Artigo elaborado junto ao Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Salgado de Oliveira, para a disciplina: A formação dos Estados Nacionais nas Américas: questões políticas na modernidade
1. Universidade Salgado de Oliveira
Programa de Pós-graduação em História do Brasil
Campus Niterói
Kehl e Delfino – eugenistas sob uma perspectiva comparada
Rodolfo Alves Pereira
Artigo elaborado junto ao Programa de Pós-Graduação em
História do Brasil, Disciplina A formação dos Estados Nacionais
nas Américas: questões políticas na modernidade
Niterói (RJ)
2016
2. 1
Introdução
Ao final do século XIX, a Inglaterra era a maior potência industrial do mundo. Além
de desenvolvimento econômico, a industrialização possibilitou um grande aumento
populacional, algo que não representava, necessariamente, um fato positivo.
O crescimento demográfico preocupava pensadores ingleses desde o final do século
XVIII, quando o economista Thomas Malthus publicou Um ensaio sobre o princípio da
população (1798). Na obra, Malthus manifestava sua preocupação com o compasso
desproporcional entre a oferta de alimentos e o aumento populacional. Segundo o autor, a
produção de alimentos crescia em progressão aritmética, enquanto a população aumentava em
progressão geométrica.
Para Malthus, o crescimento populacional desenfreado acarretaria fome, por isso ele
sugeria “prudência no casamento, que é o único meio moral de evitar um excesso de
trabalhadores em relação à demanda.” (MALTHUS, 1803, p. 96 apud. GENNARI, 2009, p.
6).
Em 1883, Francis Galton, cientista britânico e primo de Charles Darwin, cunhou a
expressão eugenia, originária da expressão grega “bem nascido”. A ideia de Galton era
desenvolver um método científico que lhe possibilitasse identificar nos indivíduos aqueles
“portadores das melhores características, e estimular a sua reprodução, bem como encontrar
os que representavam características degenerativas e, da mesma forma, evitar que se
reproduzissem” (STEPAN, 1991 apud DEL CONTI, 2008, p. 2). Pesava, para Galton, o fato
de que a população urbana aumentava rapidamente, principalmente os pobres, doentes,
alcoólatras e miseráveis, os quais passavam a sua condição social e genética a diante,
promovendo a degeneração racial.
O pensamento galtoniano desenvolveu-se num contexto em que havia forte debate
biológico em torno do material genético dos indivíduos e como eles seriam transmitidos para
as próximas gerações. Sua obra dialogava com várias linhas de pensamento de sua época,
como as teorias de Darwin, Lamarck, Weismann, Spencer e, posteriormente, Mendel, o pai da
genética. Em 1865, Galton, valendo-se da matemática e da estatística, empreendeu um estudo1
com famílias de poetas, artistas e intelectuais para sustentar a ideia de que
“não somente os aspectos físicos, mas também o talento e a capacidade intelectual
poderiam ser calculados, administrados e estimulados, por meio de casamentos
criteriosos durante gerações consecutivas” (DEL CONTI, p. 204).
1 Posteriormente, esse trabalho originou o livro Hereditary Genius, publicado em 1869.
3. 2
Dessa forma seria possível incentivar casamentos de elementos mais desejáveis, a
saber, “os melhores membros da sociedade”, a fim de transmitir para as novas gerações
caracteres positivos, como a inteligência, a criatividade e aptidões físicas.
Por outro lado, aqueles portadores de comportamentos considerados degenerados,
como o alcoolismo, a vadiagem, a demência e a prostituição, também transmitiriam essas
características para as gerações seguintes. Portanto a reprodução de indivíduos com esses
tipos de conduta, identificados especialmente entre as classes mais pobres, deveria ser
coibida.
Galton chamou a atenção para esse fato em 1894, no Congresso Demográfico,
alertando que, sob o aspecto de natalidade, as classes menos dotadas ultrapassariam as classes
mais dotadas. Isso representaria a decadência racial inglesa (DEL CONTI, 2008, p. 205).
Caberia aos intelectuais e, principalmente, ao Estado adotar medidas eugênicas para
proporcionar o “melhoramento da população através do estímulo aos casamentos dos
melhores membros da sociedade e da restrição dos casamentos entre indivíduos menos
dotados”.2
Dentre dessas medidas nasceram propostas de controle reprodutivo, para elevar a
qualidade da raça humana e evitar que casais degenerados passassem sua condição à próxima
geração. Galton pretendia aplicar a seleção natural teorizada por Darwin na sociedade
humana, acreditando, em linhas gerais, que tanto na natureza quanto na sociedade o mais apto
sobreviveria (ibidem, 2008, p. 208). Essa ideia ficou conhecida como darwinismo social3.
A nova ciência de Galton propunha, então, a possibilidade de regenerar a raça humana,
melhorando sua condição, deixando a espécie menos suscetível às doenças, aos vícios, à
demência e à improdutividade. Em 1912, com a realização do Primeiro Congresso
Internacional de Eugenia, em Londres, as ideias eugênicas ganharam ainda mais notoriedade e
penetração cultural em vários países do mundo, inclusive nos latino-americanos.
Aqui, no cone sul da América, “o desejo de transformação racial esteve diretamente
ligado à formação das identidades nacionais” (DIWAN, 2007, p. 76). As elites intelectuais
latino-americanas estavam incomodadas com o fato de as nações europeias, tomadas como
2 Idem, 2008, p. 205.
3 [...] principal doutrina racista vigente na passagem do século – radicalizou o primado das leis biológicas na
determinação da civilização, afirmando que o progresso humano é um resultado da luta e da competição entre
raças, vencendo os mais capazes (ou aptos) – no caso, os brancos, porque as demais raças, principalmente os
negros, acabariam sucumbindo à seleção natural e social. (SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação:
hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. In: MAIO, Marcos Chor;
SANTOS, Ricardo Ventura (org). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p. 43.
4. 3
modelo de civilização e progresso, inferiorizarem o papel de países mestiços, cujas
identidades eram indefinidas.
Por isso, “a América Latina abraçou a nova teoria científica para o melhoramento
racial, a eugenia, para encontrar respostas satisfatórias e resolver o problema da miscigenação,
até então muito malvisto pelos europeus” (idem, p. 76). Então, pretendemos com este artigo
analisar a introdução da eugenia no Brasil e na Argentina, numa perspectiva comparada.
Embora DIWAN (ibidem, p. 77) ressalte que as particularidades de cada país impeçam esse
tipo de análise, nota-se que em ambos os casos havia a preocupação de que a eugenia pudesse
apontar caminhos para o imbróglio da formação da identidade nacional. Por isso, acreditamos
que essa similitude viabiliza esse breve exercício de histórias paralelas, que ora se afastam,
ora se aproximam, mantendo um frequente diálogo e influenciando-se mutuamente.
A eugenia no Brasil - Kehl e a atuação da Sociedade Eugênica de São Paulo
Não demorou muito para que a eugenia desembarcasse no território brasileiro. Desde o
final do século XIX, as elites dirigentes e econômicas se preocupavam com a degeneração
racial do povo. A miscigenação, especialmente a presença indígena e africana, era mal vista e,
para muitos intelectuais, um grave empecilho para o desenvolvimento nacional. Segundo o
conde de Gobineau, diplomata francês que esteve no Brasil no governo de D. Pedro II,
“Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos casamentos entre
brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto que os matizes da carnação
são inúmeros, e tudo isso produziu, nas classes baixas e nas altas, uma
degenerescência do mais triste aspecto...”4
A crença de que a miscigenação conduzia o povo ao declínio fez com que o governo, a
partir de meados do século XIX, junto com parte do setor privado, incentivasse a entrada
maciça de imigrantes europeus no país. Esperava-se suprir o vácuo de mão de obra deixado
pelo fim do tráfico de escravos e a abolição, além de branquear o povo brasileiro, favorecendo
sua descendência europeia, a fim de alçar o país ao rol das nações desenvolvidas e afeitas ao
progresso.
Nas primeiras décadas do século XX, um dos maiores defensores do branqueamento e
da eugenização do povo brasileiro foi Renato Kehl, a quem Monteiro Lobato considerava o
“pai da eugenia” no Brasil, como fica claro em correspondência deste endereçada aquele:
4 (RAEDERS, 1996, p. 39-40, apud GALVÃO, 2012, p. 27)
5. 4
“Renato, tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra
pró-eugenia”5.
Kehl nasceu em 1889, na cidade paulista de Limeira, e concluiu seus estudos em
medicina no ano de 1915, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Exerceu clínica em
São Paulo e ocupou cargos no Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), entre 1919
e 1922. Nos anos seguintes, atuou no Serviço de Educação e Propaganda Sanitária. Também
trabalhou para o setor privado, como farmacêutico e diretor da Bayer. Foi um dos fundadores
da Sociedade Eugênica de São Paulo (SESP), em 1918. Publicou cerca de trinta livros e
inúmeros artigos em periódicos, sempre defendendo a difusão das ideias eugenistas. Faleceu
em 1974, no Rio de Janeiro.
Kehl entrou em contato com as ideias eugenistas por meio dos trabalhos publicados no
Primeiro Congresso Internacional de Eugenia, ocorrido em 1912. Participaram desse evento
médicos da Europa e da América do Norte e um representante da América Latina, o argentino
Victor Delfino (KINOSHITA, ROCHA, 2013, p. 4).
Em janeiro de 1918, Kehl, junto com médicos paulistas e cariocas, fundou a Sociedade
Eugênica de São Paulo, a primeira organização de eugenia da América Latina, “...apenas dez
anos após a equivalente britânica e seis anos após a francesa, o que sugere o quão atualizados
estavam os médicos brasileiros em relação aos europeus” (DIWAN, 2007, p. 97). Ela contava
com cento e quarenta membros, dentre os quais havia intelectuais, políticos, além de médicos
e sanitaristas, como Belisário Penna e Arthur Neiva, e membros estrangeiros correspondentes,
como o médico argentino Victor Delfino.
Um dos objetivos dessa Sociedade Eugênica era:
“estudar as leis da hereditariedade; a regulamentação do meretrício,
dos casamentos e da imigração; as técnicas de esterilização; o exame
pré-nupcial; a divulgação da eugenia e o estudo e aplicação das
questões relativas a influência do meio, do estado econômico, da
legislação, dos costumes, do valor das gerações sucessivas e sobre
aptidões físicas, intelectuais e morais” (DIWAN, 2007, p. 100).
Note que as preocupações galtonianas acerca da hereditariedade e do controle de
matrimônios a fim de favorecer a procriação dos “melhores” indivíduos estavam presentes
entre as prioridades da SESP. As questões relacionadas ao meio ambiente e às condições
sanitárias, embora não fossem totalmente desconsideradas, ocupavam um papel secundário no
5 DIWAN, Pietra. Eugenia, a biologia como farsa. Revista História Viva. Edição 49, Duetto Editorial,
Novembro 2007. Disponível on-line em:
<http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/eugenia_a_biologia_como_farsa_imprimir.html> Acesso em
13 mar. 2016.
6. 5
pensamento eugenista, pois, a princípio, não eram tão determinantes na composição do ser
humano6.
A imprensa paulista comemorou a fundação da Sociedade Eugênica. Era comum os
periódicos publicarem notas sobre os eventos da agremiação, convites para estudantes de
medicina e demais interessados no tema para assistirem àss conferências e também artigos dos
associados, alguns dos quais eram colunistas e colaboradores de jornais.
A SESP também patrocinou trabalhos literários, como um dos primeiros livros
publicados por Monteiro Lobato, Problema Vital (1918), que foi prefaciado por Renato Kehl.
Mas, segundo DIWAN (2007), a maior realização da organização foi a publicação dos Annaes
de Eugenia em 1919. Esse documento traz uma coletânea de conferências e artigos escritos
por seus associados.
DIWAN (2007) ressalta que, embora os conteúdos publicados no documento
apresentem posições distintas, “tem em comum a aposta na intervenção direta no corpo dos
indivíduos com a intenção de mudar o “corpo coletivo”, tendo em vista a formação da
nacionalidade brasileira” (p. 100).
A Sociedade Eugênica de São Paulo teve uma vida curta, tendo suas atividades sido
encerradas no final de 1919. DIWAN atribui, em grande medida, seu fim à mudança de Kehl,
um dos principais incentivadores da eugenia no país, para o Rio de Janeiro.
Assim, apesar de sua breve existência, a SESP tentou atingir um público cada vez
maior, divulgando suas ideias por meio de palestras e eventos, e mantendo uma estreita
relação com a imprensa. O fim dessa associação não significou o desaparecimento da eugenia
no Brasil, pelo contrário, a iniciativa abriu caminho para o surgimento de outras agremiações
semelhantes no país e também em outros países da América Latina. Não tardaria até que os
dirigentes políticos abraçassem as ideias eugenistas e tentassem implementar práticas
eugênicas na sociedade brasileira, tais como a implementação da educação eugênica, o
controle de matrimônios e a restrição à entrada de imigrantes de cor no país7.
Quanto à defesa dos ideais eugênicos de Kehl, o seu propósito de eugenização do povo
brasileiro prosseguirá de modo diligente até o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o
6 No Brasil, de maneira geral, a eugenia terá uma orientação neolamarckiana, às vezes sendo associada ao
movimento sanitarista. A orientação teórica de Kehl transita entre o determinismo biológico e a influência do
meio ambiente sobre o patrimônio genético dos indivíduos. (PEREIRA, R. A. 2008, p. 20).
7 Sobre a influência do pensamento eugenista nas políticas públicas do país, entre as décadas de 1920 e 1940,
trabalhamos na análise de alguns casos relacionados ao assunto num artigo científico, realizado em 2008, para
conclusão do curso de especialização em Ciências Humanas: Brasil – Estado e Sociedade, da Universidade
Federal de Juiz de Fora. PEREIRA, R. A. A eugenia no Brasil: influência acadêmica e desdobramentos sociais.
[Trabalho de conclusão de curso]. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, Curso de especialização
em Ciências Humanas: Brasil – Estado e Sociedade, Instituto de Ciências Humanas; 2008.
7. 6
mundo tomou conhecimento da barbárie nazista. A partir daí, a eugenia será associada à
intolerância e ao horror do nazismo, e Kehl irá reorientar os seus estudos para um ciência em
formação, a Psicologia (DIWAN, 2007, p. 150), e, com o passar dos anos, a temática cairá no
esquecimento.
Victor Delfino – por uma argentinidad
Na Argentina, também houve significativa penetração das ideias eugenistas e neste
país ela manteve estreita relação com a busca de uma identidade nacional. A identidade
buscada pelos argentinos era aquela ligada à herança latina e mediterrânea de seu povo, a
argentinidad (DIWAN, 2007, p. 78).
DIWAN (2007, p. 77) destaca que, na Argentina, a eugenia encontrou um ambiente
fértil, pois a conjuntura nas primeiras décadas do século XX foi marcada por crise econômica
e a reorientação política para a via autoritária que favoreceu a cultura da xenofobia.
Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, a Argentina
implementou uma eficiente política de branqueamento, impedindo a entrada de imigrantes
indesejáveis8 e estimulando a vinda de europeus, principalmente italianos, para o país. Isso
contribuiu para que a Argentina fosse o único “... país da América Latina a realizar o
branqueamento racial. Isso porque a eugenia argentina teve uma forte conexão com o
fascismo italiano” (DIWAN, op. cit. p. 78). Assim, nessa época, a população argentina era
majoritariamente branca, os negros se limitavam a 2% do total e os índios estavam quase
extintos (KINOSHITA, ROCHA. p. 3).
Nesse país, um dos principais representantes da “ciência do melhoramento racial” foi
o médico Victor Delfino. Ele esteve no primeiro Congresso Internacional de Eugenia,
realizado em Londres, no ano de 1912.
Em 1914, Delfino organizou um comitê eugênico e fundou a Sociedade Argentina de
Eugenia em 1918, logo após a fundação da primeira Sociedade Eugênica da América Latina,
estabelecida no Brasil, por Kehl e demais associados. A exemplo da instituição congênere
brasileira, o órgão fundado por Delfino tinha por objetivo “divulgar os princípios da eugenia
entre o público nacional e cooperar nos projetos de regeneração da população local”
(SOUZA, 2006. p. 46).
8 Nessa categoria, de acordo com Diwan (2007, p. 78-9), estavam os “orientais” – russos, sírios, libaneses,
judeus, além dos comunistas, cuja ideologia contrariava o projeto de poder das elites dominantes.
8. 7
Aliás, a eugenia defendida por esses dois médicos serviu para aproximá-los por meio
da troca de correspondências e de influências. Em abril de1918, o médico brasileiro publicou
uma nota no jornal argentino, La República, congratulando Delfino por sua iniciativa e
desejando que ela se tornasse “paradigma a ser imitado pelos países irmãos do continente sul-
americano”. (SOUZA, 2006, p. 89; KINOSHITA, ROCHA. 2013, p. 4).
Em uma carta enviada a Kehl por Delfino, em 1925, dentre outros assuntos abordados,
o argentino oferece ao brasileiro uma coluna na “Revista Científica Argentina”, da qual era
redator-chefe. O diálogo e a troca de ideias entre os dois personagens revelam uma
preocupação em sedimentar as posições eugenistas na América Latina.
Embora houvesse uma clara pretensão das lideranças médicas continentais no sentido
de fortalecer a eugenia no continente, a principal preocupação de Delfino era
la amenaza de "degeneración" que pesa sobre la "raza argentina" medida, según él,
por las estadísticas publicadas por la Dirección General de Sanidad en el año 1917,
según las cuales el 32,6 por ciento de los examinados para el servicio militar son
"inútiles" para cumplir con esa obligación (BIERNAT, 2005).
Note que o médico argentino emprega a estatística para demonstrar e acentuar a gravidade da
situação, no caso em questão, o fato de que um terço dos indivíduos examinados eram inaptos
ao serviço militar e, portanto, incapazes de protegerem o país num conflito armado.
Segundo ele, esse quadro de debilidade racial ocorria por dois motivos: primeiro
devido à política imigratória que não era rígida o suficiente para impedir a entrada de pessoas
indesejáveis no país; depois, devido à falta de estudos para conhecer a herança biológica e
impedir a reprodução dos elementos disgênicos.
Para suprir a carência de estudos e informações, as escolas, a partir do início dos anos
1930, recolhiam dados das crianças e de suas famílias para preencher uma ficha biotipológica,
que servia como um banco de dados sobre o patrimônio racial, permitindo aos médicos
intervirem caso fossem detectadas anomalias. Essa medida era compulsória e tinha forte
inspiração em práticas do fascismo italiano.
Dentre as propostas de Delfino para eugenizar o povo argentino, também constavam
medidas positivas, isto é, aquelas que visavam incentivar a reprodução dos “melhores”, como
como la prevención de las enfermedades hereditarias, la educación de la función
reproductora, la institución del certificado de sanidad para cónyuges, la garantía al
recién nacido de las mejores condiciones de normalidad, y el combate contra las
intoxicaciones crónicas y profesionales (DELFINO, 1924: 674-676 apud
BIERNAT, 2005).
No pensamento de Delfino fica evidente a preocupação com a hereditariedade e com a
necessidade da criação de mecanismos de controles reprodutivos, seja através da educação da
função reprodutora ou por meio da certificação de casais considerados ideais, com a
9. 8
finalidade de “el mejoramiento de la población existente y la extinción de aquellos
considerados como inferiores” (BIERNAT, 2005).
Delfino entendia que cabia ao Estado controlar as práticas reprodutivas, por meio da
seleção de indivíduos considerados aptos para tal, além de estabelecer um rígido controle da
imigração para impedir a entrada de degenerados no país, como judeus e asiáticos e pessoas
com deficiências físicas e mentais (DIWAN, p. 79). Assim, preservar a ascendência latina de
seu povo e evitar a degeneração física e moral era fundamental na construção da identidade
nacional. Por isso,
“... em la Argentina, la eugenesia fue una ciência práctica, profundamente unida a la
política. Por ende, tanto o más que otros campos científicos, su desarrollo estuvo
influido por las realidades locales sobre las que se pretendía producir algún efecto”
(NARI, 2005, p. 35).
Graças aos esforços de Delfino, o país estabelecerá uma política de imigração
restritiva, com vistas ao branqueamento. Ele também abriu as possibilidades para o
surgimento, ao final dos anos 1920, de outras associações científicas, como a Associação
Argentina de Biotipologia, Eugenia e Medicina Social, em Buenos Aires, a qual debaterá
temas como demografia, fertilidade e hereditariedade em defesa da nacionalidade.
O eugenismo na Argentina, a exemplo do que ocorreu em outros países do mundo,
entra em declínio na década de 1940, por conta da divulgação das experiências médico-
científicas promovidas pelos nazistas. Os trabalhos sobre eugenia e os estudos biotipológicos
serão reorientados numa tentativa de camuflar o radicalismo das propostas eugenistas num
“discurso estatístico e demográfico”, numa linha que se aproxima de ciência social (DIWAN,
2007. p. 80).
Considerações finais
O pensamento eugenista moderno nasce na segunda metade do século XIX. É nesse
momento que surgem grandes estudos e teorias biológicas, os quais serão recombinados num
esforço multidisciplinar, na tentativa de criar um método para aperfeiçoar a espécie humana.
As ideias eugenistas, rapidamente, se espalharam pelo Ocidente e chegaram ao continente
americano. No Brasil, a eugenia abria a possibilidade de regenerar um povo mestiço, algo
condenável pelos sociodarwinistas europeus e apontado por muitos como o fator responsável
pelo atraso nacional.
Renato Kehl, médico e destacado eugenista brasileiro, dedicou grande parte de sua
vida à implantação da eugenia no país. Começou seu trabalho fundando a Sociedade Eugênica
10. 9
de São Paulo, associação que reunia médicos e membros da elite paulista para discutir e
planejar formas e meios científicos de melhorar a raça brasileira. Defendeu com afinco a
aplicação de práticas eugenistas no Brasil, com a finalidade de branquear e aperfeiçoar o povo
brasileiro, e suas ideias influenciaram políticos e tentativas de institucionalizar a eugenia no
país.
Na Argentina, o médico Victor Delfino foi um dos pioneiros na defesa da eugenia no
cone sul da América. A exemplo de Kehl, ele fundou uma associação de eugenia em seu país
e trabalhou na defesa de ideias eugênicas, como o controle reprodutivo e a restrição de
imigrantes indesejáveis e danosos à argentinidad, ou seja, à identidade nacional argentina.
Nesse país, o pensamento eugenista encontrou ambiente fértil e, devido à instabilidade
econômica e política e às ligações mantidas com o fascismo italiano, a Argentina conseguiu
colocar em prática uma eficiente política de branqueamento, favorecendo a entrada de
imigrantes europeus, principalmente italianos, no país.
Kehl e Delfino admiravam-se mutuamente, trocavam cartas e ideias sobre como
implementar a eugenia em seus países e suas iniciativas a frente de associações científicas
contribuíram para a difusão dos princípios eugenistas no continente, com o objetivo de criar
um povo melhor, mais sadio, mais produtivo, menos suscetível às doenças degenerativas e,
claro, tendo como referência a civilização e os povos da Europa.
O projeto de nação proposto pelos eugenistas era agressivo e excludente, não
contemplando negros, índios, mestiços e pessoas portadoras de deficiências físicas e mentais.
Somente com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, e após a divulgação da barbárie
perpetrada pelos médicos e cientistas nazistas em nome de uma pretensa “pureza racial” é que
a Eugenia irá refrear, sendo associada à violência e à intolerância. Nesse contexto, os
defensores da eugenia tentarão reorientar suas carreiras e biografias, migrando suas ideias
médico-científicas para outros ramos do saber, tentando se afastar da ciência do
melhoramento da raça humana. Contudo, até os dias de hoje é possível identificar nas
sociedades brasileira e argentina os resultados das tentativas de eugenização de seus povos,
seja por meio de práticas ou manifestações de preconceito racial, ou através de discursos
médico-científicos que objetivam promover as potencialidades humanas.
11. 10
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nos anos 1910 e 1920. Revista de História Regional, v. 11, p. 29-70, 2007. Disponível on-line
em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/rhr/article/view/2230/1712> Acesso em 09 abr.
2016.