O documento apresenta um curso de Instituições de Direito Romano ministrado pelo Professor Thomas Marky. O curso é destinado a iniciantes e apresenta os conceitos fundamentais de forma clara e didática. O curso é dividido em cinco partes abordando Direito Objetivo, Direitos Reais, Direito das Obrigações, Direito de Família e Direito das Sucessões.
1. CURSO DE INSTITUIÇÕES DE DIREITO ROMANO
Thomas Marky
***
DUAS PALAVRAS
Distinto especialista em Direito Romano, tendo convivido na
Itália com sumidades como Riccobono, Arangio-Ruiz e De Francis-
ci, para mencionarmos alguns dentre OS luminares que conheceu,
vem o Professor THOMAS Marky lecionando, com invejável êxito, a
tão árdua e proveitosa ciência de Papiniano, tanto na Faculdade
Paulista de Direito como em nossa Faculdade de Direito do Largo
de São Francisco.
Além do saber notório, possui o Professor Marky inegáveis quali-
dades didáticas, tendo conseguido formar um grupo de jovens discí-
pulos voltados, como ele e graças ao seu exemplo, para os estudos
romanístiCoS em suas relações com o direito atual.
Oferece, agora, o eminente professor à juventude estudiosa brasi-
leira o fruto de seu tirocínio, iniciando-a na justi atque injuSti scientia.
Trata-se de curso de instituições de Direito Romano, destinado
aos principiantes, sem dúvida, mas revelando em suas linhas sóbrias
e claras os sinais nítidos do trabalho orientado por inteligente intuito
pedagógico.
Só um professor, com efeito, experiente e animado pelo vivo
amor ao ensino, ao cabo de vários anos de trabalho e de observa-
ção paciente da psicologia estudantil, consegue elaborar manual digno
do nome, servindo o objetivo de iniciar as inteligências nos elementos
duma ciência. dando-lhes o essencial e eliminando o supérfluo.
"Nada em excesso" já diziam os Sete Sábios. Como tudo, tam-
bém a ciência se adquire por graus. E saber proporcioná-la ao nível
do discente é a marca distintiva do verdadeiro professor.
Por essa razão, temos o prazer de recomendar o curso do Pro-
fessor Marky à cupida legum juventus, certos, por outro lado, de ver
corroborado pelos doutos nosso julgamento a respeito de seus méritos
didáticos.
São Paulo, 15 de março de 1971.
ALEXANDRE A. CORRÊA
Professor catedrático da Faculdade
de Direito da Universidade de
SÃo Paulo.
PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO
Aqui está o fruto de experiências de dois decênios de magistério.
Ao entregá-lo aos acadêmicos de direito, não posso deixar de
expressar a minha profunda gratidão aos amigos Antonio Mercado
Júnior e José Fraga Teixeira de Carvalho, que, com tanta generosi-
dade e competência, me ajudaram a imprimir-lhe não só forma verna-
cular aceitável, como, também, a dar-lhe conteúdo condizente com os
propósitos que nos guiaram.
São Paulo, nos idos de março de 1971.
THOMAS MARKY
ÍNDICE SISTEMÁTICO
Duas palavras
Preládo à primeira edição
INTRODUÇÃO
Utilidade do estudo do direito romano
Introdução histórica
Parte I
PARTE GERAL
CAPITULO 1
2. Direito objetivo. Conceito de direito e suas classificações
CAPITULO 2
Fontes do direito
Costume
Outras fontes do direito
- Leis e plebiscitos
- Senatus-consultos
- Constituições imperiais
- Editos dos magistrados
- Jurisprudencia
Evolução histórica das fontes do direito
CAPITULO 3
Norma jurídica
Aplicação da norma jurídica
Eficácia da norma jurídica no tempo e no espaço
CAPITULO 4
Direito subjetivo
Conceito e classificação
CAPITULO 5
Sujeitos de direito
Pessoa física
Capacidade jurídica de gozo
- Liberdade (Status libertatis)
- Cidadania (Status civitatis)
- Situação familiar (Status familiae)
Capitis deminutio
Outras causas restritivas da capacidade
Pessoa jurídica
CAPITULO 6
Objetos de direito
Conceito
Coisas corpóreas e incorpóreas
Res mancipi et res nec mancipi
Coisas móveis e imóveis
Coisas fungíveis e infungíveis (não-fungíveis)
Coisas consumíveis e inconsumíveis
Coisas divisíveis e indivisíveis
Coisas simples, compostas, coletivas ou universais
Coisas acessórias
Frutos
Benfeitorias
CAPITULO 7
Ato jurídico
Conceito
Capacidade de agir
Classificação dos atos jurídicos
Vício do ato jurídico
- Simulação e restrição mental
-Erro
-Dolo
- Coação
Conteúdo dos atos jurídicos
- Condição
- Termo
-Modo
Representação
Parte II
DIREITOS REAIS
CAPITULO 8
Propriedade
Conceito
3. Limitações da propriedade
CAPITULO 9
História da propriedade romana
Direito primitivo
Propriedade quiritária
Propriedade pretoriana
Propriedade de terrenos provinciais
Propriedade de peregrinos
Unificação dos diversos tipos de propriedade
CAPITULO 10
Co-propriedade
Conceito
CAPITULO 11
Posse
Conceito
História da posse
CAPITULO 12
Aquisição da propriedade
Conceito
Modos originários de aquisição da propriedade
Modos derivados de aquisição da propriedade
Usucapião (Usucapio)
Praescriptio longí temporis
Praescriptio longissimi temporis
Reforma do usucapião por Justiniano
Perda da propriedade
Aquisição e perda da posse
CAPITULO 13
Proteção da propriedade
Rei vindicatio
Actio negatoria
CAPITULO 14
Proteção da posse
Interdictum uti possidetis
Interdictum utrubi
Interdictum unde vi
Interdictum de vi armata
Interdictum de precario
CAPITULO 15
Direitos reais sobre coisa alheia
Conceito
Servidões
Servidões prediais
Servidões pessoais
- Usufruto
-Uso
- Habitação e trabalho de escravos e de animais
Constituição, extinção e proteção das servidões
Superfície e enfiteuse
CAPITULO 16
Direitos reais de garantia
Conceito
Fiducia cum creditore
Pignus
Hypotheca
Efeitos dos direitos reais de garantia
Parte III
DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
CAPITULO 17
Obrigações
Conceito
4. Partes na obrigação
Objeto das obrigações
Efeitos jurídicos da obrigação e responsabilidade pelo ina-
dimplemento
Mora
- Mora do devedor (Mora debitoris, mora solvendi)
- Mora do credor (Mora creditoris, mora accipiendO
- Purgação da mora
Obrigações naturais
CAPITULO 18
Fontes das obrigações
Conceito e evolução histórica
CAPITULO 19
Contratos
Conceito
Contratos formais
Contratos do direito clássico
Contratos reais
- Mútuo (Mutuum)
- Depósito (Depositum)
- Comodato (Commodatum)
- Penhor (Contractus pignoraticius)
Contratos inominados
Contratos consensuais
- Compra e venda (Emptio venditio)
- Locação (Locatio conductio)
- Sociedade (Societas)
- Mandato (Mandatum)
Pacta
Doação
CAPITULO 20
Obrigações "ex quasi contractu
Conceito
- Gestão de negócios (Negotiorum gestio)
- Enriquecimento sem causa
CAPITULO 21
Delitos
Conceito e evolução histórica
- Furto (Furtum)
- Roubo (Rapina)
- Dano, danificação (Damnum injuria datum)
- Injúria (Injuria)
- Dolo (Dolus malus)
- Coação (Metus)
Obrigações ex quasi delicto
CAPITULO 22
Garantia das obrigações
Conceito
- Arras (Arrha)
- Multa contratual
Outras garantias
- Fiança
CAPITULO 23
Transmissão das obrigações
Conceito
(Poena conventionalis)
Delegatio
Procuração em causa própria (Procuratio im rem suam)
Sistema das actiones utiles
CAPITULO 24
Extinção das obrigações
5. Conceito
- Pagamento (Solutio)
- Compensação (Compensatio)
- Novação (Novatio)
- Extinção da obrigação por acordo das partes
- Fatos extintivos das obrigações, independentes da
vontade das partes
Parte IV
DIREITO DE FAMÍLIA
CAPITULO 25
Família
A família romana: conceito e histórico
Pátrio poder
- Aquisição e perda do pátrio poder
CAPITULO 26
Casamento
Conceito do matrimônio romano
Esponsais
Requisitos e impedimentos para contrair matrimônio .
Efeitos do matrimônio
Dissolução do matrimônio
Dote
- Constituição do dote
- Restituição do dote
Doações entre cônjuges
CAPITULO 27
Tutela e curatela
Conceito e histórico
Espécies de tutela
Poderes e obrigações do tutor
Curatela
Parte V
DIREITO DAS SUCESSÕES
CAPITULO 28
Sucessão ("Successio in universum ius")
Conceito e breve histórico
Herança (Hereditas)
Abertura da sucessão (Delatio hereditatis)
Aquisição da herança (Acquisitio hereditatis)
Hereditas jacens e usucapio pro herede
Hereditas - bonorum possessio
CAPITULO 29
Sucessão testamentãria ("Successio secundum tabulas")
Testamento
Capacidade de testar (Testamenti factio activa)
Capacidade de herdar (Testamenti factio passiva)
Formas de testamento
Conteúdo do testamento
Testamentos inválidos
CAPITULO 30
Sucessão legítima ("successio ab intestato")
Conceito e histórico
Sucessão legítima no direito quiritário
Sucessão legítima no direito pretoriano
Sucessão legítima no direito justinianeu
CAPITULO 31
Sucessão necessária ("successio contra tabulas")
Sucessão necessária formal no direito quiritário
Sucessão necessária material
Reformas de Justiniano na sucessão necessária
CAPITULO 32
6. Colação ("Collatio")
Conceito e histórico
CAPITULO 33
Sucessão singular ("Successio Singularis mortis causa")
Conceito
Legado (Legatum)
Fideicomisso (Fideicommissum)
Indice alfabético-remissivo
Indice das fontes
INTRODUÇÃO
UTILIDADE DO ESTUDO
DO DIREITO ROMANO
A importância do estudo do direito romano não precisa ser
explicada, pois é de conhecimento mesmo do leigo que o nosso di-
reito e o de todos os povos do Ocidente derivam do direito romano.
Portanto, ao estudá-lo, vamos às origens do nosso próprio direito
vigente.
Por outro lado, não é simples saudosismo ou preocupação eso-
térica esse retorno às origens do nosso direito. Tem esse estudo um
papel importante no currículo do curso de bacharelado das nossas
Faculdades de Direito.
O direito, como regulamentação do comportamento humano
dentro da sociedade, é também um fenômeno histórico. Suas regras
não são fruto de pura especulação, nem conseqüência de inexoráveis
forças da natureza. Essas regras são produtos, sim, da longa expe-
riência humana e, por isso, para compreendê-las, é muito útil, senão
imprescindível, conhecer sua evolução histórica.
Além dessas considerações teóricas há outras, de valor prático
também, que falam da utilidade, senão da necessidade do estudo do
direito romano no início do curso jurídico.
O curso elementar de direito romano é um curso introdutório.
Corresponde às Institutas de Justiniano (século VI d.C.) e, respecti-
vamente, ao modelo destas, que eram as Institutas de Gaio (século
II d.C.).
Elas eram obras didáticas, visando à iniciação dos estudantes
no aprendizado sistemático da ciência do direito.
O cabeçalho das Institutas de Justiniano traz o título esclare-
cedor de "Instituições ou Elementos... ". Assim, o nosso curso, se-
guindo uma tradição de quase dois milênios, também é um curso
elementar. E nesse papel de disciplina propedêutica, com a função de
introduzir os alunos no estudo do direito (especialmente no do direito
civil), é que o direito romano tem uma utilidade incomparável.
Ele apresenta as categorias jurídicas fundamentais nas quais o
direito moderno se baseia e, por isso, se presta magnificamente a dar
aos principiantes uma visão geral de todo o sistema jurídico, especial-
mente do direito civil. Ao mesmo tempo os inicia na técnica do racio-
cínio jurídico. Tudo isto com a vantagem de explicar as categorias
básicas conforme sua evolução histórica, o que facilita a compreensão.
INTRODUÇÃO HISTÓRICA
O direito romano é o complexo de normas vigentes em Roma,
desde a sua fundação (lendária, no século VIII a.C.) até a codifi-
cação de Justiniano (século VI d.C.). A evolução posterior não será
objeto de nossos estudos, porque a codificação justinianéia foi con-
clusiva: foram recolhidos os resultados das experiências anteriores e
considerada a obra como definitiva e imutável.
Realmente, a evolução posterior dos direitos europeus baseou-
se nessa obra de codificação, tanto assim que os códigos modernos,
quase todos, trazem a marca da obra de Justiniano.
7. Por isso consideramos a codificação de Justiniano como termo
final do período que estudamos.
Nos treze séculos da história romana, do século VIII a.C. ao
século VI d.C., assistimos, naturalmente, a uma mudança contínua
no caráter do direito, de acordo com a evolução da civilização ro-
mana, com as alterações políticas, econômicas e sociais, que a carac-
terizavam.
Para melhor compreender essa evolução, costuma-se fazer uma
divisão em períodos.
Tal divisão pode basear-se nas mudanças da organização política
do Estado Romano, distinguindo-se, então, a época régia (fundação
de Roma no século VIII a.C. até a expulsão dos reis em 510 a.C.),
a época republicana (até 27 a.C.), o principado até Diocleciano (que
iniciou seu reinado em 284 d.C.), e a monarquia absoluta, por este
último iniciada e que vai até o fim do período por nós estudado, isto
é, até Justiniano (falecido em 565 d.C.).
Outra divisão, talvez preferível didaticamente, distingue no es-
tudo do direito romano, tendo em conta sua evolução interna: o
período arcaico (da fundação de Roma no século VIII a.C. até o
século II a.C.), o período clássico (até o século III d.C.) e o pe-
ríodo pós-clássico (até o século VI d.C.).
O direito do período arcaico caracterizava-se pelo seu forma-
lismo e pela sua rigidez, solenidade e primitividade. O Estado tinha
funções limitadas a questões essenciais para sua sobrevivência: guer-
ra, punição dos delitos mais graves e, naturalmente, a observância
das regras religiosas.
Os cidadãos romanos eram considerados mais como membros
de uma comunidade familiar do que como indivíduos. A defesa pri-
vada tinha larga utilização: a segurança dos cidadãos dependia mais
do grupo a que pertenciam do que do Estado.
A evolução posterior caracterizou-se por acentuar-se e desen-
volver-se o poder central do Estado e, conseqüentemente, pela pro-
gressiva criação de regras que visavam a reforçar sempre mais a
autonomia do cidadão, como indivíduo.
O marco mais importante e característico desse período é a codi-
ficação do direito vigente nas XII Tábuas, codificação feita em 451
e 450 a.C. por um decenvirato, especialmente nomeado para esse fim.
As XII Tábuas, chamadas- séculos depois, na época de Augusto
(sécúlo I), fonte de todo o direito (fons omnis publici privatique
iuris), nada mais foram que uma codificação de regras provavelmente
costumeiras, primitivas, e, às vezes, até cruéis. Aplicavam-se exclu-
sivamente aos cidadãos romanos.
Esse direito primitivo, intimamente ligado às regras religiosas,
fixado e promulgado pela publicação das XII Tábuas, já represen-
tava um avanço na sua época, mas, com o passar do tempo e pela
mudança de condições, tornou-se antiquado, superado e impeditivo
de ulterior progresso.
Mesmo assim, o tradicionalismo dos romanos fez com que esse
direito arcaico nunca fosse considerado como revogado: o próprio
Justiniano, 10 séculos depois, fala dele com respeito.
A conquista do poder, pelos romanos, em todo o Mediterrâneo,
exigia uma evolução equivalente no campo do direito também. Foi
aqui que o gênio romano atuou de uma maneira peculiar para a nossa
mentalidade.
A partir do século II a.C. assistimos a uma evolução e reno-
vação constante do direito romano, que vai até o século III d.C.,
durante todo o período clássico. Essa revolução e renovação se fez,
porem, por meios indiretos, característicos dos romanos e diferentes
dos métodos modernamente usados.
A maior parte das inovações e aperfeiçoamentos do direito, no
período clássico, foi fruto da atividade dos magistrados e dos juris-
8. consultos que, em princípio, não podiam modificar as regras antigas,
mas que, de fato, introduziram as mais revolucionárias modificações
para atender às exigências práticas de seu tempo.
Entre os magistrados republicanos, o pretor tinha por incum-
bência funções relacionadas com a administração da Justiça. Nesse
mister, cuidava da primeira fase do processo entre particulares, veri-
ficando as alegações das partes e fixando os limites da contenda,
para remeter o caso posteriormente a um juiz particular. Incumbia,
então, a esse juiz, verificar a procedência das alegações diante das
provas apresentadas e tomar, com base nelas, a sua decisão. Havia
pretor para os casos entre cidadãos romanos - era o pretor urbano
- e havia também, a partir de 242 a.C., pretor para os casos em
que figuravam estrangeiros. Era o chamado pretor peregrino.
O pretor, como magistrado, tinha um amplo poder de mando,
denominado imperium. Utilizou-se dele, especialmente, a partir da
lei Aebutia, no século II a.C., que, modificando o processo, lhe deu
ainda maiores poderes discricionários. Por essas modificações pro-
cessuais, o pretor, ao fixar os limites da contenda, podia dar instru-
ções ao juiz particular sobre como ele deveria apreciar as questões
de direito. Fazia isto por escrito, pela fórmula, na qual podia incluir
novidades, até então desconhecidas no direito antigo. Não só. Com
esses poderes discricionários, podia deixar de admitir ações perante ele
propostas (denegatio actionis) ou, também, admitir ações até então
desconhecidas no direito antigo. Essas reformas completavam, su-
priam e corrigiam as regras antigas (Ius praetorium est, quod praeto-
res introduxerunt adiuvandi vel supplendi vel corrigendi iuris civilis
gratia. D. 1.1.7.1).
As diretrizes que o pretor ia observar eram publicadas no seu
Edito, ao entrar no exercício de suas funções. Como o cargo de pre-
tor era anual, os editos se sucediam um ao outro, dando oportuni-
dade a experiências valiosíssimas.
O resultado dessas experiências foi um corpo estratificado de
regras, aceitas e copiadas pelos pretores que se sucediam, e que, final-
mente, por volta de 130 d.C., foram codificadas pelo jurista Sálvio
Juliano, por ordem do Imperador Adriano.
Note-se bem, entretanto, que esse direito pretoriano nunca foi
equiparado ao direito antigo (ius civile). A regra antiga, pela qual
o pretor não podia criar direito (praetor ius facere non potest), con-
tinuou em vigor. Assim, esse direito pretoriano, constante do Edito
e chamado ius honorarium, foi sempre considerado como diferente
do direito antigo (ius civile) mesmo quando, na prática, o substituiu.
A essa característica peculiar da evolução do direito romano,
temos que acrescentar uma outra, de igual relevância.
A interpretação das regras do direito antigo era tarefa importante
dos juristas. Originariamente só os sacerdotes conheciam as normas
jurídicas. A eles incumbia, então, a tarefa de interpretá-las. Depois, a
partir do fim do século IV a.C., esse monopólio sacerdotal da inter-
pretação cessou, passando ela a ser feita também pelos peritos leigos.
Essa interpretação não consistia somente na adaptação das regras ju-
rídicas às novas exigências, mas importava também na criação de
novas normas.
Tal atividade jurisprudencial contribuiu grandemente para o de-
senvolvimento do direito romano, especialmente pela importância
social que os juristas tinham em Roma. Eles eram considerados como
pertencentes a uma aristocracia intelectual, distinção essa devida aos
seus dotes de inteligência e aos seus conhecimentos técnicos.
Suas atividades consistiam em emitir pareceres jurídicos sobre
questões práticas a eles apresentadas (res pondere), instruir as partes
sobre como agirem em juízo (a gere) e orientar os leigos na realização
de negócios jurídicos (cavere). Exerciam essa atividade gratuitamente,
pela fama e, evidentemente, para obter um destaque social, que os
9. ajudava a galgar os cargos públicos da magistratura.
Foi Augusto que, procurando utilizar, na nova forma de go-
verno por ele instalada, os préstimos desses juristas, instituiu um
privilégio consistente no direito de dar pareceres em nome dele, prín-
cipe: ius respondendi ex auctoritate principis. Esse direito era conce-
dido a certos juristas chamados jurisconsultos (Inst. 1.2.8). Seus pare-
ceres tinham força obrigatória em juízo. Havendo pareceres contras-
tantes, o juiz estava livre para decidir.
O método dos jurisconsultos romanos era casuístico. Examina-
vam, explicavam e solucionavam casos concretos. Nesse trabalho não
procuravam exposições sistemáticas: eram avessos às abstrações dog-
máticas e às especulações e exposições teóricas. Isso não impediu,
entretanto, que o gênio criador dos romanos se manifestasse por inter-
médio dessa obra casuística dos jurisconsultos clássicos.
O último período, o pós-clássico, é a época da decadência em
quase todos os setores. Assim, também no campo do direito. Vivia-se
do legado dos clássicos, que, porém, teve de sofrer uma vulgarização
para poder ser utilizado na nova situação caracterizada pelo rebaixa-
mento de nível em todos os campos.
Nesse período, pela ausência do gênio criativo, sentiu-se a neces-
sidade da fixação definitiva das regras vigentes, por meio de uma
codificação que os romanos em princípio desprezavam. Não é por
acaso que, exceto aquela codificação das XII Tábuas do século V
a.C., nenhuma outra foi empreendida pelos romanos até o período
decadente da era pós-clássica.
Após tentativas parciais de codificação de partes restritas do di-
reito vigente (Codex Gregorianus, Codex Hermogenianus, Codex Theo-
dosianus), foi Justiniano (527 a 565 d.C.) quem empreendeu a gran-
diosa obra legislativa, mandando colecionar oficialmente as regras de
direito em vigor na época.
Encarregou uma comissão de juristas de organizar uma coleção
completa das constituições imperiais (leis emanadas dos imperadores),
que foi completada em 529 e publicada sob a denominação de Codex
(de que não temos texto nenhum).
No ano seguinte, em 530, determinou Justiniano que se fizesse
a seleção das obras dos jurisconsultos clássicos, encarregando dessa
tarefa Triboniano, que convocou uma comissão para proceder ao tra-
balho ingente.
A comissão conseguiu no prazo surpreendente de três anos con-
feccionar o Digesto (ou Pandectas), composto de 50 livros, no qual
foram recolhidos trechos escolhidos de 2.000 livros (com três milhões
de linhas) de jurisconsultos clássicos.
Os codificadores tiveram autorização de alterar os textos esco-
lhidos, para harmonizá-los com os novos princípios vigentes.
Essas alterações tiveram o nome de emblemata Triboniani e
hoje são chamadas interpolações. A descoberta de tais interpolações e
a restituição do texto original clássico é uma das preocupações da
ciência romanística dos últimos tempos.
Paralelamente à compilação do Digesto, Justiniano mandou pre-
parar uma nova edição do Codex, isto por causa da vasta obra legis-
lativa por ele empreendida naqueles últimos anos. Em 534 foi publi-
cado, então, o Codex repetitae praelectionis, o Código revisado, cujo
conteúdo foi harmonizado com as novas normas expedidas no curso
dos trabalhos. Somente temos o texto desta segunda edição do Código
Justinianeu.
Além dessas obras legislativas, Triboniano, Teófilo e Doroteu,
estes últimos professores das escolas de Constantinopla e de Bento,
elaboraram, por ordem de Justiniano, um manual de direito para estu-
dantes, que foi modelado na obra clássica de Gaio, do século II a.C.
Esse manual foi intitulado Institutiones, como o de Gaio, e foi publi-
cado em 533.
10. Depois de terminada a codificação, a qual, especialmente o
Código, continha a proibição de se invocar qualquer regra que nela
não estivesse prevista, Justiniano reservou-se a faculdade de baixar
novas leis.
Nos anos subseqüentes a 535, até sua morte em 565 d.C., Jus-
tiniano publicou efetivamente um grande número de novas leis, cha-
madas novellae constitutiones. A coleção destas, intitulada Novellae,
constitui o quarto volume da codificação justinianéia.
O Código, o Digesto, as Institutas e as Novellae formam, então,
o Corpus Iuris Civilis, nome esse dado por Dionísio Godofredo, no
fim do século XVI d.C.
Foi mérito dessa codificação a preservação do direito romano
para a posteridade.
Parte I
PARTE GERAL
CAPÍTULO 1
DIREITO OBJETIVO. CONCEITO
DE DIREITO E SUAS CLASSIFICAÇÕES
O termo "direito", entre outros, tem dois sentidos técnicos.
Significa, primeiramente, a norma agendi, a regra jurídica. Assim,
falamos de direito romano, de direito civil brasileiro, como com-
plexo de normas. Noutra acepção, a palavra significa a facultas
agendi, que é o poder de exigir um comportamento alheio. Assim
a entendemos quando falamos em "direito à nossa casa", "direito
aos filhos", "direito à remuneração de nosso trabalho". No primeiro
sentido trata-se do direito objetivo e no segundo, do direito subjetivo.
No momento interessa-nos apenas o direito no sentido de di-
reito objetivo, que é o preceito hipotético e abstrato, cuja finalidade
é regulamentar o comportamento humano na sociedade e cuja carac-
terística essencial é a força coercitiva que a própria sociedade lhe
atribui.
A famosa definição romana, pela qual os mandamentos do di-
reito são: viver honestamente, não lesar a ninguém e dar a cada um
o seu (Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere,
suum cuique tribuere, D. 1.1.10), não faz referência a essa impor-
tante característica. Nós, entretanto, ao estudarmos o conceito, não
podemos prescindir da análise dessa sua característica e de sua expli-
cação.
A força coercitiva atribuída à norma jurídica significa que a
organização social, o Estado, interfere para que o preceito seja obe-
decido. Para esse fim, a regra jurídica contém, normalmente, além
do mandamento regulamentador da conduta humana (norma agende,
uma outra disposição: a de estabelecer as conseqüências para o caso
de transgressão da norma. Essa outra disposição da regra jurídica se
chama sanção (sanctio).
A sanção pode ser de dois tipos: de nulidade ou de penalidade.
Pela primeira, a inobservância do preceito legal gera, como conse-
qüência, a invalidade do ato, que será, assim, ineficaz. Por exemplo,
o impúbere não tem capacidade para vender, sozinho, seus bens. Ven-
dendo nessas condições sua casa, o ato será nulo, isto é, sem eficácia
jurídica. Por isso mesmo, tal sanção se denomina restitutiva, pois visa
ao restabelecimento da situação anterior à transgressão. O outro tipo
de sanção é a punitiva, que prevê uma pena para o transgressor.
Comumente a norma jurídica estabelece a sanção de nulidade:
a tal espécie de norma as fontes romanas chamavam lei perfeita (lex
perfecta, Regulae Ulpiani, 1.1). A lex Aelia Sentia, por exemplo, do
ano 4 d.C., declarava nulas as alforrias feitas contrariamente às suas
11. disposições (Gaio 1 .37 e 47).
A lei menos que perfeita (lex minus quam perfecta, Reg. Ulp.
1.2) era, conforme as mesmas fontes romanas, a regra cuja sanção
não previa a anulação dos efeitos do ato transgressor, mas cominava
uma punição. Era o que se dava no caso do casamento de viúva antes
de decorridos 10 meses da morte do marido; o casamento seria válido,
mas os cônjuges sofriam certas restrições no campo do direito
(D. 3.2.1).
Por outro lado, a falta de sanção caracterizava a lei imperfeita
(lex imperfecta), que não cominava nem a nulidade do ato infrin-
gente, nem qualquer penalidade. Por exemplo, a lei Cincia, que, em
204 a.C., proibiu a doação além de certo valor sem estipular sanção
alguma para os transgressores.
Logicamente, a regra de direito pode prever sanção de nulidade
e, também, punição, concomitantemente. À lei desse tipo dá-se hoje
a denominação de lei mais que perfeita. Outros, contudo, enquadram
essa modalidade entre as leis perfeitas. Assim eram as disposições da
lei Julia de vi privata, de 17 a.C., que, proibindo o uso da força,
mesmo no exercício de um direito, declarava nulo o ato e, além disso,
aplicava penalidade: um credor que, fazendo justiça com as próprias
mãos, tomasse pela força, em pagamento de seu crédito, um objeto
pertencente ao seu devedor, perdia o crédito e tinha que devolver o
objeto também.
O direito, no sentido objetivo, pode ser classificado do ponto de
vista histórico e sistemático.
Historicamente, temos que distinguir o ius civile do ius gentium.
Na verdade, a distinção baseia-se na diversidade dos destinatários das
respectivas regras. O antigo ius civile, também denominado nas fontes
como ius Quiritium, destinava-se, exclusivamente, aos cidadãos ro-
manos (Quirites): quod quisque populus ipse sibi ius constituit, id
ipsius proprium est vocatUrque ius civile, quasi ius proprium civitatis
(Gai. 1.1). Por outro lado, as normas consuetudinárias romanas, con-
sideradas como comuns a todos os povos e por isso aplicáveis não
só aos cidadãos romanos (Quirites), como também aos estrangeiros
em Roma, constituíam o ius gentium: id quod apud omnes populos
peraeque custoditur, vocaturque ius gentium, quasi quo iure omnes
gentes utuntur. Populus itaque Romanus partim suo proprio, partim
communi omnium hominum iure utitur (Gai. 1.1, cf. também Inst.
1.2.1).
Para os juristas romanos da época clássica, o ius gentium era um
direito universal, baseado na razão natural (naturalis ratio, Gai. 1.1).
Por outro lado, encontramos na codificação justinianéia outra
distinção que contrapõe o ius gentium ao ius naturale (Inst. 1.2.2).
Este seria constituído de regras da natureza, comuns a todos os seres
vivos, como as relativas ao matrimônio, procriação e educação dos
filhos.
Também havia distinção entre ius civile, de um lado, e ius hono-
rarium, de outro. A distinção baseava-se na diversidade de origem das
respectivas regras. O ius honorarium era o direito elaborado e intro-
duzido pelo pretor que, com base no seu imperium (poder de mando),
introduzia novidades, criava novas regras e modificava substancial-
mente as antigas do ius civile. Essas regras, contidas no edito, eram
as do ius honorarium, do direito pretoriano.
Em contraposição, as regras do ius civile provinham do costu-
me, das leis, dos plebiscitos e, mais tarde, também dos senatus-con-
sultos e constituições imperiais. Assim, nesse contexto, o termo ius
civile abrangia não só o antigo direito quiritário, como, também, o
mais novo ius gentium.
Ainda a respeito da divisão de regras, quanto à sua origem,
pode-se falar de ius extraordinarium, que era o direito elaborado na
época imperial, mediante a atividade jurisdicional (quase legiferante)
12. do imperador e de seus funcionários, que então tinham substituído o
pretor nesse mister.
Por outro lado, examinando as classificações sistemáticas, encon-
tramos a distinção entre direito público e direito privado. O primeiro
regula a atividade do Estado e suas relações com particulares e outros
Estados. O direito privado, por sua vez, trata das relações entre parti-
culares: Publicum ius est quod ad statum rei Romanae spectat, pri-
vatum quod ad singulorum utilitatem pertinet (Inst. 1.1.4 - D.
1.1.1.2).
Relacionada ainda com esta distinção é aquela de ius cogens
e de ius dispositivum (direito cogente e direito dispositivo). Cogen-
te é a regra que é absoluta e cuja aplicação não pode depender da
vontade das partes interessadas. Tem que ser obedecida fielmente; as
partes não podem excluí-la, nem modificá-la. Neste sentido os romanos
diziam: ius publicum privatorum pactis mutari non potest (D. 2.14.38):
o direito público não pode ser alterado por acordo entre particulares.
Assim, para que houvesse compra e venda, precisava-se do acordo das
partes sobre a mercadoria e preço. As partes não podiam alterar essa
regra, celebrando compra e venda sem estipular o preço, por exemplo.
O direito dispositivo, por sua vez, admitia uma autonomia de
vontade dos particulares: suas regras podiam ser postas de lado ou
modificadas pela vontade das partes. Assim, na compra e venda, o
vendedor respondia pelos defeitos da coisa vendida. Essa era uma
regra dispositiva, pois, por acordo expresso, as partes podiam excluir
essa responsabilidade do vendedor.
A distinção entre ius commune e ius singulare referia-se, de um
lado, às regras que visavam a uma regulamentação generalizada, apli-
cável a todas as pessoas e a todas as situações nela previstas (ius
commune). Por outro lado, as regras que valiam somente com relação
a determinadas pessoas ou grupos de pessoas, bem como a situações
específicas, eram do ius singulare. Estas últimas constituíam, portan-
to, exceções às regras gerais e comuns. Por exemplo, as normas rela-
tivas ao usucapião das coisas furtadas (já conhecidas pelas XII Tá-
buas e reafirmadas pela lei Atínia do século II a.C.) eram regras do
ius singulare.
Outra classificação do direito objetivo se baseava na sua forma
de criação. É aquela feita de acordo com as fontes do direito.
CAPÍTULO 2
FONTES DO DIREITO
A produção das regras jurídicas se faz pelas fontes do direito.
Elas são os órgãos que têm a função ou poder de criar a norma
jurídica e, por isso mesmo, se chamam "fontes de produção". Exem-
plo: os comícios (comitia), que votavam as leis em Roma. Por outro
lado, podemos denominar "fontes de revelação" o produto da atividade
dos órgãos que têm aquele poder ou função de legislar. Assim, a
própria regra jurídica, na forma como ela aparece ou se revela.
Exemplo, a lei (lex rogata) resultante de uma proposta feita pelos
magistrados e votada pelos comícios em Roma.
COSTUME
Entre as fontes do direito romano, no segundo sentido, está o
costume, que, no período arcaico, foi quase que exclusivamente a
sua única fonte. O costume (mos, consuetudo, mores maiorum) é a
observância constante e espontânea de determinadas normas de com-
portamento humano na sociedade. Cícero o definiu como sendo apro-
vado, sem lei, pelo decurso de longuíssimo tempo e pela vontade de
todos: quod valunt ate omnium sine lege vetustas compro bavit (De
inv. 2.22.67). Juliano o caracterizava como "inveterado": inveterata
consuetudo (D. 1 .3.32. 1) e Ulpiano como "diuturno": diuturna con-
13. suetudo (D. 1.3.33). De qualquer modo, a observância da regra con-
suetudináría deve ser constante e universal.
OUTRAS FONTES DO DIREITO
Ao tratar das fontes do direito na época clássica, Gaio, nas
Institutas (Gai. 1.2), nem sequer menciona o costume entre elas. Para
ele, as fontes são somente a lei (lex), os plebiscitos (plebiscita), os
senatus-consultos (senatusconsulta), as constituições imperiais (consti-
tutiones principum), os editos dos magistrados (edicta magistratuum)
e a jurisprudência (responsa prudentium).
Leis e plebiscitos
As leis e plebiscitos eram manifestações coletivas do povo. As
primeiras, leges rogatae, tomadas nos comícios, de que só participavam
cidadãos romanos (populus romanus). Os comícios eram convocados
pelos magistrados para deliberar sobre texto de lei por eles proposto.
Os segundos, plebiscita, forma anômala de fonte de direito, eram
decisões da plebe, reunida sem os patrícios. Essas deliberações passa-
ram a ser válidas para a comunidade toda desde que a lei Hortensia,
em 286 a.C., assim determinou.
Interessante observar que são pouquíssimas as leis romanas de
real importância para o direito privado: não mais de 25. Conservou-se
o nome de aproximadamente 800 leis nos 500 anos em que tais
fontes produziram direito.
Senatus-consultos
Os senatus-consultos (senatusconsulta) eram deliberações do
senado, cuja função legiferante foi somente reconhecida no início
do Principado (27 a.C. - 284 d.C.). Na República, os senatus-consul-
tos eram deliberações do senado, dirigidas mormente aos magistrados.
No Principado, eram propostos pelos imperadores e, no início, consis-
tiam, também, em instruções aos magistrados sobre o exercício de suas
funções. Mais tarde, a partir do imperador Adriano (117 - 138 d.C.),
passou-se a aprovar simplesmente, por aclamação, a proposta do impe-
rador (oratio principis), transformando-se, destarte, o senatus-consulto
numa forma indireta de legislação imperial.
Constituições imperiais
As constituições imperiais eram disposições do imperador que não
só interpretavam a lei, mas, também, a estendiam ou inovavam. As
denominações variavam, conforme o conteúdo ou natureza delas:
edicta - ordenações de caráter geral, à semelhança das ordenações
dos magistrados republicanos, de que trataremos logo a seguir; decreta
- decisões do imperador, proferidas num processo; rescripta - res-
postas dadas pelo imperador a questões jurídicas a ele propostas por
particulares em litígio ou por magistrados; mandata - instruções
dadas pelo imperador, na qualidade de chefe supremo, aos funcioná-
rios subalternos.
Editos dos magistrados
Os editos dos magistrados são fonte de direito importantíssima
na República (510 - 27 a.C.). A determinação da regra jurídica a
ser aplicada pelo juiz na decisão de uma questão controvertida cabia
ao magistrado, especialmente ao pretor. Essa função se chamava
jurisdição (jus dicere) e, no desempenho dela, os pretores tiveram
prerrogativas bastante amplas, baseadas no poder de mando, denomi-
nado imperium. Podiam eles, quando julgavam necessário ou oportuno,
denegar a tutela jurídica, mesmo contra as regras do direito quiritário,
ou, inversamente, conceder meios processuais a pretensões que não
tinham amparo legal no mesmo direito. Assim, dependia de seu poder
discricionário a aplicação ou não daquelas regras do direito quiritário.
14. Tinham eles outros meios processuais também para introduzir inova-
ções, a fim de ajudar, suprir e até corrigir as regras do direito
quiritáriO.
Nesse mister, o pretor, tal qual os outros magistrados, promul-
gava seu programa ao assumir o cargo, revelando como pretendia agir
durante o ano de seu exercício. Essa atividade normativa manifesta-
va-se através do edito, como era chamado aquele programa. Com o
edito, na realidade, o pretor criava novas normas jurídicas, ao lado
das do direito quiritário. Essas novas normas pretorianas não podiam
derrogar o direito quiritário, mas existiam paralelamente a ele.
Embora houvesse a mudança anual dos magistrados, o edito
passava a conter um texto estratificado, fruto da experiência dos ante-
cessores, formando o chamado edictum tralaticium. Inovações também
podiam ser introduzidas pelo novo pretor, mediante o edito chamado
repentinum.
A redação definitiva do edito do pretor foi obra do jurista Sálvio
Juliano, por ordem do Imperador Adriano, por volta do ano 130 d.C.
(Edictum Perpetuum Salvii Juliani). Tal compilação representou o
fim da evolução desta fonte de direito.
Jurisprudência
Os pareceres dos jurisconsultos exerceram papel importante na
evolução do direito romano, desde os tempos antigos. As regras con-
suetudinárias do direito primitivo, bem como as das XII Tábuas e
e outras, todas bastante simples e rígidas, tinham que ser interpretadas
para que pudessem servir às exigências de uma vida social e econômica
cada vez mais evoluída. Essa interpretação, nas origens remotas do
direito romano, estava afeta aos pontífices, que eram chefes religiosos.
Mais tarde, porém, passou a ser obra de juristas leigos (prudentes),
conhecedores do direito. Eles inovavam, criavam novas normas, par-
tindo das existentes: isto por meio dà interpretação extensiva destas.
Por exemplo: as XII Tábuas conheceram uma regra que punia, com
a perda do pátrio poder, o pai de família que vendesse três vezes
o filho. Desta regra, a interpretação jurisprudencial criou o instituto
da emancipação. Para isso, o pai deveria vender, formal e ficticia-
mente, três vezes seu filho a um amigo de confiança. Este o libertava
imediatamente após cada venda, com o que o filho voltava automati-
camente para o poder do pai. Após a terceira venda, porém, o filho
libertado já não retomava à sujeição do pai, cujo poder sobre ele
assim se extinguia.
A interpretatio prudentium, entretanto, não foi enquadrada entre
as fontes do direito na época republicana, que somente conheceu
uma influência de fato dos juristas de renome.
O papel oficial dos juristas na atividade produtora de normas
jurídicas começou com o imperador Augusto (27 a.C. - 14 d.C.), que
conferiu a jurisconsultos mais conhecidos e apreciados o privilégio
de darem pareceres sobre questões de direito. Nesse mistér, eles
podiam agir como expressamente autorizados pelo imperador: ius res-
pondendi ex auctoritate principis. Por isso mesmo, esses pareceres
vinculavam o juiz que decidia a causa, a não ser que houvesse pare-
ceres contraditórios de igual valor. Posteriormente, os pareceres dos
jurisconsultos (responsa), versando sobre a aplicação das regras jurí-
dicas aos mais variados fatos da vida, concorreram para a elaboração
dos princípios fundamentais do direito e representaram, desse modo,
a manifestação mais original do gênio criador dos romanos nesse
campo. Durante o Principado, nos primeiros séculos de nossa era,
uma plêiade de ilustres juristas deu sua contribuição grandiosa à ela-
boração do direito de Roma.
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS FONTES DO DIREITO
Historicamente considerando, o costume, as leis e os plebiscitos,
15. com a respectiva interpretação jurisprudencial, representaram as fontes
do direito quiritário (ius civile) na República (510 a.C. - 27 a.C.)
e o edito do pretor, evidentemente influenciado pelos senatus-consultos
antigos, a fonte do direito pretoríano (ius honorarium) na mesma
época.
Essas fontes continuaram formalmente no período do Principado
(27 a.C. - 284 d.C.). Entretanto, decaindo a importância dos comí-
cios legislativos e estratificando-se o edito pretoriano com o Edito
Perpétuo de Sálvio Juliano, a atividade legislativa passou à alçada
do imperador. Ele a exercia, então, pelos senatus-consultos por ele
propostos e simplesmente aclamados pelos senadores. Depois, cada
vez com menor disfarce, o imperador legislava por meio das constitui-
ções imperiais, que eram as normas jurídicas por ele expedidas.
Na época pós-clássica, de organização política monárquica abso-
luta (284 d.C. - 565 d.C.), a única fonte de direito era, pratica-
mente, a vontade do imperador, expressa em suas constituições. O
conjunto de regras de direito por ele editadas chamou-se de leges,
em contraposição ao direito elaborado pelos pareceres dos juriscon-
sultos da época clássica, cuja importância jurídica e validade os impe-
radores reconheceram e que se denominou jura. As compilações pós-
clássicas, culminando com a de Justiniano (527 d.C. 565 d.C.), con-
tinham justamente leges e jura. O Código de Justiniano compõe-se das
constituições imperiais. O Digesto é uma coleção de fragmentos das
obras e pareceres dos jurisconsultos clássicos.
CAPÍTULO 3
NORMA JURÍDICA
APLICAÇÃO DA NORMA JURÍDICA
A norma jurídica contém disposições abstratas a serem aplicadas
aos casos concretos que a vida apresenta.
Por isso, sua aplicação pressupõe o conhecimento perfeito, seguro
e completo da norma jurídica abstrata e dos fatos concretos.
A norma jurídica abstrata é de conhecimento do juiz (iura novit
cur ia). Não a conhecendo, deve procurar conhecê-la.
Para esse conhecimento da norma jurídica o aplicador tem de
proceder, de início, a um trabalho de "crítica", para verificar se a
norma é válida e se o texto é autêntico.
Além dessa "crítica externa" da norma jurídica, o aplicador tem
que procurar estabelecer o verdadeiro sentido e alcance de seu texto.
Essa atividade se chama "interpretação" da regra jurídica. Por ela
se efetua a avaliação das palavras do texto da norma para conseguir
obter-se seu significado verdadeiro e certo.
A "interpretação" pode ser autêntica ou doutrinal. A primeira
é a que se faz mediante uma nova norma jurídica expedida pelo órgão
legiferante competente. A segunda, por meio do trabalho dos cultores
do direito. Pode basear-se no exame gramatical, lógico, histórico ou
dogmático-sistemático do texto e de sua origem.
Quanto aos resultados da "interpretação", pode ela simplesmente
confirmar o sentido (interpretatio declarativa), estendê-lo (interpre-
tatio extensiva) ou restringi-lo (interpretatio restrictiva).
A arte de bem interpretar a norma jurídica é a grande virtude do
verdadeiro jurista: conhecer as leis não é considerar seu texto, mas,
sim, sua força e majestade (scire leges non hoc est verba earum
tenere, sed vim ac potest atem) (Celso, D. 1 .3. 17).
Às vezes não bastam os métodos de crítica e interpretação para
o conhecimento do direito aplicável, porque pode acontecer que não
exista preceito abstrato para um determinado caso concreto. Verifi-
cando-se tal hipótese, o aplicador do direito tem que suprir a lacuna da
norma jurídica. Essa atividade se chama "analogia": por semelhança,
presume-se a vontade do legislador.
16. Chama-se analogia legis quando se estende a aplicação de deter-
minada regra a fatos nela não previstos. Chama-se analogia iuris, por
sua vez, o processo de se criar uma nova norma para ser aplicada a
um caso concreto, com base nos princípios gerais do sistema jurídico
vigente.
Voltando, agora, ao segundo aspecto da aplicação da norma jurí-
dica, pode-se dizer que ela pressupõe o conhecimento objetivo dos
fatos em discussão no caso concreto.
Os fatos são comprovados por todos os meios de prova em
direito permitidos, especialmente por documentos, testemunhas, depoi-
mentos das partes, perícias etc.
Entretanto, às vezes, o direito se contenta com um aconteci-
mento provável, mas não provado, dos fatos e, até, com fatos inverí-
dicos.
No primeiro caso fala-se da presunção e no segundo, da ficção.
Presunção (praesumptio) é a aceitação como verdadeiro de um
fato provável. Aceitação com base numa simples alegação, sem neces-
sidade de prova do fato. Por exemplo, a legitimidade do filho é presu-
mida quando é ele nascido entre 180 e 300 dias depois da convivência
conjugal.
Normalmente a presunção não é absoluta; quer dizer, o contrário
pode ser provado. Em tal hipótese falamos da presunção simples
(praesuniptio iuris tantum), pois, no exemplo, pode o marido apre-
sentar contraprova.
Às vezes, porém, a contraprova não é permitida. É o caso da
presunção de direito (praesumptio iuris et de iure). Por exemplo: a
verdade da coisa julgada ou a presunção de se considerar ilegítimo o
filho nascido além de 300 dias após a dissolução da sociedade conju-
gal pela morte do pai.
Note-se que, na realidade, a presunção simples (praesumptio
iuris) nada mais é que a inversão do ônus da prova: aceita-se uma
situação provável como verdadeira, dispensando-se a comprovação.
Daí decorre que cabe à parte interessada a produção de prova con-
trária para derrubar a presunção.
A ficção é diferente da presunção, pois nela o direito considera
verdadeiro um fato inverídico: fecha conscientemente os olhos diante
da realidade. Assim era, no direito romano, a ficção de considerar o
nascituro como já nascido, sempre que se tratava de seus interesses
(nasciturus pro iam nato habetur, quotiens de commodis ipsius partus
agatur) ou a fictio legis Corneliae, que considerava o cidadão romano
que caía prisioneiro do inimigo e em seu poder falecia como tendo
morrido antes de ser capturado.
EFICÁCIA DA NORMA JURÍDICA
NO TEMPO E NO ESPAÇO
O direito romano destinava-se aos cidadãos romanos, pois ele
se baseava no princípio da personalidade, em contraposição ao do
território, pelo qual o direito se aplica a todos os que residem no
respectivo território. Note-se; entretanto, que os estrangeiros também
podiam estar em relações jurídicas com cidadãos romanos, ou entre
si, no território romano, caso em que o direito a eles aplicável seria
o ius gentium.
A eficácia da regra jurídica se inicia comumente com a promul-
gação, a não ser que ela disponha diferentemente a respeito da data
em que deva entrar em vigor.
A regra geral no direito romano era a da irretroatividade da
norma jurídica, que assim se aplicava apenas aos acontecimentos e
fatos posteriores à sua entrada em vigor (C. 1.14.7). Esse princípio
não era, contudo, absoluto. Admitia-se, também, a possibilidade de
ter a norma efeito retroativo, desde que o legislador assim o quisesse.
Entretanto, os casos já findos, com sentença ou por acordo entre as
17. partes, não podiam estar sujeitos a normas retroativas, pois nessas
hipóteses a lei que retroagisse estaria ferindo direitos adquiridos
(C. 1.17.2.23).
A regra jurídica em vigor é aplicável a todos. A ignorância dela
não isenta ninguém de suas sanções: iuris ignorantiam cuique nocere
(D. 22.6.9. pr.). Não se aplicava, porém, essa norma rigorosa, no
direito romano, aos menores de 25 anos, às mulheres, aos soldados
e aos camponeses (rustici).
A norma jurídica deixa de produzir seus efeitos quando termina
sua vigência, se o prazo estiver nela estipulado. Não havendo estipu-
lação de prazo, revoga-se a norma por uma que lhe seja contrária:
lex posterior revocat priori. A revogação pode dar-se também pelo
costume: quer por regra contrária por ele introduzida, quer pela
simples inaplicação constante da norma (desuetudo). Esta última
forma foi a característica da evolução do direito em Roma. As regras
antiquadas, caindo em desuso, eram praticamente abolidas, ainda que
não expressamente.
CAPÍTULO 4
DIREITO SUBJETIVO
CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO
Direito, no sentido subjetivo, significa a facultas agendi, que
é um poder de exigir determinado comportamento de outrem, po-
der esse conferido pela norma jurídica. Assim, o direito subjetivo
é o lado ativo de uma relação jurídica, cujo lado passivo é a obri-
gação. Por exemplo, a regra que responsabiliza o vendedor pelos
vícios ocultos da coisa vendida é um direito no sentido objetivo. O
direito de pedir rescisão da venda pelo vício descoberto na coisa
recém-comprada é um direito subjetivo do comprador.
Os direitos subjetivos, por sua vez, não têm todos as mesmas
características. Conforme o tipo do poder que representam e, por
outro lado, de acordo com a obrigação que geram, podem ser clas-
sificados. E, com essa classificação, na realidade, fazemos a divisão
da matéria do direito privado romano em conformidade com os con-
ceitos da dogmática moderna e traçamos os planos de nosso estudo.
Em grandes linhas, os direitos subjetivos (e obrigações) são de
dois tipos, decorrentes de relações familiares ou patrimoniais. Os
primeiros incluem os relativos ao casamento, ao pátrio poder e à
tutela e curatela.
Os direitos subjetivos (e obrigações) patrimoniais dividem-se
em dois grupos: os direitos reais e as obrigações.
Os direitos reais são direitos que conferem um poder absoluto
sobre as coisas do mundo externo. Sua característica essencial é
valerem erga omnes: "contra todos". O comportamento alheio que
o titular do direito subjetivo pode exigir é o de todos, que são obri-
gados a respeitar o exercício de seu direito (poder) absoluto sobre
a coisa.
Os direitos obrigacionais, por sua vez, existem tão-somente
entre pessoas determinadas e vinculam uma (o devedor) à outra (o
credor).
Por exemplo, o proprietário tem um direito real sobre o prédio
em que mora. Todos devem respeitá-lo. Por outro lado, o locatário de
um prédio só tem direito obrigacional contra a pessoa que o alugou
a ele. Pode exigir dele que o deixe morar no prédio, mas não tem
direito nenhum contra outros, entre os quais pode estar o verdadeiro
proprietário também.
Naturalmente, há direitos patrimoniais relacionados com os de
família ou deles decorrentes.
As relações e modificações patrimoniais decorrentes do faleci-
mento de uma pessoa, intimamente ligadas também ao direito de
18. família, são tratadas pelo direito das sucessões.
O nosso plano é tratar desses direitos, iniciando pelo estudo dos
direitos patrimoniais, por razões didáticas, e continuando com os de
família e das sucessões.
Antes de examiná-los, porém, é necessário explicar os conceitos
e princípios gerais de nossa ciência, cujo conhecimento é pressuposto
necessário para o bom entendimento da matéria. Assim, estudaremos,
como parte geral introdutória, o sujeito de direito, depois os objetos
de relações jurídicas e, ainda, os fatos jurídicos, que criam, modifi-
cam ou extinguem direitos subjetivos.
A defesa dos direitos subjetivos, que é feita pelo processo, não
será tratada expressamente, mas seus princípios gerais serão mencio-
nados sempre que necessários ou úteis para a melhor compreensão
do assunto.
CAPÍTULO 5
SUJEITOS DE DIREITO
São as pessoas que possam ter relações jurídicas e, portanto,
direitos subjetivos, tanto do lado ativo (poder de exigir o comporta-
mento de outrem), como do lado passivo (obrigação ao referido com-
portamento nessa relação).
Pessoa natural é a pessoa humana. O direito, contudo, reconhece
também personalidade, isto é, a qualidade de sujeito de direito, a
entidades artificiais, que são chamadas pessoas jurídicas.
PESSOA FÍSICA
A pessoa natural, também chamada pessoa física, é o homem.
Sua existência se inicia com o nascimento.
O nascituro não é ainda pessoa, mas é protegido desde a concep-
ção e durante toda a gestação, que o direito presume durar o prazo
mínimo de 180 dias e o máximo de 300 dias (praesumptio iuris et
de jure). Já o direito romano conheceu essa proteção: considerava o
nascituro como já nascido (ficção), para fins de reservar-lhe vanta-
gens: nasciturus pro iam nato habetur, quotiens de commodis ipsius
partus agatur (cf. Gai. 1.147 e D. 1.5.7).
O feto tem que nascer com vida e com forma perfeita. Não
é pessoa o nati-morto. Por isso havia discussões entre os jurisconsultos
romanos sobre o que significava sinal de vida do parto: seriam neces-
sários vagidos ou bastariam quaisquer movimentos do corpo? O
aborto e o monstro não eram considerados pessoas para fins de direito.
Extingue-se a pessoa física com a morte do indivíduo. Sua veri-
ficação não dependia de formalidades no direito romano, que não co-
nhecia o registro civil como nossa época. Desconhecia, também, o
direito romano, a declaração e a presunção de morte pelo desapareci-
mento durante longo tempo. Quem tivesse interesse relacionado com
o falecimento de alguma pessoa teria que produzir a respectiva prova.
No direito justinianeu estabeleceram-se regras para o caso de
várias pessoas, principalmente da mesma família, perecerem em um
mesmo acidente. Presumia-se que o filho impúbere morrera antes do
pai e o filho púbere depois (D. 34.5.9, D. h.t. 23). Essa presunção
era simples (praesumptio iuris tantum), admitindo prova em contrário.
CAPACIDADE JURÍDICA DE GOZO
Capacidade jurídica de gozo, também chamada capacidade de
direito, significa a aptidão do homem para ser sujeito de direitos e
obrigações. Modernamente todo homem tem capacidade de direito,
desde o nascimento. Não era assim no direito romano, pois nele se
distinguiam diversas categorias de homens.
Para ter a completa capacidade jurídica de gozo, isto é, para
ter a idoneidade de ter direitos e obrigações, era necessário, no di-
19. reito romano, que a pessoa fosse: 1.o) livre; 2.o) cidadão romano; e
3.o) independente do pátrio poder (sui iuris, paterfamilias).
Verifiquemos, pois, esses três requisitos, examinando a liberdade
(status libertatis), a cidadania (status civitatis) e a situação familiar
(status familiae), pressupostos da capacidade jurídica de gozo em
Roma.
Liberdade (Status libertatis)
Os homens podiam ser livres ou escravos, conforme as regras
do direito romano.
Eram livres aqueles que não eram escravos. Esses últimos não
podiam ser sujeitos de direito; eram apenas objeto de relações jurí-
dicas. Não podiam ter direitos ou obrigações, nem, tampouco, rela-
ções familiares no campo do direito.
A escravidão era um instituto reconhecido por todos os povos
da antiguidade. Sua origem vem da guerra: os inimigos capturados
passavam a ser escravos dos vencedores. Mas não só os prisioneiros
de guerra. Todos os estrangeiros que pertencessem a um país que não
fosse reconhecido por Roma, ainda que não estivesse em estado de
guerra, eram considerados escravos, se caíssem no poder dos romanos.
O mesmo se dava com o romano que caísse em mãos do inimigo. Mas
o cidadão romano que se tornava prisioneiro de guerra do inimigo, ao
voltar à pátria, recuperava automaticamente a liberdade e todos os
direitos que tinha antes de ser capturado (D. 49.15.5.2, D. 41.1.7 pr.).
Isso se chamava ius postliminii.
Outra fonte da escravidão era o nascimento. Era escravo o filho
de escrava, independentemente da classe social do pai (livre ou escra-
vo). Foi somente o direito justinianeu que concedeu o favor da liber-
dade ao filho de escrava que tivesse estado em liberdade em qualquer
momento da gestação. Isso com base na ficção estabelecida pela
regra já mencionada, isto é, a de que o nascituro era considerado co-
mo já nascido (Inst. 1.4 pr., D. 1.5.5.2).
Havia outras fontes da escravidão, porém de menor importância.
Assim é que alguém podia ser reduzido à condição de escravo a
título de pena, ou por insolvência. O mesmo acontecia no direito
antigo com o filiusfamilias vendido pelo pai fora dos limites da cidade
de Roma. O direito clássico considerou os filhos assim vendidos pelo
pai não mais como escravos, mas sim em situação especial (in causa
mancipii). Posteriormente, Justiniano aboliu o instituto por completo.
Quanto ao conteúdo da escravidão, escravo não podia ser su-
jeito de direitos, por lhe faltar a capacidade jurídica de gozo. Não
podia ter direitos privados nem públicos. Sua união conjugal (contu-
bernium) não era casamento no sentido jurídico romano. Não havia,
assim, entre ele, a mulher e os filhos, relações de parentesco, para
fins de sucessão e outros. Não tinha patrimônio e tudo que adquiria
pertencia ao dono (Gai. 1.52). Este tinha sobre ele poderes tão
amplos como sobre as demais coisas de sua propriedade. Podia aliená-
lo; em princípio, até matá-lo. Entretanto, mesmo assim, a condição
humana do escravo o distinguia da das outras coisas do patrimônio
do dono. O direito romano reconheceu sempre a personalidade humana
do escravo (persona servilis). Ele também participava, desde as ori-
gens, do culto religioso da família. Seu túmulo era lugar sagrado, à
semelhança do dos livres. Matar um escravo era crime, a que, já na
República, correspondia a pena pública do homicídio, pela lex Come-
lia de sicariis. No período imperial, ao dono foi proibido seviciar os
escravos. Podiam estes impetrar a proteção dos magistrados (Gai:
1.53). Do ponto de vista patrimonial, verificou-se, também, uma evo-
lução favorável ao escravo. Já na República o escravo podia possuir
um pequeno pecúlio, cedido pelo seu dono, que ele geria livremente.
Legalmente o pecúlio continuava a pertencer ao dono, mas na prática
estava sendo administrado pelo escravo, como se fosse dele.
20. A condição de escravo era permanente. O escravo sem dono,
por qualquer razão que fosse (por exemplo, por ter sido abandonado),
não se tomava livre. Continuava escravo, escravo sem dono (mes
nullius).
A atribuição da liberdade ao escravo fazia-se, ordinariamente,
por meio de um ato voluntário do dono e se chamava manumissão.
Havia, contudo, a possibilidade de o escravo obter a liberdade por
direta disposição de lei.
O direito quiritário (ius civile) conheceu três formas de manu-
missão, pelas quais o dono conferia a liberdade a seu escravo: a ma-
numissio vindicta, a manumissio censu e a manumissio testamento.
A manumissio vindicta nada mais era que a utilização do pro-
cesso judicial em que se discutia a questão de liberdade. É muito
instrutivo examinar em que este consistia.
O problema vital da liberdade de uma pessoa era objeto de um
processo, que se chamava vindicatio in libertatem ou vindicatio in
servitutem, conforme se visasse a declaração da liberdade de uma
pessoa que servia como escravo, ou da condição de escrava de uma
pessoa que vivesse como livre. Para isso era necessário que a pessoa,
de cuja liberdade se tratasse, fosse defendida por um terceiro, cidadão
romano, capaz, chamado defensor da liberdade (adsertor libertatis).
Assim, as partes no processo eram o dono (que alegava ser escrava
a pessoa envolvida) e o defensor da liberdade desta. A questão era
resolvida pelo juiz a quem o pretor remetia o caso para decisão.
Na manumissio vindicta o dono utilizava esse processo. Pedia
a um amigo que intentasse uma vindicatio in libertatem perante o
pretor, como defensor da liberdade. Quando o defensor declarava sua
fórmula, alegando que o escravo era livre: Hunc ego hominem ex iure
Quiritum liberum esse aio, tocava-o ao mesmo tempo com a vindicta
(varinha), sinal do poder. O dono não contestava e o silêncio dele
era tido, processualmente, como confissão ou admissão da veracidade
das alegações da outra parte. Em face disto, o pretor declarava livre
o escravo, sem remeter o caso ao juiz para ulteriores averiguações e
decisão final.
Posteriormente, as formalidades tão complicadas da manumissio
vindicta foram simplificadas, passando ela a ser uma declaração sim-
ples mas solene do dono perante o pretor e pela qual se conferia a
liberdade ao escravo (Gai. 1.20, D. 40.2.23).
A manumissio testamento, ou alforria testamentária, já era conhe-
cida pelas XII Tábuas. O testador podia determinar no seu testa-
mento que, com sua morte, o escravo fosse livre: Stichus servus meus
liber esto (Gai. 2.267).
A manumissio censu processava-se mediante a inscrição, com
autorização do dono, do nome do escravo na lista dos cidadãos livres
da cidade. A lista era elaborada pelos censores a cada cinco anos.
Além desses modos de alforria do direito quiritário, o pretor
reconhecia outros, sem solenidades. Tais eram a alforria feita perante
testemunhas (manumissio inter amicos), por escrito (per epistulam),
fazendo-se sentar o escravo à mesa (per mensam), colocando-se-lhe o
chapéu (per pileum). Tais modos também conferiam a liberdade.
Mas enquanto a alforria, realizada por um dos modos do direito
quiritário e praticada pelo dono ex jure Quiritum, sem contrariar as
restrições legais impostas ao direito de manumitir, conferia, além da
liberdade, também a cidadania romana, a alforria pretoriana colocava
o escravo libertado numa situação inferior. Neste caso, o liberto pas-
sava a ter a posição de latino, por força da lei Junia Norbana (19
d.C.), sendo chamado latino Juniano.
A legislação de Augusto introduziu reformas em matéria de
alforria, restringindo-a consideravelmente. A lex Fufia Caninia (2
a.C.) limitou o número dos que podiam ser alforriados em proporção
com o total dos escravos pertencentes ao dono (Gai. 1.42-43). A lex
21. Aelia Sentia (4 d.C.) foi além: restringiu o direito de alforria, condi-
cionando-o a uma certa idade do dono e dos escravos, declarando,
por outro lado, nulas as manumissões praticadas em prejuízo dos
credores do dono (Gai. 1.18 e 37).
O escravo libertado se chamava liberto (libertinus ou libertus).
Seus direitos políticos eram limitados. No campo do direito privado,
encontrava-se sob o patronato do ex-dono. O patronato implicava
uma relação de interdependência entre o ex-dono, patrono, e o es-
cravo, alforriado, liberto e até uma espécie de sujeição deste àquele.
Do patronato decorriam direitos e obrigações recíprocas, mas
nem sempre equivalentes, entre as duas partes. Essa relação de patro-
nato subsistiria enquanto o liberto vivesse, não se transmitindo, po-
rem, aos seus herdeiros. Por parte do patrono, entretanto, a relação
passava aos filhos, no caso de ele morrer antes do liberto.
Quanto ao conteúdo do patronato, incluía ele, primacialmente
o dever recíproco de prestar alimentos no caso de necessidade. O
liberto passava a ter o nome do patrono e devia a ele respeito e reve-
rência contínua (obre quium). Por isso, era-lhe proibido intentar ações
criminais ou infamantes contra o patrono. E a propositura de qual-
quer outra ação contra ele exigia a autorização prévia do magistrado.
Além disso, o liberto devia certos serviços ao seu patrono (operae).
Finalmente, o patrono tinha um direito de sucessão legítima (bona)
nos bens do liberto, visto que o liberto não tinha legalmente nem
ascendentes nem parentes colaterais. O pretor garantia ao patrono a
metade da herança do liberto que morresse sem deixar filhos ou que
os deserdasse em vida. Essa metade da herança cabia ao patrono,
mesmo contra outros herdeiros estranhos, nomeados em testamento
pelo liberto.
Com o favor imperial chamado natalium restitutio (D. 40.11.1),
cessam totalmente os direitos do patronato e o liberto adquire, retroa-
tivamente, a posição de um ingênuo, pessoa nascida livre, que nunca
foi escrava. O ius aurei anuli era outro favor, também conferido pelo
imperador, e pelo qual se eliminavam as restrições político-sociais
impostas aos libertos, como as de não poderem ser magistrados, não
poderem ser nomeados senadores, não poderem servir nas legiões do
exército. Do ponto de vista dos direitos privados, o ius aurei anuli
eliminava o impedimento matrimonial entre liberto e pessoa de classe
senatorial, mas não extinguia os direitos do patronato. Com ele o
liberto passava a ser um quase ingênuo.
Ficavam livres por lei, a título de punição do dono (edictum
Claudii, D. 40.8.2), os escravos velhos e doentes por ele expostos;
a título de recompensa, o escravo que delatasse o assassino de seu
amo (senatusconsultum Silanianum, 10 d.C.). Também ficavam livres
por lei os escravos que vivessem em liberdade por mais de 20 anos.
Os ingênuos são os nascidos livres e que nunca deixaram de o
ser, desde o nascimento. Não sofrem, destarte, nenhuma restrição
decorrente de seu estado de liberdade.
Cidadania (Status civitatis)
Em princípio, o direito romano, tanto público como privado,
valia só para os cidadãos romanos (Quirites).
Os estrangeiros (peregrini) não tinham a capacidade jurídica
de gozo no concernente aos direitos e obrigações do ius civile. Entre-
tanto, a eles se aplicavam as regras do ius gentium. O estrangeiro
podia adquirir propriedades pelo direito dele, mesmo em Roma. Tam-
bém podia fazer testamento, conforme as regras de sua cidade. So-
mente os peregrini dediticii, os inimigos vencidos, cujo direito e inde-
pendência política não foram reconhecidos pelos romanos, estavam
privados do uso de seu direito de origem. Eles se sujeitavam pura e
exclusivamente às regras do ius gentium romano.
Entre os estrangeiros, os latinos tinham uma posição especial.
22. Os latinos, vizinhos de Roma (latini prisci), tinham capacidade jurí-
dica de gozo semelhante à dos cidadãos romanos. Tinham o direito
de votar nos comícios (ius suffragii), quando se encontravam em Ro-
ma, e podiam comerciar e contrair matrimônio: ius commercii e ius
conubii. Com a extensão da cidadania romana a toda a Itália, em 89
a.C., essa categoria de latinos deixou de existir. Como segunda cate-
goria, porém, aparece a dos latini coloniarii, que eram os cidadãos
das colônias fundadas por Roma e às quais fora dado o ius Latii.
Estes gozavam da capacidade de ter os direitos privados (ius com-
mercii e ius conubii), mas não os públicos (ius suffragii e ius hono-
rum). Essa categoria, também, desapareceu com a extensão da cida-
dania a todos os habitantes livres do império, por Caracalla, em 212
d.C. (constitutio Antoniniana). Uma terceira categoria de latinos exis-
tiu desde a lei Junia Norbana (19 d.C.) e sobreviveu às demais. Como
foi mencionado, os escravos alforriados pelos modos pretorianos ou
mesmo contra as disposições restritivas das leis de Augusto, adqui-
riram a posição de latinos e não a de cidadãos romanos. Sua capaci-
dade jurídica de gozo era mais restrita que a dos pertencentes as
outras categorias de latinos. Só tinham, os latini Juniani, o ius com-
mercii inter vivos, o direito de serem sujeitos de relações patrimoniais
entre vivos. Não podiam eles, pois, casar pelo ius civile, nem fazer
testamento ou herdar. Diz-se que "viviam como livres, mas morriam
como escravos" (Salvianus, adv. avar. 3.7). Por falecimento do latinus
Junianus, seu patrimônio era devolvido ao patrono iure peculii, isto
é, não a título de sucessão, mas como devolução ao próprio dono.
A cidadania romana adquiria-se por nascimento de justas núpcias
ou mesmo fora delas, se a mãe fosse cidadã no momento do parto.
Os filhos nascidos de matrimônio misto (isto é, em que um dos côn-
juges fosse estrangeiro) seguiam a condição de estrangeiro, de acordo
com as disposições da lei Minicia (Gai. 1.78).
Adquiria-se a cidadania também pela alforria quiritária, como
já foi explicado. Além disso, a cidadania podia ser conferida pelos
comícios por determinação dos magistrados e, mais tarde, pelos impe-
radores. A concessão podia ser feita a estrangeiro, quer em caráter
individual, quer como medida de ordem geral. Por exemplo, a exten-
são da cidadania a toda Itália em 89 a.C. e a todos os habitantes
livres do império em 212 d.C.
O cidadão romano, desde que preenchesse também o requisito
da independência do poder familiar, tinha plena capacidade jurídica
de gozo. Assim, ele podia ter a totalidade dos direitos públicos e pri-
vados e as obrigações respectivas.
Perdia-se a cidadania pela perda da liberdade. Podia-se, contu-
do, perder a cidadania sem a perda da liberdade, como no caso do
exílio, da deportação, da renúncia.
Situação familiar (Status familiae)
Para ter a completa capacidade jurídica de gozo, era preciso que
o sujeito, além de ser livre e cidadão romano, fosse também indepen-
dente do pátrio poder. A organização familiar romana distinguia
entre pessoas sui íuris (paterfamilias), independentes do pátrio poder,
e pessoas alieni iuris, sujeitas ao poder de um paterfamilias. A inde-
pendência do pátrio poder não tinha relação com a idade. Um recém-
nascido, não tendo ascendente masculino, era independente do pátrio
poder, ao passo que um cidadão de 70 anos, com o pai ainda vivo,
era alieni iuris, isto é, sujeito, na qualidade de filiusfamilias, ao po-
der de seu pai.
Os alieni iuris não eram absolutamente incapazes. Tinham plena
capacidade no campo dos direitos públicos: podiam votar e ser vo-
tados para as magistraturas (ius suffragii e ius honorum) e, também,
servir nas legiões. No campo dos direitos privados podiam casar-se
(ius conubii), desde que obtivessem consentimento do paterfamilias,
23. que, aliás, exercia o pátrio poder também sobre os netos. Nas relações
patrimoniais, tudo o que o alieni iuris adquirisse, adquiria para o
paterfamilias; nas obrigações assumidas pelos alieni iuris a situação
era diferente: o paterfamilias somente respondia excepcionalmente por
elas. A evolução do direito romano se caracterizou pela responsabili-
zação sempre crescente do paterfamilias no respeitante às obrigações
contraídas pelos seus familiares. Por outro lado, foi conferida cada
vez maior independência patrimonial aos alieni iuris por meio do
desenvolvimento do instituto do pecúlio (peculium). Este era uma
parte do patrimônio da família, entregue à administração direta dos
alieni iuris.
"CAPITIS DEMINUTIO"
A situação da pessoa, quanto à capacidade jurídica de gozo,
era determinada pelos três estados: o de liberdade, o de cidadania
e o de família. Mudando-se qualquer um desses requisitos, mudava-
se a situação jurídica da pessoa também, mudança essa que se cha-
mava capitis deminutio. Embora representasse principalmente a perda
de determinados direitos (sendo equiparada à morte civil, cf. Gai.
3.153), a idéia básica da capitis deminutio não é essa, mas a de-extin-
ção da personalidade do ponto de vista jurídico, para ser substituída
por uma nova. Isso podia significar, também, uma mudança para
melhor, como a passagem da situação de alieni iuris para sui iuris.
Assim, pode-se falar de capitis deminutio no caso da emancipação.
Tendo em vista os três estados (liberdade, cidadania, família),
requisitos da capacidade jurídica de gozo, três podiam ser as altera-
ções sofridas por capitis deminutio: 1 .a) a perda da liberdade, que
acarretava a capitis deminutio maxima; 2.a) a da cidadania, a média;
e 3.a) a mudança no estado familiar, a capitis deminutio mínima.
A perda da liberdade verificava-se quando o cidadão romano
caía prisioneiro do inimigo, servus hostium (Gai. 1.129). Embora ti-
vesse perdido o prisioneiro sua capacidade de ter direitos e obrigações,
enquanto ele ficasse em poder do inimigo, sua situação era a de
pendência, pois, pelo ius postliminii, quando ele voltasse a Roma,
recuperaria todos os direitos que anteriormente tivesse, como se nunca
os houvesse perdido. Note-se, entretanto, que o ius postliminii se apli-
cava tão-somente aos direitos e não às situações de fato. Estas últimas
tinham que ser restabelecidas. Essa distinção terá sua aplicação com
relação ao matrimônio e à posse.
Por outro lado, se o prisioneiro morresse nas mãos do inimigo,
pela ficção introduzida pela lei Cornelia (fictio legis Corneliae), ele
seria considerado como falecido antes de ter caído prisioneiro, isto
é, como falecido no estado de livre. Isso para o efeito de abertura da
sucessão por sua morte.É que não se podia abrir sucessão de pessoa
morta na condição de escravo, tornando ineficaz o testamento even-
tualmente deixado por ela (testamentum irritum factum).
Perdia-se, também, a liberdade a título de punição, como, por
exemplo, no caso do ladrão colhido em flagrante (fur manifestus).
No direito arcaico, o devedor executado, que não conseguisse pagar
sua dívida, também podia ser vendido como escravo, fora de Roma
(trans Tiberim).
A perda da liberdade acarretava a perda da cidadania e da si-
tuação na família romana também, pois a liberdade era pressuposto
da cidadania e do status familiae.
Na capitis deminutio media, o cidadão passava à condição de
estrangeiro pelo exílio voluntário ou pelo imposto por punição (inter-
dictio aqua et igni). A pena de deportação foi instituída por Tibério
(14-37 d.C.). Podia alguém voluntariamente transferir-se para uma
colônia latina. Era renúncia à cidadania romana, que representava
capitis deminutio media também (cf. Gai. 1.131).
A alteração no estado familiar representava a capitis deminutio
24. minima. Nesse caso o capite deminutus (quem sofreu a mudança)
perde todas as relações jurídicas (mas não as de consangüinidade)
com a família anterior, adquirindo novo estado familiar. Pode-se veri-
ficar pela passagem de uma pessoa alieni iuris de sua família de ori-
gem para uma nova família (adoção ou conventio in manum) ou para
o estado de sui iuris (emancipação). Vice-versa, um sui iuris podia
passar à sujeição, na qualidade de alieni iuris, na família do adrogator
(espécie de adoção).
OUTRAS CAUSAS RESTRITIVAS DA CAPACIDADE
Havia outras circunstâncias que tinham influência na capacidade
jurídica de gozo.
As mulheres não tinham capacidade para direitos públicos e
sofriam restrições no âmbito do direito privado também. A mulher
não tinha direito ao pátrio poder, nem à tutela, e não podia parti-
cipar dos atos solenes na qualidade de testemunha.
Restringiam a capacidade jurídica de gozo a intestabilitas, a
infamia e a turpitudo, que eram penalidades impostas em conseqüên-
cia de atos ilícitos, penalidades que importavam na falta de honora-
bilidade.
A religião também, com os impedimentos matrimoniais, incapaci-
dade de testar e de herdar, podia ser fator que concorresse para certas
restrições da capacidade jurídica.
PESSOA JURÍDICA
Como já mencionamos, além da pessoa física, o direito reco-
nhece personalidade também às pessoas chamadas jurídicas ou mo-
rais, que são entidades artificiais.
Trata-se de organizações destinadas a uma finalidade duradou-
ra, que são consideradas sujeitos de direito, isto é, com capacidade de
ter direitos e obrigações.
Pela doutrina moderna, a pessoa jurídica pode ser de duas espé-
cies: corporação (universitas personarum), que é a associação de pes-
soas, e fundação (universitas rerum), que é um conjunto de bens,
destinados a uma determinada finalidade.
Parece que o direito romano clássico somente conheceu as corpo-
rações. As origens das fundações, nós as encontramos somente no
direito pós-clássico.
A característica essencial das pessoas jurídicas é terem elas perso-
nalidades distintas da de seus componentes, bem como terem patri-
mônio e relações de direito distintas das de seus membros: Si quid
universitati debetur, singulis non debetur, nec quod debet universitas,
singuli debent (D. 3.4.7.1).
No direito romano, as corporações incluíam o Estado Romano
(populus Romanus) e seu erário, as organizações municipais e as
colônias, todas estas predominantemente de caráter público. Além
delas, havia associações de caráter privado, chamadas sodalitates,
collegia e societates, que tinham fins religiosos, como os colégios de
sacerdotes da era pagã, ou fins econômicos, como as corporações
profissionais de artesãos, as de comércio e as sociedades dos cole-
tores de impostos e também as associações visando a garantir fune-
rais decentes a seus membros.
As fundações começaram a surgir somente na época cristã. Con-
siderou-se, então, como sendo sujeito de direito um determinado pa-
trimônio, vinculado a certas finalidades, especialmente para fins de
beneficência ou fins religiosos (piae causae). O ato constitutivo, pre-
vendo a finalidade e regulando a sua organização interna, bastava
para constituir a fundação.
Quanto às corporações privadas, exigia-se para seu funciona-
mento autorização do senado e, posteriormente, do imperador.
Para sua constituição, era necessário o mínimo de três membros
25. (tres faciunt collegium, D. 50.16.85).
Tais corporações eram reguladas pelos seus estatutos (lex colle-
gii), que tinham que determinar, além do fim social, também os órgãos
representativos (actores, syndici) da pessoa jurídica.
O nascimento e extinção das corporações públicas não interessam
ao direito privado.
Extinguia-se a pessoa jurídica quando sua finalidade era pre-
enchida ou quando o senado, e mais tarde o imperador, revogava a
respectiva autorização para funcionar. Nas corporações privadas, mo-
tivo de extinção era o desaparecimento de todos os seus membros. A
fundação extinguia-se pela perda da totalidade do patrimônio.
CAPÍTULO 6
OBJETOS DE DIREITO
CONCEITO
Coisa é um termo de significado muito amplo. Usa-se para de-
signar todo e qualquer objeto do nosso pensamento. Isto significa
que a noção vulgar de coisa vale tanto para o que existe no mundo
das idéias, como no da realidade sensível.
Na linguagem jurídica, porém, coisa (res) é o objeto de relações
jurídicas que tenha valor econômico. Não o é, portanto, aquilo que
não possa ser objeto de tais relações. Assim, não é res o corpo celes-
tial. Podem sê-lo, contudo, no direito moderno, certas idéias que repre-
sentem valor econômico: patentes de invenção, obras de arte, direitos
autorais.
Os romanos faziam distinção entre coisas em comércio (res in
commercio) e fora dele (res extra commercium). As primeiras eram
equelas que podiam ser apropriadas por particulares. As segundas
não podiam ser objeto de relações jurídicas entre particulares pela
sua natureza física ou por sua destinação jurídica. Assim, estavam
excluídas do comércio as coisas dedicadas aos deuses, res extra com-
merciunz divini iuris, e outras por razões profanas, res extra commer-
cium humani iuris. Na primeira categoria encontramos as coisas sa-
gradas, dedicadas diretamente ao culto religioso, como os templos
(res sacrae), as coisas santas (res sanctae), que eram as consideradas
sob a proteção dos deuses, como as portas e os muros da cidade, e as
coisas religiosas (res religiosae), que eram os túmulos. Por razões de
ordem profana, eram consideradas fora do comércio (res extra com-
mercium humani iuris) as coisas comuns a todos (res communes
omnium), isto é, as indispensáveis à vida coletiva ou a ela úteis, como
o ar, a água corrente, o mar e as praias. Além dessas eram conside-
radas fora do comércio as coisas públicas, pertencentes ao povo ro-
mano (res publicae), como as estradas e o Fórum.
Res in commercio podiam realmente estar no patrimônio de
alguém, ou encontrar-se fora de qualquer relação patrimonial. As ex-
pressões romanas res in patrimOnio e res extra patrimonium são usa-
das nas fontes em dois sentidos: às vezes indicam a mesma distinção
que já fizemos entre coisas in commercio, suscetíveis de serem objeto
de relações jurídicas, e coisas extra commercium; outras vezes ser-
vem para distinguir aquelas que se situam efetivamente no patrimô-
nio de alguém ou fora dele. Por razões didáticas, preferimos a se-
gunda interpretação.
Portanto, as coisas extra patrimonium eram as que, em dado
momento, não se encontravam no patrimônio de ninguém, mas que
poderiam ser apropriadas. Assim, as res nullius (coisas sem dono), as
res hostium (coisas dos inimigos de Roma).
No que se refere às coisas in commercio e ao mesmo tempo in
patrimonio, há várias outras classificações que até hoje sobrevivem,
feitas pelos romanos.
26. COISAS CORPÓREAS E INCORPÓREAS
Já Gaio (2.12-14) distingue entre as coisas corpóreas e incor-
póreas (res corporales et incorporales). A diferença para ele reside
na tangibilidade, sendo corpóreas aquelas que podem ser tocadas e
existem corporeamente. As outras, isto é, as incorpóreas, somente
existem intelectualmente. A mesma distinção foi conhecida por Cí-
cero (Top. 5.27) e Sêneca (Ep. ad Luc. 58.14), além de outros. Na
realidade, essa classificação jurídica servia para distinguir entre coi-
sas e direitos, pois as primeiras são corpóreas e os segundos incor-
póreos.
"RES MANCIPI ET RES NEC MANCIPI"
A distinção entre res mancipi e res nec mancipi tem bases histó-
ricas. As primeiras, para se lhes transferir a respectiva propriedade,
requeriam a prática das formalidades da mancipatio, ato solene do
direito arcaico. As segundas podiam ser transferidas pela simples en-
trega, sem formalidades (traditio).
Faziam parte da categoria das res mancipi os terrenos itálicos
(não os provinciais), os animais de tiro e carga (como o cavalo, a
vaca, o burro), os escravos e as quatro servidões prediais rústicas
mais antigas, que eram via, iter, actus e aquaeductus. As demais coisas
eram nec mancipi.
COISAS MÓVEIS E IMÓVEIS
O terreno e o que estivesse definitivamente ligado a ele distin-
guiam-se das coisas transportáveis e semoventes. Já as XII Tábuas
(450 a.C.) conheceram essa distinção ao estabelecer prazo diferente pa-
ra o usucapião delas. A terminologia coisas imóveis e móveis (res immo-
biles et res mobiles) é mais recente. Ela data do período pós-clássico,
quando modos especiais de aquisição de propriedade foram exigidos
para as primeiras.
COISAS FUNGÍVEIS E INFUNGÍVEIS (NÃO-FUNGÍVEIS)
O termo "fungível" não é romano. Foi criado no século XVI por
Úlrico Zásio, com base na definição romana de Paulo, que procurava
precisar o princípio da substituibilidade das coisas: res quae in genere
suo functionem recipiunt (D. 12.1.2.1) (coisas cuja função consiste
em serem determinadas pelo seu gânero).
Fungíveis são as coisas substituíveis por outras do mesmo genero,
qualidade e quantidade. Aparecem normalmente no comércio como
determinadas apenas pela sua quantidade, peso e medida: quae pon-
dere numero mensura constant (Gai. 2. 196). São elas caracterizadas
por pertencerem a um genero extenso, para o qual a individualidade
de cada unidade componente não tem relevância jurídica. Por isso
são coisas facilmente substituíveis entre si. Assim, o arroz, a farinha,
o metal. Infungíveis são as coisas especificamente consideradas, cujas
características individuais impedem sejam substituídas por outras do
mesmo gênero. Assim um quadro, uma estátua.
COISAS CONSUMÍVEIS E INCONSUMÍVEIS
Há coisas que podem ser usadas uma só vez e outras que per-
mitem uso repetido. As primeiras se exaurem com o seu uso normal
e são chamadas coisas consumíveis (quae usu consumuntur), porque
quem as usou fica privado de utilizá-las mais de uma vez. É o caso
dos alimentos e das bebidas, que desaparecem com o uso normal; do
dinheiro, que se gasta. Inconsumíveis são as coisas suscetíveis de uti-
lização constante, sem que sejam destruídas. Conservam, assim, mes-
mo quando usadas, sua utilidade econômico-social anterior. Exemplo:
um quadro, uma estátua, um vestido, um carro.
Entre as coisas inconsumíveis, os romanos da época pós-clássica
propuseram uma subclassificação, distinguindo as coisas realmente
27. inconsumíveis das que perdem lentamente seu valor pelo uso repetido:
quae usu minuuntur (D. 75. ruhr.). Assim, um vestido, um carro, em
contraposição a um quadro, a uma estátua. Tratava-se, pois, de uma
categoria intermediária entre as coisas consumíveis e inconsumíveis.
COISAS DIVISÍVEIS E INDIVISÍVEIS
O conceito jurídico da divisibilidade está intimamente ligado ao
do valor econômico das coisas. Físicamente toda e qualquer coisa
pode ser dividida. Juridicamente, porém, a divisibilidade depende da
circunstância de a coisa repartida conservar ou não o valor propor-
cional ao do todo. Divisíveis são as coisas que podem ser repartidas
sem perder esse valor proporcional, como um terreno, o arroz. Indi-
visíveis são aquelas cujo valor sócio-econômico se reduz ou se perde
com a divisão. É o caso de uma estátua, de um carro.
COISAS SIMPLES, COMPOSTAS, COLETIVAS
OU UNIVERSAIS
A distinção é romana e se refere a coisas simples - quod conti-
netur uno spiritu (D. 41. 3. 30 e 6. 1. 23. 5) -, representando uma
unidade orgânica, natural ou artificial. As coisas compostas - quod
ex contingentibus, hoc est pluribus inter se cohaerentibus constat (D.
41.3.30) - são formadas da união artificial de várias coisas sim-
ples. Assim, são simples um bloco ou uma estátua de mármore, um
escravo, e são compostas um edifício, um carro.
A terceira categoria, ou seja, a das coisas coletivas ou univer-
sais, abrange um aglomerado de coisas simples, que só juridicamente
estão ligadas entre si. Assim, um rebanho, uma biblioteca, constituí-
dos respectivamente de várias ovelhas ou de vários livros, cujo único
liame é a sua destinação jurídica comum.
COISAS ACESSÓRIAS
Ligado ao conceito de coisa composta, temos que examinar o
dos acessórios e pertenças. A reunião de várias coisas simples pode
criar uma coisa completamente nova, que absorva todos os seus com-
ponentes. Exemplo: um carro, que é composto de centenas de ele-
mentos. Mas pode verificar-se uma união diferente, na qual uma coisa
principal absorva uma outra coisa, considerada acessória. Por exem-
plo: o terreno é sempre principal e tudo o que a ele se junte é aces-
sório. Assim, as construções, as plantações nele feitas.
O acessório segue sempre a sorte da coisa principal: accessio
cedit principali (D. 34. 2. 19. 13).
Podemos distinguir do conceito do acessório o das pertenças
(instrumenta), onde há um liame menos íntimo de uma coisa com
outra principal. As pertenças conservam certa autonomia, mas sua
destinação jurídica está ligada à da coisa principal. Assim, os instru-
mentos de trabalho (instrumenta fundi), destinados ao cultivo da ter-
ra, estão ligados a ela, embora conservem certa independência.
FRUTOS
Frutos são coisas novas produzidas natural e periodicamente por
uma outra, que, por isso mesmo, se chama coisa frugífera. Por exem-
plo: os frutos do solo, da árvore, o leite, as ovelhas do rebanho (assim
consideradas, no direito romano, aquelas excedentes após a compen-
sação das ovelhas mortas pelas novas). Todas essas coisas são chama-
das frutos naturais. As rendas obtidas com a locação ou o arrenda-
mento de coisas são também consideradas frutos. São os frutos civis
(loco fructuum, pro fructibus). Por razões filosóficas, o parto da es-
crava não era considerado fruto pelos romanos. Ele passava a per-
tencer ao dono da escrava-mãe pelo nascimento.
Enquanto faz parte da coisa frugífera, o fruto, por isso chamado
pendente, não tem individualidade própria, seguindo, assim, a sorte
28. da coisa principal. Destacado o fruto da coisa frugífera, fruto sepa-
rado, passa ele a ter individualidade própria e pode, então, ser objeto
de relações jurídicas separadamente da coisa produtora. Neste último
aspecto, do ponto de vista jurídico, os frutos separados podem ser
considerados como colhidos (percepti), a serem colhidos (percipiendi),
já consumidos (consumpti) e também extantes, que são os colhidos e
existentes no patrimônio de alguém, aguardando o consumo oportuno
e posterior.
BENFEITORIAS
Benfeitorias são os gastos com as coisas acessórias ou pertenças
juntas à coisa principal, para melhorar e aumentar a utilidade desta.
Podem ser elas necessárias, quando imprescindíveis para garantir a
existência e subsistência da coisa principal. Por exemplo: telhado novo.
São úteis, quando aumentam a utilidade da coisa principal, que, po-
rém, pode subsistir sem elas. Por exemplo: uma pintura nova no pré-
dio. Voluptuárias são as de mero luxo, como uma piscina ao lado da
residência.
CAPÍTULO 7
ATO JURÍDICO
CONCEITO
A doutrina do ato jurídico não é obra dos romanos. As cons-
truções dogmáticas modernas a ela referentes, entretanto, têm bases
romanísticas. Expô-las-emos numa forma simplificada, a fim de servir
de fundamento aos estudos posteriores.
Os eventos, acontecimentos de toda espécie, são chamados fatos.
Entre estes, há fatos que têm conseqüências jurídicas e há outros que
não as têm. Chove, por exemplo. Normalmente não decorre nenhum
efeito jurídico de tal fenômeno natural. Trata-se, neste caso, de um
fato simples. Pode, entretanto, a chuva estragar uma colheita, aca-
bando com os frutos a serem colhidos (percipiendi). Nessa hipótese,
trata-se de um fato jurídico, de um evento que tem conseqüências
jurídicas.
Entre os fatos jurídicos distinguimos os fatos causados pela von-
tade de alguém dos fatos que se verificam independentemente dessa
vontade. Os primeiros são os fatos jurídicos voluntários, os segundos
os fatos jurídicos involuntários. Interessam-nos, naturalmente, mais os
primeiros que os segundos.
Os fatos jurídicos voluntários, por sua vez, podem ser lícitos ou
ilícitos, dependendo da sua conformidade ou não à norma jurídica.
Os fatos jurídicos voluntários ilícitos são os delitos, mas nos
interessam muito mais os fatos jurídicos voluntários lícitos. Entre
estes se destacam os atos jurídicos, que são manifestações de vontade
que visam à realização de determinadas conseqüências jurídicas. Ao
ato jurídico assim concebido podemos dar também o nome de negócio
jurídico, sendo ambas as denominações de origem moderna.
Aliás, o Código Civil Brasileiro (art. 81) dá mui elegantemente
o conceito do ato jurídico, que foi por nós explicado com demasiada
simplicidade. Diz a lei: "Todo o ato lícito que tenha por fim ime-
diato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos,
se denomina ato jurídico".
Analisando, então, o ato jurídico, verificamos que ele nada mais
é que uma declaração de vontade. Com referência a ela, logo se per-
gunta, qual deve ser a sua forma?
O direito antigo era formalista, deu mais importância à forma
do que ao fundo. Por isso, os atos jurídicos do direito quiritário (ius
civile) exigiam formalidades complicadas, de cuja observância depen-
dia a validade do ato e o seu conseqüente efeito jurídico. Assim, os
atos per aes et libram, que eram a mancipatio, o nexum e a solutio
29. per aes et libram; os atos pela in jure cessio e a stipulatio (e seme-
lhantes como a dotis dictio, cretio etc.). Os do primeiro grupo reque-
riam as formalidades de uma compra e venda real, uma troca efetiva
de mercadoria contra preço, que, nos tempos primitivos, era um pe-
daço de metal não cunhado e que por isso tinha que ser pesado. Donde
a necessidade de um porta-balança e das formalidades extrínsecas de
pesagem (mesmo que simbólicas). Além disso, exigiam-se as formali-
dades da presença das partes, do objeto, de cinco testemunhas idôneas
e do pronunciamento de certas fórmulas verbais, quase sacramentais.
Os do segundo grupo, atos pela in jure cessio, requeriam a imitação
de um processo e os do terceiro uma fórmula verbal, com pergunta
e resposta, que gerava efeitos jurídicos, desde que pronunciadas as
palavras sacramentais da maneira prescrita.
A evolução posterior acentuou cada vez mais o valor do elemento
intencional do ato jurídico, em detrimento do externo e formal. Isso
não significa, naturalmente, que a vontade não devesse ser devida-
mente declarada, mas apenas que a sua manifestação deveria ser feita
de maneira clara, sem tanta prevalência das formas solenes.
Assim, no direito evoluído, o ato jurídico nada mais era que
uma inequívoca manifestação de vontade. Além dela, somente em
casos especiais era exigido algum ato suplementar, como, por exemplo,
a entrega da coisa na tradição, que é um dos modos de transferência
da propriedade.
A manifestação de vontade pode ser expressa, quando se empre-
guem os meios usuais para se declarar aquilo a que a vontade visa.
Assim, palavras, gestos ou redação e assinatura de documentos.
Por outro lado, a manifestação também pode ser tácita mediante
um comportamento de significado inequívoco, podendo-se deduzir
dele a vontade, tal como se fosse expressamente declarada. Assim, se
um herdeiro toma conta dos negócios deixados pelo defunto, conclui-se
que aceitou a herança, sem necessidade da declaração expressa e
formal de aceitá-la.
O silêncio não é propriamente manifestação de vontade, mas pode
ser considerado como tal: qui tacet, non utique fatetur; sed tamen
verum est eum non negare (D. 50. 17. 142). No caso de o pai dar
a filha em casamento, o silêncio dela era considerado como consenti-
mento: quae patris voluntati non repugnat, consentire intellegitur
(D. 23.1.12 pr.).
CAPACIDADE DE AGIR
Pressuposto da validade da manifestação da vontade era a capa-
cidade de agir da pessoa que praticava o ato jurídico. Essa capacidade
de agir tem outras denominações também: é chamada capacidade de
fato, capacidade de exercício ou capacidade de praticar atos jurídicos.
Ela se distingue da outra capacidade já estudada, isto é, da capa-
cidade jurídica de gozo ou capacidade de direito.
Nem toda e qualquer pessoa tinha capacidade de agir. Esta
dependia da idade, do sexo e de sanidade mental perfeita. Em regra
geral, os púberes, varões, perfeitamente sãos, tinham plena capacidade
de agir. Por outro lado, as limitações à capacidade de agir decorriam
desses mesmos fatores.
Quanto à idade, a summa divisio era a puberdade, que, segundo
opinião de jurisconsultos clássicos, acolhida por Justiniano, era adqui-
rida aos 14 anos pelos varões e aos 12 anos pelas mulheres. Os púbe-
res, em princípio, tinham completa capacidade de agir; os impúberes,
não. Estes se dividiam em infantes (qui fari non possunt), isto é,
menores de 7 anos, que eram absolutamente incapazes de agir, e os
infantia maiores, isto é, dos 7 anos até a puberdade, que tinham uma
capacidade restrita de agir. Estes últimos podiam praticar atos que os
favorecessem, mas não podiam obrigar-se sem a intervenção de um
tutor, que devia tomar parte no ato jurídico, conferindo a sua autori-