Este documento descreve o ritual católico da "Malhação do Judas" realizado em Natal, Brasil. O ritual envolve a confecção de um boneco chamado Judas, sua malhação por crianças e adolescentes, e sua queima no final. O documento analisa as interpretações locais do ritual, incluindo vê-lo como uma festa, uma punição a Judas, e uma válvula de escape para tensões sociais. Ele também discute os papéis de gênero e idade no ritual.
3. Os desafios do campo
Formação anterior em História e ingresso
recente na Antropologia Social.
Tema inédito nas Ciências Humanas.
Dificuldades para o estabelecimento de
um novo campo empírico e problemas
com os novos contatos.
“Descrição tensa”.
4. Malhação do Judas
A Malhação do Judas é um ritual católico que se inscreve
nas celebrações da Semana Santa. O rito compreende
três fases:
1- seleção de materiais para composição do boneco;
2- confecção do boneco chamado de Judas;
3 – Malhação, imolação, ou queimação do Judas.
O rito ocorre na passagem da “Sexta – Feira da Paixão”
para o “Sábado de Aleluia” à meia- noite.
A observação do rito foi realizada no bairro das Rocas e
adjacências nos anos de 2006 e 2007.
7. Historicizando as Rocas
Povoamento inicial na segunda metade do
século XVIII a partir de uma vila de pescadores.
Ampliação da população no século XIX com as
obras do porto de Natal.
Acréscimo populacional no começo do século XX
com a abertura das oficinas de trabalho para a
Estrada de Ferro Central do Rio Grande do
Norte.
Caracterização tradicional enquanto “bairro
operário”.
8. Sinhá Rocas
Palmyra Wanderley
“À beira da água
Nasceu um dia,
Ninguém estranhe,
Linda praieira
Tão desditosa,
Nasceu sem mãe...
A água salgada
Da maré rente
Encheu-lhe a boca...
E ela nem pôde chorar, coitada!
Com a boca cheia de água salgada,
Que ainda amarga na sua boca.”
9. AREAL
Luis Serrano
“Meia-noite,
O galo, relógio vivo da madrugada,
Ressoa pelo espaço a primeira badalada...
Descambo a ladeira,
- escada de areia à beira do morro -
Avistando, a sorrir, o clarão da Ribeira.
De longe ainda escuto
O ritmo exótico daqueles batuques
- pancadas constantes do coração
Alegre e ordeiro daquela gente.
E evoco o Brasil,
Negrinho de ontem em formação,
Ao canto da raça,
Sambando em espírito no afro ambiente!...
E assim é a vida do velho Areal,
Viveiro do “côco” e de estranhas cantigas,
Favela pacífica da minha Natal!.”
10. Visões e invenções sobre as Rocas
A população das Rocas elabora uma visão positiva sobre
o bairro e aponta a sua localização privilegiada e o
caráter festivo da comunidade como os principais
aspectos da vida social. Os moradores supervalorizam
suas tradições festivas em oposição aos sinais de
rivalidades e tensões que pontuam o cotidiano local.
As visões externas indicam as Rocas como lócus para a
prostituição, consumo de drogas e violência. A cidade
agrega uma imagem positiva ao bairro apenas no
tocante às diversas festividades nas quais as Rocas
tradicionalmente participa: o carnaval, a malhação do
Judas e as festas juninas.
11. Os malhadores do Judas
O ritual envolve todas as faixas etárias e ambos
os sexos, entretanto, percebe-se distinções nos
papéis desempenhados pelas diferentes
gerações e pelos gêneros em cada fase do rito:
A seleção de materiais é tarefa para as mulheres
adultas e crianças de ambos os sexos;
A confecção cabe aos adultos de ambos os
sexos;
A malhação é feita pelas crianças e adolescentes
do sexo masculino.
12. As interpretações nativas: a festa
do Judas
1- A primeira versão é apresentada pelos participantes
que percebem a confecção do boneco e a sua malhação
como uma “brincadeira”, uma “festa”, mais um momento
de sociabilidade do grupo. Revelando a posição e o
papel social dos interlocutores no seio da dinâmica do
bairro, a interpretação local da “brincadeira” é elaborada
por pessoas envolvidas e engajadas com as práticas
culturais do bairro, como a agremiação de samba. No
cotidiano destas pessoas é a festa que ocupa o espaço
maior de suas preocupações. O Judas pode ser um
artista da televisão ou simplesmente um boneco sem
identidade definida e reconhecida por todos.
13. As interpretações nativas: Judas, o
apóstolo traidor
2 – A segunda versão indica que o boneco é
uma representação de Judas, sendo a sua
malhação compreendida com uma “punição”
merecida ao apóstolo acusado de traição. Esta
percepção é muito forte entre os interlocutores
mais idosos e mais participativos das
celebrações católicas. Um sentido religioso é
dado ao rito, característico de quem identifica o
período como momento de transição das “trevas
da morte” de Jesus para a sua “ressurreição
gloriosa”.
14. As interpretações nativas: a crítica
social
A terceira e última versão nos sugere uma
“interpretação social nativa” do rito. A malhação
do Judas, é uma “válvula de escape” para expor
as frustrações sócio-econômicas da população
do bairro e sua “revolta” com autoridades
públicas, vizinhos falsos ou com personagens de
alguma influência no bairro, podendo ser
políticos, autoridades culturais ou sociais. O
Judas pode assumir as características de um
vizinho ou de uma figura popular mal quista pelo
grupo.
15. Interpretando as interpretações
A partir dos estudos desenvolvidos por Marcel Mauss, Henri Hubert e René
Girard acreditamos ser a Malhação do Judas um sacrifício simbólico dos
elementos de tensão do grupo.
A violência é direcionada para o boneco como uma forma de solucionar os
conflitos locais. Atuando no campo simbólico, se evita que esta violência
volte-se contra o grupo, ameaçando a ordem estabelecida.
A vítima para o sacrifício precisa ser alguém indiferente ao grupo e por
quem não será reclamada uma vingança. O Judas realiza esta função. Por
ter sido tocado pela violência de sua traição, é a vítima ideal para
solucionar a crise estabelecida e debelada ritualmente a cada Semana
Santa.
Poderíamos acrescentar a festa como aspecto presente no rito da malhação
do Judas, mas deixamos esta análise para outro momento.
A malhação do Judas pode ser vista de forma funcionalista, pelas soluções
que apresentam para os conflitos locais, esta versão pode também ser
melhor discutida em trabalhos posteriores.