma experiência cotidiana: só um pai eum
füho é que se conhecem mutuamente. Se isto está cer
to, então Mt 11.27não éum versículojoânicono meio
de elementos sinóticos, mas antes um dos temas que a
teologia joânica haveria de desenvolver. Se não hou
vesse pontos de partida desta natureza dentro da tra
dição sinótica, a origem da teologia joânica permane
ceria um eterno enigma. A palavra relatada por Mt
11.27 constitui uma perícope de quatro linhas. O pri
meiro versículo indica o tema: "Tudo me foientregue
por meu Pai". Isto é: Meu Pai me concedeu um total
conhecimento de si mesmo. Os três versículos restan
tes elucidam este tema por meio da comparação "pai-
fUho". Livremente parafraseados, eles dizem: "E por
que um pai e um filho se conhecem verdadeiramente
um ao outro,um fühopode revelara outros ospensa
mentos mais secretos do seu pai". Contudo, é preciso
saber que a relação "pai-filho" é familiar na apoca
lípticapalestinensepara üustrara transmissãode uma
revelação. "Como um pai eu lhe revelei todos os se
gredos", diz Deus no (Terceiro) Livro de Enoque^®. E
em outra passagem, um rabi relata: o mensageiro ce
leste me mostrou as coisas que estavam tecidas na
3 Enoque 48 (C.) 7.
31. 32 Abba
cortina celeste... "indicando mas com o dedo, como
um pai que ensina ao seu filho as letras da Torá"''^.
Portanto, se Jesus interpreta o tema "Tudo me foi en
tregue por meu Pai" com o auxílio desta relação pai-
filho, o que ele quer dar a entender sob o véu de uma
figura cotidiana é o seguinte: como um pai que se de
dica pessoalmente a mostrar ao seu filho as letras da
Torá,assim Deusme transmitiu arevelação de simes
mo, e,conseqüentemente, só eu posso ensinar aos ou
tros o verdadeiro conhecimento de Deus.
Este lógion,pelo qual Jesus dá testemunho de si
mesmo e de sua missão, não está isolado nos Evan
gelhos^®. Citamos aqui apenas uma variante de
Mt 11.27 que remonta a uma antiga tradição ara-
maica-^ e esteve espalhada no séc. II entre a seita
gnóstica dos marcosianos. Segundo este texto, Je
sus exclamou:
Sim,meu Pai,pois talfoitua vontade ameu res
peito.
Esta variante da exclamação em Mt 11.26 po
deria muito bem ser secundária. Contudo, ela faz
vibrar a nota original da alegria de Jesus pela reve
lação que lhe foi concedida, alegria que impregna
igualmente nosso texto:
3 Enoque 45.1s.
Cf. p. ex. Mc 4.11; Mt 11.23; Lc 10.23s.
Ir in e u , Adv. Haer. I, 13.2; W. G r u n d m a n n , Die Geschichte
Jesu Christi, 1956, p. 80.
32. A PATERNIDADE DE D e L'S NOS E v ANGELHOS 33
"Sim, Abbá, porque assim foi do teu agrado".
Assim, quando Jesus falava de Deus como de
"meu Pai", ele' aludia não a uma familiaridade e a
uma intimidade com Deus que fosse acessívela todo
mundo, mas a uma revelação única que lhe fora
concedida. Ele fundamenta sua autoridade sobre o
fato de Deus o ter misericordiosamente dotado da
plenitude da revelação, revelando-se a si como só
um pai pode se revelar ao filho. Abbá é então uma
palavra que sugere a revelação. Ela representa o
cerne da consciência que Jesus tmha de sua missão.
Procurando-se as prefigurações desta relação
única para com Deus como Pai, deve-se remontar à
profecia de Natã a respeito de Davi: "Eu serei para
ele um pai e ele será para mim um filho" (2Sm 7.14,
e o parai. 1Cr 17.13), e às palavras referentes ao rei
nos Salmos 2.7; 89.27s.
Ele me invocará: Vóssois meupai
meu Deus e a rocha de minha salvação!
E eu o constituireio meuprimogênito^
excelso entre os reis da terra.
Das Pseudo-epígrafes, podemos citar a promes
sa feita ao Messias sacerdotal, de que Deus lhe fala
rá "com uma voz paternal" (Testamento de Levi
18.6), e a afirmação referente ao Messias de Judá,
que assegurava que "as bênçãos do Pai santo" se
rão derramadas sobre ele (Testamento de Judá
24.2). Isto significa que o "meu Pai" de Jesus só foi
33. 34 Abba
preparado no contexto das esperanças messiânicas.
Mt 11.27 implica, portanto, que as promessas fo
ram cumpridas em Jesus.
5. A oração do Senhor
Somente se a virmos contra este pano de fundo
é que podemos compreender, no seu sentido mais
profundo, a oração do Senhor“^.
Ela chegou até nós sob duas formas: a) a mais
breve em Lc 11.2-4, e b) a mais longa em Mt 6.9-13.
Enquanto que ninguém teria ousado encurtar este
texto capital, é fácil de se imaginar um alargamen
to do texto em relação com o seu emprego litúrgico.
A versão mais breve, a de Lucas, deve ser a mais
antiga. Aqui a oração se endereça simplesmente ao
Páter, o equivalente de Abbá:
Para compreender o que este apelativo signifi
cava para os discípulos, é preciso referir-se às cir
cunstâncias em que Jesus ensinou aos seus discípu
los o Pai-nosso. Segundo Lc 11.1, eles tinham pedido
a Jesus: "Senhor, ensina-nos a orar". E preciso dizer
que este pedido impHcava, da parte dos discípulos, o
desejo de ter uma oração própria, só deles, como os
discípulos do Batista ou os fariseus e os essênios ti
nham suas orações próprias, penhor de sua comu
nhão. "Senhor, ensina-nos a orar" significa portanto:
Cf. para mais detalhes o meu estudo: The Lord's Prayerin
Modern Research, in Expository Times 71 (1959-1960)
pp. 141-146; texto revisto: The Lord's Prayer (Facet Books,
Biblical Series 8), Filadélfia, 1964.
34. AORAÇÀo DO S e n h o r 35
"Senhor, dá-nos uma oração que seja o sinal e o dis
tintivo de teus discípulos".
Jesus atendeu a este pedido, e, fazendo-o, auto
rizou primeiramente e antes de tudo os seus discí
pulos a fazerem como ele e a dizerem Abbá. Deu-
lhes esta expressão como prova de sua qualidade
de discípulos. Pela autorização que lhes concedia
de invocarem também eles a Deus como Abbá,per
mitia-lhes que participassem de sua própria comu
nhão com Deus. Ele chega até mesmo a dizer que
somente aquele que puder repetir este Abbá entra
rá no reino de Deus^^ Esta invocação Abbá,pronun
ciada pelos discípulos, é uma participação na reve
lação, é a escatologia realizada. E a presença do
reino já aqui, atualmente. É cumprimento, conce
dido por antecipação, da promessa:
Eu sereio seupai
e elesserão meusfílhos.
Todos eles serão chamadosfilhos
do Deus vivo (Jubileus 1.24s).
É assim que Paulo compreendia esta invoca
ção quando dizia, por duas vezes, que a repetição
da palavra Abbá era a prova de que um cristão
entrava na posse da filiação e do Espírito (Rm 8.15;
G14.6). As antigas liturgias cristãs evidenciam bem
a consciência da importância deste dom quando
^ J. Jeremias, The Parables ofJesus, ed. revista Londres e
Nova Iorque, 1963, pp. 190s (trad, bras: As parábolas de
Jesus, Ed. Paulus, São Paulo, 1976).
35. 36 A bbA
fazem preceder à oração do Senhor as palavras:
"ousamos dizer: Pai nosso".
6. Conclusão
Tudo isto nos leva a uma conclusão de impor
tância capital.
Sustentou-se muitas vezes que não sabemos
quase nada do Jesus histórico. Que não o corhece-
mos senão pelos Evangelhos, que não são relatos his
tóricos, mas antes profissões de fé. Que não conhe
cemos senão oCristo do querigma,em queJesus está
envolvido pela veste do mito; basta pensar-se nos
numerosos milagres que lhe são atribuídos. O que
descobrimos, ao aplicar a crítica histórica à análise
das fontes, é um profeta poderoso, mas um profeta
que não ultrapassou absolutamente os limites do ju
daísmo. Este profeta pode apresentar interesse para
a história, mas não tem e não pode ter significação
ara a fé cristã. O que importa é o Cristo do querig
ma. O cristanismo começa na páscoa.
Mas, se é verdade - e o testemunho das fontes
não deixa nenhuma dúvida acerca disto - que Abbá
como invocação de Deus é uma ipsissima vox, uma
expressão autêntica e original de Jesus, e que este
Abbá explica a reivindicação de uma revelação e
autoridade línicas - se tudo isso é verdade, então a
posição acerca do Jesus histórico, que acabamos de
lembrar, é insustentável. Porque, com Abbá, situa
mo-nos além do querigma. Achamo-nos diante de
algo novo e inaudito, que ultrapassa os limites do
36. C onclusão
37
judaísmo. Aí descobrimos quem era o Jesus históri
co: o homem que tinha o poder de se dirigir a Deus
como Abbá, e que fez publicanos e pecadores en
trarem no reino, simplesmente os autorizando a re
petir esta palavra "Abbá, Pai querido".
37. Capítulo II
A MORTE DE JESUS
COMO SACRIFÍCIO
1. A paixão na Epístola aos Hebreus e na
primeira Epístola de Pedro
No âmbito do Novo Testamento é a Epístola aos
Hebreus que mais detalhadamente expõe o signifi
cado da cruz. Esta exortação dirigida a cristãos pro
venientes do paganismo (Hb 13.22) caracteriza-se
pelo vigor e clareza de pensamento teológico. Faz
uma distinção entre catequese elementar (5.12) e
conhecimento mais aprofundado (6.1), isto é, entre
um ensinamento aos recém-chegados ao cristianis
mo e um reservado aos iniciados. Esta distinção de
modo algum é "gnóstica". Ela provém da tradição
cristã: encontra-se em Paulo (1 Co 2.6ss) e, já antes
dele, no próprio Jesus, cuja pregação apresenta um
ensinamento público como distinto de um ensina
mento reservado de modo especial aos discípulos.
38. 40 A MORTE DEJesus como SACRrricio
De acordo com a Epístola aos Hebreus, a cate
quese elementar referente a Cristo (6.1) abarcava o
convite à conversão e à fé (é o próprio conteúdo a
pregação missionária, cf 1 Ts 1.9s e At 20.21), bem
como uma catequese sobre o batismo e as últimas
coisas (é o conteúdo das catequeses catecumenais:
Hb 6.2). A teologia reservada aos iniciados compre
endia sobretudo, além da catequese eucarística^, o
que se refere à oferta que Cristo, o sumo-sacerdote
celeste, faz de si próprio. É este o ponto desenvolvi
do pela passagem central da Epístola (Hb 7.1-10.8).
Mostram-nos estes quatro capítulos que, na nova
ordem das coisas tal qual Deus a quis. Cristo é o
sumo-sacerdote que ofereceu o seu próprio sangue
no santuário celeste, sendo assim, ao mesmo tem
po, sacerdote e vítima.
A fim de explicitar o sentido da morte de Jesus, a
Epístola aos Hebreus utiliza as figuras e representa
ções fornecidas pelo ritual do Grande Perdão, minu-
ciosamente descrito em Lv 16.0 Dia do Grande Per
dãoeraparaosjudeusogrande diadoarrependimento
e expiação, o único dia do ano em que pés humanos
pisavam o chão do Santo dos Santos. Tremendo -
porque a menor falha no ritual acarretaria morte
certa -, o sumo-sacerdote, na obscuridade por detrás
do cortinado, fazia por duas vezes a aspersão expia
tória com o sangue: por si mesmo e por sua família
primeiramente, e depois por Israel. A Epístola aos
* Não se fala da ceia na enumeração dos temas de catequese
(Hb 6.2), não se fazendo menção dela a não ser em 13.10.
39. A PAIXÃONA Epístola aos H ebreus e na Primeira Episrola de Pedro 41
Hebreus vai aplicar tipologicamente este rito a Cris
to de duas maneiras diversas. O Autor refere-se pri
meiramenteao ritomaisantigo ecomparaCristocom
a vítima sem mancha. Mas, diversamente das víti
masdaAntigaAliança,amortedeJesus,porseu valor
vicário, obteve de uma vez por todas o perdão total
ereestabeleceu aplena comunhão de vida com Deus.
A esta interpretação o autor acrescenta uma outra,
lançando mão do versículo 4 do salmo 110: Cristo é
ao mesmo tempo o sumo-sacerdote eterno e isento
de pecado. E ele que, após realizar uma vez por to
das a expiação, se mantém continuamente diante de
Deus a fim de interceder em favor dos seus, pelos
quais está cheio de compaixão e misericórdia (7.25;
9.24; cf. 2.18; 4,14-16).
Esta cristologia reservada aos "iniciados" é um
ensaio muito penetrante que visa fazer a comunida
de aproximar-se, de um modo novo, do mistério da
cruz, com a ajuda da interpretação tipológica de Lv
16.Concretamente, esta tipologia tem a intenção de
mostrar que a sexta-feira santa é o dia do Grande
Perdão na Nova Aliança, e todas as festas do Gran
de Perdão, celebradas cada ano, não passavam de
tipo e figura. Isto acarreta duas conseqüências: pri
meiramente, este caráter vicário que representa a
morte do Inocente no Gólgota faz cessar uma vez por
todas (7.27; 9.12; 10.10) o apelo ao perdão divino; e,
por outro lado, o fruto desta expiação etemamente
válida continua a ser ofertado, porque opróprio Cris
to, que foi tentado, intercede pela comimidade dos
seus, por sua vez também tentada.
40. 42 A MORTE DE Jesus como sacrifício
Nesta explicação da morte de Jesus, as figuras
tipológicas usadas têm pouca importância. De fato,
tudo depende daquilo que, sob a luz e a ajuda da
tipologia, no fundo se quer expressar. E aí se trata o
duplo "por nós": "ele morreu por nós" e "entrou
por nós no santuário celeste".
E o que emerge claramente, quando nos volta
mos para aprimeira Epístola de Pedro. Esta, como
a Epístola aos Hebreus, retoma a antiga compara
ção com a vítima sacrificada: é Cristo o verdadeiro
cordeiro sem defeito e sem mancha (1.8s), morto a
fim de expiar de uma vez por todas os pecados
(3.18). Por outro lado - e este é o segimdo ponto de
vista - a primeira Epístola de Pedro alude ao capí
tulo 53 de Isaías: o hino a Cristo, que se acha na
Epístola (2.22-25) celebra-o como o Servo de Deus,
como aquele que, no madeiro, levou os nossospe
cados em seu próprio corpo, a fim de que, mortos
para os nossos pecados, vivêssemos para a justiça;
aquele por cujas feridas fomos curados (2.24). Ei-
nalmente, em terceiro lugar, sempre para explici
tar este sentido da morte de Jesus, a Epístola reto
ma de modo expressivo o tema teológico da descida
e da pregação aos infernos (3.19s e 4.6).
Para compreender esta passagem, é de extrema
importância saber que dela temos uma prefigura
ção, ainda que em sentido oposto, na versão etíope
do Livro de Enoque, apócrifo que recebeu sua for
ma atual depois da invação dos partos em 37 a.C.
Nos capítulos 12-16 deste livro, narra-se como Eno
que é encarregado de ir ter com os anjos decaídos
41. A PAIXÃON
AEpístola aos H ebreus e na Primeira Epísrola de Pedro
43
(cf. Gn 6) para lhes informar "que eles não recebe
rão nem paz nem perdão" e que Deus rejeitará todo
pedido de paz e misericórdia. Tomados de pavor e
tremendo, pedem a Enoque que componha uma sú
plica em que implorem perdão e indulgência. Eno
que é então arrebatado até ao trono em que Deus
está sentado, em meio a um fogo cintilante, e aí re
colhe o oráculo a se comunicar aos anjos decaídos
como resposta à sua súplica. A sentença se formula
breve e terrível: "Não tereis a paz!" Dificilmente se
poderá duvidar que o tema teológico da descida aos
infernos tenha sua prefiguração neste mito de Eno
que. Uma vez mais, um enviado de Deus apresenta-
se com uma mensagem divina para os espíritos de
sobedientes que habitam as trevas profundas da
prisão subterrânea. Mas, ao passo que Enoque teve
de declarar em sua mensagem a impossibilidade do
perdão, o anúncio que Cristo faz é diametralmente
oposto: refere-se à Boa-nova (4.6). Mesmo para os
que estavam perdidos sem esperança, a morte ex
piatória do Justo adquire o perdão.
As duas Epístolas, adirigida aosHebreus eapri
meira de Pedro, têm a intenção de ilustrar o que se
passou na sexta-feira santa, mas empregam para
tanto imagens basicamente diversas. A Epístola aos
Hebreus fala da subida de Jesus aos céus "por um
espírito eterno" (9.14), a fim de apresentar, ele pró
prio, o seu sangue no santuário celeste. A primeira
Epístola de Pedro fala da descida àsprofundezas dos
infernos a fim de anunciar a Boa-nova aos espíri
tos prisioneiros. "Subida aos céus" e "descida aos
42. 44 A MORTE DEJesus como sacrifício
infernos", ambas servem à explicação do aconteci
mento da sexta-feira santa.
Digamos em duas palavras o porquê desta apro
ximação. Com efeito, é preciso saber que, no decur
so do séc. I d.C., as representações do judaísmo an
tigo acerca da sorte das almas depois falecimento
sofreram total transformação. Segundo a concep
ção antiga, ainda considerada autoritativa, os in
fernos {ohades) eram o lugar das almas dos defun
tos. Mas, ao lado desta maneira de ver, impunha-se
pouco a pouco, sob o impacto do pensamento hele-
nístico, uma nova representação, segundo a qual as
almas dos justos ficavam no mimdo celeste, no pa
raíso. É esta transformação que explica porque, no
Novo Testamento, não é uniforme o que se diz da
sorte de Jesus entre a sexta-feira santa e a Páscoa:
em Rm 10.7, Paulo fala de "abismo", ao passo que
Lc 23.24 fala do paraíso. Assim se justapõem os te
mas da descida aos infernos e da subida aos céus,
ao se evocar o destino de Cristo após a morte. Pau
lo, aprimeira Epístola de Pedro eo Apocalipse apóiam
a primeira concepção. E Lucas, a Epístola aos He
breus e o Evangelho de João, a segunda. É, portan
to, o tema da subida aos céus que utiliza a Epístola
aos Hebreus, ao apresentar-nos o sumo-sacerdote
oferecendo seu próprio sangue no santuário Celes
te. E é o tema da descida aos infernos que emprega
a primeira Epístola de Pedro a fim nos descrever o
enviado de Deus, perante o qual se abrem as portas
do mundo subterrâneo, ao vir ele trazer a Boa-nova
aos réprobos.
43. A póstolo Pallo 45
Portanto, as imagens e temas usados são diver
sos, o que para nós é salutar advertência a não os
sobrestimarmos. Mas o que se quer em definitivo
exprimir é idêntico nos dois casos, e este é o ponto
decisivo. Porque as duas Epístolas, uma sob ima
gem tomada do culto, e a outra sob imagem busca
da no mito, têm a intenção de expressar a mesma
verdade: a virtude expiatória da morte de Cristo tem
valor para a eternidade e desconhece limites.
2. Apóstolo Paulo
Pode-se detectar, tanto na Epístola aos Hebreus
como na primeira Epístola de Pedro, quanto, sob
muitos pontos de vista, sua teologia é devedora à
de Paulo. Pois, se, remontando à tradição, nos vol
tarmos às passagens das epístolaspaulinas que in
terpretam o sentido da morte de Cristo, uma nova
imagem se nos oferece. Não que Paulo nos propor
cionasse algo de objetivamente diverso do que nos
apresentam os escritos pós-paulinos. Pelo contrá
rio! Pois é uma das características do nosso tema
estapermanência do mesmo conteúdo objetivo atra
vés das diversas exposições sobre este assunto em
todo o Novo Testamento. A diferença é de outra
natureza.
A Epístola aos Hebreus, como vimos, esforça-
se, na forma duma reflexão teológica, por apresen
tar e desenvolver o mistério da cruz em desdobra
mentos tipológicos profundamente refletidos e
cuidadosamente pesados. Em Paulo, pelo contrário.
44. 46 A MORTE DE J e s u s c o m o s a c r if íc io
sentimos ainda a atmosfera candente das lutas que
teve de travar a fim de fazer inteligível o conteú
do central da sua mensagem, duramente combati
do. Gostaria de torná-lo acessível através de duas
observações.
Primeiramente, é notável que no Novo Testa
mento as palavras "cruz" e "crucificar" se achem
quase somente em Paulo, se prescindirmos dos
evangelhos; encontram-se nele dez vezes o subs
tantivo (alhures apenas em Hb 12.2) e oito vezes o
verbo (que não se encontra alhures a não ser em
At 2.36 e 4.10; Ap 11.8)^. Quando nas epístolas não
paulinas, nos Atos dos Apóstolos e no Apocalipse
se fala da morte de Jesus, são outras as expressões
que se utilizam: fala-se aí de seus sofrimentos, de
sua morte, de seu sangue, e da oferta do seu corpo,
ou seja, de sua execução, mas se evitam as duas
palavras "cruz" e "crucificar". Assinalemos, além
disto, o emprego, por cinco vezes, do termo "ma
deiro" para designar a cruz^ Não pode ser efeito
do acaso. Mas então como explicar este fato estra
nho? Uma expressão de 1 Co 1.18 pode nos escla
recer . Encontra-se aí - e é o único caso em todo o
Novo Testamento - a expressão: "a mensagem {ló-
gos), a da cruz". A repetição do demonstrativo, que
não é usual na língua do Novo Testamento, distingue
- Fora dos evangelhos, a expressão "ser crucificado com (o
Cristo)" só se acha em Paulo (Rm 6.6; G1 2.19); em todo o
Novo Testamento, só se encontra "crucificar de novo" em
FIb 6.6.
3At 5.30; 10.39; G1 3.13; 1 Pd 2.24.
45. A i« tolo Pal lo 47
a “mensagem" cristã de outras mensagens. K. H.
R engstorf^ demonstrou de modo muito claro que
“linguagem" tem aí, como em 1Co 15.2, o sentido
de “relato cultual". A pregação cristã é, portanto,
apresentada em 1 Co 1.18 como o "relato cultual
sobre a cruz", onde "cruz" se coloca no lugar de
“suspenso à cruz". Representemo-nos o que há de
ofensivo nesta formulação: “o relato cultual sobre
o suspenso", para expressar o caráter incôngruo,
até mesmo chocante, da mensagem cristã; obser
vemos que, além disto, aí nem se fala da ressurrei
ção. Parece que não seria errado concluir que esta
expressão tem sua origem entre os adversários da
comunidade cristã, e expressa do modo mais ade
quado suas chacotas e seu sarcasmo. De mais a
mais, para confirmar esta hipótese, basta ler a se-
qüência da frase, que diz brutalmente: este “rela
to cultual sobre o suspenso" é loucura para os que
se perdem. E alguns versículos adiante, Paulo
acrescenta: para os judeus, a mensagem de um sal
vador suspenso à cruz é um escândalo, um discur
so blasfematório, e, para os pagãos, é simplesmen
te uma loucura. Tudo isto reflete o eco normal da
mensagem cristã e Paulo o sentiu centenas de ve
zes. Com certeza, estes sarcasmos continuaram
sendo parte do arsenal dos adversários do cristia
nismo; mas nos primeiros tempos, em que estas
zombarias eram ainda novas, teriam ferido forte
mente os pregadores do Evangelho.
^K. H. R en g sto r f, Die Auferstehung Jesu, Witten, 1960, 4®
ed., p. 19.
46. 48 A MORTE DEJiSLSCOMO SACRIHCIO
Havia duas maneiras de prevenir este sarcas
mo: uma delas consistia em tentar amenizar ou até
mesmo eliminar esteaspecto chocante da mensagem.
É a via por que entrou a Gnose, e sobretudo o "do-
cetismo", que a primeira Epístola de João mostra
que já ia se implantando desde o primeiro século
depois de Cristo, e que ensinava que somente o ho
mem Jesus fora suspenso na cruz, enquanto que o
Cristo havia se separado dele antes da paixão. E sig
nificativo que Paulo nem sequer tentou tomar de
empréstimo tal insensatez. Pelo contrário, envere
dou-se por outra via: anunciar a mensagem irascí
vel em toda asua dureza, sem condescendência nem
concessão, mas refletindo ao mesmo tempo sobre
recursos que poderiam ajudar seus ouvintes a abrir
a inteligência. Tal é o seu pensamento, quando fri
sa que o Cristo crucificado foi o único conteúdo de
sua pregação missionária na Calácia (Cl 3.1) e em
Corinto (1 Co 1.23; 2.3) e sua única glória (Cl 6.14).
Uma segunda passagem nos faz ver ainda mais
diretamente como a explicitação do sentido da cruz,
que depois fixou-se na Igreja de modo sólido e se
guro, deve ter se estabelecido a duras penas nos pri
meiros tempos. Pensona sentença de Cl3.13: "Cristo
se tomou maldição por nós". Façamos de imediato
duas observações acerca do estilo: a primeira para
frisar que o passivo "tornou-se" é um modo de
transcrever o nome divino, como o confirma 2 Co
5.21 ("Deus o fez pecado por nós"); por outro lado,
considerando-se o modo semita de se expressar, a pa
lavra "maldição" é usada por "maldito". Por isso.
47. A póstolo Palix) 49
precisamos traduzir G1 3.13 assim: "Deus fez Cristo
maldito por nós". Paulo está se referindo aí à passa
gem de Dt21.23: "Todo osuspenso no madeiro éum
homem maldito por Deus". A frase da Epístola aos
Gálatas nos é tão familiar que nem sentimos mais o
que ela tem de assombroso. Talvez opossamos pres
sentir, se acrescentarmos que não existe nenhum
autor do Novo Testamento que tenha ousado dizer
algo que se aproximasse disso. Paul P e i n e ® foi pri
meiro a ver - e um trabalho muito recente o reto
mou expressamente^ - que só pode haver uma ex
plicação para a audácia desta frase: ela nasceu no
período anterior ao episódio de Damasco. Era o tem
po em que SauloperseguiaJesus de Nazaréna pessoa
dos seus adeptos, porque ele o considerava como ex
pressamente maldito por Deus: então ele o blasfema
va (1Tm 1.13) e tentava por meios violentos forçar os
discípulos a também blasfemá-lo (At 26.11), isto é, a
exclamar: "Jesus é um maldito!" (1 Co 12.3). E é, en
tão, que no caminho de Damasco, o maldito lhe apa
rececingido daprópria glória de Deus.A frase: "Deus
o amaldiçoou" permanecerá, mas completada dora
vante por estas duas palavras: "por nós, por mim"
(G12.20). E desde então Paulo, por toda a sua vida, é
prisioneiro do Crucificado, como Inácio de Antioquia
dirá de simesmo que éuma "vítimahumÜde da cruz"
(Epístola aos Efésios 18.1).
P. Feine, Das gesetzesfreie Evangelium des Paulus, Leip
zig, 1899, p. 18.
^G. Jeremias, DerLehrer der Gerechtigkeit, Goettingen, 1963,
pp. 134ss.
48. 50 A MORTE DE Jesus como sacrifício
Não é, pois, exagero dizer que toda a cristologia
de Paulo está decididamente centrada neste esfor
ço para tornar compreensível para os seus leitores
e ouvintes este "por nós", esta suplência de Cristo
em nosso favor; e, para consegui-lo, ele lança mão
de imagens sempre novas, emprestadas de quatro
domínios diversos.
1. A tradição lhe fornecia toda uma série de idéias
e expressões tiradas do domínio cultuai. No capítulo
5 da primeira Epístola aos Coríntios, Paulo exige des
ta comunidade que faça valer a disciplina da Igreja
com referência a um dos seus membros, culpado de
um grave escândalo. Emprega, com este propósito, a
imagem do fermento que azeda toda a massa. Porque
as festas pascais estão próximas. E isto o incita, para
comentar o incidente, a tomar uma antiga meditação
cristã sobre a Páscoa (seu estilo e vocabulário eviden
ciam que de fato é anterior a Paulo). Este comentário
situava-se na celebração da Páscoa, no momento em
que o pai de família interpretava os ritos e as etapas
da refeição visando instruir todos os participantes,
sobretudo as crianças. E uma destas passagens que
Paulo cita: "... sois sem fermento. Pois nossa Páscoa,
Cristo, foi imolada. Celebremos, portanto, a festa,não
com velho fermento, nem com o fermento de malícia
eperversidade, mas com pães ázimos: na pureza e na
verdade" (1 Co 5.7s). Ser cristão, diz Paulo, é viver a
Páscoa, é estar na luz pascal, é vida nova: a verdadei
ra Páscoa chegou, quando o nosso cordeiro pascal foi
sacrificado no Gólgota. Assim - como o farão Pedro
na sua primeira Epístola e João no seu Evangelho -
49. A póstolo Paulo 51
Paulo compara Cristo com o cordeiro sem mancha,
em razão do qual Deus poupou no Egito as casas dos
israelitas. Também em Rm 3.25 ele o compara com o
sacrifício expiatório do dia do Grande Perdão, e, em
Rm 8.3,com o sacrifíciopelo pecado, e em Ef5.2,com
o "sacrifício de aroma suave". É com esta mesma or
dem de idéias que estão vinculadas todas as passa
gens que tratam do sangue de Jesus (Rm 3.25; 5.9; Cl
1.20; Ef 1.7; 2.13). Ora, a crucifixão não era uma exe
cução sangrenta, e é por isso que, quando Paulo fala
do sangue de Jesus, ele não pensa primeiramente na
realização histórica do suplício, mas no seu aspecto
sacrifical.
Todos estes desenvolvimentos, que utilizam
uma terminologia relativa a sacrifício, têm, pois, a
intenção de expressar duas coisas: a) Jesus morreu
apesar de não ter pecado (2 Co 5.21); b) sua morte
teve valor vicário pelos nossos pecados; nela se re
sumem todas as cerimônias sacrificiais da Antiga
Aliança, porque ele é a única vítima oferecida pe
los pecados da humanidade.
2. Para ilustrar a suplência de Cristo, Paulo utili
za também temas adquiridos do direitopenal. Estas
passagens referem-se ao capítulo 53 de Isaías, que
nos descreve oServo de Deus sofrendo esuportando
a pena pelos nossos pecados. "Ele foi entregue por
causa dos nossos pecados", diz Paulo em Rm 4.25,
aludindo a Is 53.12. "Deus o entregou por nós", diz
em Rm 8.32 (Is 53.6). "Ele se entregou por nossos pe
cados", afirma em G11.14 (Is 53.10). Deus exerceu na
carne do seu FUhoesta pena de morte que deveríamos
50. 52 A MORTE DEJesus como sacrifício
nós sofrer (Rm 8.3). Ele fez que Jesus carregasse a
maldição que repousava sobre nós (G1 3.13).
Em G12.14, Paulo insiste com veemência em ex
plicar esta idéia de que Cristo suportou, em nosso
lugar,ojulgamento que nos estavareservado no fim
dos tempos: "Ele destruiu a cédula de nossas dívi
das, cédula que nos afligia e que enumerava nossas
violações da Lei; ele a eliminou, pregando-a na
cruz". Na cruz, pendurava-se acima do crucifica
do o "titulus", um cartaz que o condenado à morte
trazia ao pescoço ao percorrer a via do suplício e
no qual estavam escritos os crimes que motivaram
sua condenação. Houve um "titulus" afixado aci
ma da cabeça de Jesus. Então - assim diz Paulo -
você não está vendo a mão que retira o "titulus" e o
substitui por um outro escrito de letras apertadas?
Fiquebem de perto,sevocê quiserdecifrarestenovo
"titulus": ele contém as suas e as minhas faltas!
3. Ao lado dessas imagens e expressões tiradas do
domínio cultuai ou do direito penal, Paulo emprega
também uma outra referente à condição de escravo.
"Comprar" (1 Co 6.20; 7.23), "resgatar" (G13.13; 4.5),
"por um preço" (1 Co 620; 7.23) são termos caracte
rísticos nesta linha. A imagem é buscada na própria
vida que Paulo tem sob os olhos. Não se trata aí dum
"resgate sagrado", como pensou Deissmann (vendia-
se aparentemente um escravo à divindade, mas era
elepróprio quem de fato apartava o dinheiro do seu
resgate), mas trata-se de um procedimento incom
paravelmente mais impressionante: tratava-se de
assumir a escravidão no lugar de outrem, a fim de
51. A póstolo Palxo
53
libertá-lo. Paulo está pensando é num sacrifício vo
luntário desta natureza, que dificilmente pode ser
maior - renunciar à própria liberdade em proveito de
outrem quando em 1Co 13.3("seentregarmeu cor
po às chamas") ele o apresenta como o exemplo do
mais alto devotamento. "Ainda que eu distribmsse
todos os meus bens aos famintos, ainda que volun
tariamente me deixasse imprimir a ferro quente a
marca de escravo (para libertar um irmão), se não
tivesse amor, isso de nada me adiantaria". E sabe
mos, pela primeira Epístola de Clemente aos corínti-
os, que houve reahnente sacrifícios deste gênero nas
primeiras comunidades cristãs (55.2).
Eis, diz Paulo, o que Cristo fez por nós. Estáva
mos na escravidão do pecado (Rm 3.9), da Lei
(G14.5) e da maldição de Deus (G13.13). O Crucifi
cado fez-se escravo em nosso lugar, escravo das po
tências, para nos resgatar de -modo regular (1 Co
6.20; 7.23). E preciso imaginar a terrível condição
dos escravos na Antiguidade, submetidos sem de
fesa ao arbítrio e humor de seus donos, condenados
a trabalhar até a morte nas minas e galeras, para
captarmos a ressonância extraordinária que encon
trava no mundo da época esta palavra "resgate"
para os inúmeros escravos, membros nas mais an
tigas comimidades.
4. O Quarto tema, o da obediência vicáría, en
contra-se raramente (duas vezes, pelo que me pa
rece). É o caso em Rm 5.18s, onde Paulo contrapõe
em duas sentenças paralelas a eficácia universal da
desobediência de Adão e o ato de obediência do
52. 54 A MORTE DEJesus como SACRrFfcio
Cristo ("pela obediência 'vicária' de um só, os 'inú
meros' se tornam justos"); é também o caso de G1
4.4s: "Cristo fez-se escravo da Lei para resgatar os
que eram escravos da Lei (cumprindo-a no seu lu
gar), a fim de nos conferir a adoção filial".
Por diferentes que sejam estas imagens, tomadas
de empréstimo a domínios muito diversos, todas elas
têm para Paulo uma só e a mesma finalidade; üus-
trar o "por nós", a substituição pelos pecadores da
parte daquele que foi sem pecado. E é nesta substi
tuição, válida para os ímpios (Rm 5.6), pelos inimi
gos de Deus (5.10), bem como pelo mimdo carrega
do da ira de Deus (2 Co 5.19), que se manifesta a
onipotência sem limites do amor divino que abarca
todas as coisas (Rm 5.8). E se Paulo pode dizer tam
bém que na cruz a justiça de Deus se manifestou, é
que para ele não há contradição. Porque justiça de
Deus e amor de Deus não são qualidades opostas -
como se tivesse havido na cruz um conflito a arbi
trar entre a justiça de Deus e o amor de Deus. Pelo
contrário, é um dos resultados seguros e fundamen
tais da exegese do Novo Testamento que a expres
são "justiça de Deus" deve traduzir-se em Paulo por
"salvação de Deus". Paulo liga-se à linguagem dos
Salmos e do Dêutero-Isaías, onde "justiça" se empre
ga constantemente em paralelo com "graça, salva
ção, libertação". Pense-se somente no SI 103.17:
Mas o amor de Deuspara os que o temem dura
eternamente,
e suajustiça passa dos filhos aosnetos...
53. A Igreja das origens 55
Assim, para Paulo, amor de Deus e justiça de
Deus significam a mesma coisa. Quando Deus, na
cruz do seu Filho, elimina o pecado, o julgamento e
a maldição que, objetivamente, separam dele os ho
mens (porque quem está carregado de pecado não
pode subsistir diante de Deus), então é que ele ma
nifesta o seu amor. A morte vicária de Cristo na
cruz, ponto central da pregação paulina, é a con
cretização, a atualização e a manifestação visível e
histórica do amor de Deus.
3. A Igreja das origens
Continuemos nossa subida no tempo e voltemo-
nos para a comunidadepré-paulina. Mas, se temos
a chance de possuir os escritos originais de Paulo,
não éo caso aqui. Contudo, podemos dizer com cer
teza que, para a comimidade das origens, a explici
tação do sentido da cruz foi uma busca de impor
tância fimdamental. A própria situação histórica,
desde o dia da Páscoa, forçava-a, com efeito, a to
mar posição diante do enigma dilacerante da cruz.
Porque, para os homens da Antiguidade, a cruz não
só era a quintessência das torturas mais horroro
sas, mas também o cúmulo da vergonha (Hb 12.2);
além disso, para a sensibilidade judaica, esta pena
de morte, desconhecida em Israel, era tida, sob a
influência de Dt 21.23, como um sinal visível da
maldição divina. Como então foipossível que aque
le que Deus legitimara pela ressurreição pudesse ter
suportado esta morte amaldiçoada? o mais antigo
54. 56 A MORTE DEJesus como sacrifício
anúncio da mensagem cristã (o querigma) indica
onde se pode achar a resposta: Cristo morreu pelos
nossos pecados, segimdo a Escritura (cf. 1Co 15.3).
"Pelos nossos pecados" pretende afirmar que a sua
morte foi uma substituição, e "segimdo a Escritu
ra" fundamenta esta explicitação da morte de Cristo
sobre Isaías 53.Porque, em todo oAntigo Testamen
to, é essa a única passagem em que se encontra: "Ele
morreu pelos nossos pecados". E para mim conti
nua sendo um mistério que se tenha podido duvi
dar desta referência a Isaías 53. Em todo caso,jamais
se deveria ter reclamado do plural (literalmente: "se
gundo as Escrituras"), que parece aludir a inúme
ras passagens escriturísticas, porque essa afirma
ção repousa num erro gramatical. Com efeito, o
plural aramaico {kthubayyá),subjacente a este plu
ral do grego, designa a Escritura e deve traduzir-se
pelo singular em nossas línguas.
Temos ainda outros exemplos além do de 1 Co
15.3. E de novo impressiona constatar que as refe
rências cristológicas a Isaías 53, extraordinariamen
te numerosas, encontradas em Paulo, apresentam-
se, todas sem exceção, como pertencentes a uma
tradição que lhe é anterior. Descobrimo-lo por ra
zões de estilo ou de terminologia, ou pelos dois mo
tivos ao mesmo tempo^ Não subsiste, portanto, ne
nhuma dúvida: Muito tempo antes de Paulo, foi no
capítulo dedicado ao Servo Sofredor (Is 53) que a
^Encontrar-se-ão algumas indicações, que deveriam ser am
pliadas, no Theologisches Woertebuch des Neuen Testa
ments, t. V. pp. 703 e 707.
55. Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 57
comunidade das origens foibuscar a chave para re
solver o mistério profundo do Filho de Deus pade
cendo a morte ignominiosa.
4. Qual a interpretação que o próprio Jesus deu
de sua morte?
De acordo com o que dizem os evangelistas, re
montaria ao próprio Jesus esta interpretação do sen
tido de sua morte. Seria digna de fé essa afirmação?
Examinando-se, sob o prisma da crítica literá
ria, os anúncios que Jesus faz de sua paixão, obser
va-se uma tendência evidente da tradição em colo
car, anacronicamente, nos lábios de Jesus tais
anúncios (cf. Mt 26.1-4, comparado com o esque
ma apresentado em Mc 14.1-2). Constata-se, além
disso, o pendor desta tradição em progressivamen
te formular estas predições da paixão, incluindo
nelas cada vez mais claramente a própria maneira
como se desenrolaram os acontecimentos (compa
re-se Mc 9.31 com 8.31 e 10.33ss). Compreende-se,
então, que, deste,fato inegável, se chegasse a con
cluir que tudo o que se nos transmite como ditos de
Jesus sobre a sua paixão não passaria de vaticinia
ex eventu (predições compostas mais tarde, a par
tir dos próprios acontecimentos realizados). Mas,
na verdade, não se pode pensar assim neste caso.
Porque, mesmo procedendo com toda a prudência e
sentido críticos desejáveis, vamos nos defrontar, tan
to nos anúncios da paixão como nos da glorificação,
com um núcleo que só pode ser anterior à Páscoa.
56. 58 A MORTE DEJ esus como sacriekio
Quanto aos anúncios dapaixão, é preciso partir
do fato de que tudo na vida pública era para levar
Jesus a contar, e cada vez mais, com a perseguição
e até mesmo com a execução. A violação do sabbat,
a blasfêmia contra Deus e a chamada magia (Mc
3.22), que se lhe censuravam, eram crimes que exi
giam o apedrejamento (e no caso do blasfemo, de
mais a mais, pendurava-se o cadáver numa cruz).
Acresce que Jesus se pôs por várias vezes no rol dos
profetas - e isso em palavras que, por seu teor, pou
co cristológicas em aparência, nos leva a tê-las como
autênticas. Ora, precisamente no tempo de Jesus, o
martírio era considerado como parte integrante da
missão profética; é o que evidenciam tanto o Novo
Testamento com as lendas acerca dos profetas, con
temporâneas de Jesus, bem como o costume, então
corrente, de dar relevo às tumbas dos profetas por
meio de monumentos expiatórios. O próprio Jesus
viu a história santa como uma série ininterrupta de
justos mártires, desde Abel até Zacarias, o filho de
Yoyada (Mt 23.35); a sorte deles, como a de João
Batista, o último da série, deve ter-lhe sido uma in
dicação da sua própria sorte.
Mas o próprio testemunho dos textos tem ainda
mais peso do que essas considerações. Os anúncios
da paixão, que não se devem absolutamente limi
tar aos três anjincios clássicos (Mc 8.31; 9.31; 10.33
e parai.), fazem parte de uma camada da tradição
anterior ao contato com o helenismo: é o que evi
dência o jogo de palavras em aramaico bar nasha
Ifnê nasha (Mc 9.31: Deus entregará o homem aos
57. Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 59
homens) e a quase total ausência de referências à
versão grega da Bíblia. Por outro lado, eles estão tão
fortemente ancorados no contexto que não se po
dem destacar daí: pense-se somente na passagem
em que Pedro é tratado de "Satã" em Mc 8.32®; com
certeza isso não pode ser uma invenção! Além dis
to, os anúncios aparecem nos gêneros literários mais
diversos. Ao lado dos anúncios oficiais da paixão
em suas diferentes variantes, encontram-se também
anúncios velados: em parábolas e figuras, tais como
"cálice, batismo, resgate", ditos enigmáticos, como
os referentes ao sinal de Jonas (Mt 12.39) ou à espa
da (Lc 22.36); como também os ditos que enqua
dram a celebração da ceia. Mas principalmente os
anúncios da paixão contêm uma série de detalhes
gue não se cumpriram exatamente como previstos.
É o caso, quando Jesus espera para si o sepultamen-
to dos criminosos (Mc 14.8), ou quando prediz que
parte de seus discípulos partilhará de sua sorte
(Mc 10.32,40; Lc 22.36s): ora, fato estranho, as auto
ridades se contentaram em matar somente Jesus, e
deixaram de imediato seus discípulos, sem molestá-
los. Estas constatações, que se poderíam multiplicar,
nos impedem, portanto, de considerar em bloco os
anúncios da paixão como sendo vaticinia ex eventu.
O ceticismo se converte involuntariamente em falsi
ficação da História, quando, por observações de de
talhes, perfeitamente válidas do ponto de vista críti
co, se deixam conduzir a se considerar, sem mais
Outros exemplos no TWbNT, t. V, p. 712.
58. 60 A MORTE DEJesus como sacrifício
exame, todo o conjunto dos anúncios como se fos
sem uma construção da comimidade.
Os anúncios daglorificação^ que de mais a mais
se vinculam aos da paixão, evidenciam que tam
bém eles mantêm um núcleo que é anterior à Pás
coa. Limitar-me-ei a um exemplo, à questão dos
"três dias". Ao lado da passagem que se refere a
Os 6.2 ("depois de três dias, ele ressuscitará"), en
contram-se ditos totabnente diversos sobre os "três
dias". Depois de três dias, diz Jesus, será construí
do o novo Templo (Mc 14.58 e parai.). Hoje e ama
nhã, ele expulsa demônios e realiza curas; no ter
ceiro dia, ele será "consumado" (Lc 13.32; cf. nota
b, p. 1.374 da Bible deJérusalenri). Hoje, amanhã e
no dia seguinte, ele prosseguirá seu caminho, e de
pois disso sofrerá em Jerusalém a sorte dos profetas
(15.33). Ainda um pouco de tempo e eles não mais
o verão, e ainda um pouco de tempo e eles o verão:
hoje estão vivendo em comunidade com ele, ama
nhã será a separação, e, no terceiro dia, o retorno
(Jo 16.16). Assim fica claro que Jesus anunciou, de
muitos modos, a "grande reviravolta de Deus", ejá
a ausência de qualquer diferenciação entre ressur
reição e retorno mostra-nos que os amíncios da glo
rificação não são também vaticinia ex eventu, mas
sim, no seu núcleo, anteriores à Páscoa.
Mas, se estes anúncios da paixão e da glorifica
ção remontam, no essencial, ao próprio Jesus, o que
pensar dos textos evangélicos que pretendem atri
buir a Jesus a explicitaçãomesma do sentido de sua
paixão? Seria possível eliminá-los levianamente
59. Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 61
como construções da comunidade? Longe disto!
Quem quer que tenha pressentido a extrema impor
tância que tinha no judaísmo antigo a idéia da for
ça expiatória dos sofrimentos e da morte, só pode
achar impensável que Jesus tenha podido esperar
sua paixão e morte, sem nem sequer sonhar com o
sentido que elas poderiam ter.
Também neste caso, são decisivos os textos. E
entre estas explicações do sentido da paixão, preci
samos pôr em primeiro lugar as palavras de Jesus
na Ceia. Limitar-me-ei a duas observações:
a) Importantes aí são as palavras "por muitos";
encontram-se com divergências quanto a sua locali
zação e teor literal, nas cinco versões dos ditos da
Ceia que traz o Novo Testamento (Mc 14.24; Mt
26.28; 1 Co 11.24; Lc 22.19-20; Jo 6.51). Sua ausência
em Justino (cerca de 150 d.C.) é sem conseqüência,
pois é conscientemente que ele cita, abreviando-os,
os ditos da Ceia. Das diferentes versões, a expressão
de Marcos ("por muitos"), que é um semitismo, é
com certeza mais antiga do que a de Paulo ("por
vós"). Ora, Paulo deve ter recebido sua versão dos
ditos da Ceia, que apresentam um vocabulário for
temente grecizado, pelos anos 40 em Antioquia, fato
que nos possibilita situar a versão mais antiga de
Marcos no primeiro decênio que seguiu à morte de
Jesus. Quem, pois, pretender eliminar estas duas pa
lavras sob pretexto de que seriam uma interpretação
acrescentadaposteriormente,deveestarconscientede
que abandona uma tradição muito antiga, e sem ra
zão lingüística de que possa se reclamar.
60. 6 2 A MORTE DE J e s u s c o m o s a c r if íc io
b) Estas palavras "por muitos" são, como o con
firma Mc 10.45, uma referência a Is 53. É nessa pas
sagem da Bíblia que se encontram ao mesmo tem
po o "por" e, com isto, a idéia de substituição, e o
"muitos"; ora, "muitos", usado sem artigo no sen
tido inclusivo de "numerosos, grande turba, multi
dão, todos", acha-se em abundância neste capítulo,
e dele constitui a palavra-chave^. Assim, o "por
muitos" dos ditos de Cristo na Ceia nos evidencia
que foi em Is 53 que Jesus encontrou a chave para
explicitar o sentido de sua paixão e morte.
Mais complexa é a história da tradição do dito
sobre o resgate, que está estreitamente aparentado
com os ditos da Ceia. Com efeito. Marcos (10.45 pa
rai. Mt 20.28) e Lucas (22.27) divergem quanto ao
teor. Parece que se possa estabelecer que as duas
versões repousam sobre um lógion de Jesus,no qual
se tratava de serviço. Na fronte própria de Lucas,
este serviço de Jesus é ilustrado com auxílio de seu
"serviço à mesa", ao passo que em Marcos se recor
re a Is 53. Em Lucas, o contexto acusa um vocabu
lário claramente grecizado; em Marcos, não só o vo
cabulário como também o conteúdo conceptual do
lógion são semíticos, pois a utilização religiosa da
figura do resgate é especificamente palestinense, o
que faz remontar a tradição usada por Marcos a
uma data muito antiga. O menos que se pode dizer
Usado substantivamente e sem artigo em: Is 52.14; 53.12.
A versão grega dos Setenta o pressupõe também em
53.11c.l2
61. Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 63
éque Marcospossuía,aolado dos ditos da Ceia,uma
antiga tradição em que Jesus explicitava sua pai
xão valendo-se de Is 53.
É também uma tradição muito antiga - diria,
até mesmo, um fragmento da rocha original em que
se baseou a tradição - que possuímos no dito refe
rente à espada, que nos vem da fonte própria de
Lucas (22.35-38). O tempo da angústia está a ponto
de irromper; é este o sentido dos versículos 35s; tra
ta-se, pois, de uma palavra que com certeza foipro
nunciada antes da Páscoa,pois representa uma pre
dição não realizada, uma vez que a paixão coletiva
dos discípulos não se deu dessa maneira. É também
em Is 53 que se encontra a razão desta mudança de
clima num mundo que vai passar da amizade hos
pitaleira à ira sanguinolenta; pois aí se diz: "e ele (o
Servo de Deus) foi contado no número dos ímpios".
Quanto à sentença que segue no v. 38, onde os dis
cípulos aludem às duas espadas, trata-se de um dito
muito antigo, pois, sem retoques ou eufemismo, ex
plode aí a total falta de compreensão dos discípu
los. Uma vez mais. Is 53 apresenta a explicitação
da paixão no momento em que, para Jesus, ela esta
va imediatamente próxima.
Considere-se também como uma tradição ante
rior à Páscoa o dito sobre o pastor que vai ser ferido
e cujas ovelhas vão se dispersar (Mc 14.27). Com
efeito,oV. 28prolonga aimagem do pastorpela pro
messa: "ele precederá (o seu rebanho) na Galiléia",
a qual não pode ter sido formulada eqevtu / ex
eventu. Por outro lado, pensando-se no contexto
62. 64 A MORTE DEJesus como sacrifício
desta citação de Zacarias (13.7),percebe-se que tam
bém aí existe, no fundo, uma explicitação do senti
do da paixão: a morte do Pastor traz a aflição, mas
também a reunificação do rebanho purificado. E Jo
10.15,17 aí está a nos mostrar que, pelo menos na
tradição, a imagem do pastor estava ligada a Is 53.
Precisamos, enfim, aduzir a passagem em que
Jesus na cruz intercede por seus inimigos (Lc 23.34).
Este versículo não é atestado por todos os manus
critos, mas repousa sobre uma tradição muito anti
ga, como o evidenciam, de modo concorde, a forma
e o fundo (a apóstrofe dirigida a Deus: "Pai"; a in
tercessão pelos inimigos). Também aí se insere uma
explicitação do sentido da paixão, porque a inter
cessão de Jesus toma o lugar do voto de expiação
que todo condenado devia pronunciar: "Que minha
morte expie por todos os meus pecados!", mas Je
sus orienta a virtude expiatória de sua morte não
para si mesmo, mas para os seus carrascos. No fun
do está igualmente Is 53, que termina assim: "E ele
intercedia pelos pecadores" (v. 12).0 número de
passagens em que Jesus, segundo os evangelhos,
aplica-se a si Is 53 é muito grande, ainda que limi
tado. Liga-se isto ao fato de Jesus não ter revelado
os mais altos mistérios da sua missão a não ser na
pregação reservada aos discípulos enão na sua pre
gação pública. Com efeito, somente aos discípulos
é que ele comunicou que via no cumprimento de Is
53 a tarefa mesma que Deus lhe marcava; a eles so
mente explicitou o sentido da sua morte na linha da
suplência "pelos muitos", pela multidão incontável
63. Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 65
dos que incorreram sob a justiça divina. Porque,
segundo Is 53, quatro elementos dão à morte "vicá
ria" do Servo de Deus essa força expiatória sem li
mites: trata-se dum sofrimento voluntário (v. 10),
suportado na paciência (v. 7), querido por Deus (vv.
6.10), e inocente (v. 9). E, nessa morte, o que se con
cede ao Servo é a vida, da qual Deus é a fonte e da
qual se pode participar com ele.
Vimos que podemos com grande probabilidade
- não se pode fazer questão de certeza absoluta -
reconduzir ao próprio Jesus essa explicitação que o
cristianismo das origens dava do sentido da sua
morte como cumprimento de Is53.Contudo,a ques
tão existencialnão ficou comistosuprimida. Elaper
manece. Só que essa questão é posta agora lá mes
mo onde ela tem o seu lugar: no próprio Jesus.
64. Capítulo III
A JUSTIFICAÇÃO
PELA FÉ
1. o sentido da fórmula
Num parágrafo de introdução, gostaria de esta
belecer os fundamentos do que seguirá por meio de
algumas observações lingüísticas. Eis a questão: o
que se entende por a) ser justificado, b) por fé, c)
por graça?
Assim como o verbo hebraico sadhaq, SiKaiô /
dikaioún pertence, na Septuginta, à terminologia ju
rídica. No ativo, significa "fazer justiça a alguém",
"declarar alguém inocente", "absolver um acusado".
O sentido passivo será, então, "ganhar uma causa",
"ser inocente", "ser absolvido". Neste sentido, Ô iK airâ
/ dikaioún é usado também no Novo Testamento, cf.
Mt 12.37; uma referência ao juízo final: "... por tuas
palavras serás justificado (ôiKai(o0fjati / dikaiothése)
e por tuas palavras serás condenado". A mesma
65. 6 8 AJusnncAÇÀoPELAFé
oposição "absolver-condenar" acha-se em Rm 8.33s
citando Is 50.8: "É Deus quem justifica (0eòç ó
ôiKttiôv / Theós ho dikaiôrí). Quem condenará?"
Tudo isto se encontra em qualquer léxico.
É preciso, contudo, notar que o sentido do verbo
ôiKaiô / ôiKttiôaSai / dikaioún / dikaioústhaitinha
se alargado, em particular quando servia para expres
sar a ação de Deus. O novo matiz surgiu pela primei
ra vez no Dêutero-Isaías (Is 45.25 Septuaginta):
Por Yahweh serájustificada (ôiKaicoG fiaerai /
dikaiothésetai)
e,por causa de Yahweh, seráglorificada
toda a raça de Israel.
O Dêutero-Isaías rompe assim, com toda a evi
dência, os limites do emprego jiirídico. O paralelis
mo entre "ser justificado" e "ser glorificado" mos
tra muito bem que ôiKairôoGai / dikaioústhaiioma
aí o sentido de "achar salvação".
Enquanto sei, ainda não foi observado que este
emprego tenha persistido no judaísmo pós-bíblico.
Destesepodem citarpelo menos dois exemplos.Nas
Antiguidades Bíblicasdo Pseudo-Filo (escritas após
70 d.C.), "ser justificado" se apresenta como para
lelo à eleição de Deus (49.4), bem como no Quarto
livro de Esdras (escrito em 94 d.C.) "achar graça",
"ser justificado" e "ser ouvido na oração" se usam
como sinônimos (12.7).
A última dessas passagens constitui o começo
de uma oração:
66. o ŒNTTIDO DA FÓRMULA 6 9
Ó Senhor altíssimo,
se acheigraça diante de ti
e se fuijustificado em tuapresença
diante de uma multidão
e se minha oração se eleva com segurança na
direção de tua face...
As três linhas estão em paralelo. Na primeira e
na segrmda, "achar graça" altema-se com "ser jus
tificado" sem nenhuma mudança aparente de sen
tido. A tradução literal "ser justificado" é, portan
to, muito estreita e não vai ao cerne da expressão.
O que se deve de preferência entender por este tex
to é o seguinte:
Se acheigraça diante de ti
e se acheifavor em tuapresença
diante de uma multidão...
O que aqui é importante é que a idéia de pro
cesso é abandonada. "Ser justificado", aplicado a
um ato de Deus e posto em paralelo com "achar
graça", não tem o sentido estreito de "ser absolvi
do", mas antes o sentido mais abrangente de "ser
em favor". Confirma-se isto pelo paralelismo da
terceira linha, que indica como a graça de Deus, o
seu agrado, se manifesta: ele escuta a oração.
Este fato nos conduz para muito perto de uma
palavra dos evangelhos, em Lc 18.14, onde Jesus diz
com referência ao publicano: "Eu vos digo que este
último desceu para casa justificado, e não o outro".
67. 70 AJUSTinCAÇÀOPELAFé
Também aqui se abandona a comparação jurídica.
Também aqui "ser justificado" tem antes o sentido
de "encontrar o favor de Deus". Também aqui este
favor divino se traduz pela audição da oração.
Lc18.14deve,portanto, traduzir-se: "Eu vosdigo que
estehomem desceupara asua casa comoalguém que
encontrou o favor de Deus, e não o outro". Podemos
até mesmo ir ao ponto de traduzir: "Eu vos digo que
este homem desceu para casa como alguém cuja ora
ção foi ouvida por Deus, e não o outro".
Acabamos, pois, de ver um emprego de
ôiKttirâaBai / dikaioústhai em que a comparação
jurídica parece ter sido atenuada ou até mesmo
completamente abandonada. Gostaria de chamar
este uso de "soteriológico",para distingui-lo do uso
jurídico.
E evidente que em Paulo também o uso de "justi
ficado" (ou de "ser justificado") vai muito além da
esferajurídica - mesmo quando oaspectojurídico (ou
forense) não está ausente - e já mencionamos o final
em forma de hino de Rm 8, onde Paulo (nos vv. 33s)
lança mão da imagem de um processo, citandoIs50.8:
"Quem acusará os eleitos de Deus? É Deus quem jus
tifica" (ôiKairâv / dikaiôrí). E, portanto, a conotação
soteriológica que comanda o seu discurso. Para Pau
lo, (ôiKaicò / dikaoún no ativo significa "conceder a
graça ou favor", e no passivo (SiKaicòoGai / dikaioús
thai "achar a graça ou favor". Vê-se de modo parti
cularmente claro, que a imagem do processo desapa
receu, quando Paulo fala de uma justificação que teve
lugar no passado, como por exemplo em Rm 4.2: "Se
I I I
68. oSENTIDOD
AFÓ
RM
ULA 71
Abraão achou graça (èôiKai(»0T| / edikaiôthê) pelas
obras..." Aí, na história da fé de Abraão, não nos de
frontamos com uma cena judiciária, mas antes com a
outorga da graça de Deus. O que vale também de 5.1:
"Tendo, pois, recebido nossa graça. (ôiKaicoGévteç /
dikaiothénteé) pela fé, estamos em paz com Deus"; e
de 5.9: "Quanto mais, então, agora, tendo encontrado
graça (SiKaicoSévxeç / dikaiothénte^ por seu sangue".
A justificação que provém de Deus é um transbordar
de graça que extravaza largamente à esfera jurídica.
Com referência ao substantivo ^'SiKaicoGobvri
(tou) 08ob / dikaiosyne {toú) Theoú", a conotação
soteriológica foi notada há muito tempo, e, primei
ramente, pelo que eu saiba, por James H ardy Ropes
no começo deste século^ Nos Salmos e no Dêutero-
Isaías, sidhqath Jahwe, a "justiça de Deus", se aco
pla com a salvação de Deus e com a misericórdia de
Deus. E é precisamente o emprego que dela faz Pau
lo (com a exceção de Rm 3.5, onde ele não fala em
seupróprio nome, mas citauma objeção). Assim,por
exemplo, Rm 1.17não se deve traduzir por "Porque
nele (no Evangelho) ajustiça de Deus serevela",mas
"Nele (no Evangelho) a salvação de Deus se revela".
Em resumo, assim como para as epístolas de
Paulo ôiKai(o0aí)vTi (tou) 0eoí) / dikaiosyne {toú)
Theoú deve-se traduzir por "a salvação de Deus",
ÔiKaiâo0ai / dikaioústhai deve-se traduzir por
"achar a graça de Deus".
’ Righteousnessin the Old Testamentandin St.Paul, in Jour
nal ofBiblical Literature 22 (1903) pp. 211-227.
69. 72 AJusnncAçÃoPELAFé
Vejamos agora as palavras ÔTtíoiei, èk tcíotego,
ôiòc TríaTECoç / pístei, ek písteos, dià písteos, "pela
fé". Toda vez que Paulo fala da ôiKaioo^òvr) / dikaio-
syne de Deus, da salvação de Deus, e do ôiKaicò /
dikaioún de Deus, a outorga da graça, ele centra a
atenção inteiramente em Deus. Tudo se reconduz à
questão vital de se saber se Deus é ou não é miseri
cordioso, se ele concede ou não o seu favor, se ele
me diz "sim" ou "não". Quando é que Deus diz
"sim"?
Paulo responde: um homem é justificado, um
homem acha graça, pela fé. M artinho L utero, em
sua tradução de Rm 3.28 acrescentou uma palavra.
Ele diz: "Pois reputamos que o homem éjustificado
pela fé somente" ("allein durch den Glauben"^ sola
fidé). Criticou-se este acréscimo, mas do ponto de
vista lingüístico ele tem toda a razão. Pois é uma
característica da língua semita (e, sob este aspecto,
as cartas de Paulo traem muitas vezes o seu fundo
judaico) o fato de a palavra "somente", "só", ser
gerahnente omitida, mesmo quando no ocidente ela
se considera indispensável (cf., por exemplo, Mc
9.41, que é necessário interpretar assim: "Todo
aquele que vos der um simples copo d'água" será
recompensado, por insignificante que seja o servi
ço). Sola fide!A fé é o único caminho para a miseri
córdia de Deus.
Quando Paulo fala de achar a graça só pela fé, é
sempre em oposição à possibilidade de achá-la pe
las obras. A doutrina da justificação não poderia ser
entendida sem esta antítese. Ela se dirige contra a
70. oSENTIDO DA FÓRMULA 73
concepção fundamental do judaísmo e do cristia
nismo judaizante, segundo a qual o homem acha a
graça de Deus pelo cumprimento da vontade divi
na. O próprio Paulo considerava as coisas assim até
o momento em que Cristo lhe apareceu no cami
nho de Damasco: somente este instante é que lhe
abriu os olhos para a ilusão que o fazia crer que um
homem poderia manter-se diante de Deus por sua
própria força. É por isso que, depois de Damasco,
ele opõe à tese dos judaizantes, que pretendem que
a Lei seja o caminho da salvação, esta antítese: o
caminho da graça de Deus não está nas obras, mas
na fé (G1 2.16; 3.8,24; Rm 28.30; 4.5).
Assim a fé substitui as obras. Mas então se põe a
questão: Achamo-nos diante de uma façanha em
virtude da qual Deus concede a sua graça, se a jus
tificação segue a fé? Eis a resposta: Sim! Estamos de
fato na presença de uma façanha. Deus concede
com efeito a sua misericórdia na base de uma faça
nha. Mas ei-la: não se trata da minha própria faça
nha, mas da façanha de Cristo na cruz. A fé mesma
não é uma façanha, mas antes a mão que apanha a
obra do Cristo e a dirige para Deus. A fé diz: Eis a
façanha - o Cristo morreu por mim na cruz (G1
2.20). Esta fé é a única maneira de obter graça junto
de Deus.O fato de que Deus concede o seu favor ao
crente é contrário a todas as normas das leis huma
nas. Isto salta aos olhos, se considerarmos quem é
justificado,ou seja,oímpio (Rm45) quemereceamor
teporque éportador da maldição de Deus (G13.10). A
salvação de Deus lhe é concedida "a título gracioso"
71. 74 A Ju sn n C A Ç À O P E L A Fé
(Rm 4.4; 5.17), como um dom gratuito (Rm 3.24). Esta
graça não conhece limites; sendo independente da lei
mosaica, pode incluir os gentios. Em Rm 4.6-8,acha-
se com exatidão o que significa o favor de Deus, sola
gratia:"Como, aliás, também Davi proclama a bem-
aventurança do homem a quem Deus credita a jus
tiça, independentemente das obras;
"Bem-aventurados aqueles cujas ofensas
foram perdoadas, e
cujospecados foram cobertos.
Bem-aventurado o homem, a quem o
Senhornão leva em conta opecado".
A justificação, é o perdão, nada mais do que o
perdão pelo amor de Cristo.
Esta afirmação, todavia, precisa ser mais expli
cada.
2. Justificação e nova criação
Se contarmos as passagens de Paulo onde se
acha a fórmula da justificação, estaremos diante de
um fato curioso e muitas vezes negligenciado, ou
seja, o fato de que a doutrina da justificação não
aparece na maior parte das epístolas. Nas epístolas
aos Tessalonicenses não achamos o menor traço
dela. Na primeira delas, o advérbio ôiKaicoç / dikaíos
qualifica a conduta irrepreensível do Apóstolo
(1 Ts 2. 10). Na segunda, o julgamento de Deus é
chamado de "justo julgamento"; Deus é chamado
72. jL'snncAÇÃOe nova criação
75
"justo" porque o seu julgamento é imparcial (2 Ts
1.5s). Estas afirmações nada têm a ver com a doutri
na da justificação. Na Carta aos Gálatas, que vem
cronologicamente logo depois daquelas, a fórmula
completa "justificação pela fé" ou "ser justificado
pela fé" aparece bruscamente pela primeira vez.
Nas duas Epístolas aos Coríntios, ôiKaiooúvrj /
dikaiosyne tem o sentido de "salvação", e "ser jus
tificado" aparece pelo menos uma vez (1 Co 6.11)
num sentido especificamente paulino, mas em ne
nhuma das duas Epístolas aparece a fórmula com
pleta "justificação pela fé". A seguir, encontramo-
la com muita freqüência na Epístola aos Romanos.
Depois disto, desaparece de novo nas Epístolas do
cativeiro: Filipenses, Efésios, Colossenses, Filêmon,
com a exceção de El 3.9, onde ôiKaiooúvTi / dikaio
syne (salvação) pela Lei se opõe à ôiKaioabvt] / di
kaiosyne (salvação) de Deus pela fé. As Epístolas
pastorais não contêm a fórmula completa, ainda
que em Tt 3.7 se encontre a variante: "justificados
pela graça de Cristo". Assim, a fórmula completa
"justificação pela fé" ou "ser justificado pela fé"
acha-se somente nas três Epístolas aos Gálatas, Ro
manos e Filipenses (e numa única frase desta últi
ma), às quais se deve acrescentar Tt 3.7. Como ex
plicar este fato tão estranho?
A resposta nos parece ser a seguinte: a doutrina
não aparece a não ser quando Paulo entra em con
trovérsia com o judaísmo. Com certeza W. Wrede-
- W red e W ., Paulus, Tübingen 1904.