Nesta resenha, Héber Sales situa o livro The Branding Gap no contexto dos estudos sobre construção e gestão de marcas, apontando seus limites no que se refere a fenômenos contemporâneos da vida social e cultural das marcas.
Fundamentos de marketing - uma abordagem semiótica
Uma Ponte Frágil sobre o Abismo das Marcas: resenha crítica do livro The Brand Gap, de Marty Neumeier
1. Uma Ponte Frágil sobre o Abismo das Marcas:
Resenha Crítica do livro The Brand Gap, de Marty Neumeier
Por @HeberSales
Em The Brand Gap (2008), Marty Neumeier propõe cinco disciplinas para quem deseja superar
o abismo das marcas. O livro pretende construir uma ponte entre a estratégia e o design, entre
o conceito da marca e a sua execução.
O autor vê, na maioria das empresas, uma "profunda separação entre áreas de estratégia
e criatividade" (p. 15). Os profissionais e estrategistas de marketing não incorporam
suficientemente as qualidades dos criativos.
Por que é tão importante usar estas habilidades hoje em dia? Porque o consumidor mudou sua
forma de julgar as ofertas, responde Neumeier. "Nós passamos a ter informações de sobra e
tempo de menos. Como resultado, nosso antigo método de julgar os produtos - comparando
características e benefícios - deixou de funcionar" (p. 8).
Sobrecarregado pela informação, o consumidor agora apela mais para os atributos simbólicos
da marca e para a confiança no produtor. Tais elementos, especialmente o último, funcionam
então como atalhos para a decisão de compra.
Mas onde entra o design nessa receita? Ele é, para Neumeier, o principal responsável pela
estética da marca, um dos três elementos centrais na construção de uma marca altamente
confiável - uma "marca carismática", para a qual as "pessoas acham que não há substituto". A
estética "é a linguagem do sentimento e, numa sociedade com informação de sobra e escassez
de tempo, as pessoas valorizam mais o sentimento do que a informação" (p. 19).
As cinco disciplinas propostas pelo autor para atravessar o abismo da marca e desenvolver
marcas carismáticas são:
1. Diferenciar
2. Colaborar
3. Inovar
4. Validar
5. Cultivar
1. Diferenciar
Ater-se a um diferencial único e relevante, extendendo a marca apenas se tal movimento servir
para "fortalecer o [seu] significado, acrescentando corpo e definição ao que quer que a torne
diferente" (p. 46).
2. Neumeier repete aqui a velha fórmula de Al Ries e Jack Trout, proposta pioneiramente nos
anos 1970 em seu famoso artigo na revista Ad Age e desenvolvida no livro Positioning: The
Battle for Your Mind. Justifica-a, no entanto, com dois argumentos não desenvolvidos por
estes autores. O primeiro deles é um princípio da estética cognitivista: nossa visão procura
diferenças perceptíveis e nossos cérebros deliciam-se com o uso magistral do contraste. O
segundo, uma justificativa elaborada por estudos na área da antropologia do consumo: uma
marca deve manter-se pura em sua distinção porque as pessoas hoje em dia desejam marcas
que as identifiquem como parte de um clã seleto; elas estão confiando às marcas o papel de
sinalizarem as fronteiras entre grupos sociais e estilos de vida.
2. Colaborar
Eis um assunto incomum em livros de branding, que raramente tratam da organização interna
necessária para se construir grandes marcas.
Para Neumeier, o contexto atual exige um novo paradigma de gestão de marca, o paradigma
da organização integrada - “grupos de empresas ‘desverticalizadas’ cooperando ao longo da
cadeia de valor” (p. 62). Tal estrutura permite tirar proveito dos melhores talentos em cada
projeto, evitando custos fixos desnecessários, e, ao mesmo tempo, promovendo a flexibilidade
organizacional e a capacidade de rápida adaptação às mudanças ambientais.
Como garantir a integração de tantos colaboradores independentes sem produzir mais
burocracia? Pelo uso de protótipos. “Em vez de começar com uma série de especificações
e trabalhar para encontrar um conceito, os membros da equipe podem partir direto para o
conceito e depois acrescentar as especificações necessárias para sustentá-lo” (p. 69). A
abordagem pode liberar a criatividade da rede de colaboradores, uma vez que se um protótipo
não funcionar, pode-se descartá-lo sem maiores prejuízos e partir para uma nova aventura
criativa. “Os protótipos criam um verdadeiro parque de diversões para as ideias, dando espaço
para que o lado direito do cérebro realize suas mágicas” (p. 69).
3. Inovar
Neumeier continua abordando processos internos ao tratar da terceira disciplina do branding: a
inovação. Este seria o recurso crucial para se atravessar o abismo da marca, segundo o autor.
“Não se pode ser um líder apenas seguindo os demais” (p. 76). A frase serve tanto para
lembrar o imperativo da diferenciação quanto para introduzir o desafio da execução da
implementação da marca, o qual exige mais intuição e perspicácia do que a nossa cultura
empresarial costuma supor - e muito mais coragem também, uma vez que a tendência natural
do ser humano é seguir o grupo.
3. O autor recomenda que se busque soluções MAYA (Most Advanced Yet Acceptable) - Mais
Avançada Porém Aceitável -, e critica, à semelhança de John Steel, a ênfase excessiva no
pensamento analítico. “Enquanto os pesquisadores de mercado descrevem o mundo como ele
é, as pessoas criativas descrevem como ele deveria ser” (p. 77).
A abordagem representa um grande desafio para as empresas. Elas não estão acostumadas
a recompensar o atrevimento, que é a principal qualidade que os consumidores esperam das
marcas hoje.
Como superar tal obstáculo? Ouvindo as pessoas de fora e a gente da rede de colaboradores -
ou as “pessoas de dentro que pensam como as de fora” (p. 81).
4. Validar
A quarta disciplina da marca trata essencialmente de como avaliar e estimular a criatividade
por meio de testes. Sua premissa mais básica repousa num velho elemento do processo de
comunicação: o feedback. Neumeier sugere que se encare o relacionamento com os públicos
como uma performance teatral. Nos teatros, “o feedback é imediato e claro, o que permite fazer
as mudanças apropriadas antes da próxima performance” (p. 102).
Que tipo de teste o autor recomenda? O mais naturalístico possível e voltado para tratar um
problema de cada vez. É preciso evitar a tendência dos consumidores para agirem de modo
diferente quando sabem que são observados. Daí a preferência de Neumeier por entrevistas
individuais diretas e pela observação etnográfica ao invés de grupos focais e de pesquisas de
opinião. Ele recomenda também trocar as pesquisas quantitativas por abordagens qualitativas
que ofereçam insights vibrantes.
“Os estudos quantitativos, embora causem impressão, podem paralisar a análise quando as empresas
tentam transformá-las em iniciativas significativas. De certa forma, todos aqueles números levam as
pessoas a se concentrar em pequenos e mensuráveis progressos que não requerem muita coragem e, no
final, não fazem muita diferença” (p. 113).
É melhor tratar um problema de cada vez com ousadia, recorrendo a testes de conceito e de
campo, que servem de “pára-raios para atrair insights” (p. 121).
Ao final de tais testes, todas as “expressões de marca, de ícones a produtos”, deverão se
destacar em cinco quesitos (p. 126 e 127):
● Distinguibilidade, que é a sua capacidade de se destacar das mensagens dos
concorrentes;
● Relevância, que é a qualidade de ser uma solução apropriada para importantes
problemas do consumidor;
● Memorabilidade, ou capacidade de marcar a memória dos públicos por muito tempo;
● Extensibilidade, que avalia se uma certa expressão da marca poderá funcionar bem
4. em vários tipos de meios e suportes;
● Profundidade, que é sua capacidade de se comunicar com os públicos em vários
níveis de significados e de experiência.
5. Cultivar
Esta é a quinta disciplina do branding. Ao defendê-la, Marty Neumeier parece se contradizer.
Na primeira das cinco disciplinas, o autor considera que a sobrevivência no longo prazo de
uma marca depende da sua concentração em um significado-chave. Neste capítulo, porém,
ele recomenda sacrificar a consistência da identidade da marca em prol de seu caráter vivo e
dinâmico. “Projete uma personalidade tridimensional, com inconsistências e tudo o mais” (p.
133).
Como conciliar essa receita com a fórmula “mantenha-a pura, mantenha-a diferente” (p. 33)?
Neumeier tem uma resposta pronta: as inconsistência devem ser permitidas desde que não
distorçam os atributos determinantes do diferencial-chave da marca. A cultura da marca precisa
ser protegida por meio de um programa educacional disseminado sistematicamente por toda
a rede criativa de colaboradores - “enquanto permanece aberta ao feedback da comunidade
da marca” (p. 141). Tal programa teria como objetivo transformar a marca em uma bússola
organizacional. “Porque nenhuma decisão deveria ser tomada sem antes se fazer a pergunta
milionária: isso vai ajudar ou prejudicar a marca?” (p. 139).
Embora o cultivo da marca envolva a atualização contínua da sua expressão, deve-se respeitar
a um roteiro. “Uma marca viva é uma performance baseada na colaboração, e cada funcionário
da empresa é um ator [...] cada [uma das suas ações] acrescenta profundidade e detalhe ao
roteiro” (p. 136).
Considerações finais
The Brand Gap é um livro estimulante para quem atua profissionalmente na gestão de
marcas. Resume muitas das principais ideias do debate contemporâneo sobre branding. Sua
leitura é rápida, sua linguagem acessível, traz muitas orientações práticas. Pode ser uma
boa alternativa para quem não tem tempo ou fôlego para mergulhar numa literatura mais
acadêmica, na qual os conceitos apresentados por Neumeier estão longe de serem novidade.
O caráter simbólico e tribal das marcas na sociedade do consumo tem sido discutido
sistematicamente nas ciências sociais e humanas desde a década de 1960. Mais
recentemente, os antropólogos Grant McCracken (2008) e Douglas B. Holt (2005) chegaram a
dar um tratamento mais “executivo” aos seus estudos nessa área.
O livro de Holt, em particular, oferece um ótimo contraponto ao discurso de Marty Neumeier.
Em primeiro lugar, por nos ajudar a situá-lo no campo de estudos sobre branding. Depois, por
5. aprofundar a metáfora da marca como roteiro cultural.
Em Como as Marcas se Tornam Ícones (2005), Douglas B. Holt, compara quatro modelos de
branding:
● Branding de mentalidade participativa (ou modelo cognitivo de branding), cujo
argumento básico foi popularizado há 30 anos pelo livro Positioning: The Battle for
Your Mind (RIES e TROUT, 1980): para se destacar num ambiente poluído por tanta
informação, “uma marca deve ocupar uma posição simples e destacada na mente
do comprador potencial, realçando geralmente um benefício associado à categoria
do produto” (p. 31). A abordagem é plenamente desenvolvida no “modelo ‘cebola’ de
branding”, que associa ao núcleo estável da oferta diversas associações de marca.
● O Branding emocional é, na verdade, uma extensão do modelo anterior. Nele, as
associações de marca são comunicadas por meio de apelos emocionais, destinados a
enfatizar a peronalidade da marca e “forjar uma conexão íntima com os consumidores”
(p. 37).
● “O Branding viral presume que os consumidores, e não as firmas, é que exercem
mairo influência [no estabelecimento significados da marca]” (p. 44). A abordagem está
na moda por causa do avanço da internet em geral e das mídias sociais em particular.
● O Branding Cultural é o modelo defendido por Holt em seu livro e se aplica
especialmente às marcas de identidade - mas não apenas à elas. A abordagem sugere
que as marcas tornam-se ícones culturais ao contar e popularizar estórias que geram
mitos de identidade capazes de responder a contradições agudas da sociedade,
aliviando desejos e ansiedades dos consumidores. Holt conclama os gestores de
marcas a passarem “da persuasão à construção de mitos, de associações abstratas a
expressões culturais” (p. 51), “da consistência à adequação histórica” (p. 52).
Em qual desses modelos se encaixa The Brand Gap? Apesar de valorizar a colaboração dos
consumidores, Marty Neumeier enfatiza o enfoque e a proteção da marca. Ela deve se manter
pura em sua diferença, fiel ao seu significado original. Inconsistência só devem ser admitidas
se não ameaçarem os seus “atributos determinantes” (NEUMEIER, 2008, p. 134). Eis uma
daclaração típica do “modelo de mentalidade participativa”, uma premissa muito diferente
da adequação histórica sugerida por Holt em seu modelo de branding cultural: “os modelos
convencionais presumem que administrar uma marca seja vigiar” - descobrir a verdadeira
essência da marca e sustentá-la a todo custo -, quando, na verdade, para gerar identidade de
valor e preservar sua condição de ícone uma marca precisa ajustar seu mito “às mais graves
tensões sociais da nação” (HOLT, 2005, p. 52 e 53).
O livro de Neumeier responde ao crescente interesse pelo branding viral em duas passagens,
mas não é, de modo algum, um legítimo representante dessa escola. Ao insistir na importância
do feedback, o autor propõe um novo modelo de comunicação que funcione como um plano
para uma revolução, transformando o marketing “num esporte de contato e os espectadores
em participantes” (p. 103). Mais adiante, ao tratar do cultivo da marca, insinua a importância
dos boca-a-boca: “as pessoas lêem o roteiro de acordo com suas experiências com a empresa
6. e com comunicações e depois contam a sua versão para outros” (p. 136). Logo, porém,
opta por defender um programa de proteção da marca contra os riscos da “evaporação” de
seus significados (p. 140 e 141), abstendo-se de explorar toda a riqueza e as contradições
das “mediações de marca” (SEMPRINI, 2006, p. 183), da “cultura participativa” (JENKINS,
2009, p. 30 e 187) e da “co-autoria” do mito da marca (HOLT, 2005, p. 190).
The Brand Gap liga-se ainda mais erraticamente ao modelo de branding emocional. As
menções ao caráter emotivo da marca são secundárias e episódicas, sem nenhuma
elaboração teórica. Neumeier prefere se concentrar, mesmo que superficialmente, naquele que
é para ele o último estágio da evolução do marketing: marcas como meios de “identificação
tribal” (p. 38).
Esse breve cotejo entre as ideias de Marty Neumeier e a tipologia de modelos de branding
proposta por Holt, serve para situar The Brand Gap na genealogia dos estudos sobre marcas.
Trata-se de um legítimo representante de uma escola de pensamento muito tradicional,
que tem mais de 30 anos de elaboração, a escola do branding cognitivo. Sua abordagem
é temperada, no entanto, por discursos mais atuais, que tentam responder às novas
condições impostas às marcas pelo ambiente de negócios contemporâneo. Daí talvez ter se
transformado em um best-seller, pois é sempre mais fácil lidar com o inusitado apelando para
ferramentas conceituais que já dominamos.
Referências
HOLT, Douglas B. Como Construir Marcas Ícones. São Paulo: Cultrix, 2005.
JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2009.
McCRACKEN, Grant. Culture and Consumption II: Marketing, Meanings, and Brand
Management. Bloomington: Indiana University Press, 2005.
NEUMEIER, Marty. The Brand Gap = O abismo da marca: como construir a ponte entre a
estratégia e o design. Porto Alegre: Bookman, 2008.
RIES, Al e TROUT, Jack. Positioning: The Battle for Your Mind. New York: McGraw-Hill, 1980.
SEMPRINI, Andrea. A Marca Pós-Moderna: Poder e Fragilidade da Marca na Sociedade
Contemporânea. São Paulo: Estação das Letras, 2006.
STEEL, John. A arte do planejamento - verdades, mentiras e propaganda. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2001.