SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 148
Baixar para ler offline
A MENSAGEM
CENTRAL
do Novo
TESTAMENTO
CRISTÃ
JOACHIM JEREMIAS
A MENSAGEM CENTRAL
DO
NOVO TESTAMENTO
Prefácio de F. Refoulé, O. P.
2005
CRISTÃ
© Editora Academia Cristã
Título original:
Le message central du Noveau Testament
Les Éditions du Cerf, Paris
Supervisão Editorial:
Luiz Henrique A. Silva
Rogério de Lima Campos
Paulo Cappelletti
Layout, e artefinal:
CompSystem - Digitação e Diagramaçâo Ltda-Me.
Tradução:
João Rezende Costa
Revisão:
Vagner Montrezol
Capa:
James Valdana
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Jeremias, Joachim, 1900-
J55m A mensagem central do Novo Testamento (traduziu João Rezende Costa) -
São Paulo : Ed. Academia Cristã Ltda, 2005.
14 X21 cm; 152 páginas
ISBN 85-98481-06-8
1. Bíblia- N.T. -Teologia I. Título.
CDU-225.017
índices para catálogo sistemático:
I. Novo Testamento - Teologia 225.017
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer forma ou meio
eletrônico e mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem permissão
expressa da editora (Lei n° 9.610 de 19.2.1998).
Todos os direitos reservados à
Editora A cademia Cristã L tda.
Rua Marina, 333 - Santo André
Cep 09070-510 - São Paulo, SP - Brasil
Fonefax (11) 4424-1204 / 4421-8170
Email: academiacrista@globo.com
Site: www.editoraacademiacrista.com.br
PREFACIO
Será que o Cristo da fé é também o Jesus da his­
tória, será que a mensagem dos apóstolos coincide
com a de Jesus, será que a Igreja está vinculada re-
ahnente à comunidade messiânica reunida por Je­
sus, e será que o cristianismo não passa de um esse-
nismo que teria tido êxito? Estas graves questões,
que tocam o próprio cerne da nossa fé, situam-se
no centro dos debates contemporâneos. São delas
que o professor Jeremias trata diretamente neste
opúsculo, que temos a felicidade de aqui apresen­
tar. Isto basta para dizer a importância desta obra,
cujo peso não se mede pelo número das páginas.
A exposição do professor Jeremias apresenta-se,
todavia, com tanta simplicidade, e com uma erudi­
ção tão discreta, que o alcance das conclusões do
Autor corre o risco de escapar ao leitor não adverti­
do. Parapressentir seu significado,épreciso,cremos,
conhecer pelo menos em suas grandes linhas o con­
texto histórico em que se situam estes estudos.
No decorrer do século XIX,o estudo crítico ehis­
tórico do Novo Testamento levou os exegetas e os
Prefácio
teólogos a tomarem mais claramente consciência do
corte profundo que foi - na evolução do cristianis­
mo das origens - o evento pascal, ou seja, o duplo
fato da morte e da ressurreição de Jesus. A vinda
do reino de Deus constituíra o tema maior da pre­
gação de Jesus. Depois da Páscoa, a mensagem dos
apóstolos resume-se essencialmente no anúncio de
Jesus como Messias e Senhor. Os textos o demons­
tram de modo evidente. Como o frisa R.Schnacken-
BURG, no seu grande livro Gottes Herrschaft und
Reich, os sermões missionários dos Atos dos Após­
tolos não mencionam nem sequer uma vez o reino
de Deus, e, no conjunto dos Atos, ele não é evocado
mais do que sete vezes, ao passo que aparece trinta
e nove vezes no Evangelho de Lucas. Pelo contrá­
rio, a pregação da ação salvadora de Jesus desde o
seu batismo, a pregação da sua crucifixão e ressur­
reição, constitui regularmente o cerne dos discur­
sos de Pedro e dos apóstolos.
Da pregação de Jesus à dos apóstolos, o centro
de gravidade deslocou-se incontestavelmente. Evi-
denciou-se difícil uma justa interpretação deste fato
e os exegetas ainda não chegaram a determinar de
modo satisfatório a relação entre a pregação de Je­
sus e a dos apóstolos.
H arnack e os teólógos protestantes liberais consi­
deravam a pregação apostólica como um desenvol­
vimento üegítimo e mitologizante da mensagem de
Jesus. Para estes teólogos, o ensinamento do Novo
TestamentosobreJesusMessias,Senhor,FühodeDeus,
Redentor, Juiz escatológico, não conteria nada de
Prefácio
especificamente cristão,pelo contrário, violaria os tra­
ços individuais e concretos da figura histórica de Je­
sus, sobre a qual aquele ensinamento estaria distante.
Hoje, inversamente,para Bultmann e seus discípulos,
o evento pascal marcaria o começo absoluto do cristi­
anismo. Jesus, afirmam eles, não teria sido um "cris­
tão", mas um judeu, e sua pregação se moveria intei­
ramenteem quadrosdeidéiaseconceitosdojudaísmo,
mesmo quando entra em oposição à religião judaica
tradicional. Esta solução radical de Bultmann susci­
tou vivas reações eaté mesmo alguns de seusdiscípu­
los se recusam a segui-lo neste ponto. Como admitir,
com efeito, que apessoa eo ensinamento deJesusnão
se situem no centro da mensagem cristã? Além disto,
se é verdade que a pregação dos apóstolos não se li­
mitou a repetir a de Jesus, não é menos verdade que
elasempre sereferiu à deJesuse que osprimeiros dis­
cípulos sentiram a necessidade de escrever "evange­
lhos".Enfim,comoKàsemann objetacomrazãoa Bult­
mann, "somente se a pregação de Jesus coincide de
modo decisivo com a pregação sobre Jesus, é que se
pode compreender que o ressuscitado é oJesushistó­
rico. A partir daí, somos constrangidos,comohistoria­
dores, a remontar para além da Páscoa. Verificare­
mos se Jesus está detrás da palavra de sua Igreja ou
não, e se o querigma cristão é um nüto inteiramente
separável da sua palavra e dele próprio, ou se ele está
vinculado indissoluvelmente ao Jesus histórico".
E precisamente esta coincidência decisiva entre
a pregação de Jesus e a da sua Igreja que o professor
Jeremias sepropõe mostrarna presente obra. Partindo
P refácio
dos temas maiores da pregação apostólica (oração
endereçada ao Pai, justificação pela fé, morte de Je­
sus como sacrifício), ele remonta, passo a passo, até
as camadas mais antigas da tradição na tentativa
de determinar em que medida estas doutrinas fun­
damentais estão vinculadas à pregação de Jesus. E
depois destas pacientes análises que ele se crê auto­
rizado a afirmar a unidade real da mensagem cris­
tã quanto ao essencial, e a continuidade da doutri­
na dos apóstolos com a de Jesus.
Seninguém jamais pôs em dúvida a qualidade ex­
cepcionaldas pesquisas do professorJeremias eo rigor
do seu método exegético, fundado particularmente
num conhecimento notável do aramaico, alguns au­
tores católicos e protestantes recentemente julgaram
poder formular reservas quanto ao seu alcance teoló­
gico. Alguns,por exemplo, questionaram se o interes­
se que o professor Jeremias dirige ao Jesus da história
não implicaria uma certa depreciação da tradição
apostólica. Outros julgam que o caráter decisivo do
evento pascal não se acharia suficientemente acentu­
ado; perguntam-se se o professor Jeremias não viria,
como outrora osjudeu-cristãos, a considerar a ressur­
reição de Jesus mais como a confirmação da mensa­
gem de Jesus do que como o objeto central da fé. Al­
guns, enfim, temem que o peso que ele atribui às
provas históricas não venha a pôr a fé na dependên­
cia da crítica histórica e literária.
Seja lá o que for, nada na presente obra justifica
essas críticas ou esses temores. O Autor, neste opús­
culo,sepropõe unicamentemostrarqueJesussesitua
P refáck)
por detrás daspalavras da sua Igreja, e, da nossa
parte, cremos que ele realiza o seu propósito de ma­
neira tão convincente como magistral. Expresse­
mos-lhe aqui a nossa gratidão.
F.Refoulé, o .P.
INDICE GERAL
C a p ít u l o I- ABBÁ......................................................13
1. Deus "Pai" no Antigo Testamento....................13
2. O judaísmo palestinense....................................19
3. "Abbá" nas orações de Jesus.............................. 22
4. A paternidade de Deus nos Evangelhos..........27
5. A oração do Senhor..............................................34
6. Conclusão.............................................................36
C a p ít u l o II - A MORTE DEJESUSCOMO
SACRIFÍCIO.............................................................39
1.A paixão na Epístola aos Hebreus e na
primeira Epístola de Pedro................................39
2.Apóstolo Paulo.................................................... 45
3.A Igreja das origens.............................................55
4.Qual a interpretação que o próprio Jesus
deu de sua morte?................................................57
C a p ít u l o III- AJUSTIFICAÇÃOPELAFÉ..............67
1.0 sentido da fórmula........................................67
2.Justificação e nova criação..................................74
3.A origem da doutrina paulina da justificação ....84
C apítulo IV - O VERBO REVELADOR...................91
1.A forma literária do prólogo de João.................91
2.0 encadeamento das idéias...............................100
A segunda estrofe (vv. 6-8)................................102
A terceira estrofe (vv. 9-13)................................102
A quarta estrofe (vv. 14-18).........;.....................104
3.0 sentido da designação de Jesus como
Lógos....................................................................108
C apítuloV - A ORIGINALIDADE DA
MENSAGEM DO NOVO TESTAMENTO...........113
Qumran e a Teologia..............................................113
1.Cresceu o conhecimento do meio em que
viveu Jesus......................................................123
2.Analogias com a comunidade cristã das
origens..............................................................130
3.0 que separa os essênios de Jesus..............136
ÍNDICE DOSAUTORES...........................................145
ÍNDICE DOSTEXTOS BÍBLICOS...........................147
1 2 Ín d ic e
Capítulo I
ABBÁ
1. Deus "Pai" no Antigo Testamento
No Oriente Próximo, por mais que retornemos
no tempo, sempre é familiar a idéia mitológica do
deus pai da humanidade ou de certos seres huma­
nos. Povos, tribos e famílias se dizem proceder de
um ancestral divino. É particularmente ao rei, en­
quanto representante do seu povo, que se atribui
uma parte especial da dignidade e do poder de um
pai divino. Toda vez que a palavra "pai" é usada
para a divindade, neste contexto, implica a pater­
nidade no sentido de autoridade incondicional e
irrevogável.
Estes são fatos muito conhecidos na história das
religiões, mas o que é menos conhecido é que muito
cedo já a palavra "pai", enquanto epíteto atribuído
à divindade, está carregada de uma tonalidade par­
ticular. Num célebre hino sumério eacádico de Ur, o
deus Lua, Sin, é invocado como "Pai misericordioso.
14 A bba
em suas disposições que retém em sua mão a vida
de todo opaís". Edo deus sumério-babilônico se diz;
Sua cólera é como o dilúvio,
Ele se reconcilia como um pai
misericordioso.
Para os orientais, por mais que recuemos no
tempo, a palavra "pai" aplicada para Deus evoca
- algo semelhante ao que a palavra "mãe" signifi­
ca para nós.
Isto ainda é mais verdade no Antigo Testamen­
to. Aí, raramente se chama a Deus de "pai", apenas
catorze vezes, mas cada uma delas é importante.
Para começar, quando Deus é chamado de "pai"
ele é honrado como criador;
Não é ele,porventura, teupai,
que te fez seu,
que te formou e te consolidou?
(Dt 32.6).
Porventura não é um mesmo o Pai
de todosnós?
Não é um só Deus que nos criou?
(Ml 2.10).
Como criador. Deus é o Senhor. Ele pode espe­
rar receber a obediência em homenagem.
Por outro lado, sendo um pai. Deus é considera­
do misericordioso;
Deus "P ai" o Axtigo Tetamexto 15
Como um paise compadece dos filhos,
assim dos que o temem se apieda o Senhor.
Pois ele bem conhece de que massa
somos feitos:
recorda-se que somospó (SI 103.13s).
Porque Deus é o criador, está cheio de indulgên­
cia paternal para com a fraqueza de seus filhos.
É evidente que todas estas citações do Antigo
Testamento refletem o velho conceito oriental da
paternidade divina. Há, porém, diferenças funda­
mentais. O fato de que no Antigo Testamento Deus
não é o ancestral, mas o criador, não é a menor di­
ferença. E o que é ainda mais importante: no Anti­
go Testamento, a paternidade divina atribui-se só a
Israel e de uma maneira que não encontra nenhum
equivalente. Israel tem uma relação toda particu­
lar com Deus. Israel é o primogênito de Deus, esco­
lhido entre todos os povos (Dt 14.Is). Além disto,
esta eleição de Israel como filho primogênito de
Deus se originava, cria-se, num fato histórico con­
creto: o êxodo do Egito. Associar a paternidade de
Deus com um fato histórico implica uma profunda
revisão do conceito de Deus como Pai; A certeza de
que Deus é Pai e Israel seu filho não se fundamenta
no mito, mas em um ato línico de salvação realiza­
do por Deus, do qual Israel foi o alvo na história.
Contudo, somente nos profetas é que o conceito
de Deus como Pai adquire todo o seu sentido no
Antigo Testamento. Quantas vezes os profetas não
foram obrigados a repetir que Israel só correspondia
16 A bbâ
ao amor paternal de Deus por uma constante in­
gratidão. A maior parte dos textos proféticos refe­
rentes a Deus como Pai denunciam com insistência
e paixão a contradição que se manifesta entre a filia­
ção de Israel e sua impiedade...
Eagora me invocas, não é verdade?:
"Meu Pai,
vós sois o companheiro da minha
juventude!
Terá que guardar eterno rancor?
Terá que conservar ressentimento
para sempre?"
Assim falas;mas depois fazes o mal
quepodes! (Jr 3.4s).
E eu disse: "Comoposso colocar-te
entre os meus fílhos
e dar-te uma terra invejável,
a gema das nações como herança?"
E acrescentei: "Chamar-me-eispai,
e não hesitareis em vir após mim
Como,porém, uma mulheréinfiel
ao seu amante,
assim vós me fostes infíéis,
ó filhos de Israel, diz o Senhor
(Jr 3.19s).
Um fílho honra seupai
e um servo teme o seu senhor.
Masse eu sou Pai,
onde está a honra que me corresponde?
Deus "F ai" o Amic.o Tftamexto 17
Ese sou senhor,
onde está o temor que se me deve?
(Ml 1.6)
A resposta constante de Israel a este apelo ao
arrependimento é: "Tu és o meu (ou o nosso) Pai" -
Abbinu atta.No trito-Isaías, este grito tornou-se um
apelo supremo à misericórdia e ao perdão de Deus:
Contemplaido céu e observai
da vossa santa, magnífica morada:
Onde estão o vosso zelo e a vossa força,
a ternura de vossas entranhas
e a vossa misericórdia?
Não fiqueis insensível,
porque sois nosso Pai(abbinu atta).
Não é Abraão que sepreocupa conosco,
Israelnem sabe quem somos,
mas vós. Senhor, sois o nosso Pai,
enosso Víndice, desde todos os tempos,
é o vosso nome (Is 63.15s).
E, no entanto. Senhor, vóssois
onosso Pai,
nós somos a argila e vós o nosso oleiro;
somos todos obra de vossasmãos.
Não vos irriteis em extremo. Senhor,
e não vos lembreis eternamente da culpa
(Is 64.7s).
Deus responde a este apelo de Israelpelo perdão.
Os 11.1-11 faz disto uma descrição comovente.
18 A bba
Compara-se Deus com um pai que, ensinando a an­
dar ao seu filho Efraim, carregava-o nos braços:
E eu ensinava Efraim a andar,
tomava-o nos braços...
Como te hei de abandonar, Efraim?
Deixar-te à mercê de outros, ó Israel?
(Os 11.3,8).
Do mesmo modo o profeta Jeremias encontrou
as intensidades mais comoventes para expressar o
perdão de Deus:
Com lágrimaspartiram,
no meio de consolações os trareide volta;
levá-los-eiaos arroios de água,
por um caminho reto, que os não cansará,
pois serei um paipara Israel
e Efraim será meuprimogênito (Jr 31.9).
A misericórdia paternal de Deus ultrapassa toda
compreensão humana:
Mas é Efraim para mim um filho tão caro,
filhinho de caricias...
Com efeito, apenas falo dele,
ou mesmo quando tão só dele me lembro,
basta-me isto para que se me comovam
por ele as entranhas
sinto deveras compaixão dele (Jr 31.20).
OJüDAÍSMO P aLESTINENSE 19
A última palavra do Antigo Testamento sobre a
paternidade divina é esse "saber" da incompreen­
sível misericórdia de Deus e de seu perdão.
2. O judaísmo palestinense
Assim como o Antigo Testamento, também oju­
daísmo palestinense anterior a Jesus Cristo é sóbrio
em falar de Deus como Pai. Assim, por exemplo, em
toda a literatura de Qiimran, que deve ser anterior a
68a.C., só existe uma passagem em que se dá o nome
de pai a Deus^ O judaísmo rabínico serve-se mais li­
vremente do título, mas sem excesso. Procurando sa­
ber o que os judeus contemporâneos de Jesus enten­
diam quando davam a Deus o nome de Pai,
precisamos frisar duas notas características. Em pri­
meiro lugar, tendo a menor familiaridade com o ju­
daísmo destaépoca,nãoacharemosestranhoverener­
gicamente sublinhada a obrigação de obedecer ao Pai
celeste. Os rabinos ensinavam que Deus estende sua
paternidade unicamente àqueles que cumprem a Lei
(Tora). Ele é pai dos que fazem sua vontade, dos jus­
tos. Contudo, encontra-se ainda e sempre a certeza
formidável dos profetas: o amor paternal de Deus é
sem limites e ultrapassa toda culpabilidade humana.
Quando o rabi Jehuda (cerca de 150 a.C.) ensinava:
Se agisseis como íilhos,
serieis chamados de filhos.
QH 9.55 S
20 A bba
Se não agisseis como filhos,
não serieis chamados de filhos.
O seu colega e adversário rabi Meir lhe opunha
esta frase de audaz brevidade:
De uma maneira ou de outra - sois
chamados de filhos^.
O amor paternal de Deus é sua primeira e últi­
ma palavra, por maior que seja a culpabilidade de
seus filhos.O segundo traço que caracteriza os tes­
temunhos judaicos desta época sobre a paternida­
de de Deus é o seguinte: Deus é chamado de Pai
várias vezes de cada israelita em particular, e a ele
se dirigem nas orações litúrgicas: abbinu, malkenu
- "nosso Pai, nosso Rei". Assim é possível ler em
uma oração que pode facilmente ser situada na
mesma época de Jesus:
Nosso Pai,nosso Rei,
em vista de nossospais
que crêem em ti
e a quem ensinas as leis da vida -
tem piedade de nós e ilumina-no^.
- Talmud Babilónico, tratado Qidduschim, 36‘
^(Baraitha).
’ Oração Ahabba rabba, a segunda bênção que introduzia o
Shema recitado diariamente de manhã e de tarde. Prova­
velmente já fazia parte da liturgia do Templo {Mischna,
Tratado Tamid, 5.L). Textos: W. B. H eidenheim, Siddur Se-
phath Emeth, Rodelheim, 1886, pp. 17a.l3s.
o Judaísmo Palestinexse 21
Isto é novidade com referência ao Antigo Testa­
mento. Contudo, há um certo número de coisas que
nãodevem sernegligenciadas.Primeiramente,estetex­
to está em hebraico, língua sacra, da qual não se abdi­
cava na vida cotidiana. Considere-se também o duplo
título de "nosso Pai, nosso Rei", que sublinha tanto a
majestade de Deus enquanto Rei como sua paternida­
de,emuitomais. Para terminar,éo conjunto da comu­
nidade que se dirige a Deus como "nosso Pai".
Até hoje ninguém forneceu um único exemplo
com origem no judaísmo palestinense em que Deus
seja chamado de "meu Pai" por um indivíduo^.En-
contram-se alguns casos no judaísmo helenístico,
mas são de influência grega. Entre os escritos pa-
lestinenses, só se pode citar um texto, de dois versí­
culos, muito semelhante do c. 23 do livro de Bern
Sira (começo do séc. II a.C.), que infelizmente só há
em grego. Aí se pode ler: "Ó Senhor, Pai e dono da
minha vida..." (v. 1) e: "O Senhor, Pai e Deus da
minha vida..." (v. 4). Estes dois versículos são os
únicos que fazem exceção à regra, e nós o acataría­
mos como sendo um prelúdio ao Evangelho, se não
houvesse sido descoberta, há cerca de uns 30 anos,
uma paráfrase hebraica deste texto. Nela não se diz:
"Ó Senhor, Pai...", mas: "Ó Deus de meu pai^..." Te­
mos aí evidentemente os termos do texto hebraico
^Existem alguns casos isolados no Sedher Eliyahu Rabba,
mas é um texto medieval (séc. 10?) do sul da Itália.
" J. M a r c u s, A fifth MS of Ben Sira, in; Jewish Quarterly Re­
view 21 (1930) p. 238.
22 A b b á
original,porque a expressão "Deus de meu pai", que
provém de Ex 15.2 estava muito dispersa e acha-se
alhures no Sirácida. Pode-se, portanto, dizer que
não existe até agora nenhuma prova de que no ju­
daísmo palestinense alguém se tenha dirigido a
Deus, chamando-o de "meu Pai".
3. "Abbá" nas orações de Jesus
Ora, é exatamente o que fez Jesus. Os discípulos
devem ter achado muito extraordinário Jesus se di­
rigir a Deus dizendo "meu Pai". Não só os quatro
evangelhos atestam que Jesus se dirigia a Deus nes­
tes termos, mas todos eles relatam que o fazia em
todas as suas orações^ Há uma única oração de Je­
sus onde falta o "meu Pai", e trata-se do grito na
cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abando­
naste?" (Mc 15.34, paral. Mt 27.46), citando o SI22.1.
Ainda não dissemos tudo: o que é mais notável
é o fato de Jesus, em suas orações, se dirigir a Deus
como ao seu Pai, servindo-se da palavra aramaica
abbá^.Marcos o afirma categoricamente no seu re­
lato da oração no Getsêmani: "Abbá (Pai)! tudo te é
possível: afasta de mim este cálice; todavia, não se
façao que eu quero, mas o que tu queres" (Mc 14.36).
Que Jesus tenha utilizado esta mesma palavra abbá
também nas suas outras orações, prova-se por uma
comparação das formas diferentes que a palavra
* 21 vezes (16 vezes se os paralelos forem contados uma só vez).
^O acento está ma última sílaba.
" A bbá" nas orações de Jesus 23
"pai" toma no grego. Ao lado do vocativo correto
jtárep / páte^ ou íráxep pm) / páter m oif, encon­
tramos o nominativo ó jiatfip / hopatér rva.função
de vocativo, o que é incorreto^“.Estas passagens do
vocativo ao nominativo, que aparecem num só e
mesmo lógion (Mt 11.25,26, parai. Lc 10.21) não se
podem explicar sem se considerar o fato de que a
palavra abbá - como o veremos - servia corrente­
mente no aramaico da Palestina no primeiro sécu­
lo, não só como invocativo, mas também para di­
zer "o pai" {status emphaticus). Digamos, enfim,
que sem contar Mc 14.34 e as variantes da palavra
"pai" em grego, possuímos uma terceira peça que
prova que Jesus dizia Abbá quando orava. São as
duas passagens de Paulo, em Rm 8.15 e G14.6. Elas
nos informam que as comunidades cristãs diziam
"Appá, ó íiaxfip / Abbá, ho patér" (Abbá, Pai) e ti­
nham-no como expressão produzida pelo Espírito
Santo. Aplica-se isto tanto às comunidades pauli-
nas (Gálatas) como às não-paulinas (Romanos), e
não há dúvida de que esta invocação seja um eco
das próprias orações de Jesus.
Não se encontra nada de comparável nas orações
judaicas do primeiromilênio antes de Cristo.Não exis­
tenenhum exemplono conjuntodasoraçõesdojudaís­
mo antigo - imenso tesouro muito pouco explorado -
» Mt 11.25 parai. Lc 10.21; Lc 11.2; 22.42; 23.34,46; Jo 11.41;
12.27s; 17.1,5,11,24,25.
’ Mt 26.39,42.
Mt 14.36; Mt 11.26 parai. Lc 10.21; Rm 8.15; G1 4.6; sem o
artigo unicamente nas variantes: Jo 17.5,11,21,24,25.
24 A bba
desta invocação dirigida a Deus coma Abbá,nem nas
orações propriamente litúrgicas nem nas outras.
Existe apenas uma passagem da literatura ju­
daica tardia, onde a palavra abbá se refere a Deus.
É a narração de um acontecimento que se deu pelo
fim do séc. I a.C. Refere-se a Hanin ha-Nehba, um
homem famoso por seu sucesso em orações para
obter chuva:
"Quando o mundo precisava de chuva, nos­
sos mestres tinham o costume de lhe mandar as
crianças das escolas, que se agarravam ao seu
manto e imploravam; Abbá, abbá habh lan m i­
tra-. papai, papai, dá-nos a chuva". E ele lhe (a
Deus) dizia: "Senhor do universo, concede-nos
(a chuva) em vista destes que não são ainda ca­
pazes de distinguir entre um abbáque tem o po­
der de dar a chuva e um abbá que não tem"“.
À primeira vista, parece que temos aí uma
amostra em que Deus é chamado de Abbá.Mas de­
vemos considerar duas coisas. Em primeiro lugar,
a palavra abbáé aplicada a Deus como que a modo
de brincadeira. Hanin apela à misericórdia de
Deus, adotando o grito: "Papai, papai, dá-nos a
chuva", que as crianças repetem em coro, e cha­
ma a Deus de um "Abbá que tem o poder de dar a
chuva", como o fariam as crianças na sua lingua­
gem. Em segimdo lugar, e isto é o mais importante.
Talmud Babilónico, Tratado Ta^anith, 23b.
"A bba" nas orações de Jesus 25
Hanin não se dirige absolutamente a Deus como
Abbá; pelo contrário, invoca-o como "Senhor do
universo". Sem dúvida, a história constitui, de cer­
to modo, um prelúdio à afirmação de Jesus dizen­
do que o Pai celeste sabe do que precisam seus fi­
lhos (Mt 6.32 parai.), que ele envia a chuva sobre
os justos e os injustos (Mt 5.45), e dá coisas boas
aos filhos que lhas pedem (Mt 7.11 parai., Lc 11.13).
Mas isso não nos fornece a prova de um uso de
abbá para invocar a Deus. Deste modo não temos
nenhum testemunho do uso deste termo com tal
referência em todo o judaísmo.
Chegamos a um resultado de importância capi­
tal. De um lado, as orações judaicas não contêm um
só exemplo do emprego de abbá para dirigir-se a
Deus; por outro lado, Jesus a usava sempre quando
orava (com a exceção do grito na cruz em Mc 15.34).
Significaque temos aí,incontestavelmente,um traço
característico do modo como Jesus, e somente Je­
sus, se expressava, da sua ipsissima vox.
As razões pelas quais as orações judaicas não
se dirigiam a Deus como Abbá, se encontram ao
se considerar o fundo lingüístico da palavra. Origi­
nalmente, abbáíazm parte do balbucio infantil.O Tal­
mud diz; "Quando a criança começa a comer trigo
(isto é, quando é desmamada), aprende a dizer abbá
e iiTuná"(ou seja, papai e mamãe são as primeiras
palavras que ela diz)^^. Igualmente, Pais da Igreja,
Talmud Babilónico, Tratado Berachoth, 40a (Bar.) paral.
Tratado Sanhedrin, 70b (Bar.).
26 A bbá
como João Crisóstomo, Teodoro de Mopsuéstia e
Teodoreto de Ciro, os três nascidos em Antioquia
de pais ricos, mas, segundo todas as possibilidades,
educados por amas sírias, nos dizem, por sua pró­
pria experiência, que as criancinhas tinham o cos­
tume de chamar seu pai de Abbá. Quando comecei
este estudo, que me exigiu alguns anos de trabalho,
pensava que Jesus tinha simplesmente adotado este
balbucio infantil. Mas não demorei a constatar que
esta conclusão era muito apressada, pois ignorava
o fato de que já na época pré-cristã, esta palavra,
que se originava da linguagem dos bebês, tinha re­
cebido um sentido mais amplo no aramaico da Pa­
lestina. Para dirigir-se a seu pai, a forma abbá su­
plantou a antiga forma abbi, usada no aramaico
palestinense até pelo menos o séc. II a. C ., como
constatamos pela documentação. Além disso, abbá
tomou o sentido de "meu pai", e de "o pai", e subs­
tituiu na época até mesmo "seu pai" e "nosso pai".
De tal modo que a palavra não era apenas parte do
linguajar das crianças. Os jovens de ambos os sexos
também chamavam o próprio pai de Abbá (cf. Lc
15.21), não recorrendo à palavra "Senhor" (Kúpie
/ Kyriê) a não ser em uso cerimonioso (cf.Mt 21.29-
30). Mas, apesar destes desenvolvimentos, jamais
caiu no esquecimento o fato de que esta palavra
provinha do linguajar infantil.
Eis-nos, pois, autorizados a dizer porque abbá
não se usa nas oraçõesjudaicas para invocar a Deus:
seria desrespeitoso, e portanto impensável para
uma mentalidade judaica, chamar a Deus com um
A PATERNIDADE DE D e US NOS E v a NGELHOS 27
nome tão familiar^^. Foi algo de novo, linico e inau­
dito, ter Jesus ousado tomar essa iniciativa e falar a
Deus como uma criança fala ao seu pai, com sim­
plicidade, intimidade e sem temor. Portanto, não há
dúvida alguma de que a palavra abbá,utilizada por
Jesus para dirigir-se a Deus, revela o próprio fun­
damento de sua comunhão com ele.
4. Á paternidade de Deus nos Evangelhos
Dever-se-ia considerar esta maneira infantil de
se dirigir a Deus como a última etapa do desenvol­
vimento geral das relações do homem com Deus,
ou não haveria aí algo mais? Para obter a resposta,
ampliemos o nosso exame das fontes.
Até agora nos restringimos à invocação de Deus
como Pai nas orações de Jesus. Daremos um passo
adiante, considerando as palavras em que Jesus fala
de Deus como de um pai. Ou seja, nossa intenção
vai passar da invocação "meu Pai" à maneira pela
qual Jesus diz que Deus é "Pai".
Encontramos, nos Evangelhos, nada menos do
que sessenta vezes a palavra Paipara Deus nos lábios
de Jesus. À primeira vista, não parece haver a me­
nor dúvida de que, para Jesus, "Pai" seja a designa­
ção de Deus. Mas será assim mesmo? Ao se classifi­
car os textos de acordo com as cinco camadas da
Só existe no hassidismo (que surgiu no séc. 18) este modo
familiar de se dirigir a Deus (utilizando-se, por exemplo,
os diminutivos), como notou ao autor o Dr. Ja co b T au bes
de New York.
28 A bba
tradição que se podem discernir nos Evangelhos,
achamo-nos diante do seguinte quadro (os parale­
los sínóticos são contados uma só vez, e a invoca­
ção 'Tai" é excluída):
Marcos 3 vezes
Ditos comuns a Mateus e
a Lucas (coleção dos Lógià) 4 vezes
Ditos próprios de Lucas 4 vezes
Ditos próprios de Mateus 31 vezes
João 100 vezes
Este exame mostra que houve uma crescente ten­
dência a introduzir a designação de Deus como Pai
nas palavras de Jesus. Marcos, a coleção dos Lógia e
os elementos próprios de Lucas, todos estão de acor­
do, de modo que sepode dizer que Jesus se servia da
palavra "Pai" para designar a Deus somente em cer­
tas circunstâncias. Em Mateus, acha-se uma progres­
são sensível no uso do termo, e em João "Pai" quase
que setomou sinônimode Deus.Jesus,aparentemen­
te, servia-se do nome de "Pai" unicamente em cir­
cunstâncias particulares. Mas por quê?
Os poucos casos de uma designação de Deus
como Pai, que as camadas mais antigas da tradição
testemunham, são de dois tipos: um primeiro gru­
po, em que Jesus fala de Deus como "vosso Pai", e
um segundo grupo em que Jesus o chama de "meu
Pai". Os ensinamentos sobre "vosso Pai" apresentam
Deus como o pai que sabe do que necessitam seus
filhos (Mt 632 e paral. Lc. 12.30), que é misericordioso
APATERNIDADE DE D e US NOS E v ANGELHOS 29
(Lc 6.36) e de bondade infinita (Mt 5.45), que pode
perdoar (Mc 11.25), e cujo prazer é conceder o rei­
no ao pequeno rebanho (Lc 12.32). Nas camadas
mais antigas da tradição, as afirmações sobre "vos­
so Pai" parecem terem sido todas dirigidas aos dis­
cípulos. É uma das características da ôiôaxfi / di-
daché (instrução) reservada aos discípulos, do
ensinamento ao discipulado de Jesus. Àqueles que
estavam fora do círculo, parece que Jesus não falou
de Deus como Pai a não ser por meio de parábolas e
figuras.
Entre estes ditos, o mais importante é Mt 11.27
e o paral. Lc 10.22:
Tudo me foientreguepormeu Paf
eninguém conhece o Filhosenão o Pai,
e ninguém conhece o Paisenão o Filho
e aquele a quem o Filho o quiserrevelar.
Em sua História deJesud^,Karl von Base, que há
cem anos era professor de História da Igreja em lena,
foi o primeiro a comparar este trecho sinótico com as
características textuais joaiünas. Neste destacavam-
se saltavam à vista como joânicas: primeiramente, a
frase sobre o conhecimento mútuo que era considera­
da como um termo técnico tirado do misticismohele-
nístico; a seguir, a designação de Jesus como "o Fi­
lho" que caracteriza a cristologia joânica. Por muito
tempo se teve como certo que Mt 11.27 era produto
Die GeschichteJesu, Leipzig, 1876, 2"‘ed., p. 422.
30 A bba
do cristianismo helenístico. Todavia, recentemente a
tendência começou a mudar. Reconheceu-se cada vez
mais que, como o expressou T. W. M anson, "a passa­
gem está cheia de semitismos e certamente de origem
palestinense", ou, como o disse W. L. Knox, é "pura­
mente semítico"^^ De fato, a linguagem, o estilo e a
estrutura possibilitam situar este trecho num meio de
língua semita“.Épossível responder, num plano pu­
ramente lingüístico, às duas objeções que acabam de
ser mencionadas. Já em 1898, G. Dalman^^ chamou a
atenção para o fato de que o hebraico e o aramaico
não têm pronomes que expressem a reciprocidade
("um e outro", "cada um"). Servem-se, no seu lugar,
de uma circunlocução para falar de ação recíproca.
Além disto, é preciso lembrar-se de que em aramaico,
e em particular com referência às figuras e às compa­
rações, o artigo indefinido é muitas vezes usado num
sentido genérico. Levando-se em conta estes fatos, é
T . W. M a n so n , The Sayings ofJesus, Londres, 1937-1950,
79; W. L. K n o x , SomeHellenisticElementsinprimitive Chris­
tianity (Schweich Lectures 1942), Londres, 1944, p. 7.
W. D. D a v ie s chega à mesma conclusão, quando compara
o papel do "conhecimento" em Mt 11.27 e nos manuscri­
tos; ele mostra que nos dois casos encontra-se a mesma
mistura de intuição escatológica e de conhecimento de
Deus ( "Knowledge in the Dead Sea Scrolls and Matthew
11.25-30", in: Harvard Theological Review 46 (1953)
pp. 113-139, reeditado em W. D . D a v ie s, Christian Origins
andJudaism, Filadélfia e Londres, 1962, pp. 119-144).
G . D a l m a n , Die WorteJesu I, Leipzig, 1898 T ecf. - 1930,
pp. 231s (tr. inglesa: The Words ofJesus I, Edimburgo,
1902, pp. 282s).
A PATERNIDADE DE D e u S NOS E v ANGELHOS 31
preciso traduzir Mt 11.27 do seguinte modo: "Como
só um pai conhece o seu filho, assim só um füho co­
nhece seu pai". Isto significa que o textonão fala mais
de uma união mística {imiomysticà) fundada em um
conhecimento recíproco, e não emprega o título cris-
tológico"oFilho".AspalavrasdeJesusexpressamsim­
plesmente uma experiência cotidiana: só um pai eum
füho é que se conhecem mutuamente. Se isto está cer­
to, então Mt 11.27não éum versículojoânicono meio
de elementos sinóticos, mas antes um dos temas que a
teologia joânica haveria de desenvolver. Se não hou­
vesse pontos de partida desta natureza dentro da tra­
dição sinótica, a origem da teologia joânica permane­
ceria um eterno enigma. A palavra relatada por Mt
11.27 constitui uma perícope de quatro linhas. O pri­
meiro versículo indica o tema: "Tudo me foientregue
por meu Pai". Isto é: Meu Pai me concedeu um total
conhecimento de si mesmo. Os três versículos restan­
tes elucidam este tema por meio da comparação "pai-
fUho". Livremente parafraseados, eles dizem: "E por­
que um pai e um filho se conhecem verdadeiramente
um ao outro,um fühopode revelara outros ospensa­
mentos mais secretos do seu pai". Contudo, é preciso
saber que a relação "pai-filho" é familiar na apoca­
lípticapalestinensepara üustrara transmissãode uma
revelação. "Como um pai eu lhe revelei todos os se­
gredos", diz Deus no (Terceiro) Livro de Enoque^®. E
em outra passagem, um rabi relata: o mensageiro ce­
leste me mostrou as coisas que estavam tecidas na
3 Enoque 48 (C.) 7.
32 Abba
cortina celeste... "indicando mas com o dedo, como
um pai que ensina ao seu filho as letras da Torá"''^.
Portanto, se Jesus interpreta o tema "Tudo me foi en­
tregue por meu Pai" com o auxílio desta relação pai-
filho, o que ele quer dar a entender sob o véu de uma
figura cotidiana é o seguinte: como um pai que se de­
dica pessoalmente a mostrar ao seu filho as letras da
Torá,assim Deusme transmitiu arevelação de simes­
mo, e,conseqüentemente, só eu posso ensinar aos ou­
tros o verdadeiro conhecimento de Deus.
Este lógion,pelo qual Jesus dá testemunho de si
mesmo e de sua missão, não está isolado nos Evan­
gelhos^®. Citamos aqui apenas uma variante de
Mt 11.27 que remonta a uma antiga tradição ara-
maica-^ e esteve espalhada no séc. II entre a seita
gnóstica dos marcosianos. Segundo este texto, Je­
sus exclamou:
Sim,meu Pai,pois talfoitua vontade ameu res­
peito.
Esta variante da exclamação em Mt 11.26 po­
deria muito bem ser secundária. Contudo, ela faz
vibrar a nota original da alegria de Jesus pela reve­
lação que lhe foi concedida, alegria que impregna
igualmente nosso texto:
3 Enoque 45.1s.
Cf. p. ex. Mc 4.11; Mt 11.23; Lc 10.23s.
Ir in e u , Adv. Haer. I, 13.2; W. G r u n d m a n n , Die Geschichte
Jesu Christi, 1956, p. 80.
A PATERNIDADE DE D e L'S NOS E v ANGELHOS 33
"Sim, Abbá, porque assim foi do teu agrado".
Assim, quando Jesus falava de Deus como de
"meu Pai", ele' aludia não a uma familiaridade e a
uma intimidade com Deus que fosse acessívela todo
mundo, mas a uma revelação única que lhe fora
concedida. Ele fundamenta sua autoridade sobre o
fato de Deus o ter misericordiosamente dotado da
plenitude da revelação, revelando-se a si como só
um pai pode se revelar ao filho. Abbá é então uma
palavra que sugere a revelação. Ela representa o
cerne da consciência que Jesus tmha de sua missão.
Procurando-se as prefigurações desta relação
única para com Deus como Pai, deve-se remontar à
profecia de Natã a respeito de Davi: "Eu serei para
ele um pai e ele será para mim um filho" (2Sm 7.14,
e o parai. 1Cr 17.13), e às palavras referentes ao rei
nos Salmos 2.7; 89.27s.
Ele me invocará: Vóssois meupai
meu Deus e a rocha de minha salvação!
E eu o constituireio meuprimogênito^
excelso entre os reis da terra.
Das Pseudo-epígrafes, podemos citar a promes­
sa feita ao Messias sacerdotal, de que Deus lhe fala­
rá "com uma voz paternal" (Testamento de Levi
18.6), e a afirmação referente ao Messias de Judá,
que assegurava que "as bênçãos do Pai santo" se­
rão derramadas sobre ele (Testamento de Judá
24.2). Isto significa que o "meu Pai" de Jesus só foi
34 Abba
preparado no contexto das esperanças messiânicas.
Mt 11.27 implica, portanto, que as promessas fo­
ram cumpridas em Jesus.
5. A oração do Senhor
Somente se a virmos contra este pano de fundo
é que podemos compreender, no seu sentido mais
profundo, a oração do Senhor“^.
Ela chegou até nós sob duas formas: a) a mais
breve em Lc 11.2-4, e b) a mais longa em Mt 6.9-13.
Enquanto que ninguém teria ousado encurtar este
texto capital, é fácil de se imaginar um alargamen­
to do texto em relação com o seu emprego litúrgico.
A versão mais breve, a de Lucas, deve ser a mais
antiga. Aqui a oração se endereça simplesmente ao
Páter, o equivalente de Abbá:
Para compreender o que este apelativo signifi­
cava para os discípulos, é preciso referir-se às cir­
cunstâncias em que Jesus ensinou aos seus discípu­
los o Pai-nosso. Segundo Lc 11.1, eles tinham pedido
a Jesus: "Senhor, ensina-nos a orar". E preciso dizer
que este pedido impHcava, da parte dos discípulos, o
desejo de ter uma oração própria, só deles, como os
discípulos do Batista ou os fariseus e os essênios ti­
nham suas orações próprias, penhor de sua comu­
nhão. "Senhor, ensina-nos a orar" significa portanto:
Cf. para mais detalhes o meu estudo: The Lord's Prayerin
Modern Research, in Expository Times 71 (1959-1960)
pp. 141-146; texto revisto: The Lord's Prayer (Facet Books,
Biblical Series 8), Filadélfia, 1964.
AORAÇÀo DO S e n h o r 35
"Senhor, dá-nos uma oração que seja o sinal e o dis­
tintivo de teus discípulos".
Jesus atendeu a este pedido, e, fazendo-o, auto­
rizou primeiramente e antes de tudo os seus discí­
pulos a fazerem como ele e a dizerem Abbá. Deu-
lhes esta expressão como prova de sua qualidade
de discípulos. Pela autorização que lhes concedia
de invocarem também eles a Deus como Abbá,per­
mitia-lhes que participassem de sua própria comu­
nhão com Deus. Ele chega até mesmo a dizer que
somente aquele que puder repetir este Abbá entra­
rá no reino de Deus^^ Esta invocação Abbá,pronun­
ciada pelos discípulos, é uma participação na reve­
lação, é a escatologia realizada. E a presença do
reino já aqui, atualmente. É cumprimento, conce­
dido por antecipação, da promessa:
Eu sereio seupai
e elesserão meusfílhos.
Todos eles serão chamadosfilhos
do Deus vivo (Jubileus 1.24s).
É assim que Paulo compreendia esta invoca­
ção quando dizia, por duas vezes, que a repetição
da palavra Abbá era a prova de que um cristão
entrava na posse da filiação e do Espírito (Rm 8.15;
G14.6). As antigas liturgias cristãs evidenciam bem
a consciência da importância deste dom quando
^ J. Jeremias, The Parables ofJesus, ed. revista Londres e
Nova Iorque, 1963, pp. 190s (trad, bras: As parábolas de
Jesus, Ed. Paulus, São Paulo, 1976).
36 A bbA
fazem preceder à oração do Senhor as palavras:
"ousamos dizer: Pai nosso".
6. Conclusão
Tudo isto nos leva a uma conclusão de impor­
tância capital.
Sustentou-se muitas vezes que não sabemos
quase nada do Jesus histórico. Que não o corhece-
mos senão pelos Evangelhos, que não são relatos his­
tóricos, mas antes profissões de fé. Que não conhe­
cemos senão oCristo do querigma,em queJesus está
envolvido pela veste do mito; basta pensar-se nos
numerosos milagres que lhe são atribuídos. O que
descobrimos, ao aplicar a crítica histórica à análise
das fontes, é um profeta poderoso, mas um profeta
que não ultrapassou absolutamente os limites do ju­
daísmo. Este profeta pode apresentar interesse para
a história, mas não tem e não pode ter significação
ara a fé cristã. O que importa é o Cristo do querig­
ma. O cristanismo começa na páscoa.
Mas, se é verdade - e o testemunho das fontes
não deixa nenhuma dúvida acerca disto - que Abbá
como invocação de Deus é uma ipsissima vox, uma
expressão autêntica e original de Jesus, e que este
Abbá explica a reivindicação de uma revelação e
autoridade línicas - se tudo isso é verdade, então a
posição acerca do Jesus histórico, que acabamos de
lembrar, é insustentável. Porque, com Abbá, situa­
mo-nos além do querigma. Achamo-nos diante de
algo novo e inaudito, que ultrapassa os limites do
C onclusão
37
judaísmo. Aí descobrimos quem era o Jesus históri­
co: o homem que tinha o poder de se dirigir a Deus
como Abbá, e que fez publicanos e pecadores en­
trarem no reino, simplesmente os autorizando a re­
petir esta palavra "Abbá, Pai querido".
Capítulo II
A MORTE DE JESUS
COMO SACRIFÍCIO
1. A paixão na Epístola aos Hebreus e na
primeira Epístola de Pedro
No âmbito do Novo Testamento é a Epístola aos
Hebreus que mais detalhadamente expõe o signifi­
cado da cruz. Esta exortação dirigida a cristãos pro­
venientes do paganismo (Hb 13.22) caracteriza-se
pelo vigor e clareza de pensamento teológico. Faz
uma distinção entre catequese elementar (5.12) e
conhecimento mais aprofundado (6.1), isto é, entre
um ensinamento aos recém-chegados ao cristianis­
mo e um reservado aos iniciados. Esta distinção de
modo algum é "gnóstica". Ela provém da tradição
cristã: encontra-se em Paulo (1 Co 2.6ss) e, já antes
dele, no próprio Jesus, cuja pregação apresenta um
ensinamento público como distinto de um ensina­
mento reservado de modo especial aos discípulos.
40 A MORTE DEJesus como SACRrricio
De acordo com a Epístola aos Hebreus, a cate­
quese elementar referente a Cristo (6.1) abarcava o
convite à conversão e à fé (é o próprio conteúdo a
pregação missionária, cf 1 Ts 1.9s e At 20.21), bem
como uma catequese sobre o batismo e as últimas
coisas (é o conteúdo das catequeses catecumenais:
Hb 6.2). A teologia reservada aos iniciados compre­
endia sobretudo, além da catequese eucarística^, o
que se refere à oferta que Cristo, o sumo-sacerdote
celeste, faz de si próprio. É este o ponto desenvolvi­
do pela passagem central da Epístola (Hb 7.1-10.8).
Mostram-nos estes quatro capítulos que, na nova
ordem das coisas tal qual Deus a quis. Cristo é o
sumo-sacerdote que ofereceu o seu próprio sangue
no santuário celeste, sendo assim, ao mesmo tem­
po, sacerdote e vítima.
A fim de explicitar o sentido da morte de Jesus, a
Epístola aos Hebreus utiliza as figuras e representa­
ções fornecidas pelo ritual do Grande Perdão, minu-
ciosamente descrito em Lv 16.0 Dia do Grande Per­
dãoeraparaosjudeusogrande diadoarrependimento
e expiação, o único dia do ano em que pés humanos
pisavam o chão do Santo dos Santos. Tremendo -
porque a menor falha no ritual acarretaria morte
certa -, o sumo-sacerdote, na obscuridade por detrás
do cortinado, fazia por duas vezes a aspersão expia­
tória com o sangue: por si mesmo e por sua família
primeiramente, e depois por Israel. A Epístola aos
* Não se fala da ceia na enumeração dos temas de catequese
(Hb 6.2), não se fazendo menção dela a não ser em 13.10.
A PAIXÃONA Epístola aos H ebreus e na Primeira Episrola de Pedro 41
Hebreus vai aplicar tipologicamente este rito a Cris­
to de duas maneiras diversas. O Autor refere-se pri­
meiramenteao ritomaisantigo ecomparaCristocom
a vítima sem mancha. Mas, diversamente das víti­
masdaAntigaAliança,amortedeJesus,porseu valor
vicário, obteve de uma vez por todas o perdão total
ereestabeleceu aplena comunhão de vida com Deus.
A esta interpretação o autor acrescenta uma outra,
lançando mão do versículo 4 do salmo 110: Cristo é
ao mesmo tempo o sumo-sacerdote eterno e isento
de pecado. E ele que, após realizar uma vez por to­
das a expiação, se mantém continuamente diante de
Deus a fim de interceder em favor dos seus, pelos
quais está cheio de compaixão e misericórdia (7.25;
9.24; cf. 2.18; 4,14-16).
Esta cristologia reservada aos "iniciados" é um
ensaio muito penetrante que visa fazer a comunida­
de aproximar-se, de um modo novo, do mistério da
cruz, com a ajuda da interpretação tipológica de Lv
16.Concretamente, esta tipologia tem a intenção de
mostrar que a sexta-feira santa é o dia do Grande
Perdão na Nova Aliança, e todas as festas do Gran­
de Perdão, celebradas cada ano, não passavam de
tipo e figura. Isto acarreta duas conseqüências: pri­
meiramente, este caráter vicário que representa a
morte do Inocente no Gólgota faz cessar uma vez por
todas (7.27; 9.12; 10.10) o apelo ao perdão divino; e,
por outro lado, o fruto desta expiação etemamente
válida continua a ser ofertado, porque opróprio Cris­
to, que foi tentado, intercede pela comimidade dos
seus, por sua vez também tentada.
42 A MORTE DE Jesus como sacrifício
Nesta explicação da morte de Jesus, as figuras
tipológicas usadas têm pouca importância. De fato,
tudo depende daquilo que, sob a luz e a ajuda da
tipologia, no fundo se quer expressar. E aí se trata o
duplo "por nós": "ele morreu por nós" e "entrou
por nós no santuário celeste".
E o que emerge claramente, quando nos volta­
mos para aprimeira Epístola de Pedro. Esta, como
a Epístola aos Hebreus, retoma a antiga compara­
ção com a vítima sacrificada: é Cristo o verdadeiro
cordeiro sem defeito e sem mancha (1.8s), morto a
fim de expiar de uma vez por todas os pecados
(3.18). Por outro lado - e este é o segimdo ponto de
vista - a primeira Epístola de Pedro alude ao capí­
tulo 53 de Isaías: o hino a Cristo, que se acha na
Epístola (2.22-25) celebra-o como o Servo de Deus,
como aquele que, no madeiro, levou os nossospe­
cados em seu próprio corpo, a fim de que, mortos
para os nossos pecados, vivêssemos para a justiça;
aquele por cujas feridas fomos curados (2.24). Ei-
nalmente, em terceiro lugar, sempre para explici­
tar este sentido da morte de Jesus, a Epístola reto­
ma de modo expressivo o tema teológico da descida
e da pregação aos infernos (3.19s e 4.6).
Para compreender esta passagem, é de extrema
importância saber que dela temos uma prefigura­
ção, ainda que em sentido oposto, na versão etíope
do Livro de Enoque, apócrifo que recebeu sua for­
ma atual depois da invação dos partos em 37 a.C.
Nos capítulos 12-16 deste livro, narra-se como Eno­
que é encarregado de ir ter com os anjos decaídos
A PAIXÃON
AEpístola aos H ebreus e na Primeira Epísrola de Pedro
43
(cf. Gn 6) para lhes informar "que eles não recebe­
rão nem paz nem perdão" e que Deus rejeitará todo
pedido de paz e misericórdia. Tomados de pavor e
tremendo, pedem a Enoque que componha uma sú­
plica em que implorem perdão e indulgência. Eno­
que é então arrebatado até ao trono em que Deus
está sentado, em meio a um fogo cintilante, e aí re­
colhe o oráculo a se comunicar aos anjos decaídos
como resposta à sua súplica. A sentença se formula
breve e terrível: "Não tereis a paz!" Dificilmente se
poderá duvidar que o tema teológico da descida aos
infernos tenha sua prefiguração neste mito de Eno­
que. Uma vez mais, um enviado de Deus apresenta-
se com uma mensagem divina para os espíritos de­
sobedientes que habitam as trevas profundas da
prisão subterrânea. Mas, ao passo que Enoque teve
de declarar em sua mensagem a impossibilidade do
perdão, o anúncio que Cristo faz é diametralmente
oposto: refere-se à Boa-nova (4.6). Mesmo para os
que estavam perdidos sem esperança, a morte ex­
piatória do Justo adquire o perdão.
As duas Epístolas, adirigida aosHebreus eapri­
meira de Pedro, têm a intenção de ilustrar o que se
passou na sexta-feira santa, mas empregam para
tanto imagens basicamente diversas. A Epístola aos
Hebreus fala da subida de Jesus aos céus "por um
espírito eterno" (9.14), a fim de apresentar, ele pró­
prio, o seu sangue no santuário celeste. A primeira
Epístola de Pedro fala da descida àsprofundezas dos
infernos a fim de anunciar a Boa-nova aos espíri­
tos prisioneiros. "Subida aos céus" e "descida aos
44 A MORTE DEJesus como sacrifício
infernos", ambas servem à explicação do aconteci­
mento da sexta-feira santa.
Digamos em duas palavras o porquê desta apro­
ximação. Com efeito, é preciso saber que, no decur­
so do séc. I d.C., as representações do judaísmo an­
tigo acerca da sorte das almas depois falecimento
sofreram total transformação. Segundo a concep­
ção antiga, ainda considerada autoritativa, os in­
fernos {ohades) eram o lugar das almas dos defun­
tos. Mas, ao lado desta maneira de ver, impunha-se
pouco a pouco, sob o impacto do pensamento hele-
nístico, uma nova representação, segundo a qual as
almas dos justos ficavam no mimdo celeste, no pa­
raíso. É esta transformação que explica porque, no
Novo Testamento, não é uniforme o que se diz da
sorte de Jesus entre a sexta-feira santa e a Páscoa:
em Rm 10.7, Paulo fala de "abismo", ao passo que
Lc 23.24 fala do paraíso. Assim se justapõem os te­
mas da descida aos infernos e da subida aos céus,
ao se evocar o destino de Cristo após a morte. Pau­
lo, aprimeira Epístola de Pedro eo Apocalipse apóiam
a primeira concepção. E Lucas, a Epístola aos He­
breus e o Evangelho de João, a segunda. É, portan­
to, o tema da subida aos céus que utiliza a Epístola
aos Hebreus, ao apresentar-nos o sumo-sacerdote
oferecendo seu próprio sangue no santuário Celes­
te. E é o tema da descida aos infernos que emprega
a primeira Epístola de Pedro a fim nos descrever o
enviado de Deus, perante o qual se abrem as portas
do mundo subterrâneo, ao vir ele trazer a Boa-nova
aos réprobos.
A póstolo Pallo 45
Portanto, as imagens e temas usados são diver­
sos, o que para nós é salutar advertência a não os
sobrestimarmos. Mas o que se quer em definitivo
exprimir é idêntico nos dois casos, e este é o ponto
decisivo. Porque as duas Epístolas, uma sob ima­
gem tomada do culto, e a outra sob imagem busca­
da no mito, têm a intenção de expressar a mesma
verdade: a virtude expiatória da morte de Cristo tem
valor para a eternidade e desconhece limites.
2. Apóstolo Paulo
Pode-se detectar, tanto na Epístola aos Hebreus
como na primeira Epístola de Pedro, quanto, sob
muitos pontos de vista, sua teologia é devedora à
de Paulo. Pois, se, remontando à tradição, nos vol­
tarmos às passagens das epístolaspaulinas que in­
terpretam o sentido da morte de Cristo, uma nova
imagem se nos oferece. Não que Paulo nos propor­
cionasse algo de objetivamente diverso do que nos
apresentam os escritos pós-paulinos. Pelo contrá­
rio! Pois é uma das características do nosso tema
estapermanência do mesmo conteúdo objetivo atra­
vés das diversas exposições sobre este assunto em
todo o Novo Testamento. A diferença é de outra
natureza.
A Epístola aos Hebreus, como vimos, esforça-
se, na forma duma reflexão teológica, por apresen­
tar e desenvolver o mistério da cruz em desdobra­
mentos tipológicos profundamente refletidos e
cuidadosamente pesados. Em Paulo, pelo contrário.
46 A MORTE DE J e s u s c o m o s a c r if íc io
sentimos ainda a atmosfera candente das lutas que
teve de travar a fim de fazer inteligível o conteú­
do central da sua mensagem, duramente combati­
do. Gostaria de torná-lo acessível através de duas
observações.
Primeiramente, é notável que no Novo Testa­
mento as palavras "cruz" e "crucificar" se achem
quase somente em Paulo, se prescindirmos dos
evangelhos; encontram-se nele dez vezes o subs­
tantivo (alhures apenas em Hb 12.2) e oito vezes o
verbo (que não se encontra alhures a não ser em
At 2.36 e 4.10; Ap 11.8)^. Quando nas epístolas não
paulinas, nos Atos dos Apóstolos e no Apocalipse
se fala da morte de Jesus, são outras as expressões
que se utilizam: fala-se aí de seus sofrimentos, de
sua morte, de seu sangue, e da oferta do seu corpo,
ou seja, de sua execução, mas se evitam as duas
palavras "cruz" e "crucificar". Assinalemos, além
disto, o emprego, por cinco vezes, do termo "ma­
deiro" para designar a cruz^ Não pode ser efeito
do acaso. Mas então como explicar este fato estra­
nho? Uma expressão de 1 Co 1.18 pode nos escla­
recer . Encontra-se aí - e é o único caso em todo o
Novo Testamento - a expressão: "a mensagem {ló-
gos), a da cruz". A repetição do demonstrativo, que
não é usual na língua do Novo Testamento, distingue
- Fora dos evangelhos, a expressão "ser crucificado com (o
Cristo)" só se acha em Paulo (Rm 6.6; G1 2.19); em todo o
Novo Testamento, só se encontra "crucificar de novo" em
FIb 6.6.
3At 5.30; 10.39; G1 3.13; 1 Pd 2.24.
A i« tolo Pal lo 47
a “mensagem" cristã de outras mensagens. K. H.
R engstorf^ demonstrou de modo muito claro que
“linguagem" tem aí, como em 1Co 15.2, o sentido
de “relato cultual". A pregação cristã é, portanto,
apresentada em 1 Co 1.18 como o "relato cultual
sobre a cruz", onde "cruz" se coloca no lugar de
“suspenso à cruz". Representemo-nos o que há de
ofensivo nesta formulação: “o relato cultual sobre
o suspenso", para expressar o caráter incôngruo,
até mesmo chocante, da mensagem cristã; obser­
vemos que, além disto, aí nem se fala da ressurrei­
ção. Parece que não seria errado concluir que esta
expressão tem sua origem entre os adversários da
comunidade cristã, e expressa do modo mais ade­
quado suas chacotas e seu sarcasmo. De mais a
mais, para confirmar esta hipótese, basta ler a se-
qüência da frase, que diz brutalmente: este “rela­
to cultual sobre o suspenso" é loucura para os que
se perdem. E alguns versículos adiante, Paulo
acrescenta: para os judeus, a mensagem de um sal­
vador suspenso à cruz é um escândalo, um discur­
so blasfematório, e, para os pagãos, é simplesmen­
te uma loucura. Tudo isto reflete o eco normal da
mensagem cristã e Paulo o sentiu centenas de ve­
zes. Com certeza, estes sarcasmos continuaram
sendo parte do arsenal dos adversários do cristia­
nismo; mas nos primeiros tempos, em que estas
zombarias eram ainda novas, teriam ferido forte­
mente os pregadores do Evangelho.
^K. H. R en g sto r f, Die Auferstehung Jesu, Witten, 1960, 4®
ed., p. 19.
48 A MORTE DEJiSLSCOMO SACRIHCIO
Havia duas maneiras de prevenir este sarcas­
mo: uma delas consistia em tentar amenizar ou até
mesmo eliminar esteaspecto chocante da mensagem.
É a via por que entrou a Gnose, e sobretudo o "do-
cetismo", que a primeira Epístola de João mostra
que já ia se implantando desde o primeiro século
depois de Cristo, e que ensinava que somente o ho­
mem Jesus fora suspenso na cruz, enquanto que o
Cristo havia se separado dele antes da paixão. E sig­
nificativo que Paulo nem sequer tentou tomar de
empréstimo tal insensatez. Pelo contrário, envere­
dou-se por outra via: anunciar a mensagem irascí­
vel em toda asua dureza, sem condescendência nem
concessão, mas refletindo ao mesmo tempo sobre
recursos que poderiam ajudar seus ouvintes a abrir
a inteligência. Tal é o seu pensamento, quando fri­
sa que o Cristo crucificado foi o único conteúdo de
sua pregação missionária na Calácia (Cl 3.1) e em
Corinto (1 Co 1.23; 2.3) e sua única glória (Cl 6.14).
Uma segunda passagem nos faz ver ainda mais
diretamente como a explicitação do sentido da cruz,
que depois fixou-se na Igreja de modo sólido e se­
guro, deve ter se estabelecido a duras penas nos pri­
meiros tempos. Pensona sentença de Cl3.13: "Cristo
se tomou maldição por nós". Façamos de imediato
duas observações acerca do estilo: a primeira para
frisar que o passivo "tornou-se" é um modo de
transcrever o nome divino, como o confirma 2 Co
5.21 ("Deus o fez pecado por nós"); por outro lado,
considerando-se o modo semita de se expressar, a pa­
lavra "maldição" é usada por "maldito". Por isso.
A póstolo Palix) 49
precisamos traduzir G1 3.13 assim: "Deus fez Cristo
maldito por nós". Paulo está se referindo aí à passa­
gem de Dt21.23: "Todo osuspenso no madeiro éum
homem maldito por Deus". A frase da Epístola aos
Gálatas nos é tão familiar que nem sentimos mais o
que ela tem de assombroso. Talvez opossamos pres­
sentir, se acrescentarmos que não existe nenhum
autor do Novo Testamento que tenha ousado dizer
algo que se aproximasse disso. Paul P e i n e ® foi pri­
meiro a ver - e um trabalho muito recente o reto­
mou expressamente^ - que só pode haver uma ex­
plicação para a audácia desta frase: ela nasceu no
período anterior ao episódio de Damasco. Era o tem­
po em que SauloperseguiaJesus de Nazaréna pessoa
dos seus adeptos, porque ele o considerava como ex­
pressamente maldito por Deus: então ele o blasfema­
va (1Tm 1.13) e tentava por meios violentos forçar os
discípulos a também blasfemá-lo (At 26.11), isto é, a
exclamar: "Jesus é um maldito!" (1 Co 12.3). E é, en­
tão, que no caminho de Damasco, o maldito lhe apa­
rececingido daprópria glória de Deus.A frase: "Deus
o amaldiçoou" permanecerá, mas completada dora­
vante por estas duas palavras: "por nós, por mim"
(G12.20). E desde então Paulo, por toda a sua vida, é
prisioneiro do Crucificado, como Inácio de Antioquia
dirá de simesmo que éuma "vítimahumÜde da cruz"
(Epístola aos Efésios 18.1).
P. Feine, Das gesetzesfreie Evangelium des Paulus, Leip­
zig, 1899, p. 18.
^G. Jeremias, DerLehrer der Gerechtigkeit, Goettingen, 1963,
pp. 134ss.
50 A MORTE DE Jesus como sacrifício
Não é, pois, exagero dizer que toda a cristologia
de Paulo está decididamente centrada neste esfor­
ço para tornar compreensível para os seus leitores
e ouvintes este "por nós", esta suplência de Cristo
em nosso favor; e, para consegui-lo, ele lança mão
de imagens sempre novas, emprestadas de quatro
domínios diversos.
1. A tradição lhe fornecia toda uma série de idéias
e expressões tiradas do domínio cultuai. No capítulo
5 da primeira Epístola aos Coríntios, Paulo exige des­
ta comunidade que faça valer a disciplina da Igreja
com referência a um dos seus membros, culpado de
um grave escândalo. Emprega, com este propósito, a
imagem do fermento que azeda toda a massa. Porque
as festas pascais estão próximas. E isto o incita, para
comentar o incidente, a tomar uma antiga meditação
cristã sobre a Páscoa (seu estilo e vocabulário eviden­
ciam que de fato é anterior a Paulo). Este comentário
situava-se na celebração da Páscoa, no momento em
que o pai de família interpretava os ritos e as etapas
da refeição visando instruir todos os participantes,
sobretudo as crianças. E uma destas passagens que
Paulo cita: "... sois sem fermento. Pois nossa Páscoa,
Cristo, foi imolada. Celebremos, portanto, a festa,não
com velho fermento, nem com o fermento de malícia
eperversidade, mas com pães ázimos: na pureza e na
verdade" (1 Co 5.7s). Ser cristão, diz Paulo, é viver a
Páscoa, é estar na luz pascal, é vida nova: a verdadei­
ra Páscoa chegou, quando o nosso cordeiro pascal foi
sacrificado no Gólgota. Assim - como o farão Pedro
na sua primeira Epístola e João no seu Evangelho -
A póstolo Paulo 51
Paulo compara Cristo com o cordeiro sem mancha,
em razão do qual Deus poupou no Egito as casas dos
israelitas. Também em Rm 3.25 ele o compara com o
sacrifício expiatório do dia do Grande Perdão, e, em
Rm 8.3,com o sacrifíciopelo pecado, e em Ef5.2,com
o "sacrifício de aroma suave". É com esta mesma or­
dem de idéias que estão vinculadas todas as passa­
gens que tratam do sangue de Jesus (Rm 3.25; 5.9; Cl
1.20; Ef 1.7; 2.13). Ora, a crucifixão não era uma exe­
cução sangrenta, e é por isso que, quando Paulo fala
do sangue de Jesus, ele não pensa primeiramente na
realização histórica do suplício, mas no seu aspecto
sacrifical.
Todos estes desenvolvimentos, que utilizam
uma terminologia relativa a sacrifício, têm, pois, a
intenção de expressar duas coisas: a) Jesus morreu
apesar de não ter pecado (2 Co 5.21); b) sua morte
teve valor vicário pelos nossos pecados; nela se re­
sumem todas as cerimônias sacrificiais da Antiga
Aliança, porque ele é a única vítima oferecida pe­
los pecados da humanidade.
2. Para ilustrar a suplência de Cristo, Paulo utili­
za também temas adquiridos do direitopenal. Estas
passagens referem-se ao capítulo 53 de Isaías, que
nos descreve oServo de Deus sofrendo esuportando
a pena pelos nossos pecados. "Ele foi entregue por
causa dos nossos pecados", diz Paulo em Rm 4.25,
aludindo a Is 53.12. "Deus o entregou por nós", diz
em Rm 8.32 (Is 53.6). "Ele se entregou por nossos pe­
cados", afirma em G11.14 (Is 53.10). Deus exerceu na
carne do seu FUhoesta pena de morte que deveríamos
52 A MORTE DEJesus como sacrifício
nós sofrer (Rm 8.3). Ele fez que Jesus carregasse a
maldição que repousava sobre nós (G1 3.13).
Em G12.14, Paulo insiste com veemência em ex­
plicar esta idéia de que Cristo suportou, em nosso
lugar,ojulgamento que nos estavareservado no fim
dos tempos: "Ele destruiu a cédula de nossas dívi­
das, cédula que nos afligia e que enumerava nossas
violações da Lei; ele a eliminou, pregando-a na
cruz". Na cruz, pendurava-se acima do crucifica­
do o "titulus", um cartaz que o condenado à morte
trazia ao pescoço ao percorrer a via do suplício e
no qual estavam escritos os crimes que motivaram
sua condenação. Houve um "titulus" afixado aci­
ma da cabeça de Jesus. Então - assim diz Paulo -
você não está vendo a mão que retira o "titulus" e o
substitui por um outro escrito de letras apertadas?
Fiquebem de perto,sevocê quiserdecifrarestenovo
"titulus": ele contém as suas e as minhas faltas!
3. Ao lado dessas imagens e expressões tiradas do
domínio cultuai ou do direito penal, Paulo emprega
também uma outra referente à condição de escravo.
"Comprar" (1 Co 6.20; 7.23), "resgatar" (G13.13; 4.5),
"por um preço" (1 Co 620; 7.23) são termos caracte­
rísticos nesta linha. A imagem é buscada na própria
vida que Paulo tem sob os olhos. Não se trata aí dum
"resgate sagrado", como pensou Deissmann (vendia-
se aparentemente um escravo à divindade, mas era
elepróprio quem de fato apartava o dinheiro do seu
resgate), mas trata-se de um procedimento incom­
paravelmente mais impressionante: tratava-se de
assumir a escravidão no lugar de outrem, a fim de
A póstolo Palxo
53
libertá-lo. Paulo está pensando é num sacrifício vo­
luntário desta natureza, que dificilmente pode ser
maior - renunciar à própria liberdade em proveito de
outrem quando em 1Co 13.3("seentregarmeu cor­
po às chamas") ele o apresenta como o exemplo do
mais alto devotamento. "Ainda que eu distribmsse
todos os meus bens aos famintos, ainda que volun­
tariamente me deixasse imprimir a ferro quente a
marca de escravo (para libertar um irmão), se não
tivesse amor, isso de nada me adiantaria". E sabe­
mos, pela primeira Epístola de Clemente aos corínti-
os, que houve reahnente sacrifícios deste gênero nas
primeiras comunidades cristãs (55.2).
Eis, diz Paulo, o que Cristo fez por nós. Estáva­
mos na escravidão do pecado (Rm 3.9), da Lei
(G14.5) e da maldição de Deus (G13.13). O Crucifi­
cado fez-se escravo em nosso lugar, escravo das po­
tências, para nos resgatar de -modo regular (1 Co
6.20; 7.23). E preciso imaginar a terrível condição
dos escravos na Antiguidade, submetidos sem de­
fesa ao arbítrio e humor de seus donos, condenados
a trabalhar até a morte nas minas e galeras, para
captarmos a ressonância extraordinária que encon­
trava no mundo da época esta palavra "resgate"
para os inúmeros escravos, membros nas mais an­
tigas comimidades.
4. O Quarto tema, o da obediência vicáría, en­
contra-se raramente (duas vezes, pelo que me pa­
rece). É o caso em Rm 5.18s, onde Paulo contrapõe
em duas sentenças paralelas a eficácia universal da
desobediência de Adão e o ato de obediência do
54 A MORTE DEJesus como SACRrFfcio
Cristo ("pela obediência 'vicária' de um só, os 'inú­
meros' se tornam justos"); é também o caso de G1
4.4s: "Cristo fez-se escravo da Lei para resgatar os
que eram escravos da Lei (cumprindo-a no seu lu­
gar), a fim de nos conferir a adoção filial".
Por diferentes que sejam estas imagens, tomadas
de empréstimo a domínios muito diversos, todas elas
têm para Paulo uma só e a mesma finalidade; üus-
trar o "por nós", a substituição pelos pecadores da
parte daquele que foi sem pecado. E é nesta substi­
tuição, válida para os ímpios (Rm 5.6), pelos inimi­
gos de Deus (5.10), bem como pelo mimdo carrega­
do da ira de Deus (2 Co 5.19), que se manifesta a
onipotência sem limites do amor divino que abarca
todas as coisas (Rm 5.8). E se Paulo pode dizer tam­
bém que na cruz a justiça de Deus se manifestou, é
que para ele não há contradição. Porque justiça de
Deus e amor de Deus não são qualidades opostas -
como se tivesse havido na cruz um conflito a arbi­
trar entre a justiça de Deus e o amor de Deus. Pelo
contrário, é um dos resultados seguros e fundamen­
tais da exegese do Novo Testamento que a expres­
são "justiça de Deus" deve traduzir-se em Paulo por
"salvação de Deus". Paulo liga-se à linguagem dos
Salmos e do Dêutero-Isaías, onde "justiça" se empre­
ga constantemente em paralelo com "graça, salva­
ção, libertação". Pense-se somente no SI 103.17:
Mas o amor de Deuspara os que o temem dura
eternamente,
e suajustiça passa dos filhos aosnetos...
A Igreja das origens 55
Assim, para Paulo, amor de Deus e justiça de
Deus significam a mesma coisa. Quando Deus, na
cruz do seu Filho, elimina o pecado, o julgamento e
a maldição que, objetivamente, separam dele os ho­
mens (porque quem está carregado de pecado não
pode subsistir diante de Deus), então é que ele ma­
nifesta o seu amor. A morte vicária de Cristo na
cruz, ponto central da pregação paulina, é a con­
cretização, a atualização e a manifestação visível e
histórica do amor de Deus.
3. A Igreja das origens
Continuemos nossa subida no tempo e voltemo-
nos para a comunidadepré-paulina. Mas, se temos
a chance de possuir os escritos originais de Paulo,
não éo caso aqui. Contudo, podemos dizer com cer­
teza que, para a comimidade das origens, a explici­
tação do sentido da cruz foi uma busca de impor­
tância fimdamental. A própria situação histórica,
desde o dia da Páscoa, forçava-a, com efeito, a to­
mar posição diante do enigma dilacerante da cruz.
Porque, para os homens da Antiguidade, a cruz não
só era a quintessência das torturas mais horroro­
sas, mas também o cúmulo da vergonha (Hb 12.2);
além disso, para a sensibilidade judaica, esta pena
de morte, desconhecida em Israel, era tida, sob a
influência de Dt 21.23, como um sinal visível da
maldição divina. Como então foipossível que aque­
le que Deus legitimara pela ressurreição pudesse ter
suportado esta morte amaldiçoada? o mais antigo
56 A MORTE DEJesus como sacrifício
anúncio da mensagem cristã (o querigma) indica
onde se pode achar a resposta: Cristo morreu pelos
nossos pecados, segimdo a Escritura (cf. 1Co 15.3).
"Pelos nossos pecados" pretende afirmar que a sua
morte foi uma substituição, e "segimdo a Escritu­
ra" fundamenta esta explicitação da morte de Cristo
sobre Isaías 53.Porque, em todo oAntigo Testamen­
to, é essa a única passagem em que se encontra: "Ele
morreu pelos nossos pecados". E para mim conti­
nua sendo um mistério que se tenha podido duvi­
dar desta referência a Isaías 53. Em todo caso,jamais
se deveria ter reclamado do plural (literalmente: "se­
gundo as Escrituras"), que parece aludir a inúme­
ras passagens escriturísticas, porque essa afirma­
ção repousa num erro gramatical. Com efeito, o
plural aramaico {kthubayyá),subjacente a este plu­
ral do grego, designa a Escritura e deve traduzir-se
pelo singular em nossas línguas.
Temos ainda outros exemplos além do de 1 Co
15.3. E de novo impressiona constatar que as refe­
rências cristológicas a Isaías 53, extraordinariamen­
te numerosas, encontradas em Paulo, apresentam-
se, todas sem exceção, como pertencentes a uma
tradição que lhe é anterior. Descobrimo-lo por ra­
zões de estilo ou de terminologia, ou pelos dois mo­
tivos ao mesmo tempo^ Não subsiste, portanto, ne­
nhuma dúvida: Muito tempo antes de Paulo, foi no
capítulo dedicado ao Servo Sofredor (Is 53) que a
^Encontrar-se-ão algumas indicações, que deveriam ser am­
pliadas, no Theologisches Woertebuch des Neuen Testa­
ments, t. V. pp. 703 e 707.
Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 57
comunidade das origens foibuscar a chave para re­
solver o mistério profundo do Filho de Deus pade­
cendo a morte ignominiosa.
4. Qual a interpretação que o próprio Jesus deu
de sua morte?
De acordo com o que dizem os evangelistas, re­
montaria ao próprio Jesus esta interpretação do sen­
tido de sua morte. Seria digna de fé essa afirmação?
Examinando-se, sob o prisma da crítica literá­
ria, os anúncios que Jesus faz de sua paixão, obser­
va-se uma tendência evidente da tradição em colo­
car, anacronicamente, nos lábios de Jesus tais
anúncios (cf. Mt 26.1-4, comparado com o esque­
ma apresentado em Mc 14.1-2). Constata-se, além
disso, o pendor desta tradição em progressivamen­
te formular estas predições da paixão, incluindo
nelas cada vez mais claramente a própria maneira
como se desenrolaram os acontecimentos (compa­
re-se Mc 9.31 com 8.31 e 10.33ss). Compreende-se,
então, que, deste,fato inegável, se chegasse a con­
cluir que tudo o que se nos transmite como ditos de
Jesus sobre a sua paixão não passaria de vaticinia
ex eventu (predições compostas mais tarde, a par­
tir dos próprios acontecimentos realizados). Mas,
na verdade, não se pode pensar assim neste caso.
Porque, mesmo procedendo com toda a prudência e
sentido críticos desejáveis, vamos nos defrontar, tan­
to nos anúncios da paixão como nos da glorificação,
com um núcleo que só pode ser anterior à Páscoa.
58 A MORTE DEJ esus como sacriekio
Quanto aos anúncios dapaixão, é preciso partir
do fato de que tudo na vida pública era para levar
Jesus a contar, e cada vez mais, com a perseguição
e até mesmo com a execução. A violação do sabbat,
a blasfêmia contra Deus e a chamada magia (Mc
3.22), que se lhe censuravam, eram crimes que exi­
giam o apedrejamento (e no caso do blasfemo, de
mais a mais, pendurava-se o cadáver numa cruz).
Acresce que Jesus se pôs por várias vezes no rol dos
profetas - e isso em palavras que, por seu teor, pou­
co cristológicas em aparência, nos leva a tê-las como
autênticas. Ora, precisamente no tempo de Jesus, o
martírio era considerado como parte integrante da
missão profética; é o que evidenciam tanto o Novo
Testamento com as lendas acerca dos profetas, con­
temporâneas de Jesus, bem como o costume, então
corrente, de dar relevo às tumbas dos profetas por
meio de monumentos expiatórios. O próprio Jesus
viu a história santa como uma série ininterrupta de
justos mártires, desde Abel até Zacarias, o filho de
Yoyada (Mt 23.35); a sorte deles, como a de João
Batista, o último da série, deve ter-lhe sido uma in­
dicação da sua própria sorte.
Mas o próprio testemunho dos textos tem ainda
mais peso do que essas considerações. Os anúncios
da paixão, que não se devem absolutamente limi­
tar aos três anjincios clássicos (Mc 8.31; 9.31; 10.33
e parai.), fazem parte de uma camada da tradição
anterior ao contato com o helenismo: é o que evi­
dência o jogo de palavras em aramaico bar nasha
Ifnê nasha (Mc 9.31: Deus entregará o homem aos
Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 59
homens) e a quase total ausência de referências à
versão grega da Bíblia. Por outro lado, eles estão tão
fortemente ancorados no contexto que não se po­
dem destacar daí: pense-se somente na passagem
em que Pedro é tratado de "Satã" em Mc 8.32®; com
certeza isso não pode ser uma invenção! Além dis­
to, os anúncios aparecem nos gêneros literários mais
diversos. Ao lado dos anúncios oficiais da paixão
em suas diferentes variantes, encontram-se também
anúncios velados: em parábolas e figuras, tais como
"cálice, batismo, resgate", ditos enigmáticos, como
os referentes ao sinal de Jonas (Mt 12.39) ou à espa­
da (Lc 22.36); como também os ditos que enqua­
dram a celebração da ceia. Mas principalmente os
anúncios da paixão contêm uma série de detalhes
gue não se cumpriram exatamente como previstos.
É o caso, quando Jesus espera para si o sepultamen-
to dos criminosos (Mc 14.8), ou quando prediz que
parte de seus discípulos partilhará de sua sorte
(Mc 10.32,40; Lc 22.36s): ora, fato estranho, as auto­
ridades se contentaram em matar somente Jesus, e
deixaram de imediato seus discípulos, sem molestá-
los. Estas constatações, que se poderíam multiplicar,
nos impedem, portanto, de considerar em bloco os
anúncios da paixão como sendo vaticinia ex eventu.
O ceticismo se converte involuntariamente em falsi­
ficação da História, quando, por observações de de­
talhes, perfeitamente válidas do ponto de vista críti­
co, se deixam conduzir a se considerar, sem mais
Outros exemplos no TWbNT, t. V, p. 712.
60 A MORTE DEJesus como sacrifício
exame, todo o conjunto dos anúncios como se fos­
sem uma construção da comimidade.
Os anúncios daglorificação^ que de mais a mais
se vinculam aos da paixão, evidenciam que tam­
bém eles mantêm um núcleo que é anterior à Pás­
coa. Limitar-me-ei a um exemplo, à questão dos
"três dias". Ao lado da passagem que se refere a
Os 6.2 ("depois de três dias, ele ressuscitará"), en­
contram-se ditos totabnente diversos sobre os "três
dias". Depois de três dias, diz Jesus, será construí­
do o novo Templo (Mc 14.58 e parai.). Hoje e ama­
nhã, ele expulsa demônios e realiza curas; no ter­
ceiro dia, ele será "consumado" (Lc 13.32; cf. nota
b, p. 1.374 da Bible deJérusalenri). Hoje, amanhã e
no dia seguinte, ele prosseguirá seu caminho, e de­
pois disso sofrerá em Jerusalém a sorte dos profetas
(15.33). Ainda um pouco de tempo e eles não mais
o verão, e ainda um pouco de tempo e eles o verão:
hoje estão vivendo em comunidade com ele, ama­
nhã será a separação, e, no terceiro dia, o retorno
(Jo 16.16). Assim fica claro que Jesus anunciou, de
muitos modos, a "grande reviravolta de Deus", ejá
a ausência de qualquer diferenciação entre ressur­
reição e retorno mostra-nos que os amíncios da glo­
rificação não são também vaticinia ex eventu, mas
sim, no seu núcleo, anteriores à Páscoa.
Mas, se estes anúncios da paixão e da glorifica­
ção remontam, no essencial, ao próprio Jesus, o que
pensar dos textos evangélicos que pretendem atri­
buir a Jesus a explicitaçãomesma do sentido de sua
paixão? Seria possível eliminá-los levianamente
Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 61
como construções da comunidade? Longe disto!
Quem quer que tenha pressentido a extrema impor­
tância que tinha no judaísmo antigo a idéia da for­
ça expiatória dos sofrimentos e da morte, só pode
achar impensável que Jesus tenha podido esperar
sua paixão e morte, sem nem sequer sonhar com o
sentido que elas poderiam ter.
Também neste caso, são decisivos os textos. E
entre estas explicações do sentido da paixão, preci­
samos pôr em primeiro lugar as palavras de Jesus
na Ceia. Limitar-me-ei a duas observações:
a) Importantes aí são as palavras "por muitos";
encontram-se com divergências quanto a sua locali­
zação e teor literal, nas cinco versões dos ditos da
Ceia que traz o Novo Testamento (Mc 14.24; Mt
26.28; 1 Co 11.24; Lc 22.19-20; Jo 6.51). Sua ausência
em Justino (cerca de 150 d.C.) é sem conseqüência,
pois é conscientemente que ele cita, abreviando-os,
os ditos da Ceia. Das diferentes versões, a expressão
de Marcos ("por muitos"), que é um semitismo, é
com certeza mais antiga do que a de Paulo ("por
vós"). Ora, Paulo deve ter recebido sua versão dos
ditos da Ceia, que apresentam um vocabulário for­
temente grecizado, pelos anos 40 em Antioquia, fato
que nos possibilita situar a versão mais antiga de
Marcos no primeiro decênio que seguiu à morte de
Jesus. Quem, pois, pretender eliminar estas duas pa­
lavras sob pretexto de que seriam uma interpretação
acrescentadaposteriormente,deveestarconscientede
que abandona uma tradição muito antiga, e sem ra­
zão lingüística de que possa se reclamar.
6 2 A MORTE DE J e s u s c o m o s a c r if íc io
b) Estas palavras "por muitos" são, como o con­
firma Mc 10.45, uma referência a Is 53. É nessa pas­
sagem da Bíblia que se encontram ao mesmo tem­
po o "por" e, com isto, a idéia de substituição, e o
"muitos"; ora, "muitos", usado sem artigo no sen­
tido inclusivo de "numerosos, grande turba, multi­
dão, todos", acha-se em abundância neste capítulo,
e dele constitui a palavra-chave^. Assim, o "por
muitos" dos ditos de Cristo na Ceia nos evidencia
que foi em Is 53 que Jesus encontrou a chave para
explicitar o sentido de sua paixão e morte.
Mais complexa é a história da tradição do dito
sobre o resgate, que está estreitamente aparentado
com os ditos da Ceia. Com efeito. Marcos (10.45 pa­
rai. Mt 20.28) e Lucas (22.27) divergem quanto ao
teor. Parece que se possa estabelecer que as duas
versões repousam sobre um lógion de Jesus,no qual
se tratava de serviço. Na fronte própria de Lucas,
este serviço de Jesus é ilustrado com auxílio de seu
"serviço à mesa", ao passo que em Marcos se recor­
re a Is 53. Em Lucas, o contexto acusa um vocabu­
lário claramente grecizado; em Marcos, não só o vo­
cabulário como também o conteúdo conceptual do
lógion são semíticos, pois a utilização religiosa da
figura do resgate é especificamente palestinense, o
que faz remontar a tradição usada por Marcos a
uma data muito antiga. O menos que se pode dizer
Usado substantivamente e sem artigo em: Is 52.14; 53.12.
A versão grega dos Setenta o pressupõe também em
53.11c.l2
Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 63
éque Marcospossuía,aolado dos ditos da Ceia,uma
antiga tradição em que Jesus explicitava sua pai­
xão valendo-se de Is 53.
É também uma tradição muito antiga - diria,
até mesmo, um fragmento da rocha original em que
se baseou a tradição - que possuímos no dito refe­
rente à espada, que nos vem da fonte própria de
Lucas (22.35-38). O tempo da angústia está a ponto
de irromper; é este o sentido dos versículos 35s; tra­
ta-se, pois, de uma palavra que com certeza foipro­
nunciada antes da Páscoa,pois representa uma pre­
dição não realizada, uma vez que a paixão coletiva
dos discípulos não se deu dessa maneira. É também
em Is 53 que se encontra a razão desta mudança de
clima num mundo que vai passar da amizade hos­
pitaleira à ira sanguinolenta; pois aí se diz: "e ele (o
Servo de Deus) foi contado no número dos ímpios".
Quanto à sentença que segue no v. 38, onde os dis­
cípulos aludem às duas espadas, trata-se de um dito
muito antigo, pois, sem retoques ou eufemismo, ex­
plode aí a total falta de compreensão dos discípu­
los. Uma vez mais. Is 53 apresenta a explicitação
da paixão no momento em que, para Jesus, ela esta­
va imediatamente próxima.
Considere-se também como uma tradição ante­
rior à Páscoa o dito sobre o pastor que vai ser ferido
e cujas ovelhas vão se dispersar (Mc 14.27). Com
efeito,oV. 28prolonga aimagem do pastorpela pro­
messa: "ele precederá (o seu rebanho) na Galiléia",
a qual não pode ter sido formulada eqevtu / ex
eventu. Por outro lado, pensando-se no contexto
64 A MORTE DEJesus como sacrifício
desta citação de Zacarias (13.7),percebe-se que tam­
bém aí existe, no fundo, uma explicitação do senti­
do da paixão: a morte do Pastor traz a aflição, mas
também a reunificação do rebanho purificado. E Jo
10.15,17 aí está a nos mostrar que, pelo menos na
tradição, a imagem do pastor estava ligada a Is 53.
Precisamos, enfim, aduzir a passagem em que
Jesus na cruz intercede por seus inimigos (Lc 23.34).
Este versículo não é atestado por todos os manus­
critos, mas repousa sobre uma tradição muito anti­
ga, como o evidenciam, de modo concorde, a forma
e o fundo (a apóstrofe dirigida a Deus: "Pai"; a in­
tercessão pelos inimigos). Também aí se insere uma
explicitação do sentido da paixão, porque a inter­
cessão de Jesus toma o lugar do voto de expiação
que todo condenado devia pronunciar: "Que minha
morte expie por todos os meus pecados!", mas Je­
sus orienta a virtude expiatória de sua morte não
para si mesmo, mas para os seus carrascos. No fun­
do está igualmente Is 53, que termina assim: "E ele
intercedia pelos pecadores" (v. 12).0 número de
passagens em que Jesus, segundo os evangelhos,
aplica-se a si Is 53 é muito grande, ainda que limi­
tado. Liga-se isto ao fato de Jesus não ter revelado
os mais altos mistérios da sua missão a não ser na
pregação reservada aos discípulos enão na sua pre­
gação pública. Com efeito, somente aos discípulos
é que ele comunicou que via no cumprimento de Is
53 a tarefa mesma que Deus lhe marcava; a eles so­
mente explicitou o sentido da sua morte na linha da
suplência "pelos muitos", pela multidão incontável
Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 65
dos que incorreram sob a justiça divina. Porque,
segundo Is 53, quatro elementos dão à morte "vicá­
ria" do Servo de Deus essa força expiatória sem li­
mites: trata-se dum sofrimento voluntário (v. 10),
suportado na paciência (v. 7), querido por Deus (vv.
6.10), e inocente (v. 9). E, nessa morte, o que se con­
cede ao Servo é a vida, da qual Deus é a fonte e da
qual se pode participar com ele.
Vimos que podemos com grande probabilidade
- não se pode fazer questão de certeza absoluta -
reconduzir ao próprio Jesus essa explicitação que o
cristianismo das origens dava do sentido da sua
morte como cumprimento de Is53.Contudo,a ques­
tão existencialnão ficou comistosuprimida. Elaper­
manece. Só que essa questão é posta agora lá mes­
mo onde ela tem o seu lugar: no próprio Jesus.
Capítulo III
A JUSTIFICAÇÃO
PELA FÉ
1. o sentido da fórmula
Num parágrafo de introdução, gostaria de esta­
belecer os fundamentos do que seguirá por meio de
algumas observações lingüísticas. Eis a questão: o
que se entende por a) ser justificado, b) por fé, c)
por graça?
Assim como o verbo hebraico sadhaq, SiKaiô /
dikaioún pertence, na Septuginta, à terminologia ju­
rídica. No ativo, significa "fazer justiça a alguém",
"declarar alguém inocente", "absolver um acusado".
O sentido passivo será, então, "ganhar uma causa",
"ser inocente", "ser absolvido". Neste sentido, Ô iK airâ
/ dikaioún é usado também no Novo Testamento, cf.
Mt 12.37; uma referência ao juízo final: "... por tuas
palavras serás justificado (ôiKai(o0fjati / dikaiothése)
e por tuas palavras serás condenado". A mesma
6 8 AJusnncAÇÀoPELAFé
oposição "absolver-condenar" acha-se em Rm 8.33s
citando Is 50.8: "É Deus quem justifica (0eòç ó
ôiKttiôv / Theós ho dikaiôrí). Quem condenará?"
Tudo isto se encontra em qualquer léxico.
É preciso, contudo, notar que o sentido do verbo
ôiKaiô / ôiKttiôaSai / dikaioún / dikaioústhaitinha
se alargado, em particular quando servia para expres­
sar a ação de Deus. O novo matiz surgiu pela primei­
ra vez no Dêutero-Isaías (Is 45.25 Septuaginta):
Por Yahweh serájustificada (ôiKaicoG fiaerai /
dikaiothésetai)
e,por causa de Yahweh, seráglorificada
toda a raça de Israel.
O Dêutero-Isaías rompe assim, com toda a evi­
dência, os limites do emprego jiirídico. O paralelis­
mo entre "ser justificado" e "ser glorificado" mos­
tra muito bem que ôiKairôoGai / dikaioústhaiioma
aí o sentido de "achar salvação".
Enquanto sei, ainda não foi observado que este
emprego tenha persistido no judaísmo pós-bíblico.
Destesepodem citarpelo menos dois exemplos.Nas
Antiguidades Bíblicasdo Pseudo-Filo (escritas após
70 d.C.), "ser justificado" se apresenta como para­
lelo à eleição de Deus (49.4), bem como no Quarto
livro de Esdras (escrito em 94 d.C.) "achar graça",
"ser justificado" e "ser ouvido na oração" se usam
como sinônimos (12.7).
A última dessas passagens constitui o começo
de uma oração:
o ŒNTTIDO DA FÓRMULA 6 9
Ó Senhor altíssimo,
se acheigraça diante de ti
e se fuijustificado em tuapresença
diante de uma multidão
e se minha oração se eleva com segurança na
direção de tua face...
As três linhas estão em paralelo. Na primeira e
na segrmda, "achar graça" altema-se com "ser jus­
tificado" sem nenhuma mudança aparente de sen­
tido. A tradução literal "ser justificado" é, portan­
to, muito estreita e não vai ao cerne da expressão.
O que se deve de preferência entender por este tex­
to é o seguinte:
Se acheigraça diante de ti
e se acheifavor em tuapresença
diante de uma multidão...
O que aqui é importante é que a idéia de pro­
cesso é abandonada. "Ser justificado", aplicado a
um ato de Deus e posto em paralelo com "achar
graça", não tem o sentido estreito de "ser absolvi­
do", mas antes o sentido mais abrangente de "ser
em favor". Confirma-se isto pelo paralelismo da
terceira linha, que indica como a graça de Deus, o
seu agrado, se manifesta: ele escuta a oração.
Este fato nos conduz para muito perto de uma
palavra dos evangelhos, em Lc 18.14, onde Jesus diz
com referência ao publicano: "Eu vos digo que este
último desceu para casa justificado, e não o outro".
70 AJUSTinCAÇÀOPELAFé
Também aqui se abandona a comparação jurídica.
Também aqui "ser justificado" tem antes o sentido
de "encontrar o favor de Deus". Também aqui este
favor divino se traduz pela audição da oração.
Lc18.14deve,portanto, traduzir-se: "Eu vosdigo que
estehomem desceupara asua casa comoalguém que
encontrou o favor de Deus, e não o outro". Podemos
até mesmo ir ao ponto de traduzir: "Eu vos digo que
este homem desceu para casa como alguém cuja ora­
ção foi ouvida por Deus, e não o outro".
Acabamos, pois, de ver um emprego de
ôiKttirâaBai / dikaioústhai em que a comparação
jurídica parece ter sido atenuada ou até mesmo
completamente abandonada. Gostaria de chamar
este uso de "soteriológico",para distingui-lo do uso
jurídico.
E evidente que em Paulo também o uso de "justi­
ficado" (ou de "ser justificado") vai muito além da
esferajurídica - mesmo quando oaspectojurídico (ou
forense) não está ausente - e já mencionamos o final
em forma de hino de Rm 8, onde Paulo (nos vv. 33s)
lança mão da imagem de um processo, citandoIs50.8:
"Quem acusará os eleitos de Deus? É Deus quem jus­
tifica" (ôiKairâv / dikaiôrí). E, portanto, a conotação
soteriológica que comanda o seu discurso. Para Pau­
lo, (ôiKaicò / dikaoún no ativo significa "conceder a
graça ou favor", e no passivo (SiKaicòoGai / dikaioús­
thai "achar a graça ou favor". Vê-se de modo parti­
cularmente claro, que a imagem do processo desapa­
receu, quando Paulo fala de uma justificação que teve
lugar no passado, como por exemplo em Rm 4.2: "Se
I I I
oSENTIDOD
AFÓ
RM
ULA 71
Abraão achou graça (èôiKai(»0T| / edikaiôthê) pelas
obras..." Aí, na história da fé de Abraão, não nos de­
frontamos com uma cena judiciária, mas antes com a
outorga da graça de Deus. O que vale também de 5.1:
"Tendo, pois, recebido nossa graça. (ôiKaicoGévteç /
dikaiothénteé) pela fé, estamos em paz com Deus"; e
de 5.9: "Quanto mais, então, agora, tendo encontrado
graça (SiKaicoSévxeç / dikaiothénte^ por seu sangue".
A justificação que provém de Deus é um transbordar
de graça que extravaza largamente à esfera jurídica.
Com referência ao substantivo ^'SiKaicoGobvri
(tou) 08ob / dikaiosyne {toú) Theoú", a conotação
soteriológica foi notada há muito tempo, e, primei­
ramente, pelo que eu saiba, por James H ardy Ropes
no começo deste século^ Nos Salmos e no Dêutero-
Isaías, sidhqath Jahwe, a "justiça de Deus", se aco­
pla com a salvação de Deus e com a misericórdia de
Deus. E é precisamente o emprego que dela faz Pau­
lo (com a exceção de Rm 3.5, onde ele não fala em
seupróprio nome, mas citauma objeção). Assim,por
exemplo, Rm 1.17não se deve traduzir por "Porque
nele (no Evangelho) ajustiça de Deus serevela",mas
"Nele (no Evangelho) a salvação de Deus se revela".
Em resumo, assim como para as epístolas de
Paulo ôiKai(o0aí)vTi (tou) 0eoí) / dikaiosyne {toú)
Theoú deve-se traduzir por "a salvação de Deus",
ÔiKaiâo0ai / dikaioústhai deve-se traduzir por
"achar a graça de Deus".
’ Righteousnessin the Old Testamentandin St.Paul, in Jour­
nal ofBiblical Literature 22 (1903) pp. 211-227.
72 AJusnncAçÃoPELAFé
Vejamos agora as palavras ÔTtíoiei, èk tcíotego,
ôiòc TríaTECoç / pístei, ek písteos, dià písteos, "pela
fé". Toda vez que Paulo fala da ôiKaioo^òvr) / dikaio-
syne de Deus, da salvação de Deus, e do ôiKaicò /
dikaioún de Deus, a outorga da graça, ele centra a
atenção inteiramente em Deus. Tudo se reconduz à
questão vital de se saber se Deus é ou não é miseri­
cordioso, se ele concede ou não o seu favor, se ele
me diz "sim" ou "não". Quando é que Deus diz
"sim"?
Paulo responde: um homem é justificado, um
homem acha graça, pela fé. M artinho L utero, em
sua tradução de Rm 3.28 acrescentou uma palavra.
Ele diz: "Pois reputamos que o homem éjustificado
pela fé somente" ("allein durch den Glauben"^ sola
fidé). Criticou-se este acréscimo, mas do ponto de
vista lingüístico ele tem toda a razão. Pois é uma
característica da língua semita (e, sob este aspecto,
as cartas de Paulo traem muitas vezes o seu fundo
judaico) o fato de a palavra "somente", "só", ser
gerahnente omitida, mesmo quando no ocidente ela
se considera indispensável (cf., por exemplo, Mc
9.41, que é necessário interpretar assim: "Todo
aquele que vos der um simples copo d'água" será
recompensado, por insignificante que seja o servi­
ço). Sola fide!A fé é o único caminho para a miseri­
córdia de Deus.
Quando Paulo fala de achar a graça só pela fé, é
sempre em oposição à possibilidade de achá-la pe­
las obras. A doutrina da justificação não poderia ser
entendida sem esta antítese. Ela se dirige contra a
oSENTIDO DA FÓRMULA 73
concepção fundamental do judaísmo e do cristia­
nismo judaizante, segundo a qual o homem acha a
graça de Deus pelo cumprimento da vontade divi­
na. O próprio Paulo considerava as coisas assim até
o momento em que Cristo lhe apareceu no cami­
nho de Damasco: somente este instante é que lhe
abriu os olhos para a ilusão que o fazia crer que um
homem poderia manter-se diante de Deus por sua
própria força. É por isso que, depois de Damasco,
ele opõe à tese dos judaizantes, que pretendem que
a Lei seja o caminho da salvação, esta antítese: o
caminho da graça de Deus não está nas obras, mas
na fé (G1 2.16; 3.8,24; Rm 28.30; 4.5).
Assim a fé substitui as obras. Mas então se põe a
questão: Achamo-nos diante de uma façanha em
virtude da qual Deus concede a sua graça, se a jus­
tificação segue a fé? Eis a resposta: Sim! Estamos de
fato na presença de uma façanha. Deus concede
com efeito a sua misericórdia na base de uma faça­
nha. Mas ei-la: não se trata da minha própria faça­
nha, mas da façanha de Cristo na cruz. A fé mesma
não é uma façanha, mas antes a mão que apanha a
obra do Cristo e a dirige para Deus. A fé diz: Eis a
façanha - o Cristo morreu por mim na cruz (G1
2.20). Esta fé é a única maneira de obter graça junto
de Deus.O fato de que Deus concede o seu favor ao
crente é contrário a todas as normas das leis huma­
nas. Isto salta aos olhos, se considerarmos quem é
justificado,ou seja,oímpio (Rm45) quemereceamor­
teporque éportador da maldição de Deus (G13.10). A
salvação de Deus lhe é concedida "a título gracioso"
74 A Ju sn n C A Ç À O P E L A Fé
(Rm 4.4; 5.17), como um dom gratuito (Rm 3.24). Esta
graça não conhece limites; sendo independente da lei
mosaica, pode incluir os gentios. Em Rm 4.6-8,acha-
se com exatidão o que significa o favor de Deus, sola
gratia:"Como, aliás, também Davi proclama a bem-
aventurança do homem a quem Deus credita a jus­
tiça, independentemente das obras;
"Bem-aventurados aqueles cujas ofensas
foram perdoadas, e
cujospecados foram cobertos.
Bem-aventurado o homem, a quem o
Senhornão leva em conta opecado".
A justificação, é o perdão, nada mais do que o
perdão pelo amor de Cristo.
Esta afirmação, todavia, precisa ser mais expli­
cada.
2. Justificação e nova criação
Se contarmos as passagens de Paulo onde se
acha a fórmula da justificação, estaremos diante de
um fato curioso e muitas vezes negligenciado, ou
seja, o fato de que a doutrina da justificação não
aparece na maior parte das epístolas. Nas epístolas
aos Tessalonicenses não achamos o menor traço
dela. Na primeira delas, o advérbio ôiKaicoç / dikaíos
qualifica a conduta irrepreensível do Apóstolo
(1 Ts 2. 10). Na segunda, o julgamento de Deus é
chamado de "justo julgamento"; Deus é chamado
jL'snncAÇÃOe nova criação
75
"justo" porque o seu julgamento é imparcial (2 Ts
1.5s). Estas afirmações nada têm a ver com a doutri­
na da justificação. Na Carta aos Gálatas, que vem
cronologicamente logo depois daquelas, a fórmula
completa "justificação pela fé" ou "ser justificado
pela fé" aparece bruscamente pela primeira vez.
Nas duas Epístolas aos Coríntios, ôiKaiooúvrj /
dikaiosyne tem o sentido de "salvação", e "ser jus­
tificado" aparece pelo menos uma vez (1 Co 6.11)
num sentido especificamente paulino, mas em ne­
nhuma das duas Epístolas aparece a fórmula com­
pleta "justificação pela fé". A seguir, encontramo-
la com muita freqüência na Epístola aos Romanos.
Depois disto, desaparece de novo nas Epístolas do
cativeiro: Filipenses, Efésios, Colossenses, Filêmon,
com a exceção de El 3.9, onde ôiKaiooúvTi / dikaio­
syne (salvação) pela Lei se opõe à ôiKaioabvt] / di­
kaiosyne (salvação) de Deus pela fé. As Epístolas
pastorais não contêm a fórmula completa, ainda
que em Tt 3.7 se encontre a variante: "justificados
pela graça de Cristo". Assim, a fórmula completa
"justificação pela fé" ou "ser justificado pela fé"
acha-se somente nas três Epístolas aos Gálatas, Ro­
manos e Filipenses (e numa única frase desta últi­
ma), às quais se deve acrescentar Tt 3.7. Como ex­
plicar este fato tão estranho?
A resposta nos parece ser a seguinte: a doutrina
não aparece a não ser quando Paulo entra em con­
trovérsia com o judaísmo. Com certeza W. Wrede-
- W red e W ., Paulus, Tübingen 1904.
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias
148 a mensagem central do novo testamento   joachim jeremias

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Historia del Nuevo Testamento
Historia del Nuevo TestamentoHistoria del Nuevo Testamento
Historia del Nuevo TestamentoPablo A. Jimenez
 
Método hermeneútico teológico
Método hermeneútico teológicoMétodo hermeneútico teológico
Método hermeneútico teológicoYefren Díaz López
 
Los Evangelios Sinópticos
Los Evangelios Sinópticos Los Evangelios Sinópticos
Los Evangelios Sinópticos mariarosa-2013
 
Evangelho de Mateus traduzido do Grego e seus erros de tradução
Evangelho de Mateus traduzido do Grego e seus erros de traduçãoEvangelho de Mateus traduzido do Grego e seus erros de tradução
Evangelho de Mateus traduzido do Grego e seus erros de traduçãoASD Remanescentes
 
Macsfs apologetica i las imagenes
Macsfs apologetica i las imagenesMacsfs apologetica i las imagenes
Macsfs apologetica i las imagenesdefiendetufe
 
Evangelho de Mateus escrito em Hebraico e não em Grego
Evangelho de Mateus escrito em Hebraico e não em GregoEvangelho de Mateus escrito em Hebraico e não em Grego
Evangelho de Mateus escrito em Hebraico e não em GregoASD Remanescentes
 
Mateus 28.19 A Mais Séria Falsificação das Escrituras Sagradas
Mateus 28.19   A Mais Séria Falsificação das Escrituras SagradasMateus 28.19   A Mais Séria Falsificação das Escrituras Sagradas
Mateus 28.19 A Mais Séria Falsificação das Escrituras SagradasOsvair Munhoz
 
Catequistas ppt
Catequistas pptCatequistas ppt
Catequistas pptdaniloram3
 
A Ordem e a Forma do Batismo Segundo Ellen White e a Bíblia.
A Ordem e a Forma do Batismo Segundo Ellen White e a Bíblia.A Ordem e a Forma do Batismo Segundo Ellen White e a Bíblia.
A Ordem e a Forma do Batismo Segundo Ellen White e a Bíblia.ASD Remanescentes
 
Simbolos mormones roberto vinett
Simbolos mormones   roberto vinettSimbolos mormones   roberto vinett
Simbolos mormones roberto vinettpedro dowling
 
A História e Liturgia da Ceia do Senhor
A História e Liturgia da Ceia do SenhorA História e Liturgia da Ceia do Senhor
A História e Liturgia da Ceia do SenhorLUIZ LHCSUIZ
 
Iglsias catlicas orientales resumen
Iglsias catlicas orientales resumenIglsias catlicas orientales resumen
Iglsias catlicas orientales resumenVirgen de Guadalupe
 
O Batismo Verdadeiro e a Autenticidade de Mateus 28:19
O Batismo Verdadeiro e a Autenticidade de Mateus 28:19O Batismo Verdadeiro e a Autenticidade de Mateus 28:19
O Batismo Verdadeiro e a Autenticidade de Mateus 28:19ASD Remanescentes
 

Mais procurados (20)

Los primeros siglos del cristianismo
Los primeros siglos del cristianismoLos primeros siglos del cristianismo
Los primeros siglos del cristianismo
 
Historia del Nuevo Testamento
Historia del Nuevo TestamentoHistoria del Nuevo Testamento
Historia del Nuevo Testamento
 
Leccion # 1 Los Hechos del Espiritu Santo
Leccion # 1 Los Hechos del Espiritu SantoLeccion # 1 Los Hechos del Espiritu Santo
Leccion # 1 Los Hechos del Espiritu Santo
 
Método hermeneútico teológico
Método hermeneútico teológicoMétodo hermeneútico teológico
Método hermeneútico teológico
 
Los Evangelios Sinópticos
Los Evangelios Sinópticos Los Evangelios Sinópticos
Los Evangelios Sinópticos
 
Evangelho de Mateus traduzido do Grego e seus erros de tradução
Evangelho de Mateus traduzido do Grego e seus erros de traduçãoEvangelho de Mateus traduzido do Grego e seus erros de tradução
Evangelho de Mateus traduzido do Grego e seus erros de tradução
 
Macsfs apologetica i las imagenes
Macsfs apologetica i las imagenesMacsfs apologetica i las imagenes
Macsfs apologetica i las imagenes
 
Biblia
BibliaBiblia
Biblia
 
Evangelho de Mateus escrito em Hebraico e não em Grego
Evangelho de Mateus escrito em Hebraico e não em GregoEvangelho de Mateus escrito em Hebraico e não em Grego
Evangelho de Mateus escrito em Hebraico e não em Grego
 
Mateus 28.19 A Mais Séria Falsificação das Escrituras Sagradas
Mateus 28.19   A Mais Séria Falsificação das Escrituras SagradasMateus 28.19   A Mais Séria Falsificação das Escrituras Sagradas
Mateus 28.19 A Mais Séria Falsificação das Escrituras Sagradas
 
El Movimiento Litúrgico
El Movimiento LitúrgicoEl Movimiento Litúrgico
El Movimiento Litúrgico
 
Catequistas ppt
Catequistas pptCatequistas ppt
Catequistas ppt
 
A Ordem e a Forma do Batismo Segundo Ellen White e a Bíblia.
A Ordem e a Forma do Batismo Segundo Ellen White e a Bíblia.A Ordem e a Forma do Batismo Segundo Ellen White e a Bíblia.
A Ordem e a Forma do Batismo Segundo Ellen White e a Bíblia.
 
Simbolos mormones roberto vinett
Simbolos mormones   roberto vinettSimbolos mormones   roberto vinett
Simbolos mormones roberto vinett
 
A História e Liturgia da Ceia do Senhor
A História e Liturgia da Ceia do SenhorA História e Liturgia da Ceia do Senhor
A História e Liturgia da Ceia do Senhor
 
Iglsias catlicas orientales resumen
Iglsias catlicas orientales resumenIglsias catlicas orientales resumen
Iglsias catlicas orientales resumen
 
Curso de Bíblia - Antigo Testamento
Curso de Bíblia - Antigo TestamentoCurso de Bíblia - Antigo Testamento
Curso de Bíblia - Antigo Testamento
 
Los Padres de la Iglesia
Los Padres de la IglesiaLos Padres de la Iglesia
Los Padres de la Iglesia
 
IGMR Misal Romano
IGMR Misal RomanoIGMR Misal Romano
IGMR Misal Romano
 
O Batismo Verdadeiro e a Autenticidade de Mateus 28:19
O Batismo Verdadeiro e a Autenticidade de Mateus 28:19O Batismo Verdadeiro e a Autenticidade de Mateus 28:19
O Batismo Verdadeiro e a Autenticidade de Mateus 28:19
 

Semelhante a 148 a mensagem central do novo testamento joachim jeremias

(26) Os Evangelhos.pdf
(26) Os Evangelhos.pdf(26) Os Evangelhos.pdf
(26) Os Evangelhos.pdfTiago Silva
 
Amos r binney-compendio_de_teologia (4)
Amos r binney-compendio_de_teologia (4)Amos r binney-compendio_de_teologia (4)
Amos r binney-compendio_de_teologia (4)Luiza Dayana
 
Amos r binney-compendio_de_teologia (5)
Amos r binney-compendio_de_teologia (5)Amos r binney-compendio_de_teologia (5)
Amos r binney-compendio_de_teologia (5)Luiza Dayana
 
Amos r binney-compendio_de_teologia (3)
Amos r binney-compendio_de_teologia (3)Amos r binney-compendio_de_teologia (3)
Amos r binney-compendio_de_teologia (3)Luiza Dayana
 
Amos r binney-compendio_de_teologia
Amos r binney-compendio_de_teologiaAmos r binney-compendio_de_teologia
Amos r binney-compendio_de_teologiaLuiza Dayana
 
Amos r binney-compendio_de_teologia (1)
Amos r binney-compendio_de_teologia (1)Amos r binney-compendio_de_teologia (1)
Amos r binney-compendio_de_teologia (1)Luiza Dayana
 
Amos r binney-compendio_de_teologia (2)
Amos r binney-compendio_de_teologia (2)Amos r binney-compendio_de_teologia (2)
Amos r binney-compendio_de_teologia (2)Luiza Dayana
 
Piscopaniquia - Doutrina do sono da alma
Piscopaniquia - Doutrina do sono da almaPiscopaniquia - Doutrina do sono da alma
Piscopaniquia - Doutrina do sono da almaezequielmaster
 
Biblia 09-a-nova-alianca
Biblia 09-a-nova-aliancaBiblia 09-a-nova-alianca
Biblia 09-a-nova-aliancaRicardo Neves
 
Absg 12-q3-p-l01-t
Absg 12-q3-p-l01-tAbsg 12-q3-p-l01-t
Absg 12-q3-p-l01-tFlor Aranda
 
Como discípulos anunciamos a morte e ressurreição de jesus 27 03 2005 - dom...
Como discípulos anunciamos a morte e ressurreição de jesus   27 03 2005 - dom...Como discípulos anunciamos a morte e ressurreição de jesus   27 03 2005 - dom...
Como discípulos anunciamos a morte e ressurreição de jesus 27 03 2005 - dom...Paulo Dias Nogueira
 
2º bimestre 2015
2º bimestre 20152º bimestre 2015
2º bimestre 2015admni
 
Aula Jonatas 41: Quem é jesus pra você
Aula Jonatas 41: Quem é jesus pra vocêAula Jonatas 41: Quem é jesus pra você
Aula Jonatas 41: Quem é jesus pra vocêAndre Nascimento
 
Disciplina de Teologia do Novo Testamento
Disciplina de Teologia do Novo TestamentoDisciplina de Teologia do Novo Testamento
Disciplina de Teologia do Novo Testamentofaculdadeteologica
 
A Teologia do Livro de Apocalipse........
A Teologia do Livro de Apocalipse........A Teologia do Livro de Apocalipse........
A Teologia do Livro de Apocalipse........AnaniasSousaGoesNeto
 
Comentário: 3º Domingo da Páscoa - Ano B
Comentário: 3º Domingo da Páscoa - Ano BComentário: 3º Domingo da Páscoa - Ano B
Comentário: 3º Domingo da Páscoa - Ano BJosé Lima
 

Semelhante a 148 a mensagem central do novo testamento joachim jeremias (20)

Conhecendo a história
Conhecendo a históriaConhecendo a história
Conhecendo a história
 
(26) Os Evangelhos.pdf
(26) Os Evangelhos.pdf(26) Os Evangelhos.pdf
(26) Os Evangelhos.pdf
 
Amos r binney-compendio_de_teologia (4)
Amos r binney-compendio_de_teologia (4)Amos r binney-compendio_de_teologia (4)
Amos r binney-compendio_de_teologia (4)
 
Amos r binney-compendio_de_teologia (5)
Amos r binney-compendio_de_teologia (5)Amos r binney-compendio_de_teologia (5)
Amos r binney-compendio_de_teologia (5)
 
Amos r binney-compendio_de_teologia (3)
Amos r binney-compendio_de_teologia (3)Amos r binney-compendio_de_teologia (3)
Amos r binney-compendio_de_teologia (3)
 
Amos r binney-compendio_de_teologia
Amos r binney-compendio_de_teologiaAmos r binney-compendio_de_teologia
Amos r binney-compendio_de_teologia
 
Amos r binney-compendio_de_teologia (1)
Amos r binney-compendio_de_teologia (1)Amos r binney-compendio_de_teologia (1)
Amos r binney-compendio_de_teologia (1)
 
Amos r binney-compendio_de_teologia (2)
Amos r binney-compendio_de_teologia (2)Amos r binney-compendio_de_teologia (2)
Amos r binney-compendio_de_teologia (2)
 
Piscopaniquia - Doutrina do sono da alma
Piscopaniquia - Doutrina do sono da almaPiscopaniquia - Doutrina do sono da alma
Piscopaniquia - Doutrina do sono da alma
 
Biblia 09-a-nova-alianca
Biblia 09-a-nova-aliancaBiblia 09-a-nova-alianca
Biblia 09-a-nova-alianca
 
A Nova AliançA De Cristo
A Nova AliançA De CristoA Nova AliançA De Cristo
A Nova AliançA De Cristo
 
Absg 12-q3-p-l01-t
Absg 12-q3-p-l01-tAbsg 12-q3-p-l01-t
Absg 12-q3-p-l01-t
 
Como discípulos anunciamos a morte e ressurreição de jesus 27 03 2005 - dom...
Como discípulos anunciamos a morte e ressurreição de jesus   27 03 2005 - dom...Como discípulos anunciamos a morte e ressurreição de jesus   27 03 2005 - dom...
Como discípulos anunciamos a morte e ressurreição de jesus 27 03 2005 - dom...
 
2º bimestre 2015
2º bimestre 20152º bimestre 2015
2º bimestre 2015
 
2º bimestre
2º bimestre2º bimestre
2º bimestre
 
Aula Jonatas 41: Quem é jesus pra você
Aula Jonatas 41: Quem é jesus pra vocêAula Jonatas 41: Quem é jesus pra você
Aula Jonatas 41: Quem é jesus pra você
 
Disciplina de Teologia do Novo Testamento
Disciplina de Teologia do Novo TestamentoDisciplina de Teologia do Novo Testamento
Disciplina de Teologia do Novo Testamento
 
Estudo Sobre Atos
Estudo Sobre AtosEstudo Sobre Atos
Estudo Sobre Atos
 
A Teologia do Livro de Apocalipse........
A Teologia do Livro de Apocalipse........A Teologia do Livro de Apocalipse........
A Teologia do Livro de Apocalipse........
 
Comentário: 3º Domingo da Páscoa - Ano B
Comentário: 3º Domingo da Páscoa - Ano BComentário: 3º Domingo da Páscoa - Ano B
Comentário: 3º Domingo da Páscoa - Ano B
 

Mais de ssuser615052

O cidadão dos céus
O cidadão dos céusO cidadão dos céus
O cidadão dos céusssuser615052
 
A ceia das bodas e o noivo
A ceia das bodas e o noivoA ceia das bodas e o noivo
A ceia das bodas e o noivossuser615052
 
A bíblia contém paradoxo
A bíblia contém paradoxoA bíblia contém paradoxo
A bíblia contém paradoxossuser615052
 
A arte de profetizar
A arte de profetizarA arte de profetizar
A arte de profetizarssuser615052
 
A criação do mundo
A criação do mundoA criação do mundo
A criação do mundossuser615052
 
A confissão de fé e a lógica
A confissão de fé e a lógicaA confissão de fé e a lógica
A confissão de fé e a lógicassuser615052
 
A ciencia de ficar rico
A ciencia de ficar ricoA ciencia de ficar rico
A ciencia de ficar ricossuser615052
 
A cruz e a crítica
A cruz e a críticaA cruz e a crítica
A cruz e a críticassuser615052
 
A datação do apocalipse
A datação do apocalipseA datação do apocalipse
A datação do apocalipsessuser615052
 
A despedida do lider
A despedida do liderA despedida do lider
A despedida do liderssuser615052
 
A análise da personalidade
A análise da personalidadeA análise da personalidade
A análise da personalidadessuser615052
 
A abordagem bíblica para o evangelismo
A abordagem bíblica para o evangelismoA abordagem bíblica para o evangelismo
A abordagem bíblica para o evangelismossuser615052
 
A abertura do evangelho segundo marcos
A abertura do evangelho segundo marcosA abertura do evangelho segundo marcos
A abertura do evangelho segundo marcosssuser615052
 
1965 12-12-comunhao
1965 12-12-comunhao1965 12-12-comunhao
1965 12-12-comunhaossuser615052
 
500 segredos culinarios revelados
500 segredos culinarios revelados500 segredos culinarios revelados
500 segredos culinarios reveladosssuser615052
 
184 as bem aventuranças charles haddon spurgeon
184 as bem aventuranças   charles haddon spurgeon184 as bem aventuranças   charles haddon spurgeon
184 as bem aventuranças charles haddon spurgeonssuser615052
 
133 miquéias nosso contemporâneo pr isaltino gomes coelho filho
133 miquéias nosso contemporâneo   pr isaltino gomes coelho filho133 miquéias nosso contemporâneo   pr isaltino gomes coelho filho
133 miquéias nosso contemporâneo pr isaltino gomes coelho filhossuser615052
 

Mais de ssuser615052 (20)

O cidadão dos céus
O cidadão dos céusO cidadão dos céus
O cidadão dos céus
 
A ceia das bodas e o noivo
A ceia das bodas e o noivoA ceia das bodas e o noivo
A ceia das bodas e o noivo
 
A bíblia contém paradoxo
A bíblia contém paradoxoA bíblia contém paradoxo
A bíblia contém paradoxo
 
A arte de profetizar
A arte de profetizarA arte de profetizar
A arte de profetizar
 
A analogia da fé
A analogia da féA analogia da fé
A analogia da fé
 
A criação do mundo
A criação do mundoA criação do mundo
A criação do mundo
 
A confissão de fé e a lógica
A confissão de fé e a lógicaA confissão de fé e a lógica
A confissão de fé e a lógica
 
A ciencia de ficar rico
A ciencia de ficar ricoA ciencia de ficar rico
A ciencia de ficar rico
 
A cruz e a crítica
A cruz e a críticaA cruz e a crítica
A cruz e a crítica
 
A datação do apocalipse
A datação do apocalipseA datação do apocalipse
A datação do apocalipse
 
A despedida do lider
A despedida do liderA despedida do lider
A despedida do lider
 
A análise da personalidade
A análise da personalidadeA análise da personalidade
A análise da personalidade
 
A abordagem bíblica para o evangelismo
A abordagem bíblica para o evangelismoA abordagem bíblica para o evangelismo
A abordagem bíblica para o evangelismo
 
A abertura do evangelho segundo marcos
A abertura do evangelho segundo marcosA abertura do evangelho segundo marcos
A abertura do evangelho segundo marcos
 
1965 12-12-comunhao
1965 12-12-comunhao1965 12-12-comunhao
1965 12-12-comunhao
 
o rapto
o raptoo rapto
o rapto
 
1965 09-19-sede
1965 09-19-sede1965 09-19-sede
1965 09-19-sede
 
500 segredos culinarios revelados
500 segredos culinarios revelados500 segredos culinarios revelados
500 segredos culinarios revelados
 
184 as bem aventuranças charles haddon spurgeon
184 as bem aventuranças   charles haddon spurgeon184 as bem aventuranças   charles haddon spurgeon
184 as bem aventuranças charles haddon spurgeon
 
133 miquéias nosso contemporâneo pr isaltino gomes coelho filho
133 miquéias nosso contemporâneo   pr isaltino gomes coelho filho133 miquéias nosso contemporâneo   pr isaltino gomes coelho filho
133 miquéias nosso contemporâneo pr isaltino gomes coelho filho
 

Último

METODOLOGIA ELANA* – ENSINO LEVA AUTONOMIA NO APRENDIZADO. UMA PROPOSTA COMP...
METODOLOGIA ELANA* – ENSINO LEVA  AUTONOMIA NO APRENDIZADO. UMA PROPOSTA COMP...METODOLOGIA ELANA* – ENSINO LEVA  AUTONOMIA NO APRENDIZADO. UMA PROPOSTA COMP...
METODOLOGIA ELANA* – ENSINO LEVA AUTONOMIA NO APRENDIZADO. UMA PROPOSTA COMP...PIB Penha
 
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudo
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudoSérie Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudo
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudoRicardo Azevedo
 
EUBIOSOFIA - MEMÓRIAS DA SOCIEDADE TEOSÓFICA BRASILEIRA
EUBIOSOFIA - MEMÓRIAS DA SOCIEDADE TEOSÓFICA BRASILEIRAEUBIOSOFIA - MEMÓRIAS DA SOCIEDADE TEOSÓFICA BRASILEIRA
EUBIOSOFIA - MEMÓRIAS DA SOCIEDADE TEOSÓFICA BRASILEIRAMarco Aurélio Rodrigues Dias
 
As violações das leis do Criador (material em pdf)
As violações das leis do Criador (material em pdf)As violações das leis do Criador (material em pdf)
As violações das leis do Criador (material em pdf)natzarimdonorte
 
Tabela bíblica Periódica - Livros da Bíblia.pdf
Tabela bíblica Periódica - Livros da Bíblia.pdfTabela bíblica Periódica - Livros da Bíblia.pdf
Tabela bíblica Periódica - Livros da Bíblia.pdfAgnaldo Fernandes
 
As festas esquecidas.pdf................
As festas esquecidas.pdf................As festas esquecidas.pdf................
As festas esquecidas.pdf................natzarimdonorte
 
Oração A Bem-Aventurada Irmã Dulce Dos Pobres
Oração A Bem-Aventurada Irmã Dulce Dos PobresOração A Bem-Aventurada Irmã Dulce Dos Pobres
Oração A Bem-Aventurada Irmã Dulce Dos PobresNilson Almeida
 
MATERIAL DE APOIO - E-BOOK - CURSO TEOLOGIA DA BÍBLIA
MATERIAL DE APOIO - E-BOOK - CURSO TEOLOGIA DA BÍBLIAMATERIAL DE APOIO - E-BOOK - CURSO TEOLOGIA DA BÍBLIA
MATERIAL DE APOIO - E-BOOK - CURSO TEOLOGIA DA BÍBLIAInsituto Propósitos de Ensino
 
9ª aula - livro de Atos dos apóstolos Cap 18 e 19
9ª aula - livro de Atos dos apóstolos Cap 18 e 199ª aula - livro de Atos dos apóstolos Cap 18 e 19
9ª aula - livro de Atos dos apóstolos Cap 18 e 19PIB Penha
 
Paulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingo
Paulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingoPaulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingo
Paulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingoPIB Penha
 
O Sacramento do perdão, da reconciliação.
O Sacramento do perdão, da reconciliação.O Sacramento do perdão, da reconciliação.
O Sacramento do perdão, da reconciliação.LucySouza16
 
Baralho Cigano Significado+das+cartas+slides.pdf
Baralho Cigano Significado+das+cartas+slides.pdfBaralho Cigano Significado+das+cartas+slides.pdf
Baralho Cigano Significado+das+cartas+slides.pdfJacquelineGomes57
 
Lição 4 - Como se Conduzir na Caminhada.pptx
Lição 4 - Como se Conduzir na Caminhada.pptxLição 4 - Como se Conduzir na Caminhada.pptx
Lição 4 - Como se Conduzir na Caminhada.pptxCelso Napoleon
 
2 joão (1) 1.pptx As TRÊS CARTAS DO APÓSTOLO JOÃO têm uma mensagem solene e u...
2 joão (1) 1.pptx As TRÊS CARTAS DO APÓSTOLO JOÃO têm uma mensagem solene e u...2 joão (1) 1.pptx As TRÊS CARTAS DO APÓSTOLO JOÃO têm uma mensagem solene e u...
2 joão (1) 1.pptx As TRÊS CARTAS DO APÓSTOLO JOÃO têm uma mensagem solene e u...MiltonCesarAquino1
 

Último (18)

METODOLOGIA ELANA* – ENSINO LEVA AUTONOMIA NO APRENDIZADO. UMA PROPOSTA COMP...
METODOLOGIA ELANA* – ENSINO LEVA  AUTONOMIA NO APRENDIZADO. UMA PROPOSTA COMP...METODOLOGIA ELANA* – ENSINO LEVA  AUTONOMIA NO APRENDIZADO. UMA PROPOSTA COMP...
METODOLOGIA ELANA* – ENSINO LEVA AUTONOMIA NO APRENDIZADO. UMA PROPOSTA COMP...
 
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudo
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudoSérie Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudo
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudo
 
EUBIOSOFIA - MEMÓRIAS DA SOCIEDADE TEOSÓFICA BRASILEIRA
EUBIOSOFIA - MEMÓRIAS DA SOCIEDADE TEOSÓFICA BRASILEIRAEUBIOSOFIA - MEMÓRIAS DA SOCIEDADE TEOSÓFICA BRASILEIRA
EUBIOSOFIA - MEMÓRIAS DA SOCIEDADE TEOSÓFICA BRASILEIRA
 
As violações das leis do Criador (material em pdf)
As violações das leis do Criador (material em pdf)As violações das leis do Criador (material em pdf)
As violações das leis do Criador (material em pdf)
 
Tabela bíblica Periódica - Livros da Bíblia.pdf
Tabela bíblica Periódica - Livros da Bíblia.pdfTabela bíblica Periódica - Livros da Bíblia.pdf
Tabela bíblica Periódica - Livros da Bíblia.pdf
 
As festas esquecidas.pdf................
As festas esquecidas.pdf................As festas esquecidas.pdf................
As festas esquecidas.pdf................
 
Oração A Bem-Aventurada Irmã Dulce Dos Pobres
Oração A Bem-Aventurada Irmã Dulce Dos PobresOração A Bem-Aventurada Irmã Dulce Dos Pobres
Oração A Bem-Aventurada Irmã Dulce Dos Pobres
 
Mediunidade e Obsessão - Doutrina Espírita
Mediunidade e Obsessão - Doutrina EspíritaMediunidade e Obsessão - Doutrina Espírita
Mediunidade e Obsessão - Doutrina Espírita
 
Aprendendo a se amar e a perdoar a si mesmo
Aprendendo a se amar e a perdoar a si mesmoAprendendo a se amar e a perdoar a si mesmo
Aprendendo a se amar e a perdoar a si mesmo
 
MATERIAL DE APOIO - E-BOOK - CURSO TEOLOGIA DA BÍBLIA
MATERIAL DE APOIO - E-BOOK - CURSO TEOLOGIA DA BÍBLIAMATERIAL DE APOIO - E-BOOK - CURSO TEOLOGIA DA BÍBLIA
MATERIAL DE APOIO - E-BOOK - CURSO TEOLOGIA DA BÍBLIA
 
Centros de Força do Perispírito (plexos, chacras)
Centros de Força do Perispírito (plexos, chacras)Centros de Força do Perispírito (plexos, chacras)
Centros de Força do Perispírito (plexos, chacras)
 
9ª aula - livro de Atos dos apóstolos Cap 18 e 19
9ª aula - livro de Atos dos apóstolos Cap 18 e 199ª aula - livro de Atos dos apóstolos Cap 18 e 19
9ª aula - livro de Atos dos apóstolos Cap 18 e 19
 
Paulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingo
Paulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingoPaulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingo
Paulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingo
 
VICIOS MORAIS E COMPORTAMENTAIS NA VISÃO ESPÍRITA
VICIOS MORAIS E COMPORTAMENTAIS  NA VISÃO ESPÍRITAVICIOS MORAIS E COMPORTAMENTAIS  NA VISÃO ESPÍRITA
VICIOS MORAIS E COMPORTAMENTAIS NA VISÃO ESPÍRITA
 
O Sacramento do perdão, da reconciliação.
O Sacramento do perdão, da reconciliação.O Sacramento do perdão, da reconciliação.
O Sacramento do perdão, da reconciliação.
 
Baralho Cigano Significado+das+cartas+slides.pdf
Baralho Cigano Significado+das+cartas+slides.pdfBaralho Cigano Significado+das+cartas+slides.pdf
Baralho Cigano Significado+das+cartas+slides.pdf
 
Lição 4 - Como se Conduzir na Caminhada.pptx
Lição 4 - Como se Conduzir na Caminhada.pptxLição 4 - Como se Conduzir na Caminhada.pptx
Lição 4 - Como se Conduzir na Caminhada.pptx
 
2 joão (1) 1.pptx As TRÊS CARTAS DO APÓSTOLO JOÃO têm uma mensagem solene e u...
2 joão (1) 1.pptx As TRÊS CARTAS DO APÓSTOLO JOÃO têm uma mensagem solene e u...2 joão (1) 1.pptx As TRÊS CARTAS DO APÓSTOLO JOÃO têm uma mensagem solene e u...
2 joão (1) 1.pptx As TRÊS CARTAS DO APÓSTOLO JOÃO têm uma mensagem solene e u...
 

148 a mensagem central do novo testamento joachim jeremias

  • 2.
  • 3. JOACHIM JEREMIAS A MENSAGEM CENTRAL DO NOVO TESTAMENTO Prefácio de F. Refoulé, O. P. 2005 CRISTÃ
  • 4. © Editora Academia Cristã Título original: Le message central du Noveau Testament Les Éditions du Cerf, Paris Supervisão Editorial: Luiz Henrique A. Silva Rogério de Lima Campos Paulo Cappelletti Layout, e artefinal: CompSystem - Digitação e Diagramaçâo Ltda-Me. Tradução: João Rezende Costa Revisão: Vagner Montrezol Capa: James Valdana Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Jeremias, Joachim, 1900- J55m A mensagem central do Novo Testamento (traduziu João Rezende Costa) - São Paulo : Ed. Academia Cristã Ltda, 2005. 14 X21 cm; 152 páginas ISBN 85-98481-06-8 1. Bíblia- N.T. -Teologia I. Título. CDU-225.017 índices para catálogo sistemático: I. Novo Testamento - Teologia 225.017 Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer forma ou meio eletrônico e mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem permissão expressa da editora (Lei n° 9.610 de 19.2.1998). Todos os direitos reservados à Editora A cademia Cristã L tda. Rua Marina, 333 - Santo André Cep 09070-510 - São Paulo, SP - Brasil Fonefax (11) 4424-1204 / 4421-8170 Email: academiacrista@globo.com Site: www.editoraacademiacrista.com.br
  • 5. PREFACIO Será que o Cristo da fé é também o Jesus da his­ tória, será que a mensagem dos apóstolos coincide com a de Jesus, será que a Igreja está vinculada re- ahnente à comunidade messiânica reunida por Je­ sus, e será que o cristianismo não passa de um esse- nismo que teria tido êxito? Estas graves questões, que tocam o próprio cerne da nossa fé, situam-se no centro dos debates contemporâneos. São delas que o professor Jeremias trata diretamente neste opúsculo, que temos a felicidade de aqui apresen­ tar. Isto basta para dizer a importância desta obra, cujo peso não se mede pelo número das páginas. A exposição do professor Jeremias apresenta-se, todavia, com tanta simplicidade, e com uma erudi­ ção tão discreta, que o alcance das conclusões do Autor corre o risco de escapar ao leitor não adverti­ do. Parapressentir seu significado,épreciso,cremos, conhecer pelo menos em suas grandes linhas o con­ texto histórico em que se situam estes estudos. No decorrer do século XIX,o estudo crítico ehis­ tórico do Novo Testamento levou os exegetas e os
  • 6. Prefácio teólogos a tomarem mais claramente consciência do corte profundo que foi - na evolução do cristianis­ mo das origens - o evento pascal, ou seja, o duplo fato da morte e da ressurreição de Jesus. A vinda do reino de Deus constituíra o tema maior da pre­ gação de Jesus. Depois da Páscoa, a mensagem dos apóstolos resume-se essencialmente no anúncio de Jesus como Messias e Senhor. Os textos o demons­ tram de modo evidente. Como o frisa R.Schnacken- BURG, no seu grande livro Gottes Herrschaft und Reich, os sermões missionários dos Atos dos Após­ tolos não mencionam nem sequer uma vez o reino de Deus, e, no conjunto dos Atos, ele não é evocado mais do que sete vezes, ao passo que aparece trinta e nove vezes no Evangelho de Lucas. Pelo contrá­ rio, a pregação da ação salvadora de Jesus desde o seu batismo, a pregação da sua crucifixão e ressur­ reição, constitui regularmente o cerne dos discur­ sos de Pedro e dos apóstolos. Da pregação de Jesus à dos apóstolos, o centro de gravidade deslocou-se incontestavelmente. Evi- denciou-se difícil uma justa interpretação deste fato e os exegetas ainda não chegaram a determinar de modo satisfatório a relação entre a pregação de Je­ sus e a dos apóstolos. H arnack e os teólógos protestantes liberais consi­ deravam a pregação apostólica como um desenvol­ vimento üegítimo e mitologizante da mensagem de Jesus. Para estes teólogos, o ensinamento do Novo TestamentosobreJesusMessias,Senhor,FühodeDeus, Redentor, Juiz escatológico, não conteria nada de
  • 7. Prefácio especificamente cristão,pelo contrário, violaria os tra­ ços individuais e concretos da figura histórica de Je­ sus, sobre a qual aquele ensinamento estaria distante. Hoje, inversamente,para Bultmann e seus discípulos, o evento pascal marcaria o começo absoluto do cristi­ anismo. Jesus, afirmam eles, não teria sido um "cris­ tão", mas um judeu, e sua pregação se moveria intei­ ramenteem quadrosdeidéiaseconceitosdojudaísmo, mesmo quando entra em oposição à religião judaica tradicional. Esta solução radical de Bultmann susci­ tou vivas reações eaté mesmo alguns de seusdiscípu­ los se recusam a segui-lo neste ponto. Como admitir, com efeito, que apessoa eo ensinamento deJesusnão se situem no centro da mensagem cristã? Além disto, se é verdade que a pregação dos apóstolos não se li­ mitou a repetir a de Jesus, não é menos verdade que elasempre sereferiu à deJesuse que osprimeiros dis­ cípulos sentiram a necessidade de escrever "evange­ lhos".Enfim,comoKàsemann objetacomrazãoa Bult­ mann, "somente se a pregação de Jesus coincide de modo decisivo com a pregação sobre Jesus, é que se pode compreender que o ressuscitado é oJesushistó­ rico. A partir daí, somos constrangidos,comohistoria­ dores, a remontar para além da Páscoa. Verificare­ mos se Jesus está detrás da palavra de sua Igreja ou não, e se o querigma cristão é um nüto inteiramente separável da sua palavra e dele próprio, ou se ele está vinculado indissoluvelmente ao Jesus histórico". E precisamente esta coincidência decisiva entre a pregação de Jesus e a da sua Igreja que o professor Jeremias sepropõe mostrarna presente obra. Partindo
  • 8. P refácio dos temas maiores da pregação apostólica (oração endereçada ao Pai, justificação pela fé, morte de Je­ sus como sacrifício), ele remonta, passo a passo, até as camadas mais antigas da tradição na tentativa de determinar em que medida estas doutrinas fun­ damentais estão vinculadas à pregação de Jesus. E depois destas pacientes análises que ele se crê auto­ rizado a afirmar a unidade real da mensagem cris­ tã quanto ao essencial, e a continuidade da doutri­ na dos apóstolos com a de Jesus. Seninguém jamais pôs em dúvida a qualidade ex­ cepcionaldas pesquisas do professorJeremias eo rigor do seu método exegético, fundado particularmente num conhecimento notável do aramaico, alguns au­ tores católicos e protestantes recentemente julgaram poder formular reservas quanto ao seu alcance teoló­ gico. Alguns,por exemplo, questionaram se o interes­ se que o professor Jeremias dirige ao Jesus da história não implicaria uma certa depreciação da tradição apostólica. Outros julgam que o caráter decisivo do evento pascal não se acharia suficientemente acentu­ ado; perguntam-se se o professor Jeremias não viria, como outrora osjudeu-cristãos, a considerar a ressur­ reição de Jesus mais como a confirmação da mensa­ gem de Jesus do que como o objeto central da fé. Al­ guns, enfim, temem que o peso que ele atribui às provas históricas não venha a pôr a fé na dependên­ cia da crítica histórica e literária. Seja lá o que for, nada na presente obra justifica essas críticas ou esses temores. O Autor, neste opús­ culo,sepropõe unicamentemostrarqueJesussesitua
  • 9. P refáck) por detrás daspalavras da sua Igreja, e, da nossa parte, cremos que ele realiza o seu propósito de ma­ neira tão convincente como magistral. Expresse­ mos-lhe aqui a nossa gratidão. F.Refoulé, o .P.
  • 10. INDICE GERAL C a p ít u l o I- ABBÁ......................................................13 1. Deus "Pai" no Antigo Testamento....................13 2. O judaísmo palestinense....................................19 3. "Abbá" nas orações de Jesus.............................. 22 4. A paternidade de Deus nos Evangelhos..........27 5. A oração do Senhor..............................................34 6. Conclusão.............................................................36 C a p ít u l o II - A MORTE DEJESUSCOMO SACRIFÍCIO.............................................................39 1.A paixão na Epístola aos Hebreus e na primeira Epístola de Pedro................................39 2.Apóstolo Paulo.................................................... 45 3.A Igreja das origens.............................................55 4.Qual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte?................................................57 C a p ít u l o III- AJUSTIFICAÇÃOPELAFÉ..............67 1.0 sentido da fórmula........................................67 2.Justificação e nova criação..................................74 3.A origem da doutrina paulina da justificação ....84
  • 11. C apítulo IV - O VERBO REVELADOR...................91 1.A forma literária do prólogo de João.................91 2.0 encadeamento das idéias...............................100 A segunda estrofe (vv. 6-8)................................102 A terceira estrofe (vv. 9-13)................................102 A quarta estrofe (vv. 14-18).........;.....................104 3.0 sentido da designação de Jesus como Lógos....................................................................108 C apítuloV - A ORIGINALIDADE DA MENSAGEM DO NOVO TESTAMENTO...........113 Qumran e a Teologia..............................................113 1.Cresceu o conhecimento do meio em que viveu Jesus......................................................123 2.Analogias com a comunidade cristã das origens..............................................................130 3.0 que separa os essênios de Jesus..............136 ÍNDICE DOSAUTORES...........................................145 ÍNDICE DOSTEXTOS BÍBLICOS...........................147 1 2 Ín d ic e
  • 12. Capítulo I ABBÁ 1. Deus "Pai" no Antigo Testamento No Oriente Próximo, por mais que retornemos no tempo, sempre é familiar a idéia mitológica do deus pai da humanidade ou de certos seres huma­ nos. Povos, tribos e famílias se dizem proceder de um ancestral divino. É particularmente ao rei, en­ quanto representante do seu povo, que se atribui uma parte especial da dignidade e do poder de um pai divino. Toda vez que a palavra "pai" é usada para a divindade, neste contexto, implica a pater­ nidade no sentido de autoridade incondicional e irrevogável. Estes são fatos muito conhecidos na história das religiões, mas o que é menos conhecido é que muito cedo já a palavra "pai", enquanto epíteto atribuído à divindade, está carregada de uma tonalidade par­ ticular. Num célebre hino sumério eacádico de Ur, o deus Lua, Sin, é invocado como "Pai misericordioso.
  • 13. 14 A bba em suas disposições que retém em sua mão a vida de todo opaís". Edo deus sumério-babilônico se diz; Sua cólera é como o dilúvio, Ele se reconcilia como um pai misericordioso. Para os orientais, por mais que recuemos no tempo, a palavra "pai" aplicada para Deus evoca - algo semelhante ao que a palavra "mãe" signifi­ ca para nós. Isto ainda é mais verdade no Antigo Testamen­ to. Aí, raramente se chama a Deus de "pai", apenas catorze vezes, mas cada uma delas é importante. Para começar, quando Deus é chamado de "pai" ele é honrado como criador; Não é ele,porventura, teupai, que te fez seu, que te formou e te consolidou? (Dt 32.6). Porventura não é um mesmo o Pai de todosnós? Não é um só Deus que nos criou? (Ml 2.10). Como criador. Deus é o Senhor. Ele pode espe­ rar receber a obediência em homenagem. Por outro lado, sendo um pai. Deus é considera­ do misericordioso;
  • 14. Deus "P ai" o Axtigo Tetamexto 15 Como um paise compadece dos filhos, assim dos que o temem se apieda o Senhor. Pois ele bem conhece de que massa somos feitos: recorda-se que somospó (SI 103.13s). Porque Deus é o criador, está cheio de indulgên­ cia paternal para com a fraqueza de seus filhos. É evidente que todas estas citações do Antigo Testamento refletem o velho conceito oriental da paternidade divina. Há, porém, diferenças funda­ mentais. O fato de que no Antigo Testamento Deus não é o ancestral, mas o criador, não é a menor di­ ferença. E o que é ainda mais importante: no Anti­ go Testamento, a paternidade divina atribui-se só a Israel e de uma maneira que não encontra nenhum equivalente. Israel tem uma relação toda particu­ lar com Deus. Israel é o primogênito de Deus, esco­ lhido entre todos os povos (Dt 14.Is). Além disto, esta eleição de Israel como filho primogênito de Deus se originava, cria-se, num fato histórico con­ creto: o êxodo do Egito. Associar a paternidade de Deus com um fato histórico implica uma profunda revisão do conceito de Deus como Pai; A certeza de que Deus é Pai e Israel seu filho não se fundamenta no mito, mas em um ato línico de salvação realiza­ do por Deus, do qual Israel foi o alvo na história. Contudo, somente nos profetas é que o conceito de Deus como Pai adquire todo o seu sentido no Antigo Testamento. Quantas vezes os profetas não foram obrigados a repetir que Israel só correspondia
  • 15. 16 A bbâ ao amor paternal de Deus por uma constante in­ gratidão. A maior parte dos textos proféticos refe­ rentes a Deus como Pai denunciam com insistência e paixão a contradição que se manifesta entre a filia­ ção de Israel e sua impiedade... Eagora me invocas, não é verdade?: "Meu Pai, vós sois o companheiro da minha juventude! Terá que guardar eterno rancor? Terá que conservar ressentimento para sempre?" Assim falas;mas depois fazes o mal quepodes! (Jr 3.4s). E eu disse: "Comoposso colocar-te entre os meus fílhos e dar-te uma terra invejável, a gema das nações como herança?" E acrescentei: "Chamar-me-eispai, e não hesitareis em vir após mim Como,porém, uma mulheréinfiel ao seu amante, assim vós me fostes infíéis, ó filhos de Israel, diz o Senhor (Jr 3.19s). Um fílho honra seupai e um servo teme o seu senhor. Masse eu sou Pai, onde está a honra que me corresponde?
  • 16. Deus "F ai" o Amic.o Tftamexto 17 Ese sou senhor, onde está o temor que se me deve? (Ml 1.6) A resposta constante de Israel a este apelo ao arrependimento é: "Tu és o meu (ou o nosso) Pai" - Abbinu atta.No trito-Isaías, este grito tornou-se um apelo supremo à misericórdia e ao perdão de Deus: Contemplaido céu e observai da vossa santa, magnífica morada: Onde estão o vosso zelo e a vossa força, a ternura de vossas entranhas e a vossa misericórdia? Não fiqueis insensível, porque sois nosso Pai(abbinu atta). Não é Abraão que sepreocupa conosco, Israelnem sabe quem somos, mas vós. Senhor, sois o nosso Pai, enosso Víndice, desde todos os tempos, é o vosso nome (Is 63.15s). E, no entanto. Senhor, vóssois onosso Pai, nós somos a argila e vós o nosso oleiro; somos todos obra de vossasmãos. Não vos irriteis em extremo. Senhor, e não vos lembreis eternamente da culpa (Is 64.7s). Deus responde a este apelo de Israelpelo perdão. Os 11.1-11 faz disto uma descrição comovente.
  • 17. 18 A bba Compara-se Deus com um pai que, ensinando a an­ dar ao seu filho Efraim, carregava-o nos braços: E eu ensinava Efraim a andar, tomava-o nos braços... Como te hei de abandonar, Efraim? Deixar-te à mercê de outros, ó Israel? (Os 11.3,8). Do mesmo modo o profeta Jeremias encontrou as intensidades mais comoventes para expressar o perdão de Deus: Com lágrimaspartiram, no meio de consolações os trareide volta; levá-los-eiaos arroios de água, por um caminho reto, que os não cansará, pois serei um paipara Israel e Efraim será meuprimogênito (Jr 31.9). A misericórdia paternal de Deus ultrapassa toda compreensão humana: Mas é Efraim para mim um filho tão caro, filhinho de caricias... Com efeito, apenas falo dele, ou mesmo quando tão só dele me lembro, basta-me isto para que se me comovam por ele as entranhas sinto deveras compaixão dele (Jr 31.20).
  • 18. OJüDAÍSMO P aLESTINENSE 19 A última palavra do Antigo Testamento sobre a paternidade divina é esse "saber" da incompreen­ sível misericórdia de Deus e de seu perdão. 2. O judaísmo palestinense Assim como o Antigo Testamento, também oju­ daísmo palestinense anterior a Jesus Cristo é sóbrio em falar de Deus como Pai. Assim, por exemplo, em toda a literatura de Qiimran, que deve ser anterior a 68a.C., só existe uma passagem em que se dá o nome de pai a Deus^ O judaísmo rabínico serve-se mais li­ vremente do título, mas sem excesso. Procurando sa­ ber o que os judeus contemporâneos de Jesus enten­ diam quando davam a Deus o nome de Pai, precisamos frisar duas notas características. Em pri­ meiro lugar, tendo a menor familiaridade com o ju­ daísmo destaépoca,nãoacharemosestranhoverener­ gicamente sublinhada a obrigação de obedecer ao Pai celeste. Os rabinos ensinavam que Deus estende sua paternidade unicamente àqueles que cumprem a Lei (Tora). Ele é pai dos que fazem sua vontade, dos jus­ tos. Contudo, encontra-se ainda e sempre a certeza formidável dos profetas: o amor paternal de Deus é sem limites e ultrapassa toda culpabilidade humana. Quando o rabi Jehuda (cerca de 150 a.C.) ensinava: Se agisseis como íilhos, serieis chamados de filhos. QH 9.55 S
  • 19. 20 A bba Se não agisseis como filhos, não serieis chamados de filhos. O seu colega e adversário rabi Meir lhe opunha esta frase de audaz brevidade: De uma maneira ou de outra - sois chamados de filhos^. O amor paternal de Deus é sua primeira e últi­ ma palavra, por maior que seja a culpabilidade de seus filhos.O segundo traço que caracteriza os tes­ temunhos judaicos desta época sobre a paternida­ de de Deus é o seguinte: Deus é chamado de Pai várias vezes de cada israelita em particular, e a ele se dirigem nas orações litúrgicas: abbinu, malkenu - "nosso Pai, nosso Rei". Assim é possível ler em uma oração que pode facilmente ser situada na mesma época de Jesus: Nosso Pai,nosso Rei, em vista de nossospais que crêem em ti e a quem ensinas as leis da vida - tem piedade de nós e ilumina-no^. - Talmud Babilónico, tratado Qidduschim, 36‘ ^(Baraitha). ’ Oração Ahabba rabba, a segunda bênção que introduzia o Shema recitado diariamente de manhã e de tarde. Prova­ velmente já fazia parte da liturgia do Templo {Mischna, Tratado Tamid, 5.L). Textos: W. B. H eidenheim, Siddur Se- phath Emeth, Rodelheim, 1886, pp. 17a.l3s.
  • 20. o Judaísmo Palestinexse 21 Isto é novidade com referência ao Antigo Testa­ mento. Contudo, há um certo número de coisas que nãodevem sernegligenciadas.Primeiramente,estetex­ to está em hebraico, língua sacra, da qual não se abdi­ cava na vida cotidiana. Considere-se também o duplo título de "nosso Pai, nosso Rei", que sublinha tanto a majestade de Deus enquanto Rei como sua paternida­ de,emuitomais. Para terminar,éo conjunto da comu­ nidade que se dirige a Deus como "nosso Pai". Até hoje ninguém forneceu um único exemplo com origem no judaísmo palestinense em que Deus seja chamado de "meu Pai" por um indivíduo^.En- contram-se alguns casos no judaísmo helenístico, mas são de influência grega. Entre os escritos pa- lestinenses, só se pode citar um texto, de dois versí­ culos, muito semelhante do c. 23 do livro de Bern Sira (começo do séc. II a.C.), que infelizmente só há em grego. Aí se pode ler: "Ó Senhor, Pai e dono da minha vida..." (v. 1) e: "O Senhor, Pai e Deus da minha vida..." (v. 4). Estes dois versículos são os únicos que fazem exceção à regra, e nós o acataría­ mos como sendo um prelúdio ao Evangelho, se não houvesse sido descoberta, há cerca de uns 30 anos, uma paráfrase hebraica deste texto. Nela não se diz: "Ó Senhor, Pai...", mas: "Ó Deus de meu pai^..." Te­ mos aí evidentemente os termos do texto hebraico ^Existem alguns casos isolados no Sedher Eliyahu Rabba, mas é um texto medieval (séc. 10?) do sul da Itália. " J. M a r c u s, A fifth MS of Ben Sira, in; Jewish Quarterly Re­ view 21 (1930) p. 238.
  • 21. 22 A b b á original,porque a expressão "Deus de meu pai", que provém de Ex 15.2 estava muito dispersa e acha-se alhures no Sirácida. Pode-se, portanto, dizer que não existe até agora nenhuma prova de que no ju­ daísmo palestinense alguém se tenha dirigido a Deus, chamando-o de "meu Pai". 3. "Abbá" nas orações de Jesus Ora, é exatamente o que fez Jesus. Os discípulos devem ter achado muito extraordinário Jesus se di­ rigir a Deus dizendo "meu Pai". Não só os quatro evangelhos atestam que Jesus se dirigia a Deus nes­ tes termos, mas todos eles relatam que o fazia em todas as suas orações^ Há uma única oração de Je­ sus onde falta o "meu Pai", e trata-se do grito na cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abando­ naste?" (Mc 15.34, paral. Mt 27.46), citando o SI22.1. Ainda não dissemos tudo: o que é mais notável é o fato de Jesus, em suas orações, se dirigir a Deus como ao seu Pai, servindo-se da palavra aramaica abbá^.Marcos o afirma categoricamente no seu re­ lato da oração no Getsêmani: "Abbá (Pai)! tudo te é possível: afasta de mim este cálice; todavia, não se façao que eu quero, mas o que tu queres" (Mc 14.36). Que Jesus tenha utilizado esta mesma palavra abbá também nas suas outras orações, prova-se por uma comparação das formas diferentes que a palavra * 21 vezes (16 vezes se os paralelos forem contados uma só vez). ^O acento está ma última sílaba.
  • 22. " A bbá" nas orações de Jesus 23 "pai" toma no grego. Ao lado do vocativo correto jtárep / páte^ ou íráxep pm) / páter m oif, encon­ tramos o nominativo ó jiatfip / hopatér rva.função de vocativo, o que é incorreto^“.Estas passagens do vocativo ao nominativo, que aparecem num só e mesmo lógion (Mt 11.25,26, parai. Lc 10.21) não se podem explicar sem se considerar o fato de que a palavra abbá - como o veremos - servia corrente­ mente no aramaico da Palestina no primeiro sécu­ lo, não só como invocativo, mas também para di­ zer "o pai" {status emphaticus). Digamos, enfim, que sem contar Mc 14.34 e as variantes da palavra "pai" em grego, possuímos uma terceira peça que prova que Jesus dizia Abbá quando orava. São as duas passagens de Paulo, em Rm 8.15 e G14.6. Elas nos informam que as comunidades cristãs diziam "Appá, ó íiaxfip / Abbá, ho patér" (Abbá, Pai) e ti­ nham-no como expressão produzida pelo Espírito Santo. Aplica-se isto tanto às comunidades pauli- nas (Gálatas) como às não-paulinas (Romanos), e não há dúvida de que esta invocação seja um eco das próprias orações de Jesus. Não se encontra nada de comparável nas orações judaicas do primeiromilênio antes de Cristo.Não exis­ tenenhum exemplono conjuntodasoraçõesdojudaís­ mo antigo - imenso tesouro muito pouco explorado - » Mt 11.25 parai. Lc 10.21; Lc 11.2; 22.42; 23.34,46; Jo 11.41; 12.27s; 17.1,5,11,24,25. ’ Mt 26.39,42. Mt 14.36; Mt 11.26 parai. Lc 10.21; Rm 8.15; G1 4.6; sem o artigo unicamente nas variantes: Jo 17.5,11,21,24,25.
  • 23. 24 A bba desta invocação dirigida a Deus coma Abbá,nem nas orações propriamente litúrgicas nem nas outras. Existe apenas uma passagem da literatura ju­ daica tardia, onde a palavra abbá se refere a Deus. É a narração de um acontecimento que se deu pelo fim do séc. I a.C. Refere-se a Hanin ha-Nehba, um homem famoso por seu sucesso em orações para obter chuva: "Quando o mundo precisava de chuva, nos­ sos mestres tinham o costume de lhe mandar as crianças das escolas, que se agarravam ao seu manto e imploravam; Abbá, abbá habh lan m i­ tra-. papai, papai, dá-nos a chuva". E ele lhe (a Deus) dizia: "Senhor do universo, concede-nos (a chuva) em vista destes que não são ainda ca­ pazes de distinguir entre um abbáque tem o po­ der de dar a chuva e um abbá que não tem"“. À primeira vista, parece que temos aí uma amostra em que Deus é chamado de Abbá.Mas de­ vemos considerar duas coisas. Em primeiro lugar, a palavra abbáé aplicada a Deus como que a modo de brincadeira. Hanin apela à misericórdia de Deus, adotando o grito: "Papai, papai, dá-nos a chuva", que as crianças repetem em coro, e cha­ ma a Deus de um "Abbá que tem o poder de dar a chuva", como o fariam as crianças na sua lingua­ gem. Em segimdo lugar, e isto é o mais importante. Talmud Babilónico, Tratado Ta^anith, 23b.
  • 24. "A bba" nas orações de Jesus 25 Hanin não se dirige absolutamente a Deus como Abbá; pelo contrário, invoca-o como "Senhor do universo". Sem dúvida, a história constitui, de cer­ to modo, um prelúdio à afirmação de Jesus dizen­ do que o Pai celeste sabe do que precisam seus fi­ lhos (Mt 6.32 parai.), que ele envia a chuva sobre os justos e os injustos (Mt 5.45), e dá coisas boas aos filhos que lhas pedem (Mt 7.11 parai., Lc 11.13). Mas isso não nos fornece a prova de um uso de abbá para invocar a Deus. Deste modo não temos nenhum testemunho do uso deste termo com tal referência em todo o judaísmo. Chegamos a um resultado de importância capi­ tal. De um lado, as orações judaicas não contêm um só exemplo do emprego de abbá para dirigir-se a Deus; por outro lado, Jesus a usava sempre quando orava (com a exceção do grito na cruz em Mc 15.34). Significaque temos aí,incontestavelmente,um traço característico do modo como Jesus, e somente Je­ sus, se expressava, da sua ipsissima vox. As razões pelas quais as orações judaicas não se dirigiam a Deus como Abbá, se encontram ao se considerar o fundo lingüístico da palavra. Origi­ nalmente, abbáíazm parte do balbucio infantil.O Tal­ mud diz; "Quando a criança começa a comer trigo (isto é, quando é desmamada), aprende a dizer abbá e iiTuná"(ou seja, papai e mamãe são as primeiras palavras que ela diz)^^. Igualmente, Pais da Igreja, Talmud Babilónico, Tratado Berachoth, 40a (Bar.) paral. Tratado Sanhedrin, 70b (Bar.).
  • 25. 26 A bbá como João Crisóstomo, Teodoro de Mopsuéstia e Teodoreto de Ciro, os três nascidos em Antioquia de pais ricos, mas, segundo todas as possibilidades, educados por amas sírias, nos dizem, por sua pró­ pria experiência, que as criancinhas tinham o cos­ tume de chamar seu pai de Abbá. Quando comecei este estudo, que me exigiu alguns anos de trabalho, pensava que Jesus tinha simplesmente adotado este balbucio infantil. Mas não demorei a constatar que esta conclusão era muito apressada, pois ignorava o fato de que já na época pré-cristã, esta palavra, que se originava da linguagem dos bebês, tinha re­ cebido um sentido mais amplo no aramaico da Pa­ lestina. Para dirigir-se a seu pai, a forma abbá su­ plantou a antiga forma abbi, usada no aramaico palestinense até pelo menos o séc. II a. C ., como constatamos pela documentação. Além disso, abbá tomou o sentido de "meu pai", e de "o pai", e subs­ tituiu na época até mesmo "seu pai" e "nosso pai". De tal modo que a palavra não era apenas parte do linguajar das crianças. Os jovens de ambos os sexos também chamavam o próprio pai de Abbá (cf. Lc 15.21), não recorrendo à palavra "Senhor" (Kúpie / Kyriê) a não ser em uso cerimonioso (cf.Mt 21.29- 30). Mas, apesar destes desenvolvimentos, jamais caiu no esquecimento o fato de que esta palavra provinha do linguajar infantil. Eis-nos, pois, autorizados a dizer porque abbá não se usa nas oraçõesjudaicas para invocar a Deus: seria desrespeitoso, e portanto impensável para uma mentalidade judaica, chamar a Deus com um
  • 26. A PATERNIDADE DE D e US NOS E v a NGELHOS 27 nome tão familiar^^. Foi algo de novo, linico e inau­ dito, ter Jesus ousado tomar essa iniciativa e falar a Deus como uma criança fala ao seu pai, com sim­ plicidade, intimidade e sem temor. Portanto, não há dúvida alguma de que a palavra abbá,utilizada por Jesus para dirigir-se a Deus, revela o próprio fun­ damento de sua comunhão com ele. 4. Á paternidade de Deus nos Evangelhos Dever-se-ia considerar esta maneira infantil de se dirigir a Deus como a última etapa do desenvol­ vimento geral das relações do homem com Deus, ou não haveria aí algo mais? Para obter a resposta, ampliemos o nosso exame das fontes. Até agora nos restringimos à invocação de Deus como Pai nas orações de Jesus. Daremos um passo adiante, considerando as palavras em que Jesus fala de Deus como de um pai. Ou seja, nossa intenção vai passar da invocação "meu Pai" à maneira pela qual Jesus diz que Deus é "Pai". Encontramos, nos Evangelhos, nada menos do que sessenta vezes a palavra Paipara Deus nos lábios de Jesus. À primeira vista, não parece haver a me­ nor dúvida de que, para Jesus, "Pai" seja a designa­ ção de Deus. Mas será assim mesmo? Ao se classifi­ car os textos de acordo com as cinco camadas da Só existe no hassidismo (que surgiu no séc. 18) este modo familiar de se dirigir a Deus (utilizando-se, por exemplo, os diminutivos), como notou ao autor o Dr. Ja co b T au bes de New York.
  • 27. 28 A bba tradição que se podem discernir nos Evangelhos, achamo-nos diante do seguinte quadro (os parale­ los sínóticos são contados uma só vez, e a invoca­ ção 'Tai" é excluída): Marcos 3 vezes Ditos comuns a Mateus e a Lucas (coleção dos Lógià) 4 vezes Ditos próprios de Lucas 4 vezes Ditos próprios de Mateus 31 vezes João 100 vezes Este exame mostra que houve uma crescente ten­ dência a introduzir a designação de Deus como Pai nas palavras de Jesus. Marcos, a coleção dos Lógia e os elementos próprios de Lucas, todos estão de acor­ do, de modo que sepode dizer que Jesus se servia da palavra "Pai" para designar a Deus somente em cer­ tas circunstâncias. Em Mateus, acha-se uma progres­ são sensível no uso do termo, e em João "Pai" quase que setomou sinônimode Deus.Jesus,aparentemen­ te, servia-se do nome de "Pai" unicamente em cir­ cunstâncias particulares. Mas por quê? Os poucos casos de uma designação de Deus como Pai, que as camadas mais antigas da tradição testemunham, são de dois tipos: um primeiro gru­ po, em que Jesus fala de Deus como "vosso Pai", e um segundo grupo em que Jesus o chama de "meu Pai". Os ensinamentos sobre "vosso Pai" apresentam Deus como o pai que sabe do que necessitam seus filhos (Mt 632 e paral. Lc. 12.30), que é misericordioso
  • 28. APATERNIDADE DE D e US NOS E v ANGELHOS 29 (Lc 6.36) e de bondade infinita (Mt 5.45), que pode perdoar (Mc 11.25), e cujo prazer é conceder o rei­ no ao pequeno rebanho (Lc 12.32). Nas camadas mais antigas da tradição, as afirmações sobre "vos­ so Pai" parecem terem sido todas dirigidas aos dis­ cípulos. É uma das características da ôiôaxfi / di- daché (instrução) reservada aos discípulos, do ensinamento ao discipulado de Jesus. Àqueles que estavam fora do círculo, parece que Jesus não falou de Deus como Pai a não ser por meio de parábolas e figuras. Entre estes ditos, o mais importante é Mt 11.27 e o paral. Lc 10.22: Tudo me foientreguepormeu Paf eninguém conhece o Filhosenão o Pai, e ninguém conhece o Paisenão o Filho e aquele a quem o Filho o quiserrevelar. Em sua História deJesud^,Karl von Base, que há cem anos era professor de História da Igreja em lena, foi o primeiro a comparar este trecho sinótico com as características textuais joaiünas. Neste destacavam- se saltavam à vista como joânicas: primeiramente, a frase sobre o conhecimento mútuo que era considera­ da como um termo técnico tirado do misticismohele- nístico; a seguir, a designação de Jesus como "o Fi­ lho" que caracteriza a cristologia joânica. Por muito tempo se teve como certo que Mt 11.27 era produto Die GeschichteJesu, Leipzig, 1876, 2"‘ed., p. 422.
  • 29. 30 A bba do cristianismo helenístico. Todavia, recentemente a tendência começou a mudar. Reconheceu-se cada vez mais que, como o expressou T. W. M anson, "a passa­ gem está cheia de semitismos e certamente de origem palestinense", ou, como o disse W. L. Knox, é "pura­ mente semítico"^^ De fato, a linguagem, o estilo e a estrutura possibilitam situar este trecho num meio de língua semita“.Épossível responder, num plano pu­ ramente lingüístico, às duas objeções que acabam de ser mencionadas. Já em 1898, G. Dalman^^ chamou a atenção para o fato de que o hebraico e o aramaico não têm pronomes que expressem a reciprocidade ("um e outro", "cada um"). Servem-se, no seu lugar, de uma circunlocução para falar de ação recíproca. Além disto, é preciso lembrar-se de que em aramaico, e em particular com referência às figuras e às compa­ rações, o artigo indefinido é muitas vezes usado num sentido genérico. Levando-se em conta estes fatos, é T . W. M a n so n , The Sayings ofJesus, Londres, 1937-1950, 79; W. L. K n o x , SomeHellenisticElementsinprimitive Chris­ tianity (Schweich Lectures 1942), Londres, 1944, p. 7. W. D. D a v ie s chega à mesma conclusão, quando compara o papel do "conhecimento" em Mt 11.27 e nos manuscri­ tos; ele mostra que nos dois casos encontra-se a mesma mistura de intuição escatológica e de conhecimento de Deus ( "Knowledge in the Dead Sea Scrolls and Matthew 11.25-30", in: Harvard Theological Review 46 (1953) pp. 113-139, reeditado em W. D . D a v ie s, Christian Origins andJudaism, Filadélfia e Londres, 1962, pp. 119-144). G . D a l m a n , Die WorteJesu I, Leipzig, 1898 T ecf. - 1930, pp. 231s (tr. inglesa: The Words ofJesus I, Edimburgo, 1902, pp. 282s).
  • 30. A PATERNIDADE DE D e u S NOS E v ANGELHOS 31 preciso traduzir Mt 11.27 do seguinte modo: "Como só um pai conhece o seu filho, assim só um füho co­ nhece seu pai". Isto significa que o textonão fala mais de uma união mística {imiomysticà) fundada em um conhecimento recíproco, e não emprega o título cris- tológico"oFilho".AspalavrasdeJesusexpressamsim­ plesmente uma experiência cotidiana: só um pai eum füho é que se conhecem mutuamente. Se isto está cer­ to, então Mt 11.27não éum versículojoânicono meio de elementos sinóticos, mas antes um dos temas que a teologia joânica haveria de desenvolver. Se não hou­ vesse pontos de partida desta natureza dentro da tra­ dição sinótica, a origem da teologia joânica permane­ ceria um eterno enigma. A palavra relatada por Mt 11.27 constitui uma perícope de quatro linhas. O pri­ meiro versículo indica o tema: "Tudo me foientregue por meu Pai". Isto é: Meu Pai me concedeu um total conhecimento de si mesmo. Os três versículos restan­ tes elucidam este tema por meio da comparação "pai- fUho". Livremente parafraseados, eles dizem: "E por­ que um pai e um filho se conhecem verdadeiramente um ao outro,um fühopode revelara outros ospensa­ mentos mais secretos do seu pai". Contudo, é preciso saber que a relação "pai-filho" é familiar na apoca­ lípticapalestinensepara üustrara transmissãode uma revelação. "Como um pai eu lhe revelei todos os se­ gredos", diz Deus no (Terceiro) Livro de Enoque^®. E em outra passagem, um rabi relata: o mensageiro ce­ leste me mostrou as coisas que estavam tecidas na 3 Enoque 48 (C.) 7.
  • 31. 32 Abba cortina celeste... "indicando mas com o dedo, como um pai que ensina ao seu filho as letras da Torá"''^. Portanto, se Jesus interpreta o tema "Tudo me foi en­ tregue por meu Pai" com o auxílio desta relação pai- filho, o que ele quer dar a entender sob o véu de uma figura cotidiana é o seguinte: como um pai que se de­ dica pessoalmente a mostrar ao seu filho as letras da Torá,assim Deusme transmitiu arevelação de simes­ mo, e,conseqüentemente, só eu posso ensinar aos ou­ tros o verdadeiro conhecimento de Deus. Este lógion,pelo qual Jesus dá testemunho de si mesmo e de sua missão, não está isolado nos Evan­ gelhos^®. Citamos aqui apenas uma variante de Mt 11.27 que remonta a uma antiga tradição ara- maica-^ e esteve espalhada no séc. II entre a seita gnóstica dos marcosianos. Segundo este texto, Je­ sus exclamou: Sim,meu Pai,pois talfoitua vontade ameu res­ peito. Esta variante da exclamação em Mt 11.26 po­ deria muito bem ser secundária. Contudo, ela faz vibrar a nota original da alegria de Jesus pela reve­ lação que lhe foi concedida, alegria que impregna igualmente nosso texto: 3 Enoque 45.1s. Cf. p. ex. Mc 4.11; Mt 11.23; Lc 10.23s. Ir in e u , Adv. Haer. I, 13.2; W. G r u n d m a n n , Die Geschichte Jesu Christi, 1956, p. 80.
  • 32. A PATERNIDADE DE D e L'S NOS E v ANGELHOS 33 "Sim, Abbá, porque assim foi do teu agrado". Assim, quando Jesus falava de Deus como de "meu Pai", ele' aludia não a uma familiaridade e a uma intimidade com Deus que fosse acessívela todo mundo, mas a uma revelação única que lhe fora concedida. Ele fundamenta sua autoridade sobre o fato de Deus o ter misericordiosamente dotado da plenitude da revelação, revelando-se a si como só um pai pode se revelar ao filho. Abbá é então uma palavra que sugere a revelação. Ela representa o cerne da consciência que Jesus tmha de sua missão. Procurando-se as prefigurações desta relação única para com Deus como Pai, deve-se remontar à profecia de Natã a respeito de Davi: "Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho" (2Sm 7.14, e o parai. 1Cr 17.13), e às palavras referentes ao rei nos Salmos 2.7; 89.27s. Ele me invocará: Vóssois meupai meu Deus e a rocha de minha salvação! E eu o constituireio meuprimogênito^ excelso entre os reis da terra. Das Pseudo-epígrafes, podemos citar a promes­ sa feita ao Messias sacerdotal, de que Deus lhe fala­ rá "com uma voz paternal" (Testamento de Levi 18.6), e a afirmação referente ao Messias de Judá, que assegurava que "as bênçãos do Pai santo" se­ rão derramadas sobre ele (Testamento de Judá 24.2). Isto significa que o "meu Pai" de Jesus só foi
  • 33. 34 Abba preparado no contexto das esperanças messiânicas. Mt 11.27 implica, portanto, que as promessas fo­ ram cumpridas em Jesus. 5. A oração do Senhor Somente se a virmos contra este pano de fundo é que podemos compreender, no seu sentido mais profundo, a oração do Senhor“^. Ela chegou até nós sob duas formas: a) a mais breve em Lc 11.2-4, e b) a mais longa em Mt 6.9-13. Enquanto que ninguém teria ousado encurtar este texto capital, é fácil de se imaginar um alargamen­ to do texto em relação com o seu emprego litúrgico. A versão mais breve, a de Lucas, deve ser a mais antiga. Aqui a oração se endereça simplesmente ao Páter, o equivalente de Abbá: Para compreender o que este apelativo signifi­ cava para os discípulos, é preciso referir-se às cir­ cunstâncias em que Jesus ensinou aos seus discípu­ los o Pai-nosso. Segundo Lc 11.1, eles tinham pedido a Jesus: "Senhor, ensina-nos a orar". E preciso dizer que este pedido impHcava, da parte dos discípulos, o desejo de ter uma oração própria, só deles, como os discípulos do Batista ou os fariseus e os essênios ti­ nham suas orações próprias, penhor de sua comu­ nhão. "Senhor, ensina-nos a orar" significa portanto: Cf. para mais detalhes o meu estudo: The Lord's Prayerin Modern Research, in Expository Times 71 (1959-1960) pp. 141-146; texto revisto: The Lord's Prayer (Facet Books, Biblical Series 8), Filadélfia, 1964.
  • 34. AORAÇÀo DO S e n h o r 35 "Senhor, dá-nos uma oração que seja o sinal e o dis­ tintivo de teus discípulos". Jesus atendeu a este pedido, e, fazendo-o, auto­ rizou primeiramente e antes de tudo os seus discí­ pulos a fazerem como ele e a dizerem Abbá. Deu- lhes esta expressão como prova de sua qualidade de discípulos. Pela autorização que lhes concedia de invocarem também eles a Deus como Abbá,per­ mitia-lhes que participassem de sua própria comu­ nhão com Deus. Ele chega até mesmo a dizer que somente aquele que puder repetir este Abbá entra­ rá no reino de Deus^^ Esta invocação Abbá,pronun­ ciada pelos discípulos, é uma participação na reve­ lação, é a escatologia realizada. E a presença do reino já aqui, atualmente. É cumprimento, conce­ dido por antecipação, da promessa: Eu sereio seupai e elesserão meusfílhos. Todos eles serão chamadosfilhos do Deus vivo (Jubileus 1.24s). É assim que Paulo compreendia esta invoca­ ção quando dizia, por duas vezes, que a repetição da palavra Abbá era a prova de que um cristão entrava na posse da filiação e do Espírito (Rm 8.15; G14.6). As antigas liturgias cristãs evidenciam bem a consciência da importância deste dom quando ^ J. Jeremias, The Parables ofJesus, ed. revista Londres e Nova Iorque, 1963, pp. 190s (trad, bras: As parábolas de Jesus, Ed. Paulus, São Paulo, 1976).
  • 35. 36 A bbA fazem preceder à oração do Senhor as palavras: "ousamos dizer: Pai nosso". 6. Conclusão Tudo isto nos leva a uma conclusão de impor­ tância capital. Sustentou-se muitas vezes que não sabemos quase nada do Jesus histórico. Que não o corhece- mos senão pelos Evangelhos, que não são relatos his­ tóricos, mas antes profissões de fé. Que não conhe­ cemos senão oCristo do querigma,em queJesus está envolvido pela veste do mito; basta pensar-se nos numerosos milagres que lhe são atribuídos. O que descobrimos, ao aplicar a crítica histórica à análise das fontes, é um profeta poderoso, mas um profeta que não ultrapassou absolutamente os limites do ju­ daísmo. Este profeta pode apresentar interesse para a história, mas não tem e não pode ter significação ara a fé cristã. O que importa é o Cristo do querig­ ma. O cristanismo começa na páscoa. Mas, se é verdade - e o testemunho das fontes não deixa nenhuma dúvida acerca disto - que Abbá como invocação de Deus é uma ipsissima vox, uma expressão autêntica e original de Jesus, e que este Abbá explica a reivindicação de uma revelação e autoridade línicas - se tudo isso é verdade, então a posição acerca do Jesus histórico, que acabamos de lembrar, é insustentável. Porque, com Abbá, situa­ mo-nos além do querigma. Achamo-nos diante de algo novo e inaudito, que ultrapassa os limites do
  • 36. C onclusão 37 judaísmo. Aí descobrimos quem era o Jesus históri­ co: o homem que tinha o poder de se dirigir a Deus como Abbá, e que fez publicanos e pecadores en­ trarem no reino, simplesmente os autorizando a re­ petir esta palavra "Abbá, Pai querido".
  • 37. Capítulo II A MORTE DE JESUS COMO SACRIFÍCIO 1. A paixão na Epístola aos Hebreus e na primeira Epístola de Pedro No âmbito do Novo Testamento é a Epístola aos Hebreus que mais detalhadamente expõe o signifi­ cado da cruz. Esta exortação dirigida a cristãos pro­ venientes do paganismo (Hb 13.22) caracteriza-se pelo vigor e clareza de pensamento teológico. Faz uma distinção entre catequese elementar (5.12) e conhecimento mais aprofundado (6.1), isto é, entre um ensinamento aos recém-chegados ao cristianis­ mo e um reservado aos iniciados. Esta distinção de modo algum é "gnóstica". Ela provém da tradição cristã: encontra-se em Paulo (1 Co 2.6ss) e, já antes dele, no próprio Jesus, cuja pregação apresenta um ensinamento público como distinto de um ensina­ mento reservado de modo especial aos discípulos.
  • 38. 40 A MORTE DEJesus como SACRrricio De acordo com a Epístola aos Hebreus, a cate­ quese elementar referente a Cristo (6.1) abarcava o convite à conversão e à fé (é o próprio conteúdo a pregação missionária, cf 1 Ts 1.9s e At 20.21), bem como uma catequese sobre o batismo e as últimas coisas (é o conteúdo das catequeses catecumenais: Hb 6.2). A teologia reservada aos iniciados compre­ endia sobretudo, além da catequese eucarística^, o que se refere à oferta que Cristo, o sumo-sacerdote celeste, faz de si próprio. É este o ponto desenvolvi­ do pela passagem central da Epístola (Hb 7.1-10.8). Mostram-nos estes quatro capítulos que, na nova ordem das coisas tal qual Deus a quis. Cristo é o sumo-sacerdote que ofereceu o seu próprio sangue no santuário celeste, sendo assim, ao mesmo tem­ po, sacerdote e vítima. A fim de explicitar o sentido da morte de Jesus, a Epístola aos Hebreus utiliza as figuras e representa­ ções fornecidas pelo ritual do Grande Perdão, minu- ciosamente descrito em Lv 16.0 Dia do Grande Per­ dãoeraparaosjudeusogrande diadoarrependimento e expiação, o único dia do ano em que pés humanos pisavam o chão do Santo dos Santos. Tremendo - porque a menor falha no ritual acarretaria morte certa -, o sumo-sacerdote, na obscuridade por detrás do cortinado, fazia por duas vezes a aspersão expia­ tória com o sangue: por si mesmo e por sua família primeiramente, e depois por Israel. A Epístola aos * Não se fala da ceia na enumeração dos temas de catequese (Hb 6.2), não se fazendo menção dela a não ser em 13.10.
  • 39. A PAIXÃONA Epístola aos H ebreus e na Primeira Episrola de Pedro 41 Hebreus vai aplicar tipologicamente este rito a Cris­ to de duas maneiras diversas. O Autor refere-se pri­ meiramenteao ritomaisantigo ecomparaCristocom a vítima sem mancha. Mas, diversamente das víti­ masdaAntigaAliança,amortedeJesus,porseu valor vicário, obteve de uma vez por todas o perdão total ereestabeleceu aplena comunhão de vida com Deus. A esta interpretação o autor acrescenta uma outra, lançando mão do versículo 4 do salmo 110: Cristo é ao mesmo tempo o sumo-sacerdote eterno e isento de pecado. E ele que, após realizar uma vez por to­ das a expiação, se mantém continuamente diante de Deus a fim de interceder em favor dos seus, pelos quais está cheio de compaixão e misericórdia (7.25; 9.24; cf. 2.18; 4,14-16). Esta cristologia reservada aos "iniciados" é um ensaio muito penetrante que visa fazer a comunida­ de aproximar-se, de um modo novo, do mistério da cruz, com a ajuda da interpretação tipológica de Lv 16.Concretamente, esta tipologia tem a intenção de mostrar que a sexta-feira santa é o dia do Grande Perdão na Nova Aliança, e todas as festas do Gran­ de Perdão, celebradas cada ano, não passavam de tipo e figura. Isto acarreta duas conseqüências: pri­ meiramente, este caráter vicário que representa a morte do Inocente no Gólgota faz cessar uma vez por todas (7.27; 9.12; 10.10) o apelo ao perdão divino; e, por outro lado, o fruto desta expiação etemamente válida continua a ser ofertado, porque opróprio Cris­ to, que foi tentado, intercede pela comimidade dos seus, por sua vez também tentada.
  • 40. 42 A MORTE DE Jesus como sacrifício Nesta explicação da morte de Jesus, as figuras tipológicas usadas têm pouca importância. De fato, tudo depende daquilo que, sob a luz e a ajuda da tipologia, no fundo se quer expressar. E aí se trata o duplo "por nós": "ele morreu por nós" e "entrou por nós no santuário celeste". E o que emerge claramente, quando nos volta­ mos para aprimeira Epístola de Pedro. Esta, como a Epístola aos Hebreus, retoma a antiga compara­ ção com a vítima sacrificada: é Cristo o verdadeiro cordeiro sem defeito e sem mancha (1.8s), morto a fim de expiar de uma vez por todas os pecados (3.18). Por outro lado - e este é o segimdo ponto de vista - a primeira Epístola de Pedro alude ao capí­ tulo 53 de Isaías: o hino a Cristo, que se acha na Epístola (2.22-25) celebra-o como o Servo de Deus, como aquele que, no madeiro, levou os nossospe­ cados em seu próprio corpo, a fim de que, mortos para os nossos pecados, vivêssemos para a justiça; aquele por cujas feridas fomos curados (2.24). Ei- nalmente, em terceiro lugar, sempre para explici­ tar este sentido da morte de Jesus, a Epístola reto­ ma de modo expressivo o tema teológico da descida e da pregação aos infernos (3.19s e 4.6). Para compreender esta passagem, é de extrema importância saber que dela temos uma prefigura­ ção, ainda que em sentido oposto, na versão etíope do Livro de Enoque, apócrifo que recebeu sua for­ ma atual depois da invação dos partos em 37 a.C. Nos capítulos 12-16 deste livro, narra-se como Eno­ que é encarregado de ir ter com os anjos decaídos
  • 41. A PAIXÃON AEpístola aos H ebreus e na Primeira Epísrola de Pedro 43 (cf. Gn 6) para lhes informar "que eles não recebe­ rão nem paz nem perdão" e que Deus rejeitará todo pedido de paz e misericórdia. Tomados de pavor e tremendo, pedem a Enoque que componha uma sú­ plica em que implorem perdão e indulgência. Eno­ que é então arrebatado até ao trono em que Deus está sentado, em meio a um fogo cintilante, e aí re­ colhe o oráculo a se comunicar aos anjos decaídos como resposta à sua súplica. A sentença se formula breve e terrível: "Não tereis a paz!" Dificilmente se poderá duvidar que o tema teológico da descida aos infernos tenha sua prefiguração neste mito de Eno­ que. Uma vez mais, um enviado de Deus apresenta- se com uma mensagem divina para os espíritos de­ sobedientes que habitam as trevas profundas da prisão subterrânea. Mas, ao passo que Enoque teve de declarar em sua mensagem a impossibilidade do perdão, o anúncio que Cristo faz é diametralmente oposto: refere-se à Boa-nova (4.6). Mesmo para os que estavam perdidos sem esperança, a morte ex­ piatória do Justo adquire o perdão. As duas Epístolas, adirigida aosHebreus eapri­ meira de Pedro, têm a intenção de ilustrar o que se passou na sexta-feira santa, mas empregam para tanto imagens basicamente diversas. A Epístola aos Hebreus fala da subida de Jesus aos céus "por um espírito eterno" (9.14), a fim de apresentar, ele pró­ prio, o seu sangue no santuário celeste. A primeira Epístola de Pedro fala da descida àsprofundezas dos infernos a fim de anunciar a Boa-nova aos espíri­ tos prisioneiros. "Subida aos céus" e "descida aos
  • 42. 44 A MORTE DEJesus como sacrifício infernos", ambas servem à explicação do aconteci­ mento da sexta-feira santa. Digamos em duas palavras o porquê desta apro­ ximação. Com efeito, é preciso saber que, no decur­ so do séc. I d.C., as representações do judaísmo an­ tigo acerca da sorte das almas depois falecimento sofreram total transformação. Segundo a concep­ ção antiga, ainda considerada autoritativa, os in­ fernos {ohades) eram o lugar das almas dos defun­ tos. Mas, ao lado desta maneira de ver, impunha-se pouco a pouco, sob o impacto do pensamento hele- nístico, uma nova representação, segundo a qual as almas dos justos ficavam no mimdo celeste, no pa­ raíso. É esta transformação que explica porque, no Novo Testamento, não é uniforme o que se diz da sorte de Jesus entre a sexta-feira santa e a Páscoa: em Rm 10.7, Paulo fala de "abismo", ao passo que Lc 23.24 fala do paraíso. Assim se justapõem os te­ mas da descida aos infernos e da subida aos céus, ao se evocar o destino de Cristo após a morte. Pau­ lo, aprimeira Epístola de Pedro eo Apocalipse apóiam a primeira concepção. E Lucas, a Epístola aos He­ breus e o Evangelho de João, a segunda. É, portan­ to, o tema da subida aos céus que utiliza a Epístola aos Hebreus, ao apresentar-nos o sumo-sacerdote oferecendo seu próprio sangue no santuário Celes­ te. E é o tema da descida aos infernos que emprega a primeira Epístola de Pedro a fim nos descrever o enviado de Deus, perante o qual se abrem as portas do mundo subterrâneo, ao vir ele trazer a Boa-nova aos réprobos.
  • 43. A póstolo Pallo 45 Portanto, as imagens e temas usados são diver­ sos, o que para nós é salutar advertência a não os sobrestimarmos. Mas o que se quer em definitivo exprimir é idêntico nos dois casos, e este é o ponto decisivo. Porque as duas Epístolas, uma sob ima­ gem tomada do culto, e a outra sob imagem busca­ da no mito, têm a intenção de expressar a mesma verdade: a virtude expiatória da morte de Cristo tem valor para a eternidade e desconhece limites. 2. Apóstolo Paulo Pode-se detectar, tanto na Epístola aos Hebreus como na primeira Epístola de Pedro, quanto, sob muitos pontos de vista, sua teologia é devedora à de Paulo. Pois, se, remontando à tradição, nos vol­ tarmos às passagens das epístolaspaulinas que in­ terpretam o sentido da morte de Cristo, uma nova imagem se nos oferece. Não que Paulo nos propor­ cionasse algo de objetivamente diverso do que nos apresentam os escritos pós-paulinos. Pelo contrá­ rio! Pois é uma das características do nosso tema estapermanência do mesmo conteúdo objetivo atra­ vés das diversas exposições sobre este assunto em todo o Novo Testamento. A diferença é de outra natureza. A Epístola aos Hebreus, como vimos, esforça- se, na forma duma reflexão teológica, por apresen­ tar e desenvolver o mistério da cruz em desdobra­ mentos tipológicos profundamente refletidos e cuidadosamente pesados. Em Paulo, pelo contrário.
  • 44. 46 A MORTE DE J e s u s c o m o s a c r if íc io sentimos ainda a atmosfera candente das lutas que teve de travar a fim de fazer inteligível o conteú­ do central da sua mensagem, duramente combati­ do. Gostaria de torná-lo acessível através de duas observações. Primeiramente, é notável que no Novo Testa­ mento as palavras "cruz" e "crucificar" se achem quase somente em Paulo, se prescindirmos dos evangelhos; encontram-se nele dez vezes o subs­ tantivo (alhures apenas em Hb 12.2) e oito vezes o verbo (que não se encontra alhures a não ser em At 2.36 e 4.10; Ap 11.8)^. Quando nas epístolas não paulinas, nos Atos dos Apóstolos e no Apocalipse se fala da morte de Jesus, são outras as expressões que se utilizam: fala-se aí de seus sofrimentos, de sua morte, de seu sangue, e da oferta do seu corpo, ou seja, de sua execução, mas se evitam as duas palavras "cruz" e "crucificar". Assinalemos, além disto, o emprego, por cinco vezes, do termo "ma­ deiro" para designar a cruz^ Não pode ser efeito do acaso. Mas então como explicar este fato estra­ nho? Uma expressão de 1 Co 1.18 pode nos escla­ recer . Encontra-se aí - e é o único caso em todo o Novo Testamento - a expressão: "a mensagem {ló- gos), a da cruz". A repetição do demonstrativo, que não é usual na língua do Novo Testamento, distingue - Fora dos evangelhos, a expressão "ser crucificado com (o Cristo)" só se acha em Paulo (Rm 6.6; G1 2.19); em todo o Novo Testamento, só se encontra "crucificar de novo" em FIb 6.6. 3At 5.30; 10.39; G1 3.13; 1 Pd 2.24.
  • 45. A i« tolo Pal lo 47 a “mensagem" cristã de outras mensagens. K. H. R engstorf^ demonstrou de modo muito claro que “linguagem" tem aí, como em 1Co 15.2, o sentido de “relato cultual". A pregação cristã é, portanto, apresentada em 1 Co 1.18 como o "relato cultual sobre a cruz", onde "cruz" se coloca no lugar de “suspenso à cruz". Representemo-nos o que há de ofensivo nesta formulação: “o relato cultual sobre o suspenso", para expressar o caráter incôngruo, até mesmo chocante, da mensagem cristã; obser­ vemos que, além disto, aí nem se fala da ressurrei­ ção. Parece que não seria errado concluir que esta expressão tem sua origem entre os adversários da comunidade cristã, e expressa do modo mais ade­ quado suas chacotas e seu sarcasmo. De mais a mais, para confirmar esta hipótese, basta ler a se- qüência da frase, que diz brutalmente: este “rela­ to cultual sobre o suspenso" é loucura para os que se perdem. E alguns versículos adiante, Paulo acrescenta: para os judeus, a mensagem de um sal­ vador suspenso à cruz é um escândalo, um discur­ so blasfematório, e, para os pagãos, é simplesmen­ te uma loucura. Tudo isto reflete o eco normal da mensagem cristã e Paulo o sentiu centenas de ve­ zes. Com certeza, estes sarcasmos continuaram sendo parte do arsenal dos adversários do cristia­ nismo; mas nos primeiros tempos, em que estas zombarias eram ainda novas, teriam ferido forte­ mente os pregadores do Evangelho. ^K. H. R en g sto r f, Die Auferstehung Jesu, Witten, 1960, 4® ed., p. 19.
  • 46. 48 A MORTE DEJiSLSCOMO SACRIHCIO Havia duas maneiras de prevenir este sarcas­ mo: uma delas consistia em tentar amenizar ou até mesmo eliminar esteaspecto chocante da mensagem. É a via por que entrou a Gnose, e sobretudo o "do- cetismo", que a primeira Epístola de João mostra que já ia se implantando desde o primeiro século depois de Cristo, e que ensinava que somente o ho­ mem Jesus fora suspenso na cruz, enquanto que o Cristo havia se separado dele antes da paixão. E sig­ nificativo que Paulo nem sequer tentou tomar de empréstimo tal insensatez. Pelo contrário, envere­ dou-se por outra via: anunciar a mensagem irascí­ vel em toda asua dureza, sem condescendência nem concessão, mas refletindo ao mesmo tempo sobre recursos que poderiam ajudar seus ouvintes a abrir a inteligência. Tal é o seu pensamento, quando fri­ sa que o Cristo crucificado foi o único conteúdo de sua pregação missionária na Calácia (Cl 3.1) e em Corinto (1 Co 1.23; 2.3) e sua única glória (Cl 6.14). Uma segunda passagem nos faz ver ainda mais diretamente como a explicitação do sentido da cruz, que depois fixou-se na Igreja de modo sólido e se­ guro, deve ter se estabelecido a duras penas nos pri­ meiros tempos. Pensona sentença de Cl3.13: "Cristo se tomou maldição por nós". Façamos de imediato duas observações acerca do estilo: a primeira para frisar que o passivo "tornou-se" é um modo de transcrever o nome divino, como o confirma 2 Co 5.21 ("Deus o fez pecado por nós"); por outro lado, considerando-se o modo semita de se expressar, a pa­ lavra "maldição" é usada por "maldito". Por isso.
  • 47. A póstolo Palix) 49 precisamos traduzir G1 3.13 assim: "Deus fez Cristo maldito por nós". Paulo está se referindo aí à passa­ gem de Dt21.23: "Todo osuspenso no madeiro éum homem maldito por Deus". A frase da Epístola aos Gálatas nos é tão familiar que nem sentimos mais o que ela tem de assombroso. Talvez opossamos pres­ sentir, se acrescentarmos que não existe nenhum autor do Novo Testamento que tenha ousado dizer algo que se aproximasse disso. Paul P e i n e ® foi pri­ meiro a ver - e um trabalho muito recente o reto­ mou expressamente^ - que só pode haver uma ex­ plicação para a audácia desta frase: ela nasceu no período anterior ao episódio de Damasco. Era o tem­ po em que SauloperseguiaJesus de Nazaréna pessoa dos seus adeptos, porque ele o considerava como ex­ pressamente maldito por Deus: então ele o blasfema­ va (1Tm 1.13) e tentava por meios violentos forçar os discípulos a também blasfemá-lo (At 26.11), isto é, a exclamar: "Jesus é um maldito!" (1 Co 12.3). E é, en­ tão, que no caminho de Damasco, o maldito lhe apa­ rececingido daprópria glória de Deus.A frase: "Deus o amaldiçoou" permanecerá, mas completada dora­ vante por estas duas palavras: "por nós, por mim" (G12.20). E desde então Paulo, por toda a sua vida, é prisioneiro do Crucificado, como Inácio de Antioquia dirá de simesmo que éuma "vítimahumÜde da cruz" (Epístola aos Efésios 18.1). P. Feine, Das gesetzesfreie Evangelium des Paulus, Leip­ zig, 1899, p. 18. ^G. Jeremias, DerLehrer der Gerechtigkeit, Goettingen, 1963, pp. 134ss.
  • 48. 50 A MORTE DE Jesus como sacrifício Não é, pois, exagero dizer que toda a cristologia de Paulo está decididamente centrada neste esfor­ ço para tornar compreensível para os seus leitores e ouvintes este "por nós", esta suplência de Cristo em nosso favor; e, para consegui-lo, ele lança mão de imagens sempre novas, emprestadas de quatro domínios diversos. 1. A tradição lhe fornecia toda uma série de idéias e expressões tiradas do domínio cultuai. No capítulo 5 da primeira Epístola aos Coríntios, Paulo exige des­ ta comunidade que faça valer a disciplina da Igreja com referência a um dos seus membros, culpado de um grave escândalo. Emprega, com este propósito, a imagem do fermento que azeda toda a massa. Porque as festas pascais estão próximas. E isto o incita, para comentar o incidente, a tomar uma antiga meditação cristã sobre a Páscoa (seu estilo e vocabulário eviden­ ciam que de fato é anterior a Paulo). Este comentário situava-se na celebração da Páscoa, no momento em que o pai de família interpretava os ritos e as etapas da refeição visando instruir todos os participantes, sobretudo as crianças. E uma destas passagens que Paulo cita: "... sois sem fermento. Pois nossa Páscoa, Cristo, foi imolada. Celebremos, portanto, a festa,não com velho fermento, nem com o fermento de malícia eperversidade, mas com pães ázimos: na pureza e na verdade" (1 Co 5.7s). Ser cristão, diz Paulo, é viver a Páscoa, é estar na luz pascal, é vida nova: a verdadei­ ra Páscoa chegou, quando o nosso cordeiro pascal foi sacrificado no Gólgota. Assim - como o farão Pedro na sua primeira Epístola e João no seu Evangelho -
  • 49. A póstolo Paulo 51 Paulo compara Cristo com o cordeiro sem mancha, em razão do qual Deus poupou no Egito as casas dos israelitas. Também em Rm 3.25 ele o compara com o sacrifício expiatório do dia do Grande Perdão, e, em Rm 8.3,com o sacrifíciopelo pecado, e em Ef5.2,com o "sacrifício de aroma suave". É com esta mesma or­ dem de idéias que estão vinculadas todas as passa­ gens que tratam do sangue de Jesus (Rm 3.25; 5.9; Cl 1.20; Ef 1.7; 2.13). Ora, a crucifixão não era uma exe­ cução sangrenta, e é por isso que, quando Paulo fala do sangue de Jesus, ele não pensa primeiramente na realização histórica do suplício, mas no seu aspecto sacrifical. Todos estes desenvolvimentos, que utilizam uma terminologia relativa a sacrifício, têm, pois, a intenção de expressar duas coisas: a) Jesus morreu apesar de não ter pecado (2 Co 5.21); b) sua morte teve valor vicário pelos nossos pecados; nela se re­ sumem todas as cerimônias sacrificiais da Antiga Aliança, porque ele é a única vítima oferecida pe­ los pecados da humanidade. 2. Para ilustrar a suplência de Cristo, Paulo utili­ za também temas adquiridos do direitopenal. Estas passagens referem-se ao capítulo 53 de Isaías, que nos descreve oServo de Deus sofrendo esuportando a pena pelos nossos pecados. "Ele foi entregue por causa dos nossos pecados", diz Paulo em Rm 4.25, aludindo a Is 53.12. "Deus o entregou por nós", diz em Rm 8.32 (Is 53.6). "Ele se entregou por nossos pe­ cados", afirma em G11.14 (Is 53.10). Deus exerceu na carne do seu FUhoesta pena de morte que deveríamos
  • 50. 52 A MORTE DEJesus como sacrifício nós sofrer (Rm 8.3). Ele fez que Jesus carregasse a maldição que repousava sobre nós (G1 3.13). Em G12.14, Paulo insiste com veemência em ex­ plicar esta idéia de que Cristo suportou, em nosso lugar,ojulgamento que nos estavareservado no fim dos tempos: "Ele destruiu a cédula de nossas dívi­ das, cédula que nos afligia e que enumerava nossas violações da Lei; ele a eliminou, pregando-a na cruz". Na cruz, pendurava-se acima do crucifica­ do o "titulus", um cartaz que o condenado à morte trazia ao pescoço ao percorrer a via do suplício e no qual estavam escritos os crimes que motivaram sua condenação. Houve um "titulus" afixado aci­ ma da cabeça de Jesus. Então - assim diz Paulo - você não está vendo a mão que retira o "titulus" e o substitui por um outro escrito de letras apertadas? Fiquebem de perto,sevocê quiserdecifrarestenovo "titulus": ele contém as suas e as minhas faltas! 3. Ao lado dessas imagens e expressões tiradas do domínio cultuai ou do direito penal, Paulo emprega também uma outra referente à condição de escravo. "Comprar" (1 Co 6.20; 7.23), "resgatar" (G13.13; 4.5), "por um preço" (1 Co 620; 7.23) são termos caracte­ rísticos nesta linha. A imagem é buscada na própria vida que Paulo tem sob os olhos. Não se trata aí dum "resgate sagrado", como pensou Deissmann (vendia- se aparentemente um escravo à divindade, mas era elepróprio quem de fato apartava o dinheiro do seu resgate), mas trata-se de um procedimento incom­ paravelmente mais impressionante: tratava-se de assumir a escravidão no lugar de outrem, a fim de
  • 51. A póstolo Palxo 53 libertá-lo. Paulo está pensando é num sacrifício vo­ luntário desta natureza, que dificilmente pode ser maior - renunciar à própria liberdade em proveito de outrem quando em 1Co 13.3("seentregarmeu cor­ po às chamas") ele o apresenta como o exemplo do mais alto devotamento. "Ainda que eu distribmsse todos os meus bens aos famintos, ainda que volun­ tariamente me deixasse imprimir a ferro quente a marca de escravo (para libertar um irmão), se não tivesse amor, isso de nada me adiantaria". E sabe­ mos, pela primeira Epístola de Clemente aos corínti- os, que houve reahnente sacrifícios deste gênero nas primeiras comunidades cristãs (55.2). Eis, diz Paulo, o que Cristo fez por nós. Estáva­ mos na escravidão do pecado (Rm 3.9), da Lei (G14.5) e da maldição de Deus (G13.13). O Crucifi­ cado fez-se escravo em nosso lugar, escravo das po­ tências, para nos resgatar de -modo regular (1 Co 6.20; 7.23). E preciso imaginar a terrível condição dos escravos na Antiguidade, submetidos sem de­ fesa ao arbítrio e humor de seus donos, condenados a trabalhar até a morte nas minas e galeras, para captarmos a ressonância extraordinária que encon­ trava no mundo da época esta palavra "resgate" para os inúmeros escravos, membros nas mais an­ tigas comimidades. 4. O Quarto tema, o da obediência vicáría, en­ contra-se raramente (duas vezes, pelo que me pa­ rece). É o caso em Rm 5.18s, onde Paulo contrapõe em duas sentenças paralelas a eficácia universal da desobediência de Adão e o ato de obediência do
  • 52. 54 A MORTE DEJesus como SACRrFfcio Cristo ("pela obediência 'vicária' de um só, os 'inú­ meros' se tornam justos"); é também o caso de G1 4.4s: "Cristo fez-se escravo da Lei para resgatar os que eram escravos da Lei (cumprindo-a no seu lu­ gar), a fim de nos conferir a adoção filial". Por diferentes que sejam estas imagens, tomadas de empréstimo a domínios muito diversos, todas elas têm para Paulo uma só e a mesma finalidade; üus- trar o "por nós", a substituição pelos pecadores da parte daquele que foi sem pecado. E é nesta substi­ tuição, válida para os ímpios (Rm 5.6), pelos inimi­ gos de Deus (5.10), bem como pelo mimdo carrega­ do da ira de Deus (2 Co 5.19), que se manifesta a onipotência sem limites do amor divino que abarca todas as coisas (Rm 5.8). E se Paulo pode dizer tam­ bém que na cruz a justiça de Deus se manifestou, é que para ele não há contradição. Porque justiça de Deus e amor de Deus não são qualidades opostas - como se tivesse havido na cruz um conflito a arbi­ trar entre a justiça de Deus e o amor de Deus. Pelo contrário, é um dos resultados seguros e fundamen­ tais da exegese do Novo Testamento que a expres­ são "justiça de Deus" deve traduzir-se em Paulo por "salvação de Deus". Paulo liga-se à linguagem dos Salmos e do Dêutero-Isaías, onde "justiça" se empre­ ga constantemente em paralelo com "graça, salva­ ção, libertação". Pense-se somente no SI 103.17: Mas o amor de Deuspara os que o temem dura eternamente, e suajustiça passa dos filhos aosnetos...
  • 53. A Igreja das origens 55 Assim, para Paulo, amor de Deus e justiça de Deus significam a mesma coisa. Quando Deus, na cruz do seu Filho, elimina o pecado, o julgamento e a maldição que, objetivamente, separam dele os ho­ mens (porque quem está carregado de pecado não pode subsistir diante de Deus), então é que ele ma­ nifesta o seu amor. A morte vicária de Cristo na cruz, ponto central da pregação paulina, é a con­ cretização, a atualização e a manifestação visível e histórica do amor de Deus. 3. A Igreja das origens Continuemos nossa subida no tempo e voltemo- nos para a comunidadepré-paulina. Mas, se temos a chance de possuir os escritos originais de Paulo, não éo caso aqui. Contudo, podemos dizer com cer­ teza que, para a comimidade das origens, a explici­ tação do sentido da cruz foi uma busca de impor­ tância fimdamental. A própria situação histórica, desde o dia da Páscoa, forçava-a, com efeito, a to­ mar posição diante do enigma dilacerante da cruz. Porque, para os homens da Antiguidade, a cruz não só era a quintessência das torturas mais horroro­ sas, mas também o cúmulo da vergonha (Hb 12.2); além disso, para a sensibilidade judaica, esta pena de morte, desconhecida em Israel, era tida, sob a influência de Dt 21.23, como um sinal visível da maldição divina. Como então foipossível que aque­ le que Deus legitimara pela ressurreição pudesse ter suportado esta morte amaldiçoada? o mais antigo
  • 54. 56 A MORTE DEJesus como sacrifício anúncio da mensagem cristã (o querigma) indica onde se pode achar a resposta: Cristo morreu pelos nossos pecados, segimdo a Escritura (cf. 1Co 15.3). "Pelos nossos pecados" pretende afirmar que a sua morte foi uma substituição, e "segimdo a Escritu­ ra" fundamenta esta explicitação da morte de Cristo sobre Isaías 53.Porque, em todo oAntigo Testamen­ to, é essa a única passagem em que se encontra: "Ele morreu pelos nossos pecados". E para mim conti­ nua sendo um mistério que se tenha podido duvi­ dar desta referência a Isaías 53. Em todo caso,jamais se deveria ter reclamado do plural (literalmente: "se­ gundo as Escrituras"), que parece aludir a inúme­ ras passagens escriturísticas, porque essa afirma­ ção repousa num erro gramatical. Com efeito, o plural aramaico {kthubayyá),subjacente a este plu­ ral do grego, designa a Escritura e deve traduzir-se pelo singular em nossas línguas. Temos ainda outros exemplos além do de 1 Co 15.3. E de novo impressiona constatar que as refe­ rências cristológicas a Isaías 53, extraordinariamen­ te numerosas, encontradas em Paulo, apresentam- se, todas sem exceção, como pertencentes a uma tradição que lhe é anterior. Descobrimo-lo por ra­ zões de estilo ou de terminologia, ou pelos dois mo­ tivos ao mesmo tempo^ Não subsiste, portanto, ne­ nhuma dúvida: Muito tempo antes de Paulo, foi no capítulo dedicado ao Servo Sofredor (Is 53) que a ^Encontrar-se-ão algumas indicações, que deveriam ser am­ pliadas, no Theologisches Woertebuch des Neuen Testa­ ments, t. V. pp. 703 e 707.
  • 55. Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 57 comunidade das origens foibuscar a chave para re­ solver o mistério profundo do Filho de Deus pade­ cendo a morte ignominiosa. 4. Qual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? De acordo com o que dizem os evangelistas, re­ montaria ao próprio Jesus esta interpretação do sen­ tido de sua morte. Seria digna de fé essa afirmação? Examinando-se, sob o prisma da crítica literá­ ria, os anúncios que Jesus faz de sua paixão, obser­ va-se uma tendência evidente da tradição em colo­ car, anacronicamente, nos lábios de Jesus tais anúncios (cf. Mt 26.1-4, comparado com o esque­ ma apresentado em Mc 14.1-2). Constata-se, além disso, o pendor desta tradição em progressivamen­ te formular estas predições da paixão, incluindo nelas cada vez mais claramente a própria maneira como se desenrolaram os acontecimentos (compa­ re-se Mc 9.31 com 8.31 e 10.33ss). Compreende-se, então, que, deste,fato inegável, se chegasse a con­ cluir que tudo o que se nos transmite como ditos de Jesus sobre a sua paixão não passaria de vaticinia ex eventu (predições compostas mais tarde, a par­ tir dos próprios acontecimentos realizados). Mas, na verdade, não se pode pensar assim neste caso. Porque, mesmo procedendo com toda a prudência e sentido críticos desejáveis, vamos nos defrontar, tan­ to nos anúncios da paixão como nos da glorificação, com um núcleo que só pode ser anterior à Páscoa.
  • 56. 58 A MORTE DEJ esus como sacriekio Quanto aos anúncios dapaixão, é preciso partir do fato de que tudo na vida pública era para levar Jesus a contar, e cada vez mais, com a perseguição e até mesmo com a execução. A violação do sabbat, a blasfêmia contra Deus e a chamada magia (Mc 3.22), que se lhe censuravam, eram crimes que exi­ giam o apedrejamento (e no caso do blasfemo, de mais a mais, pendurava-se o cadáver numa cruz). Acresce que Jesus se pôs por várias vezes no rol dos profetas - e isso em palavras que, por seu teor, pou­ co cristológicas em aparência, nos leva a tê-las como autênticas. Ora, precisamente no tempo de Jesus, o martírio era considerado como parte integrante da missão profética; é o que evidenciam tanto o Novo Testamento com as lendas acerca dos profetas, con­ temporâneas de Jesus, bem como o costume, então corrente, de dar relevo às tumbas dos profetas por meio de monumentos expiatórios. O próprio Jesus viu a história santa como uma série ininterrupta de justos mártires, desde Abel até Zacarias, o filho de Yoyada (Mt 23.35); a sorte deles, como a de João Batista, o último da série, deve ter-lhe sido uma in­ dicação da sua própria sorte. Mas o próprio testemunho dos textos tem ainda mais peso do que essas considerações. Os anúncios da paixão, que não se devem absolutamente limi­ tar aos três anjincios clássicos (Mc 8.31; 9.31; 10.33 e parai.), fazem parte de uma camada da tradição anterior ao contato com o helenismo: é o que evi­ dência o jogo de palavras em aramaico bar nasha Ifnê nasha (Mc 9.31: Deus entregará o homem aos
  • 57. Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 59 homens) e a quase total ausência de referências à versão grega da Bíblia. Por outro lado, eles estão tão fortemente ancorados no contexto que não se po­ dem destacar daí: pense-se somente na passagem em que Pedro é tratado de "Satã" em Mc 8.32®; com certeza isso não pode ser uma invenção! Além dis­ to, os anúncios aparecem nos gêneros literários mais diversos. Ao lado dos anúncios oficiais da paixão em suas diferentes variantes, encontram-se também anúncios velados: em parábolas e figuras, tais como "cálice, batismo, resgate", ditos enigmáticos, como os referentes ao sinal de Jonas (Mt 12.39) ou à espa­ da (Lc 22.36); como também os ditos que enqua­ dram a celebração da ceia. Mas principalmente os anúncios da paixão contêm uma série de detalhes gue não se cumpriram exatamente como previstos. É o caso, quando Jesus espera para si o sepultamen- to dos criminosos (Mc 14.8), ou quando prediz que parte de seus discípulos partilhará de sua sorte (Mc 10.32,40; Lc 22.36s): ora, fato estranho, as auto­ ridades se contentaram em matar somente Jesus, e deixaram de imediato seus discípulos, sem molestá- los. Estas constatações, que se poderíam multiplicar, nos impedem, portanto, de considerar em bloco os anúncios da paixão como sendo vaticinia ex eventu. O ceticismo se converte involuntariamente em falsi­ ficação da História, quando, por observações de de­ talhes, perfeitamente válidas do ponto de vista críti­ co, se deixam conduzir a se considerar, sem mais Outros exemplos no TWbNT, t. V, p. 712.
  • 58. 60 A MORTE DEJesus como sacrifício exame, todo o conjunto dos anúncios como se fos­ sem uma construção da comimidade. Os anúncios daglorificação^ que de mais a mais se vinculam aos da paixão, evidenciam que tam­ bém eles mantêm um núcleo que é anterior à Pás­ coa. Limitar-me-ei a um exemplo, à questão dos "três dias". Ao lado da passagem que se refere a Os 6.2 ("depois de três dias, ele ressuscitará"), en­ contram-se ditos totabnente diversos sobre os "três dias". Depois de três dias, diz Jesus, será construí­ do o novo Templo (Mc 14.58 e parai.). Hoje e ama­ nhã, ele expulsa demônios e realiza curas; no ter­ ceiro dia, ele será "consumado" (Lc 13.32; cf. nota b, p. 1.374 da Bible deJérusalenri). Hoje, amanhã e no dia seguinte, ele prosseguirá seu caminho, e de­ pois disso sofrerá em Jerusalém a sorte dos profetas (15.33). Ainda um pouco de tempo e eles não mais o verão, e ainda um pouco de tempo e eles o verão: hoje estão vivendo em comunidade com ele, ama­ nhã será a separação, e, no terceiro dia, o retorno (Jo 16.16). Assim fica claro que Jesus anunciou, de muitos modos, a "grande reviravolta de Deus", ejá a ausência de qualquer diferenciação entre ressur­ reição e retorno mostra-nos que os amíncios da glo­ rificação não são também vaticinia ex eventu, mas sim, no seu núcleo, anteriores à Páscoa. Mas, se estes anúncios da paixão e da glorifica­ ção remontam, no essencial, ao próprio Jesus, o que pensar dos textos evangélicos que pretendem atri­ buir a Jesus a explicitaçãomesma do sentido de sua paixão? Seria possível eliminá-los levianamente
  • 59. Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 61 como construções da comunidade? Longe disto! Quem quer que tenha pressentido a extrema impor­ tância que tinha no judaísmo antigo a idéia da for­ ça expiatória dos sofrimentos e da morte, só pode achar impensável que Jesus tenha podido esperar sua paixão e morte, sem nem sequer sonhar com o sentido que elas poderiam ter. Também neste caso, são decisivos os textos. E entre estas explicações do sentido da paixão, preci­ samos pôr em primeiro lugar as palavras de Jesus na Ceia. Limitar-me-ei a duas observações: a) Importantes aí são as palavras "por muitos"; encontram-se com divergências quanto a sua locali­ zação e teor literal, nas cinco versões dos ditos da Ceia que traz o Novo Testamento (Mc 14.24; Mt 26.28; 1 Co 11.24; Lc 22.19-20; Jo 6.51). Sua ausência em Justino (cerca de 150 d.C.) é sem conseqüência, pois é conscientemente que ele cita, abreviando-os, os ditos da Ceia. Das diferentes versões, a expressão de Marcos ("por muitos"), que é um semitismo, é com certeza mais antiga do que a de Paulo ("por vós"). Ora, Paulo deve ter recebido sua versão dos ditos da Ceia, que apresentam um vocabulário for­ temente grecizado, pelos anos 40 em Antioquia, fato que nos possibilita situar a versão mais antiga de Marcos no primeiro decênio que seguiu à morte de Jesus. Quem, pois, pretender eliminar estas duas pa­ lavras sob pretexto de que seriam uma interpretação acrescentadaposteriormente,deveestarconscientede que abandona uma tradição muito antiga, e sem ra­ zão lingüística de que possa se reclamar.
  • 60. 6 2 A MORTE DE J e s u s c o m o s a c r if íc io b) Estas palavras "por muitos" são, como o con­ firma Mc 10.45, uma referência a Is 53. É nessa pas­ sagem da Bíblia que se encontram ao mesmo tem­ po o "por" e, com isto, a idéia de substituição, e o "muitos"; ora, "muitos", usado sem artigo no sen­ tido inclusivo de "numerosos, grande turba, multi­ dão, todos", acha-se em abundância neste capítulo, e dele constitui a palavra-chave^. Assim, o "por muitos" dos ditos de Cristo na Ceia nos evidencia que foi em Is 53 que Jesus encontrou a chave para explicitar o sentido de sua paixão e morte. Mais complexa é a história da tradição do dito sobre o resgate, que está estreitamente aparentado com os ditos da Ceia. Com efeito. Marcos (10.45 pa­ rai. Mt 20.28) e Lucas (22.27) divergem quanto ao teor. Parece que se possa estabelecer que as duas versões repousam sobre um lógion de Jesus,no qual se tratava de serviço. Na fronte própria de Lucas, este serviço de Jesus é ilustrado com auxílio de seu "serviço à mesa", ao passo que em Marcos se recor­ re a Is 53. Em Lucas, o contexto acusa um vocabu­ lário claramente grecizado; em Marcos, não só o vo­ cabulário como também o conteúdo conceptual do lógion são semíticos, pois a utilização religiosa da figura do resgate é especificamente palestinense, o que faz remontar a tradição usada por Marcos a uma data muito antiga. O menos que se pode dizer Usado substantivamente e sem artigo em: Is 52.14; 53.12. A versão grega dos Setenta o pressupõe também em 53.11c.l2
  • 61. Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 63 éque Marcospossuía,aolado dos ditos da Ceia,uma antiga tradição em que Jesus explicitava sua pai­ xão valendo-se de Is 53. É também uma tradição muito antiga - diria, até mesmo, um fragmento da rocha original em que se baseou a tradição - que possuímos no dito refe­ rente à espada, que nos vem da fonte própria de Lucas (22.35-38). O tempo da angústia está a ponto de irromper; é este o sentido dos versículos 35s; tra­ ta-se, pois, de uma palavra que com certeza foipro­ nunciada antes da Páscoa,pois representa uma pre­ dição não realizada, uma vez que a paixão coletiva dos discípulos não se deu dessa maneira. É também em Is 53 que se encontra a razão desta mudança de clima num mundo que vai passar da amizade hos­ pitaleira à ira sanguinolenta; pois aí se diz: "e ele (o Servo de Deus) foi contado no número dos ímpios". Quanto à sentença que segue no v. 38, onde os dis­ cípulos aludem às duas espadas, trata-se de um dito muito antigo, pois, sem retoques ou eufemismo, ex­ plode aí a total falta de compreensão dos discípu­ los. Uma vez mais. Is 53 apresenta a explicitação da paixão no momento em que, para Jesus, ela esta­ va imediatamente próxima. Considere-se também como uma tradição ante­ rior à Páscoa o dito sobre o pastor que vai ser ferido e cujas ovelhas vão se dispersar (Mc 14.27). Com efeito,oV. 28prolonga aimagem do pastorpela pro­ messa: "ele precederá (o seu rebanho) na Galiléia", a qual não pode ter sido formulada eqevtu / ex eventu. Por outro lado, pensando-se no contexto
  • 62. 64 A MORTE DEJesus como sacrifício desta citação de Zacarias (13.7),percebe-se que tam­ bém aí existe, no fundo, uma explicitação do senti­ do da paixão: a morte do Pastor traz a aflição, mas também a reunificação do rebanho purificado. E Jo 10.15,17 aí está a nos mostrar que, pelo menos na tradição, a imagem do pastor estava ligada a Is 53. Precisamos, enfim, aduzir a passagem em que Jesus na cruz intercede por seus inimigos (Lc 23.34). Este versículo não é atestado por todos os manus­ critos, mas repousa sobre uma tradição muito anti­ ga, como o evidenciam, de modo concorde, a forma e o fundo (a apóstrofe dirigida a Deus: "Pai"; a in­ tercessão pelos inimigos). Também aí se insere uma explicitação do sentido da paixão, porque a inter­ cessão de Jesus toma o lugar do voto de expiação que todo condenado devia pronunciar: "Que minha morte expie por todos os meus pecados!", mas Je­ sus orienta a virtude expiatória de sua morte não para si mesmo, mas para os seus carrascos. No fun­ do está igualmente Is 53, que termina assim: "E ele intercedia pelos pecadores" (v. 12).0 número de passagens em que Jesus, segundo os evangelhos, aplica-se a si Is 53 é muito grande, ainda que limi­ tado. Liga-se isto ao fato de Jesus não ter revelado os mais altos mistérios da sua missão a não ser na pregação reservada aos discípulos enão na sua pre­ gação pública. Com efeito, somente aos discípulos é que ele comunicou que via no cumprimento de Is 53 a tarefa mesma que Deus lhe marcava; a eles so­ mente explicitou o sentido da sua morte na linha da suplência "pelos muitos", pela multidão incontável
  • 63. Q ual a interpretação que o próprio Jesus deu de sua morte? 65 dos que incorreram sob a justiça divina. Porque, segundo Is 53, quatro elementos dão à morte "vicá­ ria" do Servo de Deus essa força expiatória sem li­ mites: trata-se dum sofrimento voluntário (v. 10), suportado na paciência (v. 7), querido por Deus (vv. 6.10), e inocente (v. 9). E, nessa morte, o que se con­ cede ao Servo é a vida, da qual Deus é a fonte e da qual se pode participar com ele. Vimos que podemos com grande probabilidade - não se pode fazer questão de certeza absoluta - reconduzir ao próprio Jesus essa explicitação que o cristianismo das origens dava do sentido da sua morte como cumprimento de Is53.Contudo,a ques­ tão existencialnão ficou comistosuprimida. Elaper­ manece. Só que essa questão é posta agora lá mes­ mo onde ela tem o seu lugar: no próprio Jesus.
  • 64. Capítulo III A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ 1. o sentido da fórmula Num parágrafo de introdução, gostaria de esta­ belecer os fundamentos do que seguirá por meio de algumas observações lingüísticas. Eis a questão: o que se entende por a) ser justificado, b) por fé, c) por graça? Assim como o verbo hebraico sadhaq, SiKaiô / dikaioún pertence, na Septuginta, à terminologia ju­ rídica. No ativo, significa "fazer justiça a alguém", "declarar alguém inocente", "absolver um acusado". O sentido passivo será, então, "ganhar uma causa", "ser inocente", "ser absolvido". Neste sentido, Ô iK airâ / dikaioún é usado também no Novo Testamento, cf. Mt 12.37; uma referência ao juízo final: "... por tuas palavras serás justificado (ôiKai(o0fjati / dikaiothése) e por tuas palavras serás condenado". A mesma
  • 65. 6 8 AJusnncAÇÀoPELAFé oposição "absolver-condenar" acha-se em Rm 8.33s citando Is 50.8: "É Deus quem justifica (0eòç ó ôiKttiôv / Theós ho dikaiôrí). Quem condenará?" Tudo isto se encontra em qualquer léxico. É preciso, contudo, notar que o sentido do verbo ôiKaiô / ôiKttiôaSai / dikaioún / dikaioústhaitinha se alargado, em particular quando servia para expres­ sar a ação de Deus. O novo matiz surgiu pela primei­ ra vez no Dêutero-Isaías (Is 45.25 Septuaginta): Por Yahweh serájustificada (ôiKaicoG fiaerai / dikaiothésetai) e,por causa de Yahweh, seráglorificada toda a raça de Israel. O Dêutero-Isaías rompe assim, com toda a evi­ dência, os limites do emprego jiirídico. O paralelis­ mo entre "ser justificado" e "ser glorificado" mos­ tra muito bem que ôiKairôoGai / dikaioústhaiioma aí o sentido de "achar salvação". Enquanto sei, ainda não foi observado que este emprego tenha persistido no judaísmo pós-bíblico. Destesepodem citarpelo menos dois exemplos.Nas Antiguidades Bíblicasdo Pseudo-Filo (escritas após 70 d.C.), "ser justificado" se apresenta como para­ lelo à eleição de Deus (49.4), bem como no Quarto livro de Esdras (escrito em 94 d.C.) "achar graça", "ser justificado" e "ser ouvido na oração" se usam como sinônimos (12.7). A última dessas passagens constitui o começo de uma oração:
  • 66. o ŒNTTIDO DA FÓRMULA 6 9 Ó Senhor altíssimo, se acheigraça diante de ti e se fuijustificado em tuapresença diante de uma multidão e se minha oração se eleva com segurança na direção de tua face... As três linhas estão em paralelo. Na primeira e na segrmda, "achar graça" altema-se com "ser jus­ tificado" sem nenhuma mudança aparente de sen­ tido. A tradução literal "ser justificado" é, portan­ to, muito estreita e não vai ao cerne da expressão. O que se deve de preferência entender por este tex­ to é o seguinte: Se acheigraça diante de ti e se acheifavor em tuapresença diante de uma multidão... O que aqui é importante é que a idéia de pro­ cesso é abandonada. "Ser justificado", aplicado a um ato de Deus e posto em paralelo com "achar graça", não tem o sentido estreito de "ser absolvi­ do", mas antes o sentido mais abrangente de "ser em favor". Confirma-se isto pelo paralelismo da terceira linha, que indica como a graça de Deus, o seu agrado, se manifesta: ele escuta a oração. Este fato nos conduz para muito perto de uma palavra dos evangelhos, em Lc 18.14, onde Jesus diz com referência ao publicano: "Eu vos digo que este último desceu para casa justificado, e não o outro".
  • 67. 70 AJUSTinCAÇÀOPELAFé Também aqui se abandona a comparação jurídica. Também aqui "ser justificado" tem antes o sentido de "encontrar o favor de Deus". Também aqui este favor divino se traduz pela audição da oração. Lc18.14deve,portanto, traduzir-se: "Eu vosdigo que estehomem desceupara asua casa comoalguém que encontrou o favor de Deus, e não o outro". Podemos até mesmo ir ao ponto de traduzir: "Eu vos digo que este homem desceu para casa como alguém cuja ora­ ção foi ouvida por Deus, e não o outro". Acabamos, pois, de ver um emprego de ôiKttirâaBai / dikaioústhai em que a comparação jurídica parece ter sido atenuada ou até mesmo completamente abandonada. Gostaria de chamar este uso de "soteriológico",para distingui-lo do uso jurídico. E evidente que em Paulo também o uso de "justi­ ficado" (ou de "ser justificado") vai muito além da esferajurídica - mesmo quando oaspectojurídico (ou forense) não está ausente - e já mencionamos o final em forma de hino de Rm 8, onde Paulo (nos vv. 33s) lança mão da imagem de um processo, citandoIs50.8: "Quem acusará os eleitos de Deus? É Deus quem jus­ tifica" (ôiKairâv / dikaiôrí). E, portanto, a conotação soteriológica que comanda o seu discurso. Para Pau­ lo, (ôiKaicò / dikaoún no ativo significa "conceder a graça ou favor", e no passivo (SiKaicòoGai / dikaioús­ thai "achar a graça ou favor". Vê-se de modo parti­ cularmente claro, que a imagem do processo desapa­ receu, quando Paulo fala de uma justificação que teve lugar no passado, como por exemplo em Rm 4.2: "Se I I I
  • 68. oSENTIDOD AFÓ RM ULA 71 Abraão achou graça (èôiKai(»0T| / edikaiôthê) pelas obras..." Aí, na história da fé de Abraão, não nos de­ frontamos com uma cena judiciária, mas antes com a outorga da graça de Deus. O que vale também de 5.1: "Tendo, pois, recebido nossa graça. (ôiKaicoGévteç / dikaiothénteé) pela fé, estamos em paz com Deus"; e de 5.9: "Quanto mais, então, agora, tendo encontrado graça (SiKaicoSévxeç / dikaiothénte^ por seu sangue". A justificação que provém de Deus é um transbordar de graça que extravaza largamente à esfera jurídica. Com referência ao substantivo ^'SiKaicoGobvri (tou) 08ob / dikaiosyne {toú) Theoú", a conotação soteriológica foi notada há muito tempo, e, primei­ ramente, pelo que eu saiba, por James H ardy Ropes no começo deste século^ Nos Salmos e no Dêutero- Isaías, sidhqath Jahwe, a "justiça de Deus", se aco­ pla com a salvação de Deus e com a misericórdia de Deus. E é precisamente o emprego que dela faz Pau­ lo (com a exceção de Rm 3.5, onde ele não fala em seupróprio nome, mas citauma objeção). Assim,por exemplo, Rm 1.17não se deve traduzir por "Porque nele (no Evangelho) ajustiça de Deus serevela",mas "Nele (no Evangelho) a salvação de Deus se revela". Em resumo, assim como para as epístolas de Paulo ôiKai(o0aí)vTi (tou) 0eoí) / dikaiosyne {toú) Theoú deve-se traduzir por "a salvação de Deus", ÔiKaiâo0ai / dikaioústhai deve-se traduzir por "achar a graça de Deus". ’ Righteousnessin the Old Testamentandin St.Paul, in Jour­ nal ofBiblical Literature 22 (1903) pp. 211-227.
  • 69. 72 AJusnncAçÃoPELAFé Vejamos agora as palavras ÔTtíoiei, èk tcíotego, ôiòc TríaTECoç / pístei, ek písteos, dià písteos, "pela fé". Toda vez que Paulo fala da ôiKaioo^òvr) / dikaio- syne de Deus, da salvação de Deus, e do ôiKaicò / dikaioún de Deus, a outorga da graça, ele centra a atenção inteiramente em Deus. Tudo se reconduz à questão vital de se saber se Deus é ou não é miseri­ cordioso, se ele concede ou não o seu favor, se ele me diz "sim" ou "não". Quando é que Deus diz "sim"? Paulo responde: um homem é justificado, um homem acha graça, pela fé. M artinho L utero, em sua tradução de Rm 3.28 acrescentou uma palavra. Ele diz: "Pois reputamos que o homem éjustificado pela fé somente" ("allein durch den Glauben"^ sola fidé). Criticou-se este acréscimo, mas do ponto de vista lingüístico ele tem toda a razão. Pois é uma característica da língua semita (e, sob este aspecto, as cartas de Paulo traem muitas vezes o seu fundo judaico) o fato de a palavra "somente", "só", ser gerahnente omitida, mesmo quando no ocidente ela se considera indispensável (cf., por exemplo, Mc 9.41, que é necessário interpretar assim: "Todo aquele que vos der um simples copo d'água" será recompensado, por insignificante que seja o servi­ ço). Sola fide!A fé é o único caminho para a miseri­ córdia de Deus. Quando Paulo fala de achar a graça só pela fé, é sempre em oposição à possibilidade de achá-la pe­ las obras. A doutrina da justificação não poderia ser entendida sem esta antítese. Ela se dirige contra a
  • 70. oSENTIDO DA FÓRMULA 73 concepção fundamental do judaísmo e do cristia­ nismo judaizante, segundo a qual o homem acha a graça de Deus pelo cumprimento da vontade divi­ na. O próprio Paulo considerava as coisas assim até o momento em que Cristo lhe apareceu no cami­ nho de Damasco: somente este instante é que lhe abriu os olhos para a ilusão que o fazia crer que um homem poderia manter-se diante de Deus por sua própria força. É por isso que, depois de Damasco, ele opõe à tese dos judaizantes, que pretendem que a Lei seja o caminho da salvação, esta antítese: o caminho da graça de Deus não está nas obras, mas na fé (G1 2.16; 3.8,24; Rm 28.30; 4.5). Assim a fé substitui as obras. Mas então se põe a questão: Achamo-nos diante de uma façanha em virtude da qual Deus concede a sua graça, se a jus­ tificação segue a fé? Eis a resposta: Sim! Estamos de fato na presença de uma façanha. Deus concede com efeito a sua misericórdia na base de uma faça­ nha. Mas ei-la: não se trata da minha própria faça­ nha, mas da façanha de Cristo na cruz. A fé mesma não é uma façanha, mas antes a mão que apanha a obra do Cristo e a dirige para Deus. A fé diz: Eis a façanha - o Cristo morreu por mim na cruz (G1 2.20). Esta fé é a única maneira de obter graça junto de Deus.O fato de que Deus concede o seu favor ao crente é contrário a todas as normas das leis huma­ nas. Isto salta aos olhos, se considerarmos quem é justificado,ou seja,oímpio (Rm45) quemereceamor­ teporque éportador da maldição de Deus (G13.10). A salvação de Deus lhe é concedida "a título gracioso"
  • 71. 74 A Ju sn n C A Ç À O P E L A Fé (Rm 4.4; 5.17), como um dom gratuito (Rm 3.24). Esta graça não conhece limites; sendo independente da lei mosaica, pode incluir os gentios. Em Rm 4.6-8,acha- se com exatidão o que significa o favor de Deus, sola gratia:"Como, aliás, também Davi proclama a bem- aventurança do homem a quem Deus credita a jus­ tiça, independentemente das obras; "Bem-aventurados aqueles cujas ofensas foram perdoadas, e cujospecados foram cobertos. Bem-aventurado o homem, a quem o Senhornão leva em conta opecado". A justificação, é o perdão, nada mais do que o perdão pelo amor de Cristo. Esta afirmação, todavia, precisa ser mais expli­ cada. 2. Justificação e nova criação Se contarmos as passagens de Paulo onde se acha a fórmula da justificação, estaremos diante de um fato curioso e muitas vezes negligenciado, ou seja, o fato de que a doutrina da justificação não aparece na maior parte das epístolas. Nas epístolas aos Tessalonicenses não achamos o menor traço dela. Na primeira delas, o advérbio ôiKaicoç / dikaíos qualifica a conduta irrepreensível do Apóstolo (1 Ts 2. 10). Na segunda, o julgamento de Deus é chamado de "justo julgamento"; Deus é chamado
  • 72. jL'snncAÇÃOe nova criação 75 "justo" porque o seu julgamento é imparcial (2 Ts 1.5s). Estas afirmações nada têm a ver com a doutri­ na da justificação. Na Carta aos Gálatas, que vem cronologicamente logo depois daquelas, a fórmula completa "justificação pela fé" ou "ser justificado pela fé" aparece bruscamente pela primeira vez. Nas duas Epístolas aos Coríntios, ôiKaiooúvrj / dikaiosyne tem o sentido de "salvação", e "ser jus­ tificado" aparece pelo menos uma vez (1 Co 6.11) num sentido especificamente paulino, mas em ne­ nhuma das duas Epístolas aparece a fórmula com­ pleta "justificação pela fé". A seguir, encontramo- la com muita freqüência na Epístola aos Romanos. Depois disto, desaparece de novo nas Epístolas do cativeiro: Filipenses, Efésios, Colossenses, Filêmon, com a exceção de El 3.9, onde ôiKaiooúvTi / dikaio­ syne (salvação) pela Lei se opõe à ôiKaioabvt] / di­ kaiosyne (salvação) de Deus pela fé. As Epístolas pastorais não contêm a fórmula completa, ainda que em Tt 3.7 se encontre a variante: "justificados pela graça de Cristo". Assim, a fórmula completa "justificação pela fé" ou "ser justificado pela fé" acha-se somente nas três Epístolas aos Gálatas, Ro­ manos e Filipenses (e numa única frase desta últi­ ma), às quais se deve acrescentar Tt 3.7. Como ex­ plicar este fato tão estranho? A resposta nos parece ser a seguinte: a doutrina não aparece a não ser quando Paulo entra em con­ trovérsia com o judaísmo. Com certeza W. Wrede- - W red e W ., Paulus, Tübingen 1904.