O Renascimento Comercial: expansão do comércio e surgimento das cidades
1. O Renascimento
Comercial
“Entre a cidade e o campo o contraste era profundo. Uma cidade medieval não se
perdia em extensos subúrbios, fábricas e casas de campo. Cercada de muralhas, erguia-
se como um todo compacto,eriçada de torres sem conta. Por mais altas e ameaçadoras
que fossem as casas dos nobres ou dos mercadores, a massa imponente das igrejas
sobressaía no conjunto da cidade.
O contraste entre o silêncio e o ruído, entre a luz e as trevas, do mesmo modo que
entre o verão e o inverno, acentuava-se mais fortemente do que nos nossos dias. A cida-
de moderna mal conhece o silêncio ou a escuridão na sua pureza e o efeito de uma luz
solitária ou de um grito isolado e distante”
in. Huizinga, Johan. O declínio da Idade Média. Pág.10.
trigo, linho, peixes,
sal e muito vinho.
A
partir do século XII o feudalismo A expansão
entrou em declínio cedendo espa
do comércio e das ati-
ço a uma nova sociedade mais di
vidades urbanas con-
nâmica caracterizada pelas transa-
frontou mercadores e
ções comerciais, trabalho assalariado e o aparecimen-
nobres feudais. Nas
to da burguesia. Pouco a pouco, modificaram-se os cidades que cresce-
hábitos e costumes engendrando-se um novo padrão ram próximas aos
de comportamento e uma maneira diferente de ver o feudos era comum a
mundo. O crescimento demográfico do período foi cobrança de taxas
determinante para o desalinho da Ordem Feudal poisabusivas para a libe-
centenas de migraram das zonas rurais em direção as
ração da atividade
nascentes cidades. Gradativamente a população urba-
comercial. Respalda-
na foi aumentando enquanto aumentavam também os dos por leis locais os
negócios e as transações comerciais. senhores feudais se
Como estímulo externo, as Cruzadas possibili-
tornaram um obstá-
taram um fluxo constante de navios que se desloca-culo ao incremento
vam para o Oriente em busca de mercadorias. O con-do comércio.
tato com o Oriente gerou um grande incentivo ao cres- Reagindo às arbitrariedades feudais os merca- No norte da Europa
cimento urbano. As frequentes viagens para o mundodores enfrentaram os nobres no Movimento Comunal existiu um grupo de
oriental funcionaram como um impulso de fora para que se espalhou por várias regiões. cidades que se
dentro, ativando o crescimento urbano. tornou proeminente
As rotas de comércio no século XIII,
denominado Hansa
que traziam mercadorias do Teutônica ou Liga
Oriente, utilizaram Cons- A expressão “Renascimento Comercial” tem sido Hanseática,
tantinopla como entreposto criticada por muitos historiadores quando alegam que sem- centrado na
comercial. Dezenas de navi- Alemanha mas com
pre houve comércio Idade Média, embora tenha se dado em ramificações nas
os transportavam produtos caráter local. A ênfase no renascimento do comércio surgiu regiões vizinhas.
exóticos que eram consumi- de um preconceito com a Idade Média, que foi durante mui- Situado na ilha
dos no Ocidente, por uma eli- to tempo, injustamente apelidada de Idade das Trevas. báltica de Gotland
te de nobres e clérigos, ávida o porto de Visby,
Concordando com a visão crítica ao termo “Renascimento com seus
por novidades. Em troca, os Comercial, vamos aqui usa-lo no seu aspecto formal. armazens de
europeus exportavam para o calcário era um
Oriente tecidos, peles, couro, desses entrepostos
mais importantes.
2. Cresciam as cidades e cresciam
as guildas, que eram associações de
proteção formadas por comerciantes e
artesãos. O diretório das guildas,
escolhido por eleição, esforçava-se por
O Renascimento Comercial
manter a boa qualidade e os preços dos
produtos locais. Uma prova do seu
crescente poder pode ser dada, por
exemplo, pelo monopólio usufruído pelos
tintureiros de Derby, na Inglaterra, “onde
ninguém podia tingir panos até a distância
de dez léguas de Derby, senão em Derby”.
E à medida em que se expandiam os
negócios proliferavam as guildas de
artíficies. Paris, por exemplo, contava em
1292 com 130 profissões regulares”,
inclusive a medicina. Nessa época as
guildas já tinham assumido várias funções
sociais, e até mesmo se haviam associado
para tomar conta do governo da cidade. In.
Anne Fremantale. A Idade da Fé. Coleção
Time-Life. pág 85.
Símbolo das guildas, uma figura real assiste ao
trabalho de um canteiro que talha um capitel e de um carpinteiro que usa um
trado.
A contenda diminuiu quando foi criada a Carta ção de repúblicas, a exemplo de Veneza, Gênova e
de Franquia, espécie de salvo-conduto de liberação do Florença. Na França, foram chamadas de comunas e
comércio, mediante o pagamento de uma taxa fixa anual. na região germânica, cidades-livres.
Com o passar do tempo, as Cartas de Franquia foram O sul da Europa interligava-se ao norte através
ampliadas com o objetivo de rotas terrestres e marítimas. Os navios não se afas-
de assegurar direitos às ci- tavam muito do litoral - navegação de cabotagem -
dades que se emancipa- com receio de enfrentar o mar aberto, principalmente
vam da tutela feudal. no Oceano Atlântico, apelidado de mar Tenebroso. Os
Com o novo acerto foi instrumentos de navegação eram muito precários. Nor-
possível a organização malmente os navegadores orientavam-se pelos astros
de milícias e autono- como faziam seus antepassados desde a Antiguidade.
mia para organizar o Para esses navegadores o gigantesco oceano
governo e a adminis- Atlântico ainda era uma incógnita. Muitos marinhei-
tração. ros acreditavam que se afastando muito do litoral en-
A alforria tornou as cidades “donas do seu pró- contrariam terríveis monstros. Portanto, até o fim da
prio nariz” e a Carta de Franquia tornou-se o rascunho Idade Média, o Mediterrâneo continuaria sendo a prin-
das futuras constituições. Na Itália onde o comércio cipal via de comércio.
era mais intenso, desenvolveram-se as cidades com fei-
O Tempo da História
Séculos XII - XV . FEIRAS
. ECONOMIA MONETÁRIA - TROCAS
Renascimento Comercial . PRODUÇÃO ARTESANAL
. MANUFATURAS
. SURGIMENTO DA BURGUESIA
. CÂMBIO DE MOEDAS NOS BANCOS
CIDADES
3. No que se refere ao comércio, as
cidades de Veneza e Gênova tiveram o
retorno do investimento realizado duran-
te as Cruzadas e tornaram-se ponto de
parada obrigatória dos mercadores de
O Renascimento Comercial
todo o continente. Guardadas as devidas
proporções, Veneza e Gênova tiveram um
potencial equivalente à Nova York e Tó-
quio nos dias atuais. Do outro lado do
continente, no norte da Europa, se desta-
cou a região de Flandres como entreposto
e produtora de tecidos de lã. Nos arredo-
res de Flandres formou-se a Liga
Hanseática ou Hansa Teutônica - agrupa-
mento de 80 cidades produtoras de ma-
nufaturas e detentoras de uma poderosa
esquadra que monopolizou o comércio do mar Bálti- ao grande volume de transações comerciais surgiram
co e do Norte. os cambistas que trocavam moedas utilizando uma es-
pécie de balança, que vinculava o peso ao valor. Aos
poucos a população urbana foi crescendo, no início as
O RENASCIMENTO URBANO cidades mais populosas tinham no máximo 200.000 ha-
bitantes, como é o caso de Veneza, Londres, Gênova,
As cidades da Baixa Idade Média eram exem- Paris, Milão etc.
plo de desorganização e improviso. Apertadas, geral-
mente sujas, sem esgotamento sanitário se amontoa- CORPORAÇÕES DE OFÍCIO Mapa. As rotas
vam em dezenas de casas de madeira e pedra. Algu- de comércio na
mas cidades eram sitiadas por muros, o que piorava o Europa
Durante a Alta Idade Média a produção artesanal Ocidental
problema. As pessoas dividiam o espaço com os ani- se desenvolvia internamente nos feudos, com o objeti-
mais que ficavam soltos nas ruas. Contudo, apesar de vo de abastecer as necessidades domésticas. No
todos os problemas, a vida na cidade era, no mínimo, Renascimento Comercial a produção artesanal urbana
mais promissora que a vida nos feudos. Nas cidades foi suplantando a produção dos feudos, concentrando
pairava um clima de maior liberdade e menor opres- nas cidades um numeroso “exército” de artesãos. Com
são. A poluição ambiental era compensada pela auto- o objetivo de estruturar melhor a produção e venda das
nomia e individualidade do cidadão. mercadorias surgiram nas cidades as Corporações de
Nas cidades surgiram as feiras que se torna- Ofício ou Guildas, englobando artesãos de uma mesma
ram um acontecimento à parte. Variando na frequência área de produção.
duravam em média um mês, atraindo mercadores da
Europa inteira e de vários lugares do mundo. Devido
O período que se tornou conhecido como Baixa Idade
Média caracterizou-se pelo desenvolvimento das cidades, do
comércio e das atividades manufatureiras. Embora no
conjunto da Europa ainda predominasse uma economia
basicamente agrícola, inúmeras regiões já apresentavam
acentuado desenvolvimento comercial e urbano. Essas
mudanças repercutiam na esfera política - com o processo de
fortalecimento do poder real - como nas artes, com o
florescimento de novos temas nos trabalhos artísticos. In
História das Civilizações. Volume 2. Abril Cultural. pág 253
Praça do Mercado, afresco do período medieval
4. A estrutura das corporações se baseava numa Em muitos locais próximos aos grandes cen-
rígida hierarquia: o mestre - normalmente proprietário tros urbanos ocorreu um afrouxamento dos laços feu-
de uma oficina artesanal; o jornaleiro - aspirante ao car- dais favorecendo o acúmulo do capital burguês.
go de mestre e o aprendiz - espécie de iniciante nas Como afirmava Marx; ”A ordem econômica
artes e ofícios. A propaganda das mercadorias era proi- capitalista saiu das entranhas da ordem econômica
O Renascimento Comercial
bida e os salários tinham valor estabelecido pelos diri- feudal. A dissolução de uma produziu os elementos
gentes das corporações, com o objetivo de impedir gran- constitutivos da outra”.
des disparidades.
As inúmeras barreiras da sociedade feudal
não impediram que os burgueses amontoassem
extraordinária riqueza. Não há como compreen-
der a Baixa Idade Média sem associá-la ao
surgimento e expansão dos negócios da burgue-
sia. Normalmente viajavam em grupo e quando
chegavam nos castelos eram obrigados a perma-
necer na área externa, aonde se realizavam as
feiras. O desenvolvimento do comércio desper-
tou a cobiça de vários senhores feudais que pro-
curavam tirar vantagem das novas relações co-
merciais.
Pensava-se, no passado, que a causa
primordial da revolução urbana medieval tivesse
PARA VOCÊ
sido a revivescência do comércio a longa distância.
SABER
Em teoria, mascates itinerantes, que não dispunham
MAIS. de um lugar seguro na sociedade predominante-
mente agrária da Europa, aos poucos se juntaram
em cidades, a fim de prestar uns aos outros uma
proteção de extrema necessidade e criar mercados
para a venda de seus produtos. Na realidade, as
coisas foram muito mais complicadas. Conquanto muitas cidades realmente tenham recebido muito
estímulo do comércio a longa distância - e o crescimento de uma grande cidade como Veneza teria
sido inimaginável sem esse comércio - a origem e a primitiva
vitalidade econômica da maioria das cidades decorreram muito
mais da riqueza das áreas circundantes. Tais áreas
levavam-lhes produtos agrícolas excedentes, matérias-primas
para manufatura e um influxo populacional. Em outras palavras,
o aceleramento da vida econômica em geral foi a principal cau-
sa do crescimento urbano: as cidades existiam em relaciona-
mento simbiótico com o campo, oferecendo mercados e
também artigos fabricados por artesãos, ao passo que viviam
do excedente alimentício rural e cresceram com a migração de
servos ou camponeses desnecessários, que estavam à procura
de uma vida melhor. (Os servos fugidos tinham garantida sua
liberdade caso permanecessem numa cidade um ano e um dia.)
Tão logo as cidades começaram a florescer, muitas se espe-
cializaram em certas atividades. Paris e Bolonha adquiriram riquezas copiosas ao se tornarem sedes
de importantes universidades; Veneza, Gênova, Colônia e Londres fizeram-se centros de comércio a
longa distância; e Milão, Ghent e Bruges especializaram-se em manufaturas. As mais importantes
indústrias urbanas eram as de tecidos. Os fabricantes de tecidos desenvolveram por vezes técnicas
de produção e de investimento em grande escala que são ancestrais do moderno
sistema fabril e do capitalismo industrial. Contudo, cabe salientar que as grandes empresas
industriais eram, de modo geral, atípicas na vida econômica medieval. In Burns, Edward McNall
Burns. História da Civilização Ocidenta. Editora Globo. pág 250/25