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NUESTRA AMÉRICA
NO SÉCULO XXI

AS DISPUTAS DE HEGEMONIA NOS CIRCUITOS DA CRISE
Francisco Uribam Xavier de Holanda
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NUESTRA AMÉRICA
NO SÉCULO XXI

AS DISPUTAS DE HEGEMONIA NOS CIRCUITOS DA CRISE
©2012 Copyright dos autores
Universidade Federal do Cear á - UFC
Reitor
Prof. Jesualdo Pereira Farias
Vice-Reitor
Prof. Henry Campos
Obra publicada através de projeto da Coordenadoria de
Comunicação Social e Marketing Institucional
Coordenador: Paulo Mamede
Revisão: Maria das Dores de Oliveira Filgueira e Sílvia Marta Costa.
Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Yuri Leonardo
ISBN
978-85-7282-493-4
Tiragem
1000 exemplares
CTP e impressão
Expressão Gráfica

PAÇO PARA
CATALOGRÁFICA
Francisco Uribam Xavier de Holanda
(Organizador)

NUESTRA AMÉRICA
NO SÉCULO XXI

AS DISPUTAS DE HEGEMONIA NOS CIRCUITOS DA CRISE

Fortaleza
2012
Estos tiempos no son para acostarse
con el pañuelo a la cabeza, sino con las
armas de almohoda, como los varones de
Juan de Castellanos: las armas del juicio,
que vencen a las otras. Trincheras de
ideas valen más que trincheras de piedra.

José Marti – Nuestra América – 1891
SUMÁRIO
11
13
17

Autores Por ordem alfabética
Apresentação
CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE:
INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE

Alba Maria Pinho de Carvalho

37

ESTÁ EM DECADÊNCIA O IMPÉRiO AMERICANO?

55

NUESTRA AMÉRICA: REFLEXÕES SOBRE O FENÔMENO
DO POPULISMO LATINO-AMERICANO

Fernando Marcelo de la Cuadra

João Paulo Saraiva Leão Viana

79

DEMOCRACIA, DIREITOS E AÇÃO CIDADÃ NA
TRANSIÇÃO BRASILEIRA PARA O SÉCULO XXI
Francisco Uribam Xavier de Holanda

97

RESISTÊNCIA DOS MOVIMEnTOS SOCIAIS
NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE CRISE
Adelita Neto Carleial

113

A CONTEMPORANEIDADE DO PENSAMENTO DE CELSO
FURTADO PARA a EMaNCIPAÇÃO DA AMÉRICA LATINA
Eduardo Girão Santiago

129

A COLONIALIDADE DA NAÇÃO CEARÁ:
TESTEMUNHOS DE UMA IDENTIDADE NEGADA
Pedro Vítor Gadelha Mendes
AUTORES POR ORDEM ALFABÉTICA
Adelita Neto Carleial
Mestra em Sociologia pela Universidade Autônoma do México, doutora
em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, professora do Curso
de Ciências Sociais da UECE e membro da Rede de Pesquisadores
Universitários sobre a América Latina (Rupal).
Alba Maria Pinho de Carvalho
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará com pósdoutorado pelo CEAS da Universidade de Coimbra, professora do
Departamento de Ciências Sociais da UFC e coordenadora da Rupal.
Eduardo Girão Santiago
Economista e doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará,
professor do Departamento de Ciências Sociais da UFC e membro da Rupal.
Fernando Marcelo de la Cuadra
Sociólogo chileno, doutor em Sociologia pela Universidade Federal
Rural Fluminense e membro da Rupal.
Francisco Uribam Xavier de Holanda
Licenciado em Filosofia Política, doutor em Sociologia pela Universidade
Federal do Ceará, professor do Departamento de Ciências Sociais da
UFC, tutor do PET-UFC de Ciências Sociais e Membro da Rupal.
João Paulo Saraiva Leão Viana
Mestre em Relações Internacionais para a América do Sul pelo Centro
Brasileiro de Estudos Latino-americanos (CEBELA – RJ), professor da
Faculdade de Rondônia (FARO) e da União das Escolas Superiores de
Rondônia (UNIRON). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades.
Pedro Vítor Gadelha Mendes
Graduado em Ciências Sociais pela UFC e membro da Rupal.

11
APRESENTAÇÃO
Hispanoamérica no encontrará su unidad em La orden burguês.
Este orden nos divide, forzosamente, em pequeños nacionalismos.
A Norteamérica sajona Le toca caronar y cerrar la civilización capitalista.
El provenir de la América Latina es socialista.

José Carlos MariáteguI

Entre os anos de 2009 e 2011 comemoramos o bicentenário da
independência política de vários países na América Latina. Em 1809,
Bolívia e Equador; em 1810, Argentina, Chile, México e Venezuela; em
1811, El Salvador, Paraguai e Uruguai fizeram parte de uma onda política de movimentos emancipatórios. Todavia, o Haiti foi o primeiro país
da América a proclamar a sua independência (1804) e em um contexto
radicalmente diferente do resto do continente, pois enquanto uma elite
criolla conduziu a independência na América Latina, no Haiti foram os
negros que se tornaram sujeitos de sua própria história. Os povos do Haiti, na época, uma população de 300 mil habitantes, apenas 12 mil eram
livres, brancos e mulatos. A repressão contra os negros no poder foi tão
perversa que até hoje o Haiti é um flagelo a céu aberto e sem perspectiva
a médio prazo.
O movimento de emancipação política na América Latina, em
torno de suas contradições e idiossincrasias, foi conduzido por uma elite
criolla influenciada por um projeto político de república iluminista do
século XVIII, em particular pela adoção do modelo de estado-nação europeu que até hoje sufoca seus povos originários.
A luta por independência foi para acabar com o colonialismo político
espanhol que impedia o crescimento econômico e a autonomia política e
cultural do continente. Todavia, a implantação de um sistema administrativo de Estado centralizado, dominado por caudilhos e populistas, fazendo
par com um modelo de desenvolvimento agrário-exportador, contribuiu
para impedir o desenvolvimento de um mercado interno forte, a formação
de uma classe média e a integração entre os países do continente.
Se há 200 anos a luta foi pela emancipação do jugo político colonial, no século XXI o desafio é a superação do processo de colonialida13
de do poder, pois a colonialidade do poder implica na invisibilidade dos
não europeus: povos originários, negros, mestiços. Trata-se de uma visão
de mundo eurocêntrica que combina um padrão de poder e um modelo
epistemológico de validação de conhecimento que opera ideologicamente na sedimentação de modelos de dominação.
O processo de construção da descolonialidade passa pela construção e sedimentação de novos imaginários e valores sobre o socialismo
para o século XXI, imaginários e valores que superem as visões de mundo do neoliberalismo e do socialismo dos séculos XIX e XX. O novo momento de luta pela transformação social se expressa em novas formas de
fazer política, na incorporação de novos sujeitos políticos, na defesa de
direitos humanos difusos e pela necessidade de confecção de uma concepção de sociedade onde as relações de poder, o modelo de desenvolvimento e de relação dos homens com a natureza reflitam o respeito ao
planeta como forma de vida que é patrimônio universal da humanidade.
Em nossa epocalidade, os que não perderam a esperança capitulando no comodismo da ideia do fim da história têm como desafio contribuir para que as novas formas de fazer política em curso na América
Latina se transformem em movimentos emancipatórios, ou seja, contribuir para transformar movimento social em movimento revolucionário.
Os trabalhos aqui produzidos pelos membros da Rede de Pesquisadores Universitários sobre a América Latina – RUPAL – são uma semente
plantada numa conjuntura de esperança que aflora em Nuestra América.
A Profª. Alba Carvalho interpela, em seu artigo, a realidade da crise
estrutural do capitalismo desenhada na primeira década do século XXI
na tentativa de decifrar os desafios para o nosso tempo. Para Alba, vivemos um momento que “exige avaliar a novidade que a América Latina
coloca para o mundo com a chamada virada à esquerda, com a perspectiva de refundação pluricultural e multisocietal de estados multinacionais e comunitários”. Fernando de la Cuadra põe em questionamento se
o poder americano está em decadência, dialogando com argumentos que
sustentam o fim da hegemonia estadunidense e com os que relativizam
sua decadência. Uma de suas conclusões é que, pelos menos, “a prepotente autoconfiança das elites norte-americanas não irá sucumbir tão cedo.”
João Paulo Viana aborda o fenômeno do populismo na América
Latina pontuando que a crise do modelo liberal nos anos de 1920 e o colapso das velhas oligarquias rurais criaram as condições para a emergência de governos populistas que conduziram a construção de um estado
forte, nacionalista e intervencionista. Todavia, ele faz um levantamento
14
dos fundamentos teóricos do populismo nas obras de Haya de la Torres,
Gino Germani, Torcuato Di Tella e Francisco Weffort. Uribam Xavier,
diante da consolidação de um modelo liberal moderno de Estado, abre
uma reflexão sobre os desafios de uma gestão pública solidária e estende
seu olhar sobre as ações cidadãs (a responsabilidade social das empresas,
o Terceiro Setor e a economia solidária) desenvolvidas no Brasil durante
a transição do século XX para o XXI.
O artigo “Resistências dos movimentos sociais na América Latina
em tempos de crise”, de Adelita Carleial, discute a relação entre a crise
estrutural do capitalismo, e os movimentos sociais do início do século
XXI, mostrando as tentativas de superação da dependência pelos países
latino-americanos, além de evidenciar o arranjo de forças entre países da
América Latina no enfrentamento do poderio estadunidense.
O Prof. Eduardo Girão traça um perfil da ação política transformadora do economista cepalino Celso Furtado, destacando sua influência
teórica e prática nas lutas emancipatórias da América Latina e ressaltando
que o governo Lula foi caudatário do pensamento furtadiano. Pedro Vitor, recém-formado em Ciências Sociais, partindo das influências de autores comprometidos com a descolonialidade dos saberes, faz uma reflexão
sobre o racismo embutido na construção de uma nação Ceará. Afirma que
o racismo como instituição colonial no Brasil adquiriu novos padrões de
distinção em relação ao colonialismo anglo-saxão e especula que especificidades o Ceará apresenta dentro dessa estrutura racista brasileira.
Ao finalizar essa breve apresentação, gostaria de agradecer a tod@s
colaborador@s que aceitaram o desafio de produzir um livro no espaço
menor do que um mês. Em especial, os agradecimentos, meu e de todos
da Rupal, ao Paulo Mamede, nosso Paulinho, que nos provocou a publicar o livro, dando todo o apoio e incorporando nosso seminário: “Disputa de Hegemonia em Nuestra América no Século XXI” na programação
do IV Festival de Cultura da UFC. É isso, boa leitura.
Fortaleza, janeiro de 2012
Uribam Xavier
Organizador do Livro

15
CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL
EM CRISE: INTERPELAÇÕES
DO TEMPO PRESENTE
Alba Maria Pinho de Carvalho

À guisa de Introdução: o presente em foco
Após mais de duas décadas de mundialização do capital, as desigualdades, polarizações e assimetrias marcam o cenário contemporâneo. Neste início do século XXI – tempos de crises e transição – somos confrontados com questões da modernidade para as quais as respostas modernas são
absolutamente insuficientes, como a questão da igualdade, da equidade,
da justiça, da liberdade e da paz (SANTOS, 2000b, 2006a)1. Assim, o presente interpela-nos a decifrá-lo, a circunscrever desafios analíticos do nosso tempo. Exige pensar o momento que vivemos na civilização do capital,
demarcando novas formas de domínio e novas expressões de resistência e
luta. Demanda o desvendar do cenário contemporâneo de liquidez e fluidez, circunscrevendo o horizonte de transformações a emergir, no esforço
de recompor nexos e mediações históricas. Impõe discutir o colonialismo
em tempos contemporâneos, enfocando as suas expressões a permear a
sociabilidade, a cultura, as mentalidades e subjetividades, nos espaços públicos e privados. Faz-se necessário e, mesmo, imprescindível, desvendar o
atual contexto de crises, as mudanças em curso e as tendências emergentes.
Põe em discussão a utopia democrática, na sua potencialidade e nos seus
limites, no âmbito do sistema do capital. Requer delinear a Questão Social
em suas manifestações peculiares no presente, sobremodo, as vulnerabilizações, desmontes e tensões que atingem o mundo do trabalho. Coloca
1. Boaventura de Sousa Santos, na radicalidade de sua crítica à modernidade ocidental, sustenta a tese de que,
no final do século XX/início do século XXI, estamos a viver um tempo de transição. O seu argumento é que as
grandes promessas da modernidade permanecem incumpridas e a modernidade já não consegue cumprí-las,
verificando-se a obsolescência do seu paradigma sociocultural. Avalia que o paradigma da modernidade deixa
de poder renovar-se e entra em crise final, só continuando ainda como paradigma dominante pela inércia histórica (SANTOS, 2000a). Afirma, então, que a nossa situação presente, que, à superfície, aparece como um período de crise, quando analisada em nível mais profundo, é um período de transição paradigmática (id.ibid.). E
afirma: “entre as ruínas que se escondem atrás das fachadas, podem pressentir-se os sinais, por enquanto vagos,
da emergência de um novo paradigma […] ou conjunto de paradigmas de que, por enquanto, não conhecemos
senão as ´vibrações ascendentes`”…(SANTOS, 2000a, p.16)

17
CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE

em pauta as formas de regulação social que, hoje, se gestam entre Estado/
sociedade/mercado. Implica desmistificar o “neointervencionismo do Estado” na contemporaneidade, demarcando as expressões históricas do que
vem sendo proclamado como “regresso do Estado”. Impõe configurar delineamentos básicos das políticas públicas nesse cenário de esgotamento
da hegemonia não liberal e da emergência de disputa hegemônica. Exige
avaliar a novidade que a América Latina coloca para o mundo com a chamada “virada à esquerda”, com a perspectiva de refundação pluricultural e
multissocietal de Estados multinacionais e comunitários. Delineia, como
dilema do nosso tempo, o paradoxo de pensar e discutir Políticas Públicas
no sentido de assegurar bem-estar, em tempos de mal-estar, nos circuitos
contemporâneos de instabilidade, incerteza e riscos. Implica compreender
como e com que intensidade a pressão política dos movimentos sociais, em
suas lutas, perpassa o Estado, no sentido de redefinição das políticas públicas, na afirmação e no reconhecimento de direitos para maiorias expropriadas da humanidade, no âmbito de processos de exclusão, de opressão e
discriminação. Impõe, como exigência histórica, analisar as potencialidades do público e das Políticas Públicas para enfrentamento das desigualdades no âmbito dessa civilização do capital.
Em verdade, é essa uma agenda contemporânea de investigações e
debates a ser coletivamente trabalhada, em diferentes espaços acadêmicos e políticos. Nesta perspectiva, aqui circunscrevo, como recorte analítico deste artigo, adentrar em configurações contemporâneas da civilização do capital2, tendo como referência histórica a crise que marca o nosso
tempo. A rigor, hoje – no início da segunda década deste jovem século
XXI – a crise contemporânea do sistema do capital circunscreve um desafio histórico, a provocar, como questão vital, seu desvendamento, qual
esfinge de Édipo. Ao avaliar o cenário contemporâneo, István Mészáros
(2009) sublinha que, pela primeira vez na História, o capitalismo confronta-se globalmente com seus próprios problemas, que não podem ser
adiados por muito mais tempo nem, tampouco, transferidos para o plano
militar a fim de serem explorados como guerra generalizada. Logo, uma
questão decisiva na análise da civilização do capital no tempo presente
é configurar a natureza da crise global em desenvolvimento, circunscre2. Considero que, na contemporaneidade, o capitalismo mundializado, mais que um modo de produção,
constitui um regime civilizacional a estender a lógica do capital aos diferentes domínios da vida social,
mesmo a aqueles que, outrora, dificilmente seriam concebidos como capitalistas: religião, relações afetivas, concepção do tempo livre, avaliação do mérito científico e avaliação moral dos comportamentos.
De fato, a revolução da informática e da comunicação, combinada com a tendência do capitalismo para
ampliar a lei do valor a mais e mais dimensões da vida social, permite circunscrever a civilização contemporânea do capital, a encarnar um padrão de dominação social abstrata, sutil, indefinida, polifacetada e
profundamente penetrante que perpassa a economia, a política, a cultura, reconfigurando subjetividades
(SANTOS & MENESES, 2009).

18
Alba Maria Pinho de Carvalho

vendo seu sentido global, estrutural e sistêmico, sua marca agudamente
destrutiva (ANTUNES, 2009).
Assim, o meu foco de discussão é o tempo presente, circunscrito nas três últimas décadas do final do século XX e no início do século
XXI, em sua primeira década e no limiar da segunda. Em um exercício
da Sociologia das Ausências e das Emergências (SANTOS, 2006b), busco demarcar “sinais dos tempos”, sublinhando fenômenos e tendências, a
apontarem vias de reflexão e debate.
Parafraseando Boaventura de Sousa Santos (2008a; 2009b), o
meu esforço é no sentido de apontar “questões fortes”, sem a pretensão
de ter “respostas fortes” que só são construídas no trabalho investigativo
coletivo e no processo de discussão sempre em aberto.
A civilização do capital no tempo presente: contexto de liquidez,
descartabilidades e riscos
Vivemos, hoje, um momento de expansão do capital que parece não
ter limites e controles, a acirrar contradições, antagonismos e desigualdades.
Sob a égide das forças cibernético-informacionais, no cenário da “sociedade
do espetáculo”, o capital promove transformações no seu padrão de acumulação e nas suas formas de valorização, nos marcos da “mundialização com
dominância financeira” (CHESNAIS, 2003). A expansão sem limites da riqueza abstrata, em suas “ficções numéricas”, nos processos da acumulação
rentista – dinheiro a fazer render mais dinheiro – precisamente, D – D´, nas
formulações marxianas (MARX, 1983) – chega a extremos, consubstanciando a incontrolável dominação do “fetichismo do dinheiro”, em um processo
de mistificação que marca “o espírito dos tempos contemporâneos” (BENJAMIN, 2004). Marx, em meados do século XIX, previu que essa forma de
acumulação teria peso crescente e à medida que passasse a predominar –
como é o caso neste nosso jovem século XXI – a instabilidade e a insegurança
seriam cada vez maiores (BENJAMIN, 2008). De fato, o padrão rentista de
acumulação levado à sua forma extrema, nos circuitos da “financeirização da
economia”, expressa-se, na crise econômico-financeira que irrompe no cenário mundial em 2008, constituindo “um momento decisivo deste século
XXI, no qual tudo que parecia sólido se liquefaz, encontrando-se o capitalismo em forte processo de liquefação” (ANTUNES, 2009, p.11).
Esta crise global – epifenômeno da crise estrutural do capital – atinge a Humanidade, comprometendo as condições de vida e de trabalho de
parte considerável da população em todo o mundo, afetando, de forma
drástica, os mercados de trabalho, no rastro de forte desaceleração econômica. A rigor, é um agravante da vulnerabilidade e precarização do mundo
19
CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE

do trabalho, permeado por desmontes, flexibilizações, tensões, neste momento contemporâneo do capitalismo3.
A civilização contemporânea do capital, no contexto da Tecnociência, submetida à lógica ilimitada do sistema do capital, acirra e torna mais
visível a contradição fundamental, assinalada por Marx, nos “Grundrisse”
(1971): a crescente substituição do trabalho vivo de homens e mulheres
– trabalho humano direto – pelo trabalho morto, objetivado nas máquinas. Hoje, as chamadas “máquinas inteligentes” mostram-se imprescindíveis aos processos de acumulação capitalista, intensificando a subsunção
do trabalhador ao capital. Com a mediação da ciência e da tecnologia, o
capital prescinde da presença física e do próprio “saber” e “fazer” do trabalhador, implicando no desemprego estrutural, na exploração intensiva do
trabalho, em meio a processos de precarização. É a dinâmica expansionista
ilimitada do capital que bem se materializa como “contradição em processo” (MARX, 1971). Assim, como marca, por excelência, do capitalismo no
tempo presente, gesta-se um crescente contingente de “trabalhadores supérfluos”, tentando equilibrar-se no “fio da navalha” das exclusões e inclusões precárias (CARVALHO & GUERRA, 2008). É o que Zigmunt Bauman (2005) define como “produção do refugo humano”: seres humanos
refugados como produto inevitável da nossa sociedade.
	 O sistema do capital, em sua lógica de expansão incontrolável e
predatória, que ignora as necessidades humanas, revela, com indiferença,
sua incapacidade de incluir esse “refugo humano”, essa “população sobrante”, gerando uma “coletividade de despojados”. Avalia István Mészáros:
o sistema de controle do metabolismo social atingiu um estágio em que
lhe é necessário expulsar centenas de milhões de indivíduos do processo de reprodução social (do próprio processo de trabalho). Um sistema
de reprodução não pode se autocondenar mais enfaticamente do que
quando atinge o ponto em que as pessoas se tornam supérfluas ao seu
modo de funcionamento. Esta não é uma projeção para o futuro […] é
a gritante realidade mundial e o rumo, negativo e do qual não se escapa
do avanço do capitalismo (MÉSZÁROS, 1997, p. 152).

Em verdade, é esta uma das grandes tragédias do nosso tempo: refugo humano/excedente populacional/população sobrante…É a saga de milhões de migrantes, desempregados, classificados como vagabundos, em
uma sociedade na qual os seres humanos são considerados párias, dignos
3. De fato, nesse novo momento do capitalismo mundializado, nas quatro últimas décadas, verifica-se uma
vulnerabilização do trabalho, decorrente da atual forma sociometabólica do capital (MÉSZÁROS, 2002),
constituindo-se um “novo e precário mundo do trabalho”, nos circuitos de um complexo de reestruturação
produtiva, a encarnar a ofensiva do capital na produção, debilitando a classe trabalhadora no aspecto objetivo
e subjetivo (ALVES, 2000).

20
Alba Maria Pinho de Carvalho

apenas de serem vistos como lixo (BAUMAN, 2010). Ao centrar o olhar
nessa tragédia contemporânea, propugna Zigmunt Bauman que a sociedade “só pode ser elevada ao plano da comunidade se efetivamente proteger
seus membros contra os horrores da miséria e da indignidade, isto é, contra
o terror de ser excluído [e] de ser condenado à ´redundância social` e declarado ´refugo humano`” (2010, p.14).
Neste contexto contemporâneo da civilização do capital, a “pedra
de toque” são as novas formas de dominação social a assumir configurações peculiares: são formas de dominação cada vez mais abstratas,
impessoais, perversamente sutis, mas objetivamente generalizantes a
difundir-se na civilização do capital, adentrando em domínios não considerados como capitalistas. É um padrão de dominação abstrata, polifacetada que se apresenta indefinida, não permitindo perceber quem domina
e quem é dominado. Em verdade, é um metabolismo social, regido pela
lógica da mercantilização sem limites, com a universalização da lei do
valor, submetendo, mais e mais, dimensões da vida coletiva – culturais,
espirituais e simbólicas – e da natureza ao predomínio do valor de troca.
Tal metabolismo social faz sentir seu peso, seu poder, seu domínio como
uma forma estrutural que se mostra como alheia aos indivíduos e a todos
aprisiona (CARVALHO, 2009a; 2009b). Este padrão de dominação social abstrata, sutil, indefinida, do sistema do capital, articula-se, na contemporaneidade, com as formas de opressão, de discriminação, de exclusão, de expropriação da humanidade no âmbito do racismo, do sexismo,
da religião, a encarnar um neocolonialismo. É a hibridização das novas
formas de domínio do capital com as formas da opressão da colonialidade do poder, a impor modos de vida, formas de sociabilidade, permeados
por riscos e inseguranças (CARVALHO, 2009b).
Em verdade, nos circuitos contraditórios do sistema do capital na
atualidade, a instabilidade e a fluidez afirmam-se como marcos do tempo presente que Zigmunt Bauman (2001; 2004), em sua crítica radical,
circunscreve como “Modernidade Líquida”4: nova fase da modernidade a encarnar uma visão individualizada e privatizada nos percursos
da chamada “globalização”, na qual a radical privatização dos destinos
humanos segue aceleradamente a radical desregulamentação da indús4. Zigmunt Bauman, ao longo das duas últimas décadas – decáda 90 do século XX e primeira década do século
XXI – vem construindo uma radical crítica à modernidade, desvendando as marcas e riscos dos tempos contemporâneos, traduzindo a vida em livros. De fato, desenvolve uma ampla e fecunda produção, buscando, para além
das fronteiras disciplinares, compreender o que considera “esse tipo curioso e em muitos sentidos misterioso de
sociedade que vem surgindo ao nosso redor” (BAUMAN, 2004, p. 12). Para desvendar esta sociedade, trabalha a
metáfora da “liquidez cunhando a expressão ´modernidade líquida` em oposição ao momento histórico anterior
que, então, denomina de ´modernidade sólida”. E explicita que o espírito moderno caracteriza-se pela liquefação,
como bem definiram os autores do “Manifesto Comunista” ao sustentarem que “tudo que é sólido desmancha no
ar”. No entanto, na fase da “modernidade sólida”, o derretimento dos sólidos era no sentido de limpar a área para

21
CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE

tria e das finanças. É um novo momento da civilização do capital que se
caracteriza por extraordinária mobilidade e desregulamentação, volatibilidade, descentralização e desenraizamento, com a liquefação dos padrões de dependência e interação. É uma fase radicalmente temporária,
sem perspectiva de permanência e de processos de longa duração (BAUMAN, 2004). É a era histórica do presente, marcada pelo derretimento
dos elos que entrelaçam as escolhas individuais e os projetos de ação coletiva ou, mais precisamente, pelo derretimento dos padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente e as ações políticas de coletividades humanas (BAUMAN, 2001).
A rigor, esta “modernidade líquida” é perpassada de riscos de natureza
distinta a que todos estão expostos, mas que não são visíveis e não podem ser tocados e sentidos. São riscos difusos e globais que ameaçam
a humanidade, com profunda capacidade de mudanças na condição da
vida humana (BAUMAN, 2004).
Em verdade, o “fardo do nosso tempo histórico” – aqui, resgatando a
bela metáfora de István Mészáros (2007) – bem revela-se nas inseguranças,
instabilidades, crises, desproteção social, violências que marcam o cenário
desta civilização do capital no presente. A tendência destrutiva do capital
acentua-se e agrava-se no âmbito dos processos de mundialização de cunho
neoliberal, não poupando nada nem ninguém. Acirra desigualdades, produz
a destruição das pessoas, submetendo-as à tirania do tempo do capital que
ignora as necessidades humanas (id.idib.). No seu padrão predatório de expansão, compromete a vida, a cultura, o bem-estar. Investe contra a natureza,
gestando uma crise climática mundial com manifestações realmente brutais.
Institui a “cultura do descartável” como um modo de ser do nosso tempo. A
rigor, constitui-se uma “sociedade da descartabilidade” em que instituições,
comunidades, identidades – socialmente construídas – tornam-se cada vez
mais precárias e fugazes, dando lugar a “identidades líquidas”, “identidades
fluídas” (BAUMAN, 2010). Tem-se profundas mudanças na cultura e nas
formas de sociabilidade a viabilizar a expansão sem limites do “capitalismo
líquido” que tem entre “suas principais características a passagem de uma
sociedade de produtores para uma sociedade de consumidores, como o marcante e dramático acréscimo de uma transmutação, sob a forma de uma ´raça
de devedores`” (ROVIROSA-MADRAZO, 2010, p.15)5.
novos e aperfeiçoados sólidos. Já nos tempos contemporâneos, o derretimento dos sólidos adquiriu novo sentido:
a fluidez permanente, o desenraizamento, com a liquefação dos padrões de referência e de interação. A pretensão
de Bauman nessa crítica radical da contemporaneidade é ampliar os horizontes cognitivos dos indivíduos, em um
“diálogo sem fim” com a condição humana, na perspectiva de mostrar que o mundo pode ser diferente e melhor
do que é. Bauman, ao longo de sua trajetória como sociólogo e filósofo, circunscreve um pensamento emancipatório, no sentido de uma sociedade que teste, permanentemente, sua habilidade de corrigir as injustiças e de
aliviar os sofrimentos que ela própria causou (BAUMAN, 2004). E, assim, propugna “o socialismo como uma
faca afiada prensada contra as flagrantes injustiças da sociedade” (id.ibid.).

22
Alba Maria Pinho de Carvalho

Este fardo histórico de inseguranças e instabilidades atinge, de modo
peculiar, as juventudes em todo o mundo. Na Europa, juventudes a constituir uma nova geração de excluídos, filhos de classe média e de trabalhadores precarizados, com sérias dificuldades de integração à sociedade: taxas
elevadíssimas de desemprego jovem; excesso de qualificação para exercício
de trabalhos precários; reformas educacionais emperradas. São juventudes
marcadas pelo pessimismo, pela falta de confiança no sistema político, com
uma grande insatisfação a explodir em revoltas juvenis bem contemporâneas, caracterizadas pela espontaneidade e articulação via circuitos virtuais e
telemóveis. Especificamente no Brasil é gritante o drama das juventudes,
com os elevados índices de “mortalidade juvenil” que dizima jovens pobres,
sobremodo jovens negros, que perambulam nas “periferias da vida”.
Assim, a civilização contemporânea do capital encarna um dilema
que nos interpela qual Esfinge de Édipo: “que mundo social é esse que vem
se perfilando nas dobras das mutações em curso nas últimas décadas? Com
quais parâmetros põe em perspectiva e sob perspectiva crítica os novos ordenamentos sociais urdidos nessa virada dos tempos?” (TELLES, 2007, p.195).
A contra-hegemonia em curso no século XXI: a América Latina como
referência histórica
Neste contexto de expansão ilimitada e destrutiva do capital que gesta
uma ordem mais injusta, mais instável e mais violenta, nos marcos da chamada “globalização neoliberal”, emergem movimentos de resistência e lutas,
constituem-se experiências emancipatórias, com diferentes formatos e perfis
que assumem a construção de “um outro mundo possível”, gestando alternativas. É a tessitura de uma “outra globalização”, “globalização alternativa a partir
de baixo”, “globalização contra-hegemônica” (SANTOS, 2002; 2006b). Nesta
perspectiva de uma contra-hegemonia, Boaventura de Sousa Santos (2009a)
demarca a existência de um contramovimento que denomina de “cosmopolitismo subalterno”, emergente nas quatro últimas décadas6. Sustenta Santos:
“O cosmopolitismo subalterno” manifesta-se através das iniciativas
e movimentos que constituem a globalização contra-hegemônica.
Consiste num vasto conjunto de redes, inciativas, organizações e
5. “Le Monde Diplomatique” – edição brasileira de novembro de 2010 – em editorial de Sílvio Caccia-Bava
– ao circunscrever a realidade brasileira do tempo presente, demarca como característica o aumento vertiginoso do consumo, a refletir não só ganhos de renda, mas também um crescente endividamento pessoal que
já chega hoje em torno de um quarto dos ganhos mensais, conforme dados do Banco Central. É o risco do
superendividamento dos cidadãos/cidadãs consumidores brasileiros.
6. Boaventura de Sousa Santos, em meados da 1ª década do século XXI, avançando na sua crítica ao pensamento moderno ocidental, configura-o como “um pensamento abissal”, com um sistema de distinções visíveis e invisíveis. Incide

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CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE

movimentos que lutam contra a exclusão econômica, social, política e cultural gerada pela mais recente incarnação do capitalismo
global, conhecida como globalização neoliberal […] Atendendo a
que a exclusão social é sempre produto de relações de poder desiguais, estas iniciativas, movimentos e lutas são animados por um
ethos redistributivo no sentido mais amplo da expressão, o qual
implica a redistribuição de recursos materiais, sociais, políticos,
culturais e simbólicos e, como tal, se baseia, simultaneamente, no
princípio da igualdade e no princípio do reconhecimento da diferença (SANTOS, 2009a, p.42).

E esclarece Santos que “o cosmopolitismo subalterno contém uma
promessa real apesar de o seu caráter ser de movimento claramente embrionário” (id.ibid).
No final da década de 90, anos 2000, a América Latina desponta,
então, como uma referência na construção desta contra-hegemonia nos
marcos do cosmopolitismo subalterno, com a emergência de um amplo e
pujante movimento social em novas bases sociais e organizativas. Irrompe
um vigoroso movimento indígena e camponês e diversos movimentos urbanos populares, desenvolvendo lutas que se constituem marcos históricos
nessa onda emancipatória que se espraia pelo continente latino-americano.
Nos anos 2000, a América Latina surpreendeu o mundo com seus
movimentos sociais populares radicais no Equador, na Bolívia, na Argentina, na Venezuela, no México e no Brasil, ao contestar o modelo de ajuste
neoliberal que reinou, de forma dominante, por mais de uma década e que,
então, revelava sinais de esgotamento e debacle. Assim, esses novos movimentos sociais, a encarnar novas expressões de antagonismo na civilização
do capital (MODONESI, 2009), gestam a chamada “virada à esquerda” no
continente latino-americano, com a eleição de governos progressistas a formar um bloco heterogêneo, incluindo governos de esquerda7. Em verdade,
a América Latina vive uma nova época, adentrando numa fase histórica de
polarização entre a ofensiva do capital e a radicalização das forças progressistas, com destaque para o movimento indígena (SANTOS, 2008c). É a
construção de uma contrahegemonia, instaurando uma disputa hegemôsua crítica nas distinções invisíveis, estabelecidas através de linhas que dividem a realidade social em dois universos
distintos: o universo “deste lado da linha” e o universo “do outro lado da linha”. Sublinha, então, ser esta uma divisão tão
radical que o “outro lado da linha” desaparece enquanto realidade, tornando-se inexistente e é, mesmo, produzido como
inexistente. Em sua discussão crítica sustenta que, nos últimos sessenta anos, as linhas globais sofreram dois abalos tectônicos: o primeiro teve lugar com as lutas anticoloniais e os processos de independência das antigas colônias; o segundo
tem vindo a decorrer desde os anos de 1970 e 1980. No âmbito desse segundo abalo tectônico, destaca um contramovimento, a gestar um “pensamento pós-abissal”, a que Boaventura Santos deu o nome de “cosmopolitismo subalterno”.
7. Cabe aqui resgatar a concepção de esquerda circunscrita, com lucidez e perspicácia, por Boaventura de Sousa
Santos: “Esquerda é o conjunto de teorias e práticas transformadoras que, ao longo dos últimos cento e cinquenta anos, resistiram à expansão do capitalismo e ao tipo de relações econômicas, sociais, políticas e culturais que

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Alba Maria Pinho de Carvalho

nica, configurada, com mais nitidez, na Bolívia, no Equador e na Venezuela. A rigor, a América Latina vive uma nova etapa de luta emancipatória: da
resistência ao modelo neoliberal da década de 1990 à fase de construção
de alternativas e da disputa por uma nova hegemonia, na articulação entre Movimentos Sociais e Governos de Esquerda (CARVALHO, 2009a;
2010b). É a encarnação de uma das teses centrais de Boaventura de Sousa
Santos (2000; 2004; 2006a), de que a reinvenção da emancipação passa,
fundamentalmente, pelo Sul8.
Noam Chomski – uma mais maiores expressões do pensamento
crítico nos EEUU9 – ao final da primeira década dos anos 2000, mais
precisamente em 2009, declarou, de forma contundente: “América Latina é hoje o lugar mais estimulante do mundo” (2009, p.1). Chomski,
então, em 2009, considera o continente latino-americano uma das únicas regiões do mundo onde há uma resistência real ao poder do Império, encarnado na hegemonia dos EEUU. Nessa avaliação do potencial
emancipatório das experiências latino-americanas, sublinha a integração
que emerge e busca consolidar-se na América Latina, a constituir pré-requisito para a independência, nos marcos da superação da dominância
capitalista colonialista norte-americana.
O mundo contemporâneo na crise: para onde apontam os
movimentos da História?
Ao final da primeira década do século XXI, o sistema do capital
mostra, de forma espetacular a partir do “coração do Império”, as suas
ele gera, e que assim procederam na crença da possibilidade de um futuro pós-capitalista, de uma sociedade
alternativa, mais justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das populações, e mais livre,
porque centrada na realização das condições do efetivo exercício da liberdade ” (SANTOS, 2009c).
8. No pensamento emancipatório de Boaventura de Sousa Santos, o “Sul” é entendido não como mero
conceito geográfico, mas como categorização sociopolítica relativa aos países, segmentos e grupos sociais
que sofrem processos de exclusão, de opressão e discriminação, decorrentes da hibridização das formas de
domínio do capital e da colonialidade de poder. Dentre esses, destacam-se, nas tessituras do “Sul”, países e
grupos sociais latino-americanos que vivenciaram e vivenciam as violências da hibridização capitalismo/
colonialismo e, hoje, assumem projetos emancipatórios. Igualmente, fazem parte do Sul os países e povos
árabes que, no início de 2011, encarnam a “revolução árabe”, como expressão dos processos revolucionários no século XXI.
9. Noam Chomski é reconhecido internacionalmente como um dos maiores intelectuais vivos da esquerda,
tendo publicado centenas de artigos e livros que abordam temas como mídia, movimentos sociais, política
e economia global. De fato, é uma das personalidades mais conhecidas da política da esquerda americana,
definindo-se como um “socialista libertário”. Adquiriu grande importância e notoriedade a partir da década de
1960 com o artigo “A responsabilidade dos intelectuais”, publicado em 1969 no livro “O poder americano e os
novos mandarins” (Record, 2006), uma compilação de artigos críticos à política externa dos Estados Unidos.
Noam define-se politicamente na tradição do anarquismo, identificando-se especialmente com a corrente do
Anarcossindicalismo. Sua obra mais recente, de 2011, traduzida para o português, tem como título “Notas
sobre o Anarquismo”, publicada pela Hedra.

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CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE

contradições e graves limites nos circuitos da crise mundial de 2008, a
evidenciar o caráter etéreo da riqueza capitalista (MARQUES, 2009).
Inegavelmente, a crise, sempre em aprofundamento, consubstancia
uma “importante lição da História” que precisa ser compreendida e
devidamente avaliada. Impõe-se, assim, como desafio do nosso tempo histórico, o desvendamento dos significados dessa crise do capital,
adentrando no seu sentido, a circunscrever seu caráter agudamente
destrutivo (ANTUNES, 2009).
Em verdade, está em curso uma crise profunda do próprio sistema
do capital em sua totalidade, uma crise de caráter sistêmico e de amplitude global, afetando o conjunto da humanidade. Nesta perspectiva, a
análise de István Mészáros, quando da eclosão da crise em 2008, é categórica e definidora:
Agora estamos falando de crise estrutural do sistema que se estende
por toda parte e viola nossa relação com a natureza minando as condições fundamentais de sobrevivência humana […] A crise atual é profunda […] essa não é apenas a maior crise da história humana, mas a
maior crise em todos os sentidos (MÉSZÁROS, 2009, p.130-133).

A rigor, essa crise estrutural do capital em tempos contemporâneos é a encarnação da crise do valor, gestada nos circuitos da lógica ilimitada e incontrolável do capital. Logo, as raízes de tal crise encontram-se
fincadas no atual estágio de desenvolvimento da civilização do capital,
com novas formas de valorização e de acumulação capitalistas, produzindo novas formas de dominação cada vez mais abstratas, sutis e polifacetadas, a espraiar-se em toda a vida social (CARVALHO, 2010a).
É fato inconteste que estamos diante de uma crise civilizacional
a expressar a própria insustentabilidade do modo de funcionamento do
sistema do capital, fundado na sua expansão predatória e sem limites. Assim, esta crise civilizacional manifesta-se em uma combinação de crises
que se entrecruzam nos tempos contemporâneos: ambiental, climática,
financeira, energética, alimentar, crise do trabalho, crise social, crise humanitária. Afirmam-se como encarnações emblemáticas desse contexto
de crises: desemprego estrutural, com a expulsão do próprio processo
de trabalho de centena de milhões de trabalhadores/trabalhadoras que
se tornam supérfluos ao modo de funcionamento do capital; destruição
ecológica, com o uso indiscriminado dos recursos naturais e a privatização de bens comuns: água, ar, biodiversidade; consumo exacerbado
como definidor de um modo de ser; descartabilidades, instabilidades e
riscos. São manifestações que colocam em xeque a própria civilização do
capital, abalando seus fundamentos (CARVALHO, 2010a).
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Alba Maria Pinho de Carvalho

Em entrevista em junho de 2011, Mészáros reafirma a exigência de
estarmos atentos e vigilantes para a natureza estrutural da crise, sublinhando a necessidade de lidar com tal crise o mais rápido possível. Esclarece ele:
…o que devemos encarar não é a crise cíclica tradicional do capitalismo, que vai e vem em intervalos regulares, mas algo radicalmente
diferente. É a crise estrutural global do sistema do capital em sua
integralidade, que não pode ser conceituada nos termos habituais
da “longa onda descendente” (downturn), seguida da confortadora
“longa onda ascendente” (upturn), dentro de um período de mais ou
menos cinco décadas. Há muito tempo essa caracterização perdeu
credibilidade e não há nenhum sinal da fictícia “longa onda ascendente”. A razão pela qual é importante reposicionar nossa atenção
nessa direção é porque uma crise estutural requer remédios estruturais radicais para sua solução. O que está em jogo é muito grande
porque nossa crise estrutural está se tornando mais profunda, em
vez de diminuir. A crise financeira global a que fomos submetidos
nos últimos anos é um aspecto importante disso, mas só um aspecto. Não há lugar para a autocomplacência quando trilhões de dólares jogados fora mal puderam arranhar a superfície do problema
real (MÉSZÁROS, 2011b, p. 3).

É fato inconteste que esta crise estrutural do capital, que marca o
tempo presente de “modernidade cada vez mais líquida”, não tem soluções nos circuitos incontroláveis e predatórios de expansão do capital.
O neokeynesianismo do Estado, nos marcos do “estatismo privatizado”
(ANTUNES, 2009), com bilhões de dólares injetados no sistema bancário global para “salvar o sistema”, mostra-se ineficaz e incapaz para enfrentar ou mesmo contornar a crise que se agrava e se complexifica. Avalia Mészáros esse cenário contemporâneo de desdobramentos da crise
estrutural do início da segunda década do século XXI:
Na Europa três países estão obviamente falidos – Grécia, Irlanda e
Portugal –, enquanto vários outros, incluindo economias maiores
como a Itália e o Reino Unido, não estão muito longe disso. É verdade
que “Estados soberanos” podem intervir para se proteger, por meio
do agravamento de seu próprio endividamento. Mas também há um
limite para isso, e ir além pode gerar problemas ainda piores. A dura
verdade é que agora nós ultrapassamos as mais otimistas recomendações keynesianas: em vários países o volume de dívida insustentável
chegou aos trilhões de dólares (MÉSZÁROS, 2011b, p.2).

Slavoj Žižek (2011), em instigante e provocativa obra de contundente crítica ao contexto da civilização do capital neste início do século
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CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE

XXI10, sustenta que o sistema do capital, a encarnar a “utopia democrático-liberal”, morreu duas vezes: como “tragédia” no dia 11 de setembro,
com o ataque às Torres Gêmeas, a demarcar o colapso da utopia política:
como “farsa” no desenrolar da crise mundial a configurar o fim da utopia
econômica. Assim avalia Žižek:
…entramos num novo período em que a crise, ou melhor, um tipo
de estado de emergência econômica, que necessita de todos os tipos
de medidas de austeridade (corte de benefícios, redução dos serviços
gratuitos de saúde e educação, empregos cada vez mais temporários
etc.), é permanente e está em constante transformação, tornando-se simplesmente um modo de viver. Além disso, as crises ocorrem
hoje nos dois extremos da vida econômica, e não mais no núcleo do
processo produtivo: ecologia (exterioridade natural) e pura especulação financeira. Por isso, é muito importante evitar a solução simples
dada pelo senso comum: “Temos de nos livrar dos especuladores, pôr
ordem nisso tudo, e a produção continuará”. A lição do capitalismo
aqui é que as especulações “irreais” são o real; se as esmagarmos, a
realidade da produção sofrerá (Žižek , 2011, p. 7).

Mészáros (2001, a) bem circunscreve os graves problemas sistêmicos da crise estrutural em desenvolvimento que não podem ser solucionados no âmbito do sistema sociometabólico do capital. Avalia ele:
A dramática crise financeira que experimentamos nos últimos três anos
é apenas um aspecto da trifurcada destrutibilidade do sistema do capital: (1) na esfera militar, com as intermináveis guerras do capital desde
o começo do impedimento monopolista nas décadas finais do século
dezenove, e suas mais devastadoras armas de destruição em massa nos
últimos sessenta anos; (2) a intensificação, através do óbvio impacto destrutivo do capital na ecologia, afetando diretamente e já colocando em
risco o fundamento natural elementar da própria existência humana, e
(3) no domínio da produção material e do desperdício cada vez maior,
devido ao avanço da “produção destrutiva”, em lugar da outrora louvada
“destruição criativa” ou “produtiva” (MÉSZÁROS, 2011a, p.12-13).

Nesta perspectiva é preciso superar vãs ilusões, difundidas por estratégias do sistema do capital, de solução desta crise estrutural e global.
E Mészáros interpela-nos: “Mas a última coisa de que hoje precisamos é
continuar a ´dar nós nos ventos`, quando temos de enfrentar a gravidade
da crise estrutural do capital, a qual exige a instituição de uma mudança
10. Trata-se da obra de Slavoj Žižek intitulada “Primeiro como tragédia, depois como farsa”, publicada em
português pela Boitempo em 2011.

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Alba Maria Pinho de Carvalho

sistêmica radical” (2009, p.28).
Em conferências no Brasil, em junho de 2011, Mészáros reafirma
esta convicção da impossibilidade de saída para a crise em curso no interior do próprio sistema do capital, ao enunciar como título de sua fala
“Crise estrutural necessita de mudança estrutural”. E, declara no âmbito
da sua análise: “o ponto que eu desejo enfatizar é que a crise que temos
de enfrentar é uma crise estrutural profunda e cada vez mais grave, que
necessita da adoção de remédios estruturais abrangentes, a fim de alcançar uma solução sustentável” (MÉSZÁROS, 2011a).
Neste contexto de crise estrutural e impasses impõe-se a questão
“o que fazer?”, a exigir o reexame das respostas institucionais tradicionais. Assim, “grupos cada vez maiores de trabalhadores se veem diante
do desafio inevitável de reavaliar tanto as formas de tomada de decisão
com que se acostumaram no passado quanto as respostas a ela” (MÉSZÁROS, 2011b, p. 3). Em distintos espaços desta civilização do capital em
crise, em meio ao cenário hostil de destituição de condições de vida e de
violação de direitos, a comprometer a humanidade de amplos segmentos populacionais, emergem manifestações populares a ocupar espaços
públicos como “sinais dos tempos”. Boaventura de Sousa Santos, em sua
avaliação desses perturbadores sinais dos tempos contemporâneos, usa
uma metáfora, deveras reveladora, ao afirmar:
Está a ser gerado nas sociedades um combustível altamente inflamável que flui nos subterrâneos da vida coletiva sem que se dê conta.
Esse combustível é constituído pela mistura de quatro componentes:
a promoção conjunta da desigualdade social e do individualismo, a
mercantilização da vida individual e coletiva, a prática do racismo em
nome da tolerância, o sequestro da democracia por elites privilegiadas e a consequente transformação da política em administração do
roubo “legal dos cidadãos” (SANTOS, 2011b).

Em um olhar panorâmico sobre a cena do mundo em crise, nesta
segunda década do século XXI – qual um fotógrafo face a uma cena plena de imagens e cores, a exigir a construção de um ângulo para retratá-la
em seu instante – vislumbram-se diferentes mobilizações, resistências e
lutas, afirmando sujeitos coletivos, em distintos espaços do planeta, com
expressões peculiares e inovadoras. É uma diversidade na unidade do
“fazer político contemporâneo”.
As juventudes recolocam-se na cena contemporânea como sujeitos
políticos a tensionar com o sistema do capital em sua expansão incontrolável a destituir condições de vida e trabalho nos marcos do neoliberalismo. Boaventura de Sousa Santos (2011) assim circunscreve esses movimentos juvenis de protestos no contexto da Europa em crise:
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CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE

Os protestos ocorrem em vários países europeus […] Todos eles têm
em comum o fato de ser pacíficos (houve alguns casos de violência que
os próprios movimentos denunciaram) e de adotar como senha a luta
por uma democracia real ou verdadeira. Esses dois traços os separam
dos protestos de jovens europeus em períodos anteriores, que se caracterizaram por ser violentos ou que tiveram como ordem a destruição
da democracia (sobretudo na Alemanha, no período anterior ao surgimento do nazismo). Em termos de seus objetivos, são protestos mais
defensivos e, nisso, se distinguem também do movimento estudantil
de 1968 […] apesar da retórica mais radical, os jovens de hoje se manifestam para defender a proteção social e os horizontes de vida pessoal e
coletiva, que tiveram a geração anterior. O Maio de 68 era regulado por
expectativas ascendentes, enquanto os protestos de hoje são regulados
por expectativas descendentes (SANTOS, 2011, p.1).

Em Portugal, na Espanha e na Grécia jovens assumem movimentos
de protestos, gritando estarem “fartos de falta de empregos, corrupção e
desesperança”. Ocupam e acampam em praças, utilizando Redes Sociais
para mobilizar, convocar e articular-se. Esses jovens desempregados definem-se como geração “ni-ni”: ni estuda, ni trabaja. São jovens que cursaram faculdades, falam três idiomas, portam diplomas de mestrados e doutorados e estão imersos no desemprego e/ou na precarização do trabalho.
São jovens europeus com a melhor formação na história de seus países a
vivenciarem um dos piores cenários de emprego. São os “indignados europeus a unir-se” em tempos de crise, inseguranças e desproteção… Em
suas palavras de ordem, em seus gritos de protesto, denunciam as contradições e paradoxos gestados pelo modo de funcionamento do sistema do
capital no presente a se revelar estruturalmente insustentável!...
No Chile, os jovens estudantes universitários – atualizando a
herança política dos estudantes secundaristas no movimento de 2006
denominado “revolução dos pinguins” – mobilizam-se na luta contra o
neoliberalismo a materializar-se, de forma predatória, nos processos de
privatização da universidade, a gestar uma “coletividade de jovens endividados” que tiveram de recorrer a um sistema de crédito bancário para
custear seus cursos universitários, pagando caro pelo acesso à “mercadoria educação”. Assim, no cenário desta segunda década do século XXI, o
movimento estudantil chileno afirma-se como uma experiência de luta
política de ampla dimensão e visibilidade, com mobilizações que atravessam o país: paralisação de universidades e colégios, envolvendo os ensinos médio, fundamental e superior. É um movimento a encarnar expressivo potencial emancipatório no confronto com o sistema do capital, em
sua expansão incontrolável, a impor a lógica da mercantilização a invadir
todos os domínios da vida social. De fato, o movimento estudantil chi30
Alba Maria Pinho de Carvalho

leno do século XXI, em suas diversas formas de expressão, está a colocar
em questão o modelo chileno de ajuste estrutural que, na ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), emerge na América Latina como um “verdadeiro laboratório” do projeto neoliberal. No confronto com o neoliberalismo, o movimento estudantil chileno tem uma proposta política que,
a partir do seu móvel de luta da educação pública e de qualidade, coloca
em pauta demandas estruturais: reforma tributária; renacionalização do
cobre; assembleia constituinte; reforma política, dentre outras questões
que se publicizam nas manifestações que tomam o Chile.
Em verdade, o movimento dos jovens universitários transforma-se
em uma convocatória para a cidadania, fazendo-se expressar o sentimento comum de que o neoliberalismo nada pode oferecer ao povo chileno.
Tem o apoio de mais de 70% da população chilena e adesão de diferentes categorias de trabalhadores, fazendo brotar greves e paralisações em
todo o país: greve dos mineiros de cobre e dos bancários, paralisação dos
taxistas e greve geral, promovida pela CUT do Chile, no mês de agosto.
	 Como expressão do fazer político contemporâneo, o movimento
afirma-se como amplo e heterogêneo, com muitas formas de manifestação da indignação e de protesto, articulando ações mais radicais e ações
mais lúdicas, capazes de envolver, cada vez mais, jovens e outros segmentos sociais. Nas suas mobilizações, o Movimento Estudantil Chileno (re)
constrói a aliança histórica de estudantes e trabalhadores, afirmando
a solidariedade como forma de luta. O seu horizonte político são reais
mudanças estruturais, não aceitando concessões do governo de medidas
pontuais, na linha de “pequenas reformas”. O movimento radicaliza a indignação e a luta na civilização do capital em crise!...
	 Neste jovem século XXI, o confronto com o sistema do capital
está na agenda pública. Reatualiza-se a luta pela democracia como forma
de organizar a vida social, afirmando a “democracia real” como exigência
histórica, bem circunscrita no grito que ecoa nas praças cheias de gente:
“outra democracia é possível!”. Vive-se, de novo, a paixão que se expressa
no “entusiasmo” a apontar para o “novo fazer político” que parece superar a “velha política”. Eduardo Galeano, ao perambular entre as milhares
de pessoas que se aglutinavam no protesto na “Puerta del Sol”, afirma,
em entrevista de maio de 2011:
Me parece uma experiência estupenda. A verdade é que foi muito
emocionante, para mim, estar entre essas pessoas quando cheguei
a Madrid e recuperar esta energia, este entusiasmo. Esta vitamina
“E” de entusiasmo, que às vezes parecia perdida neste mundo que
nos convida ao desânimo. Então acho que é uma experiência estupenda, e segue sendo, e a palavra entusiasmo é uma palavra linda,
de origem grega, que significa “ter os deuses aqui dentro”.

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CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE

Este cenário de lutas contemporâneas interpela o exercício do pensar crítico como desafio do nosso tempo… “Para onde apontam os movimentos da História neste início do século XXI?” – Eis uma questão que
nos instiga a desvendar o presente!...

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Alba Maria Pinho de Carvalho

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35
ESTÁ EM DECADÊNCIA
O IMPÉRIO AMERICANO?
Fernando Marcelo de la Cuadra

Apresentação
Cumpriu-se já uma década desde que o mundo ficou impactado ante
o ataque das Torres Gêmeas do World Trade Center no coração de Manhattan e do Prédio do Pentágono, em Washington. Milhares de análises têm
surgido desde então para tentar compreender esses acontecimentos. Numa
manhã qualquer, num instante breve e interminável, dois dos maiores símbolos do poderio econômico e militar americano são alvejados e destruídos ante os olhos incrédulos da humanidade, que assistiu estupefata aos
ataques a um país que até então parecia intocável e indestrutível.
Além disso, durante 2008 se deflagrou a crise financeira provocada pela bolha imobiliária e as hipotecas podres, e que se estendeu rapidamente desde o centro financeiro dos Estados Unidos até o resto do mundo,
transformando-se – salvo contadas exceções – numa crise econômica global. Desde Wall Street a crise passou para as economias centrais e depois
se alastrou como um câncer para o resto do planeta. Destruiu empregos,
aumentou a pobreza e as doenças, exacerbou as tensões e os antagonismos
sociais, criou ceticismo acerca da eficácia da governabilidade democrática, levou à experimentação política, complicou os esforços para lidar multilateralmente com os problemas globais, e alimentou os conflitos civis e
internacionais. Pelo seu alcance, os impactos da crise não só colocam em
risco a economia norte-americana, mas o conjunto de alicerces sobre os
quais se sustenta a economia mundial. Nas palavras de Alain Touraine:
“Este risco de destruição do mundo pela busca ilimitada do lucro é mais do
que o sintoma de uma crise, já que ele pode ser mortal para a sociedade, e
primeiramente para o neoliberalismo, que destruiu a ‘sociedade industrial’,
suprimindo todos seus atores e reduzindo esta sociedade ao reino do mercado.” (Touraine, 2011, p. 27).
Por sua vez, a chamada ‘guerra preventiva’ – impulsionada pelos Estados Unidos contra Afeganistão e Iraque – com trágica sequela de mortes
de inocentes e população civil, não somente vem acumulando enormes
custos e déficits econômicos sobre a nação do Norte, mas, sobretudo, tem
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ESTÁ EM DECADÊNCIA O IMPÉRIO AMERICANO?

gerado consequências nefastas sobre a moral, a confiança e, especialmente,
a autoestima do povo norte-americano.
Somados estes e outros fenômenos que colocam em questão a existência de uma única “hiperpotência” dirimindo os destinos do mundo,
um conjunto de interrogantes continua gerando polêmicas e incertezas.
Por exemplo, o que parecia um “simples” ato terrorista tem adquirido profundas conotações e complexos desdobramentos. Os atentados do 11 de
setembro representam efetivamente o início da queda da hegemonia estadunidense no mundo? As ações empreendidas pelo gigante do Norte a
partir dessa data representam as últimas farpas mortais de um animal em
extinção ou significam a retomada do poder americano em escala global?
Estamos em presença de um choque de civilizações, onde os Estados Unidos encarnam o pior que existe na civilização ocidental e no capitalismo?
Por outra parte, os Estados Unidos continuam a ser a principal potência militar do planeta, seu impugnado dólar ainda cumpre a função de
ser a moeda mundial de reserva e, pese ao endividamento, seu vasto mercado de consumidores continua sendo um grande atrativo para a maioria
dos países exportadores. Portanto, não existe unanimidade com relação ao
declínio desta potência. A extensa bibliografia e as reflexões de diversos
especialistas e intelectuais apontam para as mais diversas conclusões.
O presente artigo tentará apontar para alguns desses posicionamentos. Especificamente, no primeiro item abordaremos os argumentos daqueles que sustentam o fim da hegemonia estadunidense e na segunda seção, as
teses daqueles que relativizam dita decadência. No item final, elaboraremos
algumas conclusões a respeito, ainda que elas não sejam peremptórias. Estamos cientes que um tratamento apurado delas poderia se transformar numa
agenda de pesquisa de bastante fôlego, precisamente como aquela empreendida pela maioria dos autores citados neste estudo.
O declínio da hegemonia dos Estados Unidos
A hegemonia “americana”, que se expandiu e consolidou a partir
do fim da Segunda Guerra, está sendo contestada há, pelo menos, uma
década antes de se consumarem os atentados do dia 11 de setembro. O
historiador britânico Eric Hobsbawn (1999) afirma que já no período
que marca o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos se encontravam em
fase de crise econômica e nem mesmo a hegemonia militar podia ser
financiada pelo próprio país. De fato, existem inúmeros antecedentes
que demonstram que quando os Estados Unidos se lançaram em 1991
no “empreendimento” conhecido como a “Guerra do Golfo”, grande
parte dos recursos para financiar a invasão foi aportada pelos outros
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Fernando MARCELO de la Cuadra

países participantes da arremetida, especialmente Alemanha e Japão.
Para Immanuel Wallerstein, a decadência do “Império” Americano vem se produzindo lenta e inexoravelmente desde os acontecimentos
de maio de 1968, declínio que se tem acelerado a um ritmo vertiginoso
nos últimos anos, sendo que os atentados do dia 11 de setembro sinalizam uma inflexão que marca o começo do colapso definitivo. Ainda
mais, depois da incursão anglo-americana no Iraque, ficou comprovado
que, com todo seu poderio militar, as forças invasoras não conseguem
submeter essa relativamente pequena nação do Oriente Médio. Segundo Wallerstein (2005), os Estados Unidos passaram a impor os 95% de
sua vontade ao mundo, entre 1945 e 1970, a uma situação de impotência
que se manifestou na chegada ao poder dos neo-conservadores (neocons)
com George W. Bush, em 2001. Para o autor isso foi uma amostra da debilidade e não – como geralmente se pensa – da fortaleza do Hegemon
americano. Para os neocons somente a força militar poderia reverter a
decadência de uma potência que já não é temida. Pensava-se que com
Barack Obama esse panorama poderia mudar. Mas à luz das ações produzidas durante sua administração, se pode conjeturar que a estratégia
militar segue primando por sobre as vias da negociação para resolver os
conflitos surgidos em diversos cantos do planeta. As promessas de Obama de acabar com o campo de prisioneiros de Guantánamo, diminuir o
contingente de tropas no Afeganistão e Iraque, ajudar o povo Palestino
a ter uma pátria soberana ou construir uma política efetiva de relações
multilaterais configuram hoje vagas e cinzentas lembranças de um discurso de campanha bem elaborado.
Por sua vez, para Arrighi, Hopkins e Wallerstein (1999), as principais causas dessa decadência do poderio americano podem se situar em
torno de três fatores que confluíram entre fins dos anos 1960 e começo
dos anos 1970, a saber: a concorrência econômica de Japão e Europa; a
descolonização e a rejeição do Terceiro Mundo à ordem bipolar USA-URSS; e a emergência de uma nova geração de movimentos antissistêmicos a partir das rebeliões de maio de 1968.
No primeiro caso, o poderio econômico, durante muitos anos incontestado, dos Estados Unidos depois da vitória na II Guerra Mundial
tem cedido espaço cada vez mais proeminente à Europa (a rigor os países da União Europeia) e Japão. No entanto, Wallerstein enfatiza que a
ordem dos três blocos não perdurará por muito tempo e que a tendência
pode ser que os Estados Unidos procurem uma aliança com os países do
Sudeste Asiático, em especial, China e Japão. Já a Europa deverá aproximar-se da Rússia, considerando seus vínculos históricos. Inclusive, nessa
nova configuração mundial poderiam ter um papel relevante os países do
Mercosul, com o Brasil liderando esse processo.
39
ESTÁ EM DECADÊNCIA O IMPÉRIO AMERICANO?

Desta maneira, para o sociólogo estadunidense, o próprio eixo do
poder americano será inexoravelmente substituído por nações e blocos
que estão em processo de consolidação como poder global, partindo pelos países “emergentes” caracterizados como os BRICS (Brasil, Rússia,
Índia, China e África do Sul)1. Em qualquer hipótese, os Estados Unidos
deverão compartir seu poder com outras nações ou Blocos.
Também se pode fazer a leitura de que a invasão ao Afeganistão e
depois ao Iraque responde à necessidade de fortalecer seu poderio através de ações repressivas contra todo e qualquer país que ousa contestar
sua hegemonia. Nas palavras de um cientista político, isto representaria
um indicador evidente de que os EUA estão em queda, pois “historicamente esse tipo de atitude sempre foi assumido pelas potências em declínio econômico, político e militar” (Mendes Antas, 2003, p. 15).
Se concebermos a hegemonia na sua acepção gramsciana, ou seja,
como uma dimensão que possui um forte caráter ético-político capaz
de mobilizar o resto da população ou nações em torno de um projeto
legitimado de dominação, tal parece que os Estados Unidos não conseguem nem sequer impor um substrato moral que oriente o comportamento de seus próprios cidadãos e ainda mais a relação desse povo com
o resto do mundo. 2 Nesta leitura a hegemonia americana atual parece
sustentada fundamentalmente no uso da força e de algumas modalidades de penetração ideológica (em especial com uso da mídia), mas
não constitui um projeto que gere o consentimento necessário para se
impor em escala global. 3
Neste ponto, parece relevante também a substituição do padrão
dólar pelo sistema do dólar flexível. Efetivamente, tal e como tem sido
argumentado por diversos historiadores e cientistas sociais, uma clara
expressão de dominação de uma cidade-Estado ou logo Estado-economia-nacional por sobre o resto dos Estados ou “territórios” consiste
na imposição, após o triunfo numa guerra ou conquista, de sua moeda
(moeda-estatal ou soberana) que se transforma no padrão dominante
dos intercâmbios comerciais e financeiros em nível internacional. Nes1. Para alguns especialistas o “S” deveria ser na realidade da Coreia do Sul.
2. Sintomático desta crise é um diagnostico feito por um estudioso desse país que num artigo titulado Um
povo sem decência afirma que “Desprovida de valores, a sociedade americana perdeu o respeito pelo outro e se
tornou insensível aos problemas dos demais países do Globo” (Servin, 2008). Por sua parte, Mike Davis em “O
futuro da decadência e queda dos Estados Unidos” ou Alison Raphael no artigo “O declínio do sonho americano” apontam, respectivamente, para uma crise moral acrescentada pela hipócrita “inocência” estadunidense
perante as agressões do resto do mundo ou por uma crise do sistema de proteção social americano que deixa
cada vez mais famílias na mais absoluta exclusão e indigência.
3. Estudos recentes indicam que os USA são cada vez mais rejeitados pelo conjunto dos povoso do planeta, fator que inclusive tem sido tratado como tema da maior importância pelas Agências Americanas de Segurança
Nacional. Ver, de Janette Habel, “Washington perdió a América Latina?”, em sítio Rebelión.org.

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Fernando MARCELO de la Cuadra

te sentido, Fiori salienta que a formação do capital e a imposição de
uma determinada moeda se produzem a partir das lutas de conquista
e de poder, que permite estimular os mecanismos de troca à sombra
dos poderes vitoriosos que exercem sua soberania sobre o resto (Fiori,
2007b, p. 25).
Nessa linha argumental, o império da moeda estabelece um marco
do projeto hegemônico dos Estados Unidos no pós-guerra, como antes
foi da Inglaterra, pois devemos concordar com que a “administração da
moeda possui um papel decisivo, tanto na competição inter-capitalista
como na luta por poder e hegemonias internacionais” (Fiori, 2001a, p.21).
Tanto assim que uma das características apontadas para considerar a supremacia americana é o poder exercido pela sua moeda na década
de 1970, hoje pode ser claramente questionada pelo declínio constante
da fortaleza do dólar nos mercados das transações internacionais, mas
também com algumas subidas conjunturais. Nesse sentido, caberia nos
interrogar a respeito de se este rápido descenso ou subida do dólar são
produtos de sucessivas crises conjunturais ou se elas bem expressam
uma tendência estrutural de longo prazo. Pode-se dizer que estamos ante
aquilo que Antonio Gramsci diferenciava entre o que é permanente e o
que é “ocasional”, entre o que é “orgânico” e o que é contingente. Para ele
é fundamental estabelecer esta distinção na hora de efetuar uma análise
da realidade social e ter claro o que é essencial na estrutura e o que só está
lá por circunstância.4
A nosso entender haveria que vislumbrar que os problemas da
economia americana efetivamente se alastram já por um período relativamente longo, sendo a crise da “bolha imobiliária” e a desvalorização
do dólar uma espécie de síntese de um problema endêmico presente
nessa economia. Inclusive a própria Guerra do Iraque que tem sido
analisada com relação ao controle sobre os recursos petrolíferos da região do Golfo Pérsico pode também ser “justificada” – segundo alguns
analistas – como uma tentativa dos Estados Unidos para recuperarem
o poder da sua moeda. 5 Uma afirmação a favor desta suposição até poderia (com risco de descontextualização) ser extraída do mesmo Fiori
quando salienta que “(...) o poder dentro do sistema capitalista ora as4. “(...) no estudo de uma estrutura, devem-se distinguir os movimentos orgânicos (relativamente permanentes) dos movimentos que podem ser chamados de conjuntura (e que se apresentam como ocasionais, imediatos,
quase acidentais). Também os fenômenos de conjuntura dependem, certamente, de movimentos orgânicos,
mas seu significado não tem um amplo alcance histórico.” Gramsci, Cadernos do cárcere: introdução ao estudo da
filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 36.
5. Para estes especialistas, a decisão das Nações Unidas de utilizar o Euro como moeda oficial para definir os
intercâmbios do “Programa Petróleo por alimentos” – executado para combater a crise humanitária registrada
com o boicote do pós-guerra do Golfo – representou um duro golpe para a pretensão dos Estados Unidos em
manter a regulação do comércio mundial a partir do dólar.

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ESTÁ EM DECADÊNCIA O IMPÉRIO AMERICANO?

sume a forma mais abstrata do dinheiro, ora assume a forma mais dura
e visível das armas...” (Fiori, 1999b, p. 63).
Acompanhando o argumento de Arrighi, Hopkins e Wallerstein,
um segundo fator de perda de hegemonia americana pode ser pensado
a partir da descolonização e a rejeição da ordem bipolar e da “Guerra
Fria” que assolou o mundo durante o pós-guerra. Os movimentos pela
libertação do chamado Terceiro Mundo, especialmente na África e Ásia,
tentaram se constituir em projetos nacionais com relativa ou total autonomia com relação à distribuição geopolítica do mundo, empreendida
por ambos os polos de poder. Desta maneira, “as superpotências contribuíram para a liquidação dos impérios coloniais, uma vez que ambas,
ainda que por razões diferentes, apoiaram o processo de descolonização.
Os Estados Unidos viam na descolonização uma forma de consolidar sua
supremacia sobre o bloco capitalista, expandindo sua influência econômica aos mercados afro-asiáticos, até então sob controle das antigas metrópoles coloniais. A URSS via na descolonização um meio de estender
sua influência política a esses países. No contexto global da Guerra Fria,
cada uma das superpotências procurava atrair os novos países para sua
respectiva esfera de influência” (Canedo, 1986, p. 42).
Cientes desta pretensa dominação neocolonial, as lutas de libertação e descolonização dos povos da África e Ásia representaram não
somente os anseios de independência das metrópoles coloniais – num
mundo onde já não era mais possível manter colônias6 –, mas também
um questionamento da legitimidade da “ordem mundial” imposta pelas superpotências em disputa. A Guerra do Vietnã constitui o episódio
culminante destas lutas pela independência total dos povos do Terceiro
Mundo, uma vez que significou o desfecho trágico da falsa defesa dos
valores democráticos que os Estados Unidos gabavam-se de encarnar.
Finalmente, de acordo com Arrighi, Hopkins e Wallerstein (1999),
um terceiro fator de crise hegemônica foram os acontecimentos de maio
de 1968 que deram início a um processo de contestação da ordem capitalista, liderada pelo país do Norte. Nesse texto, os autores supracitados
afirmam que o que aconteceu nesse ano somente pode ser comparável
com os memoráveis levantamentos de 1848, superando ainda em importância momentos tidos como marcos dentro da história dos movimentos sociopolíticos e de mudanças revolucionarias, tais como a Revolução
Francesa e a Revolução Russa.
Assim foi como a revolta de 1968 minou a capacidade do Norte de
6. No caso dos protetorados a situação não é tão clara, pois precisamente Alemanha, Japão ou Coreia representaram uma forma de protetorado militar, com apoio econômico (Plano Marshall) e ligações preferenciais
com a economia norte-americana.

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Fernando MARCELO de la Cuadra

vigiar e intervir nos países “subordinados” do sul, produzindo mudanças
importantes nos diversos grupos de status (etários, de gênero, minorias
étnicas) que bem se localizam nos “espaços ocultos da vida cotidiana”,
possuem uma nova disposição a revelar-se contra a ordem estabelecida.
Desde outra perspectiva, também se contesta o papel dominante dos
Estados Unidos a partir do argumento de que o processo de globalização
em curso, acelerado desde fins dos anos 1980, representa a diminuição do
peso dos estados nacionais. Para esses autores (chamados de Hiperglobalizadores), a globalização é um processo que superou as fronteiras nacionais,
por meio dos fluxos reais de comércio e produção e dos fluxos vertiginosos
de capitais. Para Kenichi Ohmae a globalização nos impele a um mundo
sem fronteiras, um mundo em que as forças do mercado são mais poderosas que os Estados Nacionais (Ohmae, 1999). 7 Pelo mesmo, o caráter
interdependente, integrado, multipolar do planeta, acaba comprometendo
a presença de um núcleo central dominante ou hegemon.
Por sua vez, Antonio Negri e Michael Hardt (2001) estabelecem no
seu polêmico livro “Império”, que estamos vivendo uma época de “império sem imperialismo”, quer dizer, uma época em que as grandes empresas transnacionais têm superado efetivamente a jurisdição e a autoridade
dos estados nacionais, os quais são afastados das funções que lhes eram
características, tanto no campo das tarefas propriamente administrativas e políticas, como em outros níveis e domínios da vida social. Estas
faculdades “conquistadas” pelos Estados nacionais teriam migrado para
outras esferas da sociedade, principalmente para aqueles mecanismos
de mando do nível global das grandes empresas transnacionais, que por
esse mesmo caráter centrífugo, não estariam necessariamente atreladas a
nenhum país ou não teriam uma base estritamente nacional. Para os autores, um indicador da decomposição dos Estados Nacionais é a enorme
fragmentação e dispersão de suas agências centrais, numa extensa variedade de novas agências, grupos e corporações entre os que sobressaem os
bancos, os centros de planejamento, os organismos multilaterais e outras
entidades que procuram legitimar-se num nível transnacional de poder.
Assim, tais entes supranacionais restariam à capacidade de um Estado
dominante e “imperialista” para fundar sua dominação no resto das nações, destacando-se toda uma série de “corpos jurídico-econômicos”, tais
como a OMC, o Banco Mundial ou o FMI (Negri e Hardt, 2001).
Em suma, estamos diante da consagração de uma esfera supranacional que acaba por sepultar o protagonismo dos Estados nacionais, o qual
não é simplesmente o resultado de uma posição ideológica que se poderia
7. Não é por acaso que o texto mais expressivo dessa tese de Ohmae se chama justamente “O fim do Estado-Nação”

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ESTÁ EM DECADÊNCIA O IMPÉRIO AMERICANO?

reverter mediante um ato de vontade política, mas sim um processo de caráter estrutural e, portanto, irreversível. O Império se impõe finalmente
por sobre o imperialismo, neste caso, aquele de cunho norte-americano.
Ponderando a crise do hegemon
Já com outro enfoque interpretativo Maria da Conceição Tavares,
Luiz Gonzaga Belluzzo, José Luis Fiori, Carlos Medeiros, Franklin Serrano e um grupo de intelectuais vêm desenvolvendo a tese de que a hegemonia estadunidense não experimenta essa tal decadência.8 Sustentando
seu argumento nas dimensões monetária e militar, Tavares e Belluzzo
consideram que o poder americano foi capaz de contornar a crise de 1970
através de uma política de afirmação do dólar como moeda forte e da recomposição da liderança militar. Isso era impensável dado o contexto no
qual se encontravam os Estados Unidos no início dos anos 1970: “a ruptura do padrão dólar, a derrota no Vietnã e as crises do petróleo balançaram os pilares do poder americano. A maioria dos analistas continuou a
proclamar a derrota definitiva da hegemonia americana, mesmo depois
de 1985, quando a crise já tinha sido superada e os EUA avançavam na
direção de um poder global” (Tavares e Belluzzo, 2004, p. 130).
Com o governo de Ronald Reagan a “diplomacia do dólar forte”
permitiu que tal moeda se constituísse no metal de reserva e de denominação das transações comerciais e financeiras, o qual – segundo estes
autores – promoveu profundas alterações na estrutura e na dinâmica da
economia mundial. Assim, a união do poder político-militar e do capital
financeiro deu aos Estados Unidos um fôlego e uma dimensão global que
não existia até esse momento. Nas palavras de Fiori:
Desde o fim do padrão-dólar e da Guerra Fria (...) o mundo nunca esteve entregue de forma mais incontestável ao arbítrio de uma só potência hegemônica que estivesse tão radicalmente orientada pelo seu
commitment liberal, e pelo objetivo de construir e sustentar uma ordem
internacional baseada em conjunto de regimes e instituições regionais
e globais consagradas pela aceitação coletiva, no campo do desarmamento como no do comércio e dos investimentos (Fiori, 2001a, p. 12).

Esta tese se apóia na noção de que tanto na esfera monetária como
no âmbito militar os Estados Unidos saíram fortalecidos na medida em
8. Esse conjunto de autores há um tempo vem se dedicando a uma agenda de pesquisa orientada em torno
de consolidar uma discussão conceitual e interpretação de dinâmica e transformações experimentadas
recentemente pelo sistema mundial e seu concomitante impacto sobre as instituições marco do regime
internacional capitalista.

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Fernando MARCELO de la Cuadra

que – como já foi apontado – conseguiram superar com certo sucesso a
crise dos anos 1970. Esta situação viu-se robustecida ainda mais depois
da “queda do muro” e o fim do socialismo real. A rigor, com o colapso
do bloco comunista e o desmembramento da União Soviética, os Estados Unidos acabaram se transformando na única força militar de alcance
planetário. As potências econômicas que secundavam aos EUA na época
(ou seja, Alemanha e Japão) não tinham exércitos de envergadura como
resultado dos acordos posteriores à II Guerra Mundial. Por sua parte, a
China não tinha uma presença marcante no cenário mundial e a Europa
tampouco tinha desenvolvido nenhum projeto militar, a não ser seu atrelamento na defesa continental no marco da Guerra Fria, constituindo
para isso a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Ambos os fenômenos (o controle monetário e o poderio militar) permitem, portanto, o surgimento de uma “gigantesca” concentração de poder
econômico, militar e financeiro por parte dos Estados Unidos nas últimas
duas décadas do século XX, que gera por sua vez as condições privilegiadas
para construir nos anos 1980, uma nova “narrativa” que aparece como parte
da própria dinâmica do desenvolvimento capitalista: a globalização.
Na realidade, para os autores citados, a globalização representa
uma estratégia de expansão econômica, política, militar e ideológica das
grandes potências mundiais e, especialmente, do poder americano que
assume a liderança do processo. Tratando de compendiar esse esforço
intelectual, Fiori escreveria mais tarde:
(...) a [nossa] convicção [é] de que a globalização não foi obra exclusiva dos mercados ou do progresso tecnológico, envolvendo
mudanças nas coalizões de poder das grandes potências e o renascimento da crença ideológica liberal (...) que galvanizou o poder do
mundo anglo-saxão e viabilizou a retomada da hegemonia norte-americana (Fiori, 2001a, p. 16).

Em síntese, esta “globalização americana” expõe evidentemente
a dimensão prática expressiva do Poder e da Riqueza Americanos, fundados na relação entre hegemonia monetária, crescimento econômico e
expansão territorial. Desta forma, concluem Tavares e Belluzzo, na época atual encontra-se “configurada uma nova anatomia da geoeconomia
capitalista. O cérebro é o poder de contenção e de controle geopolítico da
superpotência hegemônica e o coração da economia mundial continua
sendo sua gigantesca economia continental” (Tavares e Belluzzo, op. cit.,
p. 137).
Em outro âmbito, esses autores levantam uma discrepância significativa com Arrighi, Hopkins e Wallerstein. Este desencontro situa-se
45
ESTÁ EM DECADÊNCIA O IMPÉRIO AMERICANO?

em torno da própria tese de Hegemonia. Tal como salientam eles, a divergência com Arrighi e seus colegas não é conjuntural, é teórica e ela faz
relação com a hipótese que sustenta que no “sistema mundial moderno”
sempre vão existir potências hegemônicas sucessivas as quais permitiram a manutenção da ordem política e o bom funcionamento da economia internacional. Dentro dessa perspectiva o “líder” surge como uma
espécie de resposta funcional ao problema de ingovernabilidade de um
sistema que é intrinsecamente anárquico, pois ele é formado por Estados
nacionais soberanos e em permanente disputa. Em síntese, esta visão salienta as contribuições positivas do hegemon para a governança global do
sistema. Pelo mesmo, segundo seus detratores, ela não consegue dar conta do movimento contínuo de competição e expansão dos Estados e economias nacionais que já conquistaram a condição de grandes potências
que fazem parte do núcleo central de todo o sistema. Por esta razão, tais
Estados continuam competindo entre si, mesmo nos períodos em que se
percebe uma alta tranquilidade sistêmica.
Em outras palavras, o sistema mundial moderno funcionaria como
uma sorte de onda em permanente expansão a partir de sua própria dinâmica contraditória e em constante crise. O ponto fraco da hipótese da
decadência do poder hegemônico americano não reside tanto na análise
dos fatos da conjuntura internacional, quanto no modelo explicativo. O
suposto de que o sistema mundial moderno requer a existência de potências hegemônicas se revezando para manter a ordem política e o bom
funcionamento da economia, implica que necessariamente deve existir
um líder ou hegemon capaz de imprimir-lhe estabilidade e governabilidade (governança global) ao sistema.
Diferentemente, para Fiori não existiria esse tal hegemon competente para organizar o sistema a partir de sua liderança. O sistema está
num movimento expansivo contínuo que se encontra permeado pela
competição e luta pelo poder entre os Estados e as economias nacionais
que já conquistaram seu locus de “grandes nações” e que precisam dessa
competição constante e até da possibilidade da guerra para se autoreproduzir como potências. Desde a perspectiva do poder global, o sistema
mundial é uma maquina de acumulação de poder e riqueza e seu motor é a competição e a guerra entre seus Estados e economias nacionais.
Nesse sistema mundial não existem países satisfeitos, todos estão sempre se propondo aumentar seu poder e sua riqueza. Este sistema mundial
pode-se representar como um universo em ampliação que se encontra
impelido pela luta das grandes potências para conquistar o poder global.
Por isso mesmo estão criando, sempre e simultaneamente, ordem e desordem, paz e guerra.
46
Fernando MARCELO de la Cuadra

O que ordena e estabiliza esse sistema, por mais doloroso que seja reconhecê-lo, não são os hegemons, mas a existência de ‘eixos conflitivos
crônicos’ e a possibilidade permanente da guerra. O sistema não acumula poder e riqueza sem a competição das nações e não se estabiliza
sem as guerras (Fiori, 2007b, p. 28).

Ou seja, uma conceituação a respeito do chamado “Poder Global” mais que referir-se a uma instância ou entidade mundial em particular (como Estados Unidos), ela procura expressar uma modalidade
para analisar o funcionamento e as tendências de longo prazo do sistema
mundial que se formou a partir da expansão de alguns estados europeus
durante o século XVI. Esse tipo de análise privilegia o movimento e as
contradições que movimentam esse sistema, impedindo sua estabilização e qualquer forma de governança global estável e em paz perpétua,
noção esta que ficou consagrada na sintética formulação de Norbert Elias
“o que não sobe, desce”.
Por último, a tese do fim do Estado Nacional também é contestada
por Fiori em vários textos, partindo de um argumento muito simples.
Na hora atual em que se discute a morte do Estado, é precisamente o
momento em que temos maior número de nações constituindo-se como
tais. Segundo ele, o poder do Estado nação segue organizando-se em torno de um território de caráter eminentemente nacional, razão pela qual
fica difícil “anunciar a morte dos Estados na hora exata em que eles se
multiplicam e intensificam a sua competição, e onde (...) apesar da retórica globalista, a luta pela democratização das sociedades e pela conquista
da cidadania, segue se dando no espaço de poder dos Estados nacionais.”
(Fiori, 2007a, p. 119).
Em resumo, para Fiori não existe nenhum elemento de peso que faça
supor que estamos diante de uma crise ou declínio do poder americano
e sim, pelo contrário, nos encontraríamos numa etapa em que os Estados
Unidos seguirão competindo pela sua posição privilegiada dentro da estrutura de poder global. E tal como afirma no Prefácio de seu livro “O Poder Global”:
Está cada vez mais claro que o centro nevrálgico de nova competição
geopolítica mundial envolverá pelo menos duas potências – Estados
Unidos e China – que são cada vez mais complementares do ponto de
vista econômico e financeiro... (Fiori, 2007b, p. 39)

Com efeito, a economia chinesa, que vem experimentando um crescimento econômico constante nos últimos anos – com uma média de aproximadamente 10% – já se encontra instalada no segundo lugar com um
47
ESTÁ EM DECADÊNCIA O IMPÉRIO AMERICANO?

Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 6,05 trilhões. E as previsões dos especialistas do Fundo Monetário Internacional é que ela se torne a primeira
economia mundial em 2016.
Considerações finais
Um permanente dilema entre os filósofos e cientistas sociais é o de
conciliar a realidade tal e como ela é ou aparenta ser (perspectiva positiva)
e a realidade como nós queremos que se comporte (perspectiva normativa). Acredito que no debate a respeito do declínio do império americano,
muitos dos especialistas que escreveram e escrevem sobre o tema têm se
visto fortemente tentados a interpretar a situação atual da hegemonia americana com os “sentimentos” de quem deseja efetivamente que se produza a
decadência do gigante do Norte. Mas este sentimento tampouco é recente.
Já durante os anos 1980 o historiador inglês Paul Kennedy (1987) tinha
vislumbrado a decadência do poder dos Estados Unidos, ainda que com
a ressalva de que esse seria apenas um “declínio relativo”, pois – segundo
este especialista – ainda com inúmeros percalços no seu caminho e o poderio emergente da China, os Estados Unidos continuarão a ser o país mais
poderoso no cenário internacional.
No início deste século, Immanuel Wallerstein (2005) radicaliza o
argumento de Kennedy afirmando que a decadência do poder americano
é evidente e que o problema não estaria tanto em discutir a veracidade da
tese, senão principalmente sopesar o impacto que terá o desabamento dessa
potência sobre o resto do planeta. Nas palavras deste pensador crítico: “O
verdadeiro dilema não é se Estados Unidos estão em decadência como potencia hegemônica, mas se poderá encontrar um modo de cair com elegância, com o menor dano para o mundo e para o próprio país” (Wallerstein,
op. cit., p. 39). Já para Noam Chomsky (2011), falar da decadência dos Estados Unidos constituiu-se num lugar comum amplamente difundido. E essa
crença é precisamente mais trágica considerando que esse descenso seria,
em grande medida, autoinfligido. Entre outros fatores, o financiamento das
campanhas por parte das grandes corporações e agências de investimento
estaria levando ao enterramento da democracia: “Ao triturar os restos da
democracia política, as instituições financeiras estão criando as bases para
fazer avançar ainda mais este processo letal” (Chomsky, 2011, p. 4).
Contestando a teoria do declínio americano, o próprio George
Bush, pai, fazia um otimista e enérgico discurso por ocasião da convenção
republicana em agosto de 1988 na qual respondeu simultaneamente a Paul
Kennedy e ao seu concorrente democrata, Michael Dukakis:
48
Disputas de Hegemonia na América Latina
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Disputas de Hegemonia na América Latina

  • 1. Francisco Uribam Xavier de Holanda (Organizador) NUESTRA AMÉRICA NO SÉCULO XXI AS DISPUTAS DE HEGEMONIA NOS CIRCUITOS DA CRISE
  • 2.
  • 3. Francisco Uribam Xavier de Holanda (Organizador) NUESTRA AMÉRICA NO SÉCULO XXI AS DISPUTAS DE HEGEMONIA NOS CIRCUITOS DA CRISE
  • 4. ©2012 Copyright dos autores Universidade Federal do Cear á - UFC Reitor Prof. Jesualdo Pereira Farias Vice-Reitor Prof. Henry Campos Obra publicada através de projeto da Coordenadoria de Comunicação Social e Marketing Institucional Coordenador: Paulo Mamede Revisão: Maria das Dores de Oliveira Filgueira e Sílvia Marta Costa. Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Yuri Leonardo ISBN 978-85-7282-493-4 Tiragem 1000 exemplares CTP e impressão Expressão Gráfica PAÇO PARA CATALOGRÁFICA
  • 5. Francisco Uribam Xavier de Holanda (Organizador) NUESTRA AMÉRICA NO SÉCULO XXI AS DISPUTAS DE HEGEMONIA NOS CIRCUITOS DA CRISE Fortaleza 2012
  • 6.
  • 7. Estos tiempos no son para acostarse con el pañuelo a la cabeza, sino con las armas de almohoda, como los varones de Juan de Castellanos: las armas del juicio, que vencen a las otras. Trincheras de ideas valen más que trincheras de piedra. José Marti – Nuestra América – 1891
  • 8.
  • 9. SUMÁRIO 11 13 17 Autores Por ordem alfabética Apresentação CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE Alba Maria Pinho de Carvalho 37 ESTÁ EM DECADÊNCIA O IMPÉRiO AMERICANO? 55 NUESTRA AMÉRICA: REFLEXÕES SOBRE O FENÔMENO DO POPULISMO LATINO-AMERICANO Fernando Marcelo de la Cuadra João Paulo Saraiva Leão Viana 79 DEMOCRACIA, DIREITOS E AÇÃO CIDADÃ NA TRANSIÇÃO BRASILEIRA PARA O SÉCULO XXI Francisco Uribam Xavier de Holanda 97 RESISTÊNCIA DOS MOVIMEnTOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE CRISE Adelita Neto Carleial 113 A CONTEMPORANEIDADE DO PENSAMENTO DE CELSO FURTADO PARA a EMaNCIPAÇÃO DA AMÉRICA LATINA Eduardo Girão Santiago 129 A COLONIALIDADE DA NAÇÃO CEARÁ: TESTEMUNHOS DE UMA IDENTIDADE NEGADA Pedro Vítor Gadelha Mendes
  • 10.
  • 11. AUTORES POR ORDEM ALFABÉTICA Adelita Neto Carleial Mestra em Sociologia pela Universidade Autônoma do México, doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, professora do Curso de Ciências Sociais da UECE e membro da Rede de Pesquisadores Universitários sobre a América Latina (Rupal). Alba Maria Pinho de Carvalho Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará com pósdoutorado pelo CEAS da Universidade de Coimbra, professora do Departamento de Ciências Sociais da UFC e coordenadora da Rupal. Eduardo Girão Santiago Economista e doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFC e membro da Rupal. Fernando Marcelo de la Cuadra Sociólogo chileno, doutor em Sociologia pela Universidade Federal Rural Fluminense e membro da Rupal. Francisco Uribam Xavier de Holanda Licenciado em Filosofia Política, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFC, tutor do PET-UFC de Ciências Sociais e Membro da Rupal. João Paulo Saraiva Leão Viana Mestre em Relações Internacionais para a América do Sul pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-americanos (CEBELA – RJ), professor da Faculdade de Rondônia (FARO) e da União das Escolas Superiores de Rondônia (UNIRON). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades. Pedro Vítor Gadelha Mendes Graduado em Ciências Sociais pela UFC e membro da Rupal. 11
  • 12.
  • 13. APRESENTAÇÃO Hispanoamérica no encontrará su unidad em La orden burguês. Este orden nos divide, forzosamente, em pequeños nacionalismos. A Norteamérica sajona Le toca caronar y cerrar la civilización capitalista. El provenir de la América Latina es socialista. José Carlos MariáteguI Entre os anos de 2009 e 2011 comemoramos o bicentenário da independência política de vários países na América Latina. Em 1809, Bolívia e Equador; em 1810, Argentina, Chile, México e Venezuela; em 1811, El Salvador, Paraguai e Uruguai fizeram parte de uma onda política de movimentos emancipatórios. Todavia, o Haiti foi o primeiro país da América a proclamar a sua independência (1804) e em um contexto radicalmente diferente do resto do continente, pois enquanto uma elite criolla conduziu a independência na América Latina, no Haiti foram os negros que se tornaram sujeitos de sua própria história. Os povos do Haiti, na época, uma população de 300 mil habitantes, apenas 12 mil eram livres, brancos e mulatos. A repressão contra os negros no poder foi tão perversa que até hoje o Haiti é um flagelo a céu aberto e sem perspectiva a médio prazo. O movimento de emancipação política na América Latina, em torno de suas contradições e idiossincrasias, foi conduzido por uma elite criolla influenciada por um projeto político de república iluminista do século XVIII, em particular pela adoção do modelo de estado-nação europeu que até hoje sufoca seus povos originários. A luta por independência foi para acabar com o colonialismo político espanhol que impedia o crescimento econômico e a autonomia política e cultural do continente. Todavia, a implantação de um sistema administrativo de Estado centralizado, dominado por caudilhos e populistas, fazendo par com um modelo de desenvolvimento agrário-exportador, contribuiu para impedir o desenvolvimento de um mercado interno forte, a formação de uma classe média e a integração entre os países do continente. Se há 200 anos a luta foi pela emancipação do jugo político colonial, no século XXI o desafio é a superação do processo de colonialida13
  • 14. de do poder, pois a colonialidade do poder implica na invisibilidade dos não europeus: povos originários, negros, mestiços. Trata-se de uma visão de mundo eurocêntrica que combina um padrão de poder e um modelo epistemológico de validação de conhecimento que opera ideologicamente na sedimentação de modelos de dominação. O processo de construção da descolonialidade passa pela construção e sedimentação de novos imaginários e valores sobre o socialismo para o século XXI, imaginários e valores que superem as visões de mundo do neoliberalismo e do socialismo dos séculos XIX e XX. O novo momento de luta pela transformação social se expressa em novas formas de fazer política, na incorporação de novos sujeitos políticos, na defesa de direitos humanos difusos e pela necessidade de confecção de uma concepção de sociedade onde as relações de poder, o modelo de desenvolvimento e de relação dos homens com a natureza reflitam o respeito ao planeta como forma de vida que é patrimônio universal da humanidade. Em nossa epocalidade, os que não perderam a esperança capitulando no comodismo da ideia do fim da história têm como desafio contribuir para que as novas formas de fazer política em curso na América Latina se transformem em movimentos emancipatórios, ou seja, contribuir para transformar movimento social em movimento revolucionário. Os trabalhos aqui produzidos pelos membros da Rede de Pesquisadores Universitários sobre a América Latina – RUPAL – são uma semente plantada numa conjuntura de esperança que aflora em Nuestra América. A Profª. Alba Carvalho interpela, em seu artigo, a realidade da crise estrutural do capitalismo desenhada na primeira década do século XXI na tentativa de decifrar os desafios para o nosso tempo. Para Alba, vivemos um momento que “exige avaliar a novidade que a América Latina coloca para o mundo com a chamada virada à esquerda, com a perspectiva de refundação pluricultural e multisocietal de estados multinacionais e comunitários”. Fernando de la Cuadra põe em questionamento se o poder americano está em decadência, dialogando com argumentos que sustentam o fim da hegemonia estadunidense e com os que relativizam sua decadência. Uma de suas conclusões é que, pelos menos, “a prepotente autoconfiança das elites norte-americanas não irá sucumbir tão cedo.” João Paulo Viana aborda o fenômeno do populismo na América Latina pontuando que a crise do modelo liberal nos anos de 1920 e o colapso das velhas oligarquias rurais criaram as condições para a emergência de governos populistas que conduziram a construção de um estado forte, nacionalista e intervencionista. Todavia, ele faz um levantamento 14
  • 15. dos fundamentos teóricos do populismo nas obras de Haya de la Torres, Gino Germani, Torcuato Di Tella e Francisco Weffort. Uribam Xavier, diante da consolidação de um modelo liberal moderno de Estado, abre uma reflexão sobre os desafios de uma gestão pública solidária e estende seu olhar sobre as ações cidadãs (a responsabilidade social das empresas, o Terceiro Setor e a economia solidária) desenvolvidas no Brasil durante a transição do século XX para o XXI. O artigo “Resistências dos movimentos sociais na América Latina em tempos de crise”, de Adelita Carleial, discute a relação entre a crise estrutural do capitalismo, e os movimentos sociais do início do século XXI, mostrando as tentativas de superação da dependência pelos países latino-americanos, além de evidenciar o arranjo de forças entre países da América Latina no enfrentamento do poderio estadunidense. O Prof. Eduardo Girão traça um perfil da ação política transformadora do economista cepalino Celso Furtado, destacando sua influência teórica e prática nas lutas emancipatórias da América Latina e ressaltando que o governo Lula foi caudatário do pensamento furtadiano. Pedro Vitor, recém-formado em Ciências Sociais, partindo das influências de autores comprometidos com a descolonialidade dos saberes, faz uma reflexão sobre o racismo embutido na construção de uma nação Ceará. Afirma que o racismo como instituição colonial no Brasil adquiriu novos padrões de distinção em relação ao colonialismo anglo-saxão e especula que especificidades o Ceará apresenta dentro dessa estrutura racista brasileira. Ao finalizar essa breve apresentação, gostaria de agradecer a tod@s colaborador@s que aceitaram o desafio de produzir um livro no espaço menor do que um mês. Em especial, os agradecimentos, meu e de todos da Rupal, ao Paulo Mamede, nosso Paulinho, que nos provocou a publicar o livro, dando todo o apoio e incorporando nosso seminário: “Disputa de Hegemonia em Nuestra América no Século XXI” na programação do IV Festival de Cultura da UFC. É isso, boa leitura. Fortaleza, janeiro de 2012 Uribam Xavier Organizador do Livro 15
  • 16.
  • 17. CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE Alba Maria Pinho de Carvalho À guisa de Introdução: o presente em foco Após mais de duas décadas de mundialização do capital, as desigualdades, polarizações e assimetrias marcam o cenário contemporâneo. Neste início do século XXI – tempos de crises e transição – somos confrontados com questões da modernidade para as quais as respostas modernas são absolutamente insuficientes, como a questão da igualdade, da equidade, da justiça, da liberdade e da paz (SANTOS, 2000b, 2006a)1. Assim, o presente interpela-nos a decifrá-lo, a circunscrever desafios analíticos do nosso tempo. Exige pensar o momento que vivemos na civilização do capital, demarcando novas formas de domínio e novas expressões de resistência e luta. Demanda o desvendar do cenário contemporâneo de liquidez e fluidez, circunscrevendo o horizonte de transformações a emergir, no esforço de recompor nexos e mediações históricas. Impõe discutir o colonialismo em tempos contemporâneos, enfocando as suas expressões a permear a sociabilidade, a cultura, as mentalidades e subjetividades, nos espaços públicos e privados. Faz-se necessário e, mesmo, imprescindível, desvendar o atual contexto de crises, as mudanças em curso e as tendências emergentes. Põe em discussão a utopia democrática, na sua potencialidade e nos seus limites, no âmbito do sistema do capital. Requer delinear a Questão Social em suas manifestações peculiares no presente, sobremodo, as vulnerabilizações, desmontes e tensões que atingem o mundo do trabalho. Coloca 1. Boaventura de Sousa Santos, na radicalidade de sua crítica à modernidade ocidental, sustenta a tese de que, no final do século XX/início do século XXI, estamos a viver um tempo de transição. O seu argumento é que as grandes promessas da modernidade permanecem incumpridas e a modernidade já não consegue cumprí-las, verificando-se a obsolescência do seu paradigma sociocultural. Avalia que o paradigma da modernidade deixa de poder renovar-se e entra em crise final, só continuando ainda como paradigma dominante pela inércia histórica (SANTOS, 2000a). Afirma, então, que a nossa situação presente, que, à superfície, aparece como um período de crise, quando analisada em nível mais profundo, é um período de transição paradigmática (id.ibid.). E afirma: “entre as ruínas que se escondem atrás das fachadas, podem pressentir-se os sinais, por enquanto vagos, da emergência de um novo paradigma […] ou conjunto de paradigmas de que, por enquanto, não conhecemos senão as ´vibrações ascendentes`”…(SANTOS, 2000a, p.16) 17
  • 18. CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE em pauta as formas de regulação social que, hoje, se gestam entre Estado/ sociedade/mercado. Implica desmistificar o “neointervencionismo do Estado” na contemporaneidade, demarcando as expressões históricas do que vem sendo proclamado como “regresso do Estado”. Impõe configurar delineamentos básicos das políticas públicas nesse cenário de esgotamento da hegemonia não liberal e da emergência de disputa hegemônica. Exige avaliar a novidade que a América Latina coloca para o mundo com a chamada “virada à esquerda”, com a perspectiva de refundação pluricultural e multissocietal de Estados multinacionais e comunitários. Delineia, como dilema do nosso tempo, o paradoxo de pensar e discutir Políticas Públicas no sentido de assegurar bem-estar, em tempos de mal-estar, nos circuitos contemporâneos de instabilidade, incerteza e riscos. Implica compreender como e com que intensidade a pressão política dos movimentos sociais, em suas lutas, perpassa o Estado, no sentido de redefinição das políticas públicas, na afirmação e no reconhecimento de direitos para maiorias expropriadas da humanidade, no âmbito de processos de exclusão, de opressão e discriminação. Impõe, como exigência histórica, analisar as potencialidades do público e das Políticas Públicas para enfrentamento das desigualdades no âmbito dessa civilização do capital. Em verdade, é essa uma agenda contemporânea de investigações e debates a ser coletivamente trabalhada, em diferentes espaços acadêmicos e políticos. Nesta perspectiva, aqui circunscrevo, como recorte analítico deste artigo, adentrar em configurações contemporâneas da civilização do capital2, tendo como referência histórica a crise que marca o nosso tempo. A rigor, hoje – no início da segunda década deste jovem século XXI – a crise contemporânea do sistema do capital circunscreve um desafio histórico, a provocar, como questão vital, seu desvendamento, qual esfinge de Édipo. Ao avaliar o cenário contemporâneo, István Mészáros (2009) sublinha que, pela primeira vez na História, o capitalismo confronta-se globalmente com seus próprios problemas, que não podem ser adiados por muito mais tempo nem, tampouco, transferidos para o plano militar a fim de serem explorados como guerra generalizada. Logo, uma questão decisiva na análise da civilização do capital no tempo presente é configurar a natureza da crise global em desenvolvimento, circunscre2. Considero que, na contemporaneidade, o capitalismo mundializado, mais que um modo de produção, constitui um regime civilizacional a estender a lógica do capital aos diferentes domínios da vida social, mesmo a aqueles que, outrora, dificilmente seriam concebidos como capitalistas: religião, relações afetivas, concepção do tempo livre, avaliação do mérito científico e avaliação moral dos comportamentos. De fato, a revolução da informática e da comunicação, combinada com a tendência do capitalismo para ampliar a lei do valor a mais e mais dimensões da vida social, permite circunscrever a civilização contemporânea do capital, a encarnar um padrão de dominação social abstrata, sutil, indefinida, polifacetada e profundamente penetrante que perpassa a economia, a política, a cultura, reconfigurando subjetividades (SANTOS & MENESES, 2009). 18
  • 19. Alba Maria Pinho de Carvalho vendo seu sentido global, estrutural e sistêmico, sua marca agudamente destrutiva (ANTUNES, 2009). Assim, o meu foco de discussão é o tempo presente, circunscrito nas três últimas décadas do final do século XX e no início do século XXI, em sua primeira década e no limiar da segunda. Em um exercício da Sociologia das Ausências e das Emergências (SANTOS, 2006b), busco demarcar “sinais dos tempos”, sublinhando fenômenos e tendências, a apontarem vias de reflexão e debate. Parafraseando Boaventura de Sousa Santos (2008a; 2009b), o meu esforço é no sentido de apontar “questões fortes”, sem a pretensão de ter “respostas fortes” que só são construídas no trabalho investigativo coletivo e no processo de discussão sempre em aberto. A civilização do capital no tempo presente: contexto de liquidez, descartabilidades e riscos Vivemos, hoje, um momento de expansão do capital que parece não ter limites e controles, a acirrar contradições, antagonismos e desigualdades. Sob a égide das forças cibernético-informacionais, no cenário da “sociedade do espetáculo”, o capital promove transformações no seu padrão de acumulação e nas suas formas de valorização, nos marcos da “mundialização com dominância financeira” (CHESNAIS, 2003). A expansão sem limites da riqueza abstrata, em suas “ficções numéricas”, nos processos da acumulação rentista – dinheiro a fazer render mais dinheiro – precisamente, D – D´, nas formulações marxianas (MARX, 1983) – chega a extremos, consubstanciando a incontrolável dominação do “fetichismo do dinheiro”, em um processo de mistificação que marca “o espírito dos tempos contemporâneos” (BENJAMIN, 2004). Marx, em meados do século XIX, previu que essa forma de acumulação teria peso crescente e à medida que passasse a predominar – como é o caso neste nosso jovem século XXI – a instabilidade e a insegurança seriam cada vez maiores (BENJAMIN, 2008). De fato, o padrão rentista de acumulação levado à sua forma extrema, nos circuitos da “financeirização da economia”, expressa-se, na crise econômico-financeira que irrompe no cenário mundial em 2008, constituindo “um momento decisivo deste século XXI, no qual tudo que parecia sólido se liquefaz, encontrando-se o capitalismo em forte processo de liquefação” (ANTUNES, 2009, p.11). Esta crise global – epifenômeno da crise estrutural do capital – atinge a Humanidade, comprometendo as condições de vida e de trabalho de parte considerável da população em todo o mundo, afetando, de forma drástica, os mercados de trabalho, no rastro de forte desaceleração econômica. A rigor, é um agravante da vulnerabilidade e precarização do mundo 19
  • 20. CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE do trabalho, permeado por desmontes, flexibilizações, tensões, neste momento contemporâneo do capitalismo3. A civilização contemporânea do capital, no contexto da Tecnociência, submetida à lógica ilimitada do sistema do capital, acirra e torna mais visível a contradição fundamental, assinalada por Marx, nos “Grundrisse” (1971): a crescente substituição do trabalho vivo de homens e mulheres – trabalho humano direto – pelo trabalho morto, objetivado nas máquinas. Hoje, as chamadas “máquinas inteligentes” mostram-se imprescindíveis aos processos de acumulação capitalista, intensificando a subsunção do trabalhador ao capital. Com a mediação da ciência e da tecnologia, o capital prescinde da presença física e do próprio “saber” e “fazer” do trabalhador, implicando no desemprego estrutural, na exploração intensiva do trabalho, em meio a processos de precarização. É a dinâmica expansionista ilimitada do capital que bem se materializa como “contradição em processo” (MARX, 1971). Assim, como marca, por excelência, do capitalismo no tempo presente, gesta-se um crescente contingente de “trabalhadores supérfluos”, tentando equilibrar-se no “fio da navalha” das exclusões e inclusões precárias (CARVALHO & GUERRA, 2008). É o que Zigmunt Bauman (2005) define como “produção do refugo humano”: seres humanos refugados como produto inevitável da nossa sociedade. O sistema do capital, em sua lógica de expansão incontrolável e predatória, que ignora as necessidades humanas, revela, com indiferença, sua incapacidade de incluir esse “refugo humano”, essa “população sobrante”, gerando uma “coletividade de despojados”. Avalia István Mészáros: o sistema de controle do metabolismo social atingiu um estágio em que lhe é necessário expulsar centenas de milhões de indivíduos do processo de reprodução social (do próprio processo de trabalho). Um sistema de reprodução não pode se autocondenar mais enfaticamente do que quando atinge o ponto em que as pessoas se tornam supérfluas ao seu modo de funcionamento. Esta não é uma projeção para o futuro […] é a gritante realidade mundial e o rumo, negativo e do qual não se escapa do avanço do capitalismo (MÉSZÁROS, 1997, p. 152). Em verdade, é esta uma das grandes tragédias do nosso tempo: refugo humano/excedente populacional/população sobrante…É a saga de milhões de migrantes, desempregados, classificados como vagabundos, em uma sociedade na qual os seres humanos são considerados párias, dignos 3. De fato, nesse novo momento do capitalismo mundializado, nas quatro últimas décadas, verifica-se uma vulnerabilização do trabalho, decorrente da atual forma sociometabólica do capital (MÉSZÁROS, 2002), constituindo-se um “novo e precário mundo do trabalho”, nos circuitos de um complexo de reestruturação produtiva, a encarnar a ofensiva do capital na produção, debilitando a classe trabalhadora no aspecto objetivo e subjetivo (ALVES, 2000). 20
  • 21. Alba Maria Pinho de Carvalho apenas de serem vistos como lixo (BAUMAN, 2010). Ao centrar o olhar nessa tragédia contemporânea, propugna Zigmunt Bauman que a sociedade “só pode ser elevada ao plano da comunidade se efetivamente proteger seus membros contra os horrores da miséria e da indignidade, isto é, contra o terror de ser excluído [e] de ser condenado à ´redundância social` e declarado ´refugo humano`” (2010, p.14). Neste contexto contemporâneo da civilização do capital, a “pedra de toque” são as novas formas de dominação social a assumir configurações peculiares: são formas de dominação cada vez mais abstratas, impessoais, perversamente sutis, mas objetivamente generalizantes a difundir-se na civilização do capital, adentrando em domínios não considerados como capitalistas. É um padrão de dominação abstrata, polifacetada que se apresenta indefinida, não permitindo perceber quem domina e quem é dominado. Em verdade, é um metabolismo social, regido pela lógica da mercantilização sem limites, com a universalização da lei do valor, submetendo, mais e mais, dimensões da vida coletiva – culturais, espirituais e simbólicas – e da natureza ao predomínio do valor de troca. Tal metabolismo social faz sentir seu peso, seu poder, seu domínio como uma forma estrutural que se mostra como alheia aos indivíduos e a todos aprisiona (CARVALHO, 2009a; 2009b). Este padrão de dominação social abstrata, sutil, indefinida, do sistema do capital, articula-se, na contemporaneidade, com as formas de opressão, de discriminação, de exclusão, de expropriação da humanidade no âmbito do racismo, do sexismo, da religião, a encarnar um neocolonialismo. É a hibridização das novas formas de domínio do capital com as formas da opressão da colonialidade do poder, a impor modos de vida, formas de sociabilidade, permeados por riscos e inseguranças (CARVALHO, 2009b). Em verdade, nos circuitos contraditórios do sistema do capital na atualidade, a instabilidade e a fluidez afirmam-se como marcos do tempo presente que Zigmunt Bauman (2001; 2004), em sua crítica radical, circunscreve como “Modernidade Líquida”4: nova fase da modernidade a encarnar uma visão individualizada e privatizada nos percursos da chamada “globalização”, na qual a radical privatização dos destinos humanos segue aceleradamente a radical desregulamentação da indús4. Zigmunt Bauman, ao longo das duas últimas décadas – decáda 90 do século XX e primeira década do século XXI – vem construindo uma radical crítica à modernidade, desvendando as marcas e riscos dos tempos contemporâneos, traduzindo a vida em livros. De fato, desenvolve uma ampla e fecunda produção, buscando, para além das fronteiras disciplinares, compreender o que considera “esse tipo curioso e em muitos sentidos misterioso de sociedade que vem surgindo ao nosso redor” (BAUMAN, 2004, p. 12). Para desvendar esta sociedade, trabalha a metáfora da “liquidez cunhando a expressão ´modernidade líquida` em oposição ao momento histórico anterior que, então, denomina de ´modernidade sólida”. E explicita que o espírito moderno caracteriza-se pela liquefação, como bem definiram os autores do “Manifesto Comunista” ao sustentarem que “tudo que é sólido desmancha no ar”. No entanto, na fase da “modernidade sólida”, o derretimento dos sólidos era no sentido de limpar a área para 21
  • 22. CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE tria e das finanças. É um novo momento da civilização do capital que se caracteriza por extraordinária mobilidade e desregulamentação, volatibilidade, descentralização e desenraizamento, com a liquefação dos padrões de dependência e interação. É uma fase radicalmente temporária, sem perspectiva de permanência e de processos de longa duração (BAUMAN, 2004). É a era histórica do presente, marcada pelo derretimento dos elos que entrelaçam as escolhas individuais e os projetos de ação coletiva ou, mais precisamente, pelo derretimento dos padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente e as ações políticas de coletividades humanas (BAUMAN, 2001). A rigor, esta “modernidade líquida” é perpassada de riscos de natureza distinta a que todos estão expostos, mas que não são visíveis e não podem ser tocados e sentidos. São riscos difusos e globais que ameaçam a humanidade, com profunda capacidade de mudanças na condição da vida humana (BAUMAN, 2004). Em verdade, o “fardo do nosso tempo histórico” – aqui, resgatando a bela metáfora de István Mészáros (2007) – bem revela-se nas inseguranças, instabilidades, crises, desproteção social, violências que marcam o cenário desta civilização do capital no presente. A tendência destrutiva do capital acentua-se e agrava-se no âmbito dos processos de mundialização de cunho neoliberal, não poupando nada nem ninguém. Acirra desigualdades, produz a destruição das pessoas, submetendo-as à tirania do tempo do capital que ignora as necessidades humanas (id.idib.). No seu padrão predatório de expansão, compromete a vida, a cultura, o bem-estar. Investe contra a natureza, gestando uma crise climática mundial com manifestações realmente brutais. Institui a “cultura do descartável” como um modo de ser do nosso tempo. A rigor, constitui-se uma “sociedade da descartabilidade” em que instituições, comunidades, identidades – socialmente construídas – tornam-se cada vez mais precárias e fugazes, dando lugar a “identidades líquidas”, “identidades fluídas” (BAUMAN, 2010). Tem-se profundas mudanças na cultura e nas formas de sociabilidade a viabilizar a expansão sem limites do “capitalismo líquido” que tem entre “suas principais características a passagem de uma sociedade de produtores para uma sociedade de consumidores, como o marcante e dramático acréscimo de uma transmutação, sob a forma de uma ´raça de devedores`” (ROVIROSA-MADRAZO, 2010, p.15)5. novos e aperfeiçoados sólidos. Já nos tempos contemporâneos, o derretimento dos sólidos adquiriu novo sentido: a fluidez permanente, o desenraizamento, com a liquefação dos padrões de referência e de interação. A pretensão de Bauman nessa crítica radical da contemporaneidade é ampliar os horizontes cognitivos dos indivíduos, em um “diálogo sem fim” com a condição humana, na perspectiva de mostrar que o mundo pode ser diferente e melhor do que é. Bauman, ao longo de sua trajetória como sociólogo e filósofo, circunscreve um pensamento emancipatório, no sentido de uma sociedade que teste, permanentemente, sua habilidade de corrigir as injustiças e de aliviar os sofrimentos que ela própria causou (BAUMAN, 2004). E, assim, propugna “o socialismo como uma faca afiada prensada contra as flagrantes injustiças da sociedade” (id.ibid.). 22
  • 23. Alba Maria Pinho de Carvalho Este fardo histórico de inseguranças e instabilidades atinge, de modo peculiar, as juventudes em todo o mundo. Na Europa, juventudes a constituir uma nova geração de excluídos, filhos de classe média e de trabalhadores precarizados, com sérias dificuldades de integração à sociedade: taxas elevadíssimas de desemprego jovem; excesso de qualificação para exercício de trabalhos precários; reformas educacionais emperradas. São juventudes marcadas pelo pessimismo, pela falta de confiança no sistema político, com uma grande insatisfação a explodir em revoltas juvenis bem contemporâneas, caracterizadas pela espontaneidade e articulação via circuitos virtuais e telemóveis. Especificamente no Brasil é gritante o drama das juventudes, com os elevados índices de “mortalidade juvenil” que dizima jovens pobres, sobremodo jovens negros, que perambulam nas “periferias da vida”. Assim, a civilização contemporânea do capital encarna um dilema que nos interpela qual Esfinge de Édipo: “que mundo social é esse que vem se perfilando nas dobras das mutações em curso nas últimas décadas? Com quais parâmetros põe em perspectiva e sob perspectiva crítica os novos ordenamentos sociais urdidos nessa virada dos tempos?” (TELLES, 2007, p.195). A contra-hegemonia em curso no século XXI: a América Latina como referência histórica Neste contexto de expansão ilimitada e destrutiva do capital que gesta uma ordem mais injusta, mais instável e mais violenta, nos marcos da chamada “globalização neoliberal”, emergem movimentos de resistência e lutas, constituem-se experiências emancipatórias, com diferentes formatos e perfis que assumem a construção de “um outro mundo possível”, gestando alternativas. É a tessitura de uma “outra globalização”, “globalização alternativa a partir de baixo”, “globalização contra-hegemônica” (SANTOS, 2002; 2006b). Nesta perspectiva de uma contra-hegemonia, Boaventura de Sousa Santos (2009a) demarca a existência de um contramovimento que denomina de “cosmopolitismo subalterno”, emergente nas quatro últimas décadas6. Sustenta Santos: “O cosmopolitismo subalterno” manifesta-se através das iniciativas e movimentos que constituem a globalização contra-hegemônica. Consiste num vasto conjunto de redes, inciativas, organizações e 5. “Le Monde Diplomatique” – edição brasileira de novembro de 2010 – em editorial de Sílvio Caccia-Bava – ao circunscrever a realidade brasileira do tempo presente, demarca como característica o aumento vertiginoso do consumo, a refletir não só ganhos de renda, mas também um crescente endividamento pessoal que já chega hoje em torno de um quarto dos ganhos mensais, conforme dados do Banco Central. É o risco do superendividamento dos cidadãos/cidadãs consumidores brasileiros. 6. Boaventura de Sousa Santos, em meados da 1ª década do século XXI, avançando na sua crítica ao pensamento moderno ocidental, configura-o como “um pensamento abissal”, com um sistema de distinções visíveis e invisíveis. Incide 23
  • 24. CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE movimentos que lutam contra a exclusão econômica, social, política e cultural gerada pela mais recente incarnação do capitalismo global, conhecida como globalização neoliberal […] Atendendo a que a exclusão social é sempre produto de relações de poder desiguais, estas iniciativas, movimentos e lutas são animados por um ethos redistributivo no sentido mais amplo da expressão, o qual implica a redistribuição de recursos materiais, sociais, políticos, culturais e simbólicos e, como tal, se baseia, simultaneamente, no princípio da igualdade e no princípio do reconhecimento da diferença (SANTOS, 2009a, p.42). E esclarece Santos que “o cosmopolitismo subalterno contém uma promessa real apesar de o seu caráter ser de movimento claramente embrionário” (id.ibid). No final da década de 90, anos 2000, a América Latina desponta, então, como uma referência na construção desta contra-hegemonia nos marcos do cosmopolitismo subalterno, com a emergência de um amplo e pujante movimento social em novas bases sociais e organizativas. Irrompe um vigoroso movimento indígena e camponês e diversos movimentos urbanos populares, desenvolvendo lutas que se constituem marcos históricos nessa onda emancipatória que se espraia pelo continente latino-americano. Nos anos 2000, a América Latina surpreendeu o mundo com seus movimentos sociais populares radicais no Equador, na Bolívia, na Argentina, na Venezuela, no México e no Brasil, ao contestar o modelo de ajuste neoliberal que reinou, de forma dominante, por mais de uma década e que, então, revelava sinais de esgotamento e debacle. Assim, esses novos movimentos sociais, a encarnar novas expressões de antagonismo na civilização do capital (MODONESI, 2009), gestam a chamada “virada à esquerda” no continente latino-americano, com a eleição de governos progressistas a formar um bloco heterogêneo, incluindo governos de esquerda7. Em verdade, a América Latina vive uma nova época, adentrando numa fase histórica de polarização entre a ofensiva do capital e a radicalização das forças progressistas, com destaque para o movimento indígena (SANTOS, 2008c). É a construção de uma contrahegemonia, instaurando uma disputa hegemôsua crítica nas distinções invisíveis, estabelecidas através de linhas que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo “deste lado da linha” e o universo “do outro lado da linha”. Sublinha, então, ser esta uma divisão tão radical que o “outro lado da linha” desaparece enquanto realidade, tornando-se inexistente e é, mesmo, produzido como inexistente. Em sua discussão crítica sustenta que, nos últimos sessenta anos, as linhas globais sofreram dois abalos tectônicos: o primeiro teve lugar com as lutas anticoloniais e os processos de independência das antigas colônias; o segundo tem vindo a decorrer desde os anos de 1970 e 1980. No âmbito desse segundo abalo tectônico, destaca um contramovimento, a gestar um “pensamento pós-abissal”, a que Boaventura Santos deu o nome de “cosmopolitismo subalterno”. 7. Cabe aqui resgatar a concepção de esquerda circunscrita, com lucidez e perspicácia, por Boaventura de Sousa Santos: “Esquerda é o conjunto de teorias e práticas transformadoras que, ao longo dos últimos cento e cinquenta anos, resistiram à expansão do capitalismo e ao tipo de relações econômicas, sociais, políticas e culturais que 24
  • 25. Alba Maria Pinho de Carvalho nica, configurada, com mais nitidez, na Bolívia, no Equador e na Venezuela. A rigor, a América Latina vive uma nova etapa de luta emancipatória: da resistência ao modelo neoliberal da década de 1990 à fase de construção de alternativas e da disputa por uma nova hegemonia, na articulação entre Movimentos Sociais e Governos de Esquerda (CARVALHO, 2009a; 2010b). É a encarnação de uma das teses centrais de Boaventura de Sousa Santos (2000; 2004; 2006a), de que a reinvenção da emancipação passa, fundamentalmente, pelo Sul8. Noam Chomski – uma mais maiores expressões do pensamento crítico nos EEUU9 – ao final da primeira década dos anos 2000, mais precisamente em 2009, declarou, de forma contundente: “América Latina é hoje o lugar mais estimulante do mundo” (2009, p.1). Chomski, então, em 2009, considera o continente latino-americano uma das únicas regiões do mundo onde há uma resistência real ao poder do Império, encarnado na hegemonia dos EEUU. Nessa avaliação do potencial emancipatório das experiências latino-americanas, sublinha a integração que emerge e busca consolidar-se na América Latina, a constituir pré-requisito para a independência, nos marcos da superação da dominância capitalista colonialista norte-americana. O mundo contemporâneo na crise: para onde apontam os movimentos da História? Ao final da primeira década do século XXI, o sistema do capital mostra, de forma espetacular a partir do “coração do Império”, as suas ele gera, e que assim procederam na crença da possibilidade de um futuro pós-capitalista, de uma sociedade alternativa, mais justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das populações, e mais livre, porque centrada na realização das condições do efetivo exercício da liberdade ” (SANTOS, 2009c). 8. No pensamento emancipatório de Boaventura de Sousa Santos, o “Sul” é entendido não como mero conceito geográfico, mas como categorização sociopolítica relativa aos países, segmentos e grupos sociais que sofrem processos de exclusão, de opressão e discriminação, decorrentes da hibridização das formas de domínio do capital e da colonialidade de poder. Dentre esses, destacam-se, nas tessituras do “Sul”, países e grupos sociais latino-americanos que vivenciaram e vivenciam as violências da hibridização capitalismo/ colonialismo e, hoje, assumem projetos emancipatórios. Igualmente, fazem parte do Sul os países e povos árabes que, no início de 2011, encarnam a “revolução árabe”, como expressão dos processos revolucionários no século XXI. 9. Noam Chomski é reconhecido internacionalmente como um dos maiores intelectuais vivos da esquerda, tendo publicado centenas de artigos e livros que abordam temas como mídia, movimentos sociais, política e economia global. De fato, é uma das personalidades mais conhecidas da política da esquerda americana, definindo-se como um “socialista libertário”. Adquiriu grande importância e notoriedade a partir da década de 1960 com o artigo “A responsabilidade dos intelectuais”, publicado em 1969 no livro “O poder americano e os novos mandarins” (Record, 2006), uma compilação de artigos críticos à política externa dos Estados Unidos. Noam define-se politicamente na tradição do anarquismo, identificando-se especialmente com a corrente do Anarcossindicalismo. Sua obra mais recente, de 2011, traduzida para o português, tem como título “Notas sobre o Anarquismo”, publicada pela Hedra. 25
  • 26. CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE contradições e graves limites nos circuitos da crise mundial de 2008, a evidenciar o caráter etéreo da riqueza capitalista (MARQUES, 2009). Inegavelmente, a crise, sempre em aprofundamento, consubstancia uma “importante lição da História” que precisa ser compreendida e devidamente avaliada. Impõe-se, assim, como desafio do nosso tempo histórico, o desvendamento dos significados dessa crise do capital, adentrando no seu sentido, a circunscrever seu caráter agudamente destrutivo (ANTUNES, 2009). Em verdade, está em curso uma crise profunda do próprio sistema do capital em sua totalidade, uma crise de caráter sistêmico e de amplitude global, afetando o conjunto da humanidade. Nesta perspectiva, a análise de István Mészáros, quando da eclosão da crise em 2008, é categórica e definidora: Agora estamos falando de crise estrutural do sistema que se estende por toda parte e viola nossa relação com a natureza minando as condições fundamentais de sobrevivência humana […] A crise atual é profunda […] essa não é apenas a maior crise da história humana, mas a maior crise em todos os sentidos (MÉSZÁROS, 2009, p.130-133). A rigor, essa crise estrutural do capital em tempos contemporâneos é a encarnação da crise do valor, gestada nos circuitos da lógica ilimitada e incontrolável do capital. Logo, as raízes de tal crise encontram-se fincadas no atual estágio de desenvolvimento da civilização do capital, com novas formas de valorização e de acumulação capitalistas, produzindo novas formas de dominação cada vez mais abstratas, sutis e polifacetadas, a espraiar-se em toda a vida social (CARVALHO, 2010a). É fato inconteste que estamos diante de uma crise civilizacional a expressar a própria insustentabilidade do modo de funcionamento do sistema do capital, fundado na sua expansão predatória e sem limites. Assim, esta crise civilizacional manifesta-se em uma combinação de crises que se entrecruzam nos tempos contemporâneos: ambiental, climática, financeira, energética, alimentar, crise do trabalho, crise social, crise humanitária. Afirmam-se como encarnações emblemáticas desse contexto de crises: desemprego estrutural, com a expulsão do próprio processo de trabalho de centena de milhões de trabalhadores/trabalhadoras que se tornam supérfluos ao modo de funcionamento do capital; destruição ecológica, com o uso indiscriminado dos recursos naturais e a privatização de bens comuns: água, ar, biodiversidade; consumo exacerbado como definidor de um modo de ser; descartabilidades, instabilidades e riscos. São manifestações que colocam em xeque a própria civilização do capital, abalando seus fundamentos (CARVALHO, 2010a). 26
  • 27. Alba Maria Pinho de Carvalho Em entrevista em junho de 2011, Mészáros reafirma a exigência de estarmos atentos e vigilantes para a natureza estrutural da crise, sublinhando a necessidade de lidar com tal crise o mais rápido possível. Esclarece ele: …o que devemos encarar não é a crise cíclica tradicional do capitalismo, que vai e vem em intervalos regulares, mas algo radicalmente diferente. É a crise estrutural global do sistema do capital em sua integralidade, que não pode ser conceituada nos termos habituais da “longa onda descendente” (downturn), seguida da confortadora “longa onda ascendente” (upturn), dentro de um período de mais ou menos cinco décadas. Há muito tempo essa caracterização perdeu credibilidade e não há nenhum sinal da fictícia “longa onda ascendente”. A razão pela qual é importante reposicionar nossa atenção nessa direção é porque uma crise estutural requer remédios estruturais radicais para sua solução. O que está em jogo é muito grande porque nossa crise estrutural está se tornando mais profunda, em vez de diminuir. A crise financeira global a que fomos submetidos nos últimos anos é um aspecto importante disso, mas só um aspecto. Não há lugar para a autocomplacência quando trilhões de dólares jogados fora mal puderam arranhar a superfície do problema real (MÉSZÁROS, 2011b, p. 3). É fato inconteste que esta crise estrutural do capital, que marca o tempo presente de “modernidade cada vez mais líquida”, não tem soluções nos circuitos incontroláveis e predatórios de expansão do capital. O neokeynesianismo do Estado, nos marcos do “estatismo privatizado” (ANTUNES, 2009), com bilhões de dólares injetados no sistema bancário global para “salvar o sistema”, mostra-se ineficaz e incapaz para enfrentar ou mesmo contornar a crise que se agrava e se complexifica. Avalia Mészáros esse cenário contemporâneo de desdobramentos da crise estrutural do início da segunda década do século XXI: Na Europa três países estão obviamente falidos – Grécia, Irlanda e Portugal –, enquanto vários outros, incluindo economias maiores como a Itália e o Reino Unido, não estão muito longe disso. É verdade que “Estados soberanos” podem intervir para se proteger, por meio do agravamento de seu próprio endividamento. Mas também há um limite para isso, e ir além pode gerar problemas ainda piores. A dura verdade é que agora nós ultrapassamos as mais otimistas recomendações keynesianas: em vários países o volume de dívida insustentável chegou aos trilhões de dólares (MÉSZÁROS, 2011b, p.2). Slavoj Žižek (2011), em instigante e provocativa obra de contundente crítica ao contexto da civilização do capital neste início do século 27
  • 28. CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE XXI10, sustenta que o sistema do capital, a encarnar a “utopia democrático-liberal”, morreu duas vezes: como “tragédia” no dia 11 de setembro, com o ataque às Torres Gêmeas, a demarcar o colapso da utopia política: como “farsa” no desenrolar da crise mundial a configurar o fim da utopia econômica. Assim avalia Žižek: …entramos num novo período em que a crise, ou melhor, um tipo de estado de emergência econômica, que necessita de todos os tipos de medidas de austeridade (corte de benefícios, redução dos serviços gratuitos de saúde e educação, empregos cada vez mais temporários etc.), é permanente e está em constante transformação, tornando-se simplesmente um modo de viver. Além disso, as crises ocorrem hoje nos dois extremos da vida econômica, e não mais no núcleo do processo produtivo: ecologia (exterioridade natural) e pura especulação financeira. Por isso, é muito importante evitar a solução simples dada pelo senso comum: “Temos de nos livrar dos especuladores, pôr ordem nisso tudo, e a produção continuará”. A lição do capitalismo aqui é que as especulações “irreais” são o real; se as esmagarmos, a realidade da produção sofrerá (Žižek , 2011, p. 7). Mészáros (2001, a) bem circunscreve os graves problemas sistêmicos da crise estrutural em desenvolvimento que não podem ser solucionados no âmbito do sistema sociometabólico do capital. Avalia ele: A dramática crise financeira que experimentamos nos últimos três anos é apenas um aspecto da trifurcada destrutibilidade do sistema do capital: (1) na esfera militar, com as intermináveis guerras do capital desde o começo do impedimento monopolista nas décadas finais do século dezenove, e suas mais devastadoras armas de destruição em massa nos últimos sessenta anos; (2) a intensificação, através do óbvio impacto destrutivo do capital na ecologia, afetando diretamente e já colocando em risco o fundamento natural elementar da própria existência humana, e (3) no domínio da produção material e do desperdício cada vez maior, devido ao avanço da “produção destrutiva”, em lugar da outrora louvada “destruição criativa” ou “produtiva” (MÉSZÁROS, 2011a, p.12-13). Nesta perspectiva é preciso superar vãs ilusões, difundidas por estratégias do sistema do capital, de solução desta crise estrutural e global. E Mészáros interpela-nos: “Mas a última coisa de que hoje precisamos é continuar a ´dar nós nos ventos`, quando temos de enfrentar a gravidade da crise estrutural do capital, a qual exige a instituição de uma mudança 10. Trata-se da obra de Slavoj Žižek intitulada “Primeiro como tragédia, depois como farsa”, publicada em português pela Boitempo em 2011. 28
  • 29. Alba Maria Pinho de Carvalho sistêmica radical” (2009, p.28). Em conferências no Brasil, em junho de 2011, Mészáros reafirma esta convicção da impossibilidade de saída para a crise em curso no interior do próprio sistema do capital, ao enunciar como título de sua fala “Crise estrutural necessita de mudança estrutural”. E, declara no âmbito da sua análise: “o ponto que eu desejo enfatizar é que a crise que temos de enfrentar é uma crise estrutural profunda e cada vez mais grave, que necessita da adoção de remédios estruturais abrangentes, a fim de alcançar uma solução sustentável” (MÉSZÁROS, 2011a). Neste contexto de crise estrutural e impasses impõe-se a questão “o que fazer?”, a exigir o reexame das respostas institucionais tradicionais. Assim, “grupos cada vez maiores de trabalhadores se veem diante do desafio inevitável de reavaliar tanto as formas de tomada de decisão com que se acostumaram no passado quanto as respostas a ela” (MÉSZÁROS, 2011b, p. 3). Em distintos espaços desta civilização do capital em crise, em meio ao cenário hostil de destituição de condições de vida e de violação de direitos, a comprometer a humanidade de amplos segmentos populacionais, emergem manifestações populares a ocupar espaços públicos como “sinais dos tempos”. Boaventura de Sousa Santos, em sua avaliação desses perturbadores sinais dos tempos contemporâneos, usa uma metáfora, deveras reveladora, ao afirmar: Está a ser gerado nas sociedades um combustível altamente inflamável que flui nos subterrâneos da vida coletiva sem que se dê conta. Esse combustível é constituído pela mistura de quatro componentes: a promoção conjunta da desigualdade social e do individualismo, a mercantilização da vida individual e coletiva, a prática do racismo em nome da tolerância, o sequestro da democracia por elites privilegiadas e a consequente transformação da política em administração do roubo “legal dos cidadãos” (SANTOS, 2011b). Em um olhar panorâmico sobre a cena do mundo em crise, nesta segunda década do século XXI – qual um fotógrafo face a uma cena plena de imagens e cores, a exigir a construção de um ângulo para retratá-la em seu instante – vislumbram-se diferentes mobilizações, resistências e lutas, afirmando sujeitos coletivos, em distintos espaços do planeta, com expressões peculiares e inovadoras. É uma diversidade na unidade do “fazer político contemporâneo”. As juventudes recolocam-se na cena contemporânea como sujeitos políticos a tensionar com o sistema do capital em sua expansão incontrolável a destituir condições de vida e trabalho nos marcos do neoliberalismo. Boaventura de Sousa Santos (2011) assim circunscreve esses movimentos juvenis de protestos no contexto da Europa em crise: 29
  • 30. CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE Os protestos ocorrem em vários países europeus […] Todos eles têm em comum o fato de ser pacíficos (houve alguns casos de violência que os próprios movimentos denunciaram) e de adotar como senha a luta por uma democracia real ou verdadeira. Esses dois traços os separam dos protestos de jovens europeus em períodos anteriores, que se caracterizaram por ser violentos ou que tiveram como ordem a destruição da democracia (sobretudo na Alemanha, no período anterior ao surgimento do nazismo). Em termos de seus objetivos, são protestos mais defensivos e, nisso, se distinguem também do movimento estudantil de 1968 […] apesar da retórica mais radical, os jovens de hoje se manifestam para defender a proteção social e os horizontes de vida pessoal e coletiva, que tiveram a geração anterior. O Maio de 68 era regulado por expectativas ascendentes, enquanto os protestos de hoje são regulados por expectativas descendentes (SANTOS, 2011, p.1). Em Portugal, na Espanha e na Grécia jovens assumem movimentos de protestos, gritando estarem “fartos de falta de empregos, corrupção e desesperança”. Ocupam e acampam em praças, utilizando Redes Sociais para mobilizar, convocar e articular-se. Esses jovens desempregados definem-se como geração “ni-ni”: ni estuda, ni trabaja. São jovens que cursaram faculdades, falam três idiomas, portam diplomas de mestrados e doutorados e estão imersos no desemprego e/ou na precarização do trabalho. São jovens europeus com a melhor formação na história de seus países a vivenciarem um dos piores cenários de emprego. São os “indignados europeus a unir-se” em tempos de crise, inseguranças e desproteção… Em suas palavras de ordem, em seus gritos de protesto, denunciam as contradições e paradoxos gestados pelo modo de funcionamento do sistema do capital no presente a se revelar estruturalmente insustentável!... No Chile, os jovens estudantes universitários – atualizando a herança política dos estudantes secundaristas no movimento de 2006 denominado “revolução dos pinguins” – mobilizam-se na luta contra o neoliberalismo a materializar-se, de forma predatória, nos processos de privatização da universidade, a gestar uma “coletividade de jovens endividados” que tiveram de recorrer a um sistema de crédito bancário para custear seus cursos universitários, pagando caro pelo acesso à “mercadoria educação”. Assim, no cenário desta segunda década do século XXI, o movimento estudantil chileno afirma-se como uma experiência de luta política de ampla dimensão e visibilidade, com mobilizações que atravessam o país: paralisação de universidades e colégios, envolvendo os ensinos médio, fundamental e superior. É um movimento a encarnar expressivo potencial emancipatório no confronto com o sistema do capital, em sua expansão incontrolável, a impor a lógica da mercantilização a invadir todos os domínios da vida social. De fato, o movimento estudantil chi30
  • 31. Alba Maria Pinho de Carvalho leno do século XXI, em suas diversas formas de expressão, está a colocar em questão o modelo chileno de ajuste estrutural que, na ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), emerge na América Latina como um “verdadeiro laboratório” do projeto neoliberal. No confronto com o neoliberalismo, o movimento estudantil chileno tem uma proposta política que, a partir do seu móvel de luta da educação pública e de qualidade, coloca em pauta demandas estruturais: reforma tributária; renacionalização do cobre; assembleia constituinte; reforma política, dentre outras questões que se publicizam nas manifestações que tomam o Chile. Em verdade, o movimento dos jovens universitários transforma-se em uma convocatória para a cidadania, fazendo-se expressar o sentimento comum de que o neoliberalismo nada pode oferecer ao povo chileno. Tem o apoio de mais de 70% da população chilena e adesão de diferentes categorias de trabalhadores, fazendo brotar greves e paralisações em todo o país: greve dos mineiros de cobre e dos bancários, paralisação dos taxistas e greve geral, promovida pela CUT do Chile, no mês de agosto. Como expressão do fazer político contemporâneo, o movimento afirma-se como amplo e heterogêneo, com muitas formas de manifestação da indignação e de protesto, articulando ações mais radicais e ações mais lúdicas, capazes de envolver, cada vez mais, jovens e outros segmentos sociais. Nas suas mobilizações, o Movimento Estudantil Chileno (re) constrói a aliança histórica de estudantes e trabalhadores, afirmando a solidariedade como forma de luta. O seu horizonte político são reais mudanças estruturais, não aceitando concessões do governo de medidas pontuais, na linha de “pequenas reformas”. O movimento radicaliza a indignação e a luta na civilização do capital em crise!... Neste jovem século XXI, o confronto com o sistema do capital está na agenda pública. Reatualiza-se a luta pela democracia como forma de organizar a vida social, afirmando a “democracia real” como exigência histórica, bem circunscrita no grito que ecoa nas praças cheias de gente: “outra democracia é possível!”. Vive-se, de novo, a paixão que se expressa no “entusiasmo” a apontar para o “novo fazer político” que parece superar a “velha política”. Eduardo Galeano, ao perambular entre as milhares de pessoas que se aglutinavam no protesto na “Puerta del Sol”, afirma, em entrevista de maio de 2011: Me parece uma experiência estupenda. A verdade é que foi muito emocionante, para mim, estar entre essas pessoas quando cheguei a Madrid e recuperar esta energia, este entusiasmo. Esta vitamina “E” de entusiasmo, que às vezes parecia perdida neste mundo que nos convida ao desânimo. Então acho que é uma experiência estupenda, e segue sendo, e a palavra entusiasmo é uma palavra linda, de origem grega, que significa “ter os deuses aqui dentro”. 31
  • 32. CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE Este cenário de lutas contemporâneas interpela o exercício do pensar crítico como desafio do nosso tempo… “Para onde apontam os movimentos da História neste início do século XXI?” – Eis uma questão que nos instiga a desvendar o presente!... 32
  • 33. Alba Maria Pinho de Carvalho BIBLIOGRAFIA ALVES, G. O não (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2000. ANTUNES, R. Introdução: A substância da crise. In: MÉSZÁROS, I. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo (p. 9-16), 2009. BAUMAN, Z. Vida a crédito: conversas com Citlali Rovirosa-Madrazo. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. ______ . Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005. ______. Entrevista com Zigmunt Bauman. BURKE, Lúcia Garcia Pallares (entrev). São Paulo: Revista Tempo Social, 16, nº 1. ISSN 01032070. Disponível em http://www.scielo. br/scielo.php?pid=s0103-20702004000100015&script=sci_arttext .2004 (acessado em 5 de outubro de 2009). ______ . Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2001. BENJAMIM, C. Atualidade de Marx. Revista Espaço Acadêmico. nº 42. Mensal-ISSN 1519.6168, 2004. ______ . Karl Marx manda lembranças. Folha de São Paulo. São Paulo, 2008. CACCIA-BAVA, S. O futuro da classe média In: Le Monde Diplomatique. Brasil: 40 (4), 3, 2010. CARVALHO, A. M. P. de. Crise Estrutural do Capital no Século XXI: desafios do nosso tempo presente. I Encontro Internacional de Estudos sobre a América Latina. Crise do capital e repercussões para a América Latina. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2010a. ______. Políticas públicas e o dilema de enfrentamento das desigualdades: um olhar crítico sobre a América Latina no século XXI. In: SOUSA, F. J. P. de. Poder e políticas públicas na América Latina. Fortaleza: Edições UFC, 2010b. ______ . Emancipação na América Latina no século XXI: movimentos e lutas nas tessituras de uma contra-hegemonia In: Congresso Luso-Afro Brasileiro de Ciências Sociais. Braga – Portugal, 2009a. ______ . Em busca de ampliação de caminhos na (re)invenção da emancipação social no século XXI: construindo o diálogo crítico Marx/István Mészáros/Boaventura de Sousa Santos. In Seminário de Pós-Doutoramento (Re)invenção da emancipação social no século XX: Caminhos de uma contra-hegemonia. Coimbra – Portugal: CES, 2009b. CARVALHO, A. M. P & GUERRA, E. C. Tempos contemporâneos: trabalhadores superflúos no fio da navalha da lógica do capital. In: Trabalho, capital mundial e formação dos trabalhadores. Fortaleza: Editora Senac Ceará; Edições UFC, 2006. 33
  • 34. CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: INTERPELAÇÕES DO TEMPO PRESENTE CHESNAIS, F. A Nova economia: uma conjuntura própria à potência econômica estadunidense. In: CHESNAIS, F. [et.al]. São Paulo: Xamã (p. 43-70), 2003. CHOMSKY, N. América Latina é hoje o lugar mais estimulante do mundo. Entrevista ao La Jornada. Disponível em http://www.cartamaior.com.br/templates/ materialmostra.cfm? matéria_id =16160. Acessado em 5 de junho de 2009. GALEANO, Eduardo. Entrevista concedida ao Programa Singulares da TV3 espanhola, no dia 23 de maio de 2011. Transcrição e tradução de Cainã Victor, na Revista Fórum. Disponível em http://www.revistaforum.com.br/conteudo/ detalhe_noticia.php?codnoticia =9322. Acessado em 29/09/2011. HISRCH, J. La internacionalización del Estado. In BRAGA, E. M. F. (Org). América Latina: transformações econômicas e políticas. Fortaleza: Editora UFC, 2003. MARQUES, M. S. O sólido tornou-se rarefeito: o líquido se fez realidade. Fortaleza: material de aula. 2009 (mimeo). MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os economistas). . Elementos Fundamentales para la crítica de la economia política (Grundrisse). Vol. 1 e 2, Espanha: Ed. Siglo Ventiuno, 1971. MÉSZÁROS, I. Crise estrutural necessita de mudanças estruturais. Cadernos de Textos Tópicos Utópicos. Prefeitura Municipal de Fortaleza: Conferência proferida em junho de 2011. (2011a). . Europa virou sistema do partido único. Entrevista a Cláudia Antunes. Disponível em Folha. Com.tools.folha.com.br/print?url=http%3A%...Acessado na internet em 6 de junho de 2011). (2001b). . A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2009. . O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2007. . Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo Editorial & Editora da UNICAMP, 2002. . Ir além do capital. In: COGGIOLA, O. (Org.), Globalização e Socialismo. São Paulo: Xamã, 1997. MODONESI, M. Reflexiones sobre el cambio de época em América Latina. Movimientos antagonistas y crises hegemónicas. In: CASTELLANOS, N. L. e COSTILLA, L. O. (Orgs) América Latina y el Caribe, una región en conflicto. Intervencionismo externo, crisis de las instituciones politicas y nuevos movimientos sociales. México: Plaza y Valdés, SA. doc V. 2009. ROVIROSA-MADRAZO, C. Introdução In: BAUMAN, Z. Vida a crédito: conversas com Citlali Rovirosa-Madrazo. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. SANTOS, B. de S. Entrevista realizada por Bárbara Schijman e publicada na re- 34
  • 35. Alba Maria Pinho de Carvalho vista argentina Debate em 01/07/2011. Tradução do blog Boca do Mangue, 2011a. ______ . O caos da ordem. Folha de São Paulo, artigo de 16/08/2011. (2001b). . Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes In SANTOS. B. de S. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almadina & CES (p.p. 23-71), 2009a. . Um Ocidente não-ocidentalista?: a filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal In SANTOS, B. de S. & MENEZES, M. P. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almadina & CES (p.p. 445-486), 2009b. . Por que é que Cuba se transformou num problema difícil para a esquerda. In: Le Monde Diplomatique Brasil. Cadernos da América Latina X. Brasil, Maio, 2009c. ______ . A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, 11-43, 2008a. ______ . Terramoto de longa duração. Revista Visão, Portugal, 2008b. ______ . Latinoamérica bipolar. Entrevista a Raphael Hoelner. Disponível em http://lavaca.org/seccional/ actualidad/1/1708.shtml. Acessado em 13 de junho de 2008, 2008c. ______ . Des-democratização. Revista Visão, Portugal, 2007. ______ . A gramática do tempo: por uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006a. ______ . Uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: SANTOS, B. de S. A gramática do tempo: por uma nova cultura política. São Paulo: Cortez (p. 93-135), 2006b. ______ . Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez Editora, 2004. ______ . Os processos da globalização. In: SANTOS, B. de S. A Globalização e as Ciências Sociais. São Paulo. Cortez, 2002. ______ . A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez Editora, 2000a. ______ . Por que é tão difícil construir uma teoria crítica? In: SANTOS, B. de S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez Editora, 2000b. SANTOS, B. de S. & MENESES, M. P. Introdução. In: SANTOS, B. de S. & MENESES, M. P. (Org). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almadina & CES (p. 9-19), 2009. TELLES, V. da S. Transitando na linha de sombra, tecendo as tramas da cidade (anotações inconclusas de uma pesquisa). In: OLIVEIRA, F & RIZEK, C. S. A. Era da Indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007. Žižek , S. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo: Boitempo, 2011. 35
  • 36.
  • 37. ESTÁ EM DECADÊNCIA O IMPÉRIO AMERICANO? Fernando Marcelo de la Cuadra Apresentação Cumpriu-se já uma década desde que o mundo ficou impactado ante o ataque das Torres Gêmeas do World Trade Center no coração de Manhattan e do Prédio do Pentágono, em Washington. Milhares de análises têm surgido desde então para tentar compreender esses acontecimentos. Numa manhã qualquer, num instante breve e interminável, dois dos maiores símbolos do poderio econômico e militar americano são alvejados e destruídos ante os olhos incrédulos da humanidade, que assistiu estupefata aos ataques a um país que até então parecia intocável e indestrutível. Além disso, durante 2008 se deflagrou a crise financeira provocada pela bolha imobiliária e as hipotecas podres, e que se estendeu rapidamente desde o centro financeiro dos Estados Unidos até o resto do mundo, transformando-se – salvo contadas exceções – numa crise econômica global. Desde Wall Street a crise passou para as economias centrais e depois se alastrou como um câncer para o resto do planeta. Destruiu empregos, aumentou a pobreza e as doenças, exacerbou as tensões e os antagonismos sociais, criou ceticismo acerca da eficácia da governabilidade democrática, levou à experimentação política, complicou os esforços para lidar multilateralmente com os problemas globais, e alimentou os conflitos civis e internacionais. Pelo seu alcance, os impactos da crise não só colocam em risco a economia norte-americana, mas o conjunto de alicerces sobre os quais se sustenta a economia mundial. Nas palavras de Alain Touraine: “Este risco de destruição do mundo pela busca ilimitada do lucro é mais do que o sintoma de uma crise, já que ele pode ser mortal para a sociedade, e primeiramente para o neoliberalismo, que destruiu a ‘sociedade industrial’, suprimindo todos seus atores e reduzindo esta sociedade ao reino do mercado.” (Touraine, 2011, p. 27). Por sua vez, a chamada ‘guerra preventiva’ – impulsionada pelos Estados Unidos contra Afeganistão e Iraque – com trágica sequela de mortes de inocentes e população civil, não somente vem acumulando enormes custos e déficits econômicos sobre a nação do Norte, mas, sobretudo, tem 37
  • 38. ESTÁ EM DECADÊNCIA O IMPÉRIO AMERICANO? gerado consequências nefastas sobre a moral, a confiança e, especialmente, a autoestima do povo norte-americano. Somados estes e outros fenômenos que colocam em questão a existência de uma única “hiperpotência” dirimindo os destinos do mundo, um conjunto de interrogantes continua gerando polêmicas e incertezas. Por exemplo, o que parecia um “simples” ato terrorista tem adquirido profundas conotações e complexos desdobramentos. Os atentados do 11 de setembro representam efetivamente o início da queda da hegemonia estadunidense no mundo? As ações empreendidas pelo gigante do Norte a partir dessa data representam as últimas farpas mortais de um animal em extinção ou significam a retomada do poder americano em escala global? Estamos em presença de um choque de civilizações, onde os Estados Unidos encarnam o pior que existe na civilização ocidental e no capitalismo? Por outra parte, os Estados Unidos continuam a ser a principal potência militar do planeta, seu impugnado dólar ainda cumpre a função de ser a moeda mundial de reserva e, pese ao endividamento, seu vasto mercado de consumidores continua sendo um grande atrativo para a maioria dos países exportadores. Portanto, não existe unanimidade com relação ao declínio desta potência. A extensa bibliografia e as reflexões de diversos especialistas e intelectuais apontam para as mais diversas conclusões. O presente artigo tentará apontar para alguns desses posicionamentos. Especificamente, no primeiro item abordaremos os argumentos daqueles que sustentam o fim da hegemonia estadunidense e na segunda seção, as teses daqueles que relativizam dita decadência. No item final, elaboraremos algumas conclusões a respeito, ainda que elas não sejam peremptórias. Estamos cientes que um tratamento apurado delas poderia se transformar numa agenda de pesquisa de bastante fôlego, precisamente como aquela empreendida pela maioria dos autores citados neste estudo. O declínio da hegemonia dos Estados Unidos A hegemonia “americana”, que se expandiu e consolidou a partir do fim da Segunda Guerra, está sendo contestada há, pelo menos, uma década antes de se consumarem os atentados do dia 11 de setembro. O historiador britânico Eric Hobsbawn (1999) afirma que já no período que marca o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos se encontravam em fase de crise econômica e nem mesmo a hegemonia militar podia ser financiada pelo próprio país. De fato, existem inúmeros antecedentes que demonstram que quando os Estados Unidos se lançaram em 1991 no “empreendimento” conhecido como a “Guerra do Golfo”, grande parte dos recursos para financiar a invasão foi aportada pelos outros 38
  • 39. Fernando MARCELO de la Cuadra países participantes da arremetida, especialmente Alemanha e Japão. Para Immanuel Wallerstein, a decadência do “Império” Americano vem se produzindo lenta e inexoravelmente desde os acontecimentos de maio de 1968, declínio que se tem acelerado a um ritmo vertiginoso nos últimos anos, sendo que os atentados do dia 11 de setembro sinalizam uma inflexão que marca o começo do colapso definitivo. Ainda mais, depois da incursão anglo-americana no Iraque, ficou comprovado que, com todo seu poderio militar, as forças invasoras não conseguem submeter essa relativamente pequena nação do Oriente Médio. Segundo Wallerstein (2005), os Estados Unidos passaram a impor os 95% de sua vontade ao mundo, entre 1945 e 1970, a uma situação de impotência que se manifestou na chegada ao poder dos neo-conservadores (neocons) com George W. Bush, em 2001. Para o autor isso foi uma amostra da debilidade e não – como geralmente se pensa – da fortaleza do Hegemon americano. Para os neocons somente a força militar poderia reverter a decadência de uma potência que já não é temida. Pensava-se que com Barack Obama esse panorama poderia mudar. Mas à luz das ações produzidas durante sua administração, se pode conjeturar que a estratégia militar segue primando por sobre as vias da negociação para resolver os conflitos surgidos em diversos cantos do planeta. As promessas de Obama de acabar com o campo de prisioneiros de Guantánamo, diminuir o contingente de tropas no Afeganistão e Iraque, ajudar o povo Palestino a ter uma pátria soberana ou construir uma política efetiva de relações multilaterais configuram hoje vagas e cinzentas lembranças de um discurso de campanha bem elaborado. Por sua vez, para Arrighi, Hopkins e Wallerstein (1999), as principais causas dessa decadência do poderio americano podem se situar em torno de três fatores que confluíram entre fins dos anos 1960 e começo dos anos 1970, a saber: a concorrência econômica de Japão e Europa; a descolonização e a rejeição do Terceiro Mundo à ordem bipolar USA-URSS; e a emergência de uma nova geração de movimentos antissistêmicos a partir das rebeliões de maio de 1968. No primeiro caso, o poderio econômico, durante muitos anos incontestado, dos Estados Unidos depois da vitória na II Guerra Mundial tem cedido espaço cada vez mais proeminente à Europa (a rigor os países da União Europeia) e Japão. No entanto, Wallerstein enfatiza que a ordem dos três blocos não perdurará por muito tempo e que a tendência pode ser que os Estados Unidos procurem uma aliança com os países do Sudeste Asiático, em especial, China e Japão. Já a Europa deverá aproximar-se da Rússia, considerando seus vínculos históricos. Inclusive, nessa nova configuração mundial poderiam ter um papel relevante os países do Mercosul, com o Brasil liderando esse processo. 39
  • 40. ESTÁ EM DECADÊNCIA O IMPÉRIO AMERICANO? Desta maneira, para o sociólogo estadunidense, o próprio eixo do poder americano será inexoravelmente substituído por nações e blocos que estão em processo de consolidação como poder global, partindo pelos países “emergentes” caracterizados como os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul)1. Em qualquer hipótese, os Estados Unidos deverão compartir seu poder com outras nações ou Blocos. Também se pode fazer a leitura de que a invasão ao Afeganistão e depois ao Iraque responde à necessidade de fortalecer seu poderio através de ações repressivas contra todo e qualquer país que ousa contestar sua hegemonia. Nas palavras de um cientista político, isto representaria um indicador evidente de que os EUA estão em queda, pois “historicamente esse tipo de atitude sempre foi assumido pelas potências em declínio econômico, político e militar” (Mendes Antas, 2003, p. 15). Se concebermos a hegemonia na sua acepção gramsciana, ou seja, como uma dimensão que possui um forte caráter ético-político capaz de mobilizar o resto da população ou nações em torno de um projeto legitimado de dominação, tal parece que os Estados Unidos não conseguem nem sequer impor um substrato moral que oriente o comportamento de seus próprios cidadãos e ainda mais a relação desse povo com o resto do mundo. 2 Nesta leitura a hegemonia americana atual parece sustentada fundamentalmente no uso da força e de algumas modalidades de penetração ideológica (em especial com uso da mídia), mas não constitui um projeto que gere o consentimento necessário para se impor em escala global. 3 Neste ponto, parece relevante também a substituição do padrão dólar pelo sistema do dólar flexível. Efetivamente, tal e como tem sido argumentado por diversos historiadores e cientistas sociais, uma clara expressão de dominação de uma cidade-Estado ou logo Estado-economia-nacional por sobre o resto dos Estados ou “territórios” consiste na imposição, após o triunfo numa guerra ou conquista, de sua moeda (moeda-estatal ou soberana) que se transforma no padrão dominante dos intercâmbios comerciais e financeiros em nível internacional. Nes1. Para alguns especialistas o “S” deveria ser na realidade da Coreia do Sul. 2. Sintomático desta crise é um diagnostico feito por um estudioso desse país que num artigo titulado Um povo sem decência afirma que “Desprovida de valores, a sociedade americana perdeu o respeito pelo outro e se tornou insensível aos problemas dos demais países do Globo” (Servin, 2008). Por sua parte, Mike Davis em “O futuro da decadência e queda dos Estados Unidos” ou Alison Raphael no artigo “O declínio do sonho americano” apontam, respectivamente, para uma crise moral acrescentada pela hipócrita “inocência” estadunidense perante as agressões do resto do mundo ou por uma crise do sistema de proteção social americano que deixa cada vez mais famílias na mais absoluta exclusão e indigência. 3. Estudos recentes indicam que os USA são cada vez mais rejeitados pelo conjunto dos povoso do planeta, fator que inclusive tem sido tratado como tema da maior importância pelas Agências Americanas de Segurança Nacional. Ver, de Janette Habel, “Washington perdió a América Latina?”, em sítio Rebelión.org. 40
  • 41. Fernando MARCELO de la Cuadra te sentido, Fiori salienta que a formação do capital e a imposição de uma determinada moeda se produzem a partir das lutas de conquista e de poder, que permite estimular os mecanismos de troca à sombra dos poderes vitoriosos que exercem sua soberania sobre o resto (Fiori, 2007b, p. 25). Nessa linha argumental, o império da moeda estabelece um marco do projeto hegemônico dos Estados Unidos no pós-guerra, como antes foi da Inglaterra, pois devemos concordar com que a “administração da moeda possui um papel decisivo, tanto na competição inter-capitalista como na luta por poder e hegemonias internacionais” (Fiori, 2001a, p.21). Tanto assim que uma das características apontadas para considerar a supremacia americana é o poder exercido pela sua moeda na década de 1970, hoje pode ser claramente questionada pelo declínio constante da fortaleza do dólar nos mercados das transações internacionais, mas também com algumas subidas conjunturais. Nesse sentido, caberia nos interrogar a respeito de se este rápido descenso ou subida do dólar são produtos de sucessivas crises conjunturais ou se elas bem expressam uma tendência estrutural de longo prazo. Pode-se dizer que estamos ante aquilo que Antonio Gramsci diferenciava entre o que é permanente e o que é “ocasional”, entre o que é “orgânico” e o que é contingente. Para ele é fundamental estabelecer esta distinção na hora de efetuar uma análise da realidade social e ter claro o que é essencial na estrutura e o que só está lá por circunstância.4 A nosso entender haveria que vislumbrar que os problemas da economia americana efetivamente se alastram já por um período relativamente longo, sendo a crise da “bolha imobiliária” e a desvalorização do dólar uma espécie de síntese de um problema endêmico presente nessa economia. Inclusive a própria Guerra do Iraque que tem sido analisada com relação ao controle sobre os recursos petrolíferos da região do Golfo Pérsico pode também ser “justificada” – segundo alguns analistas – como uma tentativa dos Estados Unidos para recuperarem o poder da sua moeda. 5 Uma afirmação a favor desta suposição até poderia (com risco de descontextualização) ser extraída do mesmo Fiori quando salienta que “(...) o poder dentro do sistema capitalista ora as4. “(...) no estudo de uma estrutura, devem-se distinguir os movimentos orgânicos (relativamente permanentes) dos movimentos que podem ser chamados de conjuntura (e que se apresentam como ocasionais, imediatos, quase acidentais). Também os fenômenos de conjuntura dependem, certamente, de movimentos orgânicos, mas seu significado não tem um amplo alcance histórico.” Gramsci, Cadernos do cárcere: introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 36. 5. Para estes especialistas, a decisão das Nações Unidas de utilizar o Euro como moeda oficial para definir os intercâmbios do “Programa Petróleo por alimentos” – executado para combater a crise humanitária registrada com o boicote do pós-guerra do Golfo – representou um duro golpe para a pretensão dos Estados Unidos em manter a regulação do comércio mundial a partir do dólar. 41
  • 42. ESTÁ EM DECADÊNCIA O IMPÉRIO AMERICANO? sume a forma mais abstrata do dinheiro, ora assume a forma mais dura e visível das armas...” (Fiori, 1999b, p. 63). Acompanhando o argumento de Arrighi, Hopkins e Wallerstein, um segundo fator de perda de hegemonia americana pode ser pensado a partir da descolonização e a rejeição da ordem bipolar e da “Guerra Fria” que assolou o mundo durante o pós-guerra. Os movimentos pela libertação do chamado Terceiro Mundo, especialmente na África e Ásia, tentaram se constituir em projetos nacionais com relativa ou total autonomia com relação à distribuição geopolítica do mundo, empreendida por ambos os polos de poder. Desta maneira, “as superpotências contribuíram para a liquidação dos impérios coloniais, uma vez que ambas, ainda que por razões diferentes, apoiaram o processo de descolonização. Os Estados Unidos viam na descolonização uma forma de consolidar sua supremacia sobre o bloco capitalista, expandindo sua influência econômica aos mercados afro-asiáticos, até então sob controle das antigas metrópoles coloniais. A URSS via na descolonização um meio de estender sua influência política a esses países. No contexto global da Guerra Fria, cada uma das superpotências procurava atrair os novos países para sua respectiva esfera de influência” (Canedo, 1986, p. 42). Cientes desta pretensa dominação neocolonial, as lutas de libertação e descolonização dos povos da África e Ásia representaram não somente os anseios de independência das metrópoles coloniais – num mundo onde já não era mais possível manter colônias6 –, mas também um questionamento da legitimidade da “ordem mundial” imposta pelas superpotências em disputa. A Guerra do Vietnã constitui o episódio culminante destas lutas pela independência total dos povos do Terceiro Mundo, uma vez que significou o desfecho trágico da falsa defesa dos valores democráticos que os Estados Unidos gabavam-se de encarnar. Finalmente, de acordo com Arrighi, Hopkins e Wallerstein (1999), um terceiro fator de crise hegemônica foram os acontecimentos de maio de 1968 que deram início a um processo de contestação da ordem capitalista, liderada pelo país do Norte. Nesse texto, os autores supracitados afirmam que o que aconteceu nesse ano somente pode ser comparável com os memoráveis levantamentos de 1848, superando ainda em importância momentos tidos como marcos dentro da história dos movimentos sociopolíticos e de mudanças revolucionarias, tais como a Revolução Francesa e a Revolução Russa. Assim foi como a revolta de 1968 minou a capacidade do Norte de 6. No caso dos protetorados a situação não é tão clara, pois precisamente Alemanha, Japão ou Coreia representaram uma forma de protetorado militar, com apoio econômico (Plano Marshall) e ligações preferenciais com a economia norte-americana. 42
  • 43. Fernando MARCELO de la Cuadra vigiar e intervir nos países “subordinados” do sul, produzindo mudanças importantes nos diversos grupos de status (etários, de gênero, minorias étnicas) que bem se localizam nos “espaços ocultos da vida cotidiana”, possuem uma nova disposição a revelar-se contra a ordem estabelecida. Desde outra perspectiva, também se contesta o papel dominante dos Estados Unidos a partir do argumento de que o processo de globalização em curso, acelerado desde fins dos anos 1980, representa a diminuição do peso dos estados nacionais. Para esses autores (chamados de Hiperglobalizadores), a globalização é um processo que superou as fronteiras nacionais, por meio dos fluxos reais de comércio e produção e dos fluxos vertiginosos de capitais. Para Kenichi Ohmae a globalização nos impele a um mundo sem fronteiras, um mundo em que as forças do mercado são mais poderosas que os Estados Nacionais (Ohmae, 1999). 7 Pelo mesmo, o caráter interdependente, integrado, multipolar do planeta, acaba comprometendo a presença de um núcleo central dominante ou hegemon. Por sua vez, Antonio Negri e Michael Hardt (2001) estabelecem no seu polêmico livro “Império”, que estamos vivendo uma época de “império sem imperialismo”, quer dizer, uma época em que as grandes empresas transnacionais têm superado efetivamente a jurisdição e a autoridade dos estados nacionais, os quais são afastados das funções que lhes eram características, tanto no campo das tarefas propriamente administrativas e políticas, como em outros níveis e domínios da vida social. Estas faculdades “conquistadas” pelos Estados nacionais teriam migrado para outras esferas da sociedade, principalmente para aqueles mecanismos de mando do nível global das grandes empresas transnacionais, que por esse mesmo caráter centrífugo, não estariam necessariamente atreladas a nenhum país ou não teriam uma base estritamente nacional. Para os autores, um indicador da decomposição dos Estados Nacionais é a enorme fragmentação e dispersão de suas agências centrais, numa extensa variedade de novas agências, grupos e corporações entre os que sobressaem os bancos, os centros de planejamento, os organismos multilaterais e outras entidades que procuram legitimar-se num nível transnacional de poder. Assim, tais entes supranacionais restariam à capacidade de um Estado dominante e “imperialista” para fundar sua dominação no resto das nações, destacando-se toda uma série de “corpos jurídico-econômicos”, tais como a OMC, o Banco Mundial ou o FMI (Negri e Hardt, 2001). Em suma, estamos diante da consagração de uma esfera supranacional que acaba por sepultar o protagonismo dos Estados nacionais, o qual não é simplesmente o resultado de uma posição ideológica que se poderia 7. Não é por acaso que o texto mais expressivo dessa tese de Ohmae se chama justamente “O fim do Estado-Nação” 43
  • 44. ESTÁ EM DECADÊNCIA O IMPÉRIO AMERICANO? reverter mediante um ato de vontade política, mas sim um processo de caráter estrutural e, portanto, irreversível. O Império se impõe finalmente por sobre o imperialismo, neste caso, aquele de cunho norte-americano. Ponderando a crise do hegemon Já com outro enfoque interpretativo Maria da Conceição Tavares, Luiz Gonzaga Belluzzo, José Luis Fiori, Carlos Medeiros, Franklin Serrano e um grupo de intelectuais vêm desenvolvendo a tese de que a hegemonia estadunidense não experimenta essa tal decadência.8 Sustentando seu argumento nas dimensões monetária e militar, Tavares e Belluzzo consideram que o poder americano foi capaz de contornar a crise de 1970 através de uma política de afirmação do dólar como moeda forte e da recomposição da liderança militar. Isso era impensável dado o contexto no qual se encontravam os Estados Unidos no início dos anos 1970: “a ruptura do padrão dólar, a derrota no Vietnã e as crises do petróleo balançaram os pilares do poder americano. A maioria dos analistas continuou a proclamar a derrota definitiva da hegemonia americana, mesmo depois de 1985, quando a crise já tinha sido superada e os EUA avançavam na direção de um poder global” (Tavares e Belluzzo, 2004, p. 130). Com o governo de Ronald Reagan a “diplomacia do dólar forte” permitiu que tal moeda se constituísse no metal de reserva e de denominação das transações comerciais e financeiras, o qual – segundo estes autores – promoveu profundas alterações na estrutura e na dinâmica da economia mundial. Assim, a união do poder político-militar e do capital financeiro deu aos Estados Unidos um fôlego e uma dimensão global que não existia até esse momento. Nas palavras de Fiori: Desde o fim do padrão-dólar e da Guerra Fria (...) o mundo nunca esteve entregue de forma mais incontestável ao arbítrio de uma só potência hegemônica que estivesse tão radicalmente orientada pelo seu commitment liberal, e pelo objetivo de construir e sustentar uma ordem internacional baseada em conjunto de regimes e instituições regionais e globais consagradas pela aceitação coletiva, no campo do desarmamento como no do comércio e dos investimentos (Fiori, 2001a, p. 12). Esta tese se apóia na noção de que tanto na esfera monetária como no âmbito militar os Estados Unidos saíram fortalecidos na medida em 8. Esse conjunto de autores há um tempo vem se dedicando a uma agenda de pesquisa orientada em torno de consolidar uma discussão conceitual e interpretação de dinâmica e transformações experimentadas recentemente pelo sistema mundial e seu concomitante impacto sobre as instituições marco do regime internacional capitalista. 44
  • 45. Fernando MARCELO de la Cuadra que – como já foi apontado – conseguiram superar com certo sucesso a crise dos anos 1970. Esta situação viu-se robustecida ainda mais depois da “queda do muro” e o fim do socialismo real. A rigor, com o colapso do bloco comunista e o desmembramento da União Soviética, os Estados Unidos acabaram se transformando na única força militar de alcance planetário. As potências econômicas que secundavam aos EUA na época (ou seja, Alemanha e Japão) não tinham exércitos de envergadura como resultado dos acordos posteriores à II Guerra Mundial. Por sua parte, a China não tinha uma presença marcante no cenário mundial e a Europa tampouco tinha desenvolvido nenhum projeto militar, a não ser seu atrelamento na defesa continental no marco da Guerra Fria, constituindo para isso a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Ambos os fenômenos (o controle monetário e o poderio militar) permitem, portanto, o surgimento de uma “gigantesca” concentração de poder econômico, militar e financeiro por parte dos Estados Unidos nas últimas duas décadas do século XX, que gera por sua vez as condições privilegiadas para construir nos anos 1980, uma nova “narrativa” que aparece como parte da própria dinâmica do desenvolvimento capitalista: a globalização. Na realidade, para os autores citados, a globalização representa uma estratégia de expansão econômica, política, militar e ideológica das grandes potências mundiais e, especialmente, do poder americano que assume a liderança do processo. Tratando de compendiar esse esforço intelectual, Fiori escreveria mais tarde: (...) a [nossa] convicção [é] de que a globalização não foi obra exclusiva dos mercados ou do progresso tecnológico, envolvendo mudanças nas coalizões de poder das grandes potências e o renascimento da crença ideológica liberal (...) que galvanizou o poder do mundo anglo-saxão e viabilizou a retomada da hegemonia norte-americana (Fiori, 2001a, p. 16). Em síntese, esta “globalização americana” expõe evidentemente a dimensão prática expressiva do Poder e da Riqueza Americanos, fundados na relação entre hegemonia monetária, crescimento econômico e expansão territorial. Desta forma, concluem Tavares e Belluzzo, na época atual encontra-se “configurada uma nova anatomia da geoeconomia capitalista. O cérebro é o poder de contenção e de controle geopolítico da superpotência hegemônica e o coração da economia mundial continua sendo sua gigantesca economia continental” (Tavares e Belluzzo, op. cit., p. 137). Em outro âmbito, esses autores levantam uma discrepância significativa com Arrighi, Hopkins e Wallerstein. Este desencontro situa-se 45
  • 46. ESTÁ EM DECADÊNCIA O IMPÉRIO AMERICANO? em torno da própria tese de Hegemonia. Tal como salientam eles, a divergência com Arrighi e seus colegas não é conjuntural, é teórica e ela faz relação com a hipótese que sustenta que no “sistema mundial moderno” sempre vão existir potências hegemônicas sucessivas as quais permitiram a manutenção da ordem política e o bom funcionamento da economia internacional. Dentro dessa perspectiva o “líder” surge como uma espécie de resposta funcional ao problema de ingovernabilidade de um sistema que é intrinsecamente anárquico, pois ele é formado por Estados nacionais soberanos e em permanente disputa. Em síntese, esta visão salienta as contribuições positivas do hegemon para a governança global do sistema. Pelo mesmo, segundo seus detratores, ela não consegue dar conta do movimento contínuo de competição e expansão dos Estados e economias nacionais que já conquistaram a condição de grandes potências que fazem parte do núcleo central de todo o sistema. Por esta razão, tais Estados continuam competindo entre si, mesmo nos períodos em que se percebe uma alta tranquilidade sistêmica. Em outras palavras, o sistema mundial moderno funcionaria como uma sorte de onda em permanente expansão a partir de sua própria dinâmica contraditória e em constante crise. O ponto fraco da hipótese da decadência do poder hegemônico americano não reside tanto na análise dos fatos da conjuntura internacional, quanto no modelo explicativo. O suposto de que o sistema mundial moderno requer a existência de potências hegemônicas se revezando para manter a ordem política e o bom funcionamento da economia, implica que necessariamente deve existir um líder ou hegemon capaz de imprimir-lhe estabilidade e governabilidade (governança global) ao sistema. Diferentemente, para Fiori não existiria esse tal hegemon competente para organizar o sistema a partir de sua liderança. O sistema está num movimento expansivo contínuo que se encontra permeado pela competição e luta pelo poder entre os Estados e as economias nacionais que já conquistaram seu locus de “grandes nações” e que precisam dessa competição constante e até da possibilidade da guerra para se autoreproduzir como potências. Desde a perspectiva do poder global, o sistema mundial é uma maquina de acumulação de poder e riqueza e seu motor é a competição e a guerra entre seus Estados e economias nacionais. Nesse sistema mundial não existem países satisfeitos, todos estão sempre se propondo aumentar seu poder e sua riqueza. Este sistema mundial pode-se representar como um universo em ampliação que se encontra impelido pela luta das grandes potências para conquistar o poder global. Por isso mesmo estão criando, sempre e simultaneamente, ordem e desordem, paz e guerra. 46
  • 47. Fernando MARCELO de la Cuadra O que ordena e estabiliza esse sistema, por mais doloroso que seja reconhecê-lo, não são os hegemons, mas a existência de ‘eixos conflitivos crônicos’ e a possibilidade permanente da guerra. O sistema não acumula poder e riqueza sem a competição das nações e não se estabiliza sem as guerras (Fiori, 2007b, p. 28). Ou seja, uma conceituação a respeito do chamado “Poder Global” mais que referir-se a uma instância ou entidade mundial em particular (como Estados Unidos), ela procura expressar uma modalidade para analisar o funcionamento e as tendências de longo prazo do sistema mundial que se formou a partir da expansão de alguns estados europeus durante o século XVI. Esse tipo de análise privilegia o movimento e as contradições que movimentam esse sistema, impedindo sua estabilização e qualquer forma de governança global estável e em paz perpétua, noção esta que ficou consagrada na sintética formulação de Norbert Elias “o que não sobe, desce”. Por último, a tese do fim do Estado Nacional também é contestada por Fiori em vários textos, partindo de um argumento muito simples. Na hora atual em que se discute a morte do Estado, é precisamente o momento em que temos maior número de nações constituindo-se como tais. Segundo ele, o poder do Estado nação segue organizando-se em torno de um território de caráter eminentemente nacional, razão pela qual fica difícil “anunciar a morte dos Estados na hora exata em que eles se multiplicam e intensificam a sua competição, e onde (...) apesar da retórica globalista, a luta pela democratização das sociedades e pela conquista da cidadania, segue se dando no espaço de poder dos Estados nacionais.” (Fiori, 2007a, p. 119). Em resumo, para Fiori não existe nenhum elemento de peso que faça supor que estamos diante de uma crise ou declínio do poder americano e sim, pelo contrário, nos encontraríamos numa etapa em que os Estados Unidos seguirão competindo pela sua posição privilegiada dentro da estrutura de poder global. E tal como afirma no Prefácio de seu livro “O Poder Global”: Está cada vez mais claro que o centro nevrálgico de nova competição geopolítica mundial envolverá pelo menos duas potências – Estados Unidos e China – que são cada vez mais complementares do ponto de vista econômico e financeiro... (Fiori, 2007b, p. 39) Com efeito, a economia chinesa, que vem experimentando um crescimento econômico constante nos últimos anos – com uma média de aproximadamente 10% – já se encontra instalada no segundo lugar com um 47
  • 48. ESTÁ EM DECADÊNCIA O IMPÉRIO AMERICANO? Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 6,05 trilhões. E as previsões dos especialistas do Fundo Monetário Internacional é que ela se torne a primeira economia mundial em 2016. Considerações finais Um permanente dilema entre os filósofos e cientistas sociais é o de conciliar a realidade tal e como ela é ou aparenta ser (perspectiva positiva) e a realidade como nós queremos que se comporte (perspectiva normativa). Acredito que no debate a respeito do declínio do império americano, muitos dos especialistas que escreveram e escrevem sobre o tema têm se visto fortemente tentados a interpretar a situação atual da hegemonia americana com os “sentimentos” de quem deseja efetivamente que se produza a decadência do gigante do Norte. Mas este sentimento tampouco é recente. Já durante os anos 1980 o historiador inglês Paul Kennedy (1987) tinha vislumbrado a decadência do poder dos Estados Unidos, ainda que com a ressalva de que esse seria apenas um “declínio relativo”, pois – segundo este especialista – ainda com inúmeros percalços no seu caminho e o poderio emergente da China, os Estados Unidos continuarão a ser o país mais poderoso no cenário internacional. No início deste século, Immanuel Wallerstein (2005) radicaliza o argumento de Kennedy afirmando que a decadência do poder americano é evidente e que o problema não estaria tanto em discutir a veracidade da tese, senão principalmente sopesar o impacto que terá o desabamento dessa potência sobre o resto do planeta. Nas palavras deste pensador crítico: “O verdadeiro dilema não é se Estados Unidos estão em decadência como potencia hegemônica, mas se poderá encontrar um modo de cair com elegância, com o menor dano para o mundo e para o próprio país” (Wallerstein, op. cit., p. 39). Já para Noam Chomsky (2011), falar da decadência dos Estados Unidos constituiu-se num lugar comum amplamente difundido. E essa crença é precisamente mais trágica considerando que esse descenso seria, em grande medida, autoinfligido. Entre outros fatores, o financiamento das campanhas por parte das grandes corporações e agências de investimento estaria levando ao enterramento da democracia: “Ao triturar os restos da democracia política, as instituições financeiras estão criando as bases para fazer avançar ainda mais este processo letal” (Chomsky, 2011, p. 4). Contestando a teoria do declínio americano, o próprio George Bush, pai, fazia um otimista e enérgico discurso por ocasião da convenção republicana em agosto de 1988 na qual respondeu simultaneamente a Paul Kennedy e ao seu concorrente democrata, Michael Dukakis: 48