O capítulo analisa as características narrativas e temáticas de A Ilha Fantástica de Germano Almeida. A narrativa é multifacetada com um narrador em primeira pessoa que conta várias histórias de forma fragmentada. As personagens são diversas e cada uma protagoniza suas próprias histórias. O espaço e tempo são representados de forma não linear através das várias narrativas entrelaçadas.
1. Análise do capítulo 3 de A Ilha
Fantástica de Germano Almeida
Trabalho apresentado por :
Sanaa Boutchcih
Seminário: Literatura africana
2. I- A narração : un narrador multifacetado
II-A acção
II-1- A Ilha Fantâstica: história de histórias
II-2 - Um bloco narrativo framentado em sequências
argumentais
II-3 - Da acção à estrutura interna
II-4 -Recomposição de uma história
III-As personagens
III-1 Segundo o critério de importância
III-2- Segundo a natureza das personagens
III-3- Personagens redondas ou caracteres
III-3- Um protagonismo colectivo
III-4- Relação entre as personagens
IV-As coordenadas espaço -temporais
IV-1- O espacio
IV-1-1-Modalidades espaciales
IV-1-2- Espaços sicologicos ou semiotizados:
IV-2- O tempo
IV-2- 1- Tempo da escritura
IV-2- 1- Tempo da história
IV-2- 1- Tempo histórico
IV-2- 1- Tempo de relato
V-Os eixos temáticos
V-1- A idiossincrasia islenha
V-1-1- A fofoca
V-1-2- O sentido de humor
V-1-3- O carácter de reclusão
V-2- Sexualidade, mulher e crítica social
Plano de estudo
3. A narração
O rasgo que caracteriza à narração em A Ilha
Fantástica é a existência de uma voz em primeira
pessoa que conta umas histórias fragmentadas de
forma objetiva e desde dentro da história ou
diégesis narrativa. Não obstante, devido ao carácter
particular e sui-generis da obra, o narrador descobre-se
como uma entidade muito complexa.
Efectivamente, notamos que a maior
característica desta voz narradora é a sua categoria
multifacetada pelas razões seguintes:
4. Um narrador multifacetado
1- É um narrador em primeira pessoa:
- É um « eu » claramente detectável no discurso
através da presença de manifestações de uma
primeira pessoa gramatical de tipo singular:
« Ganhei fama de ter boa cabeça, de ser amigo de
estudar porque andava sempre agarrado aos
livros dá escola” p. 70
- Pode ser igualmente um « nós » que conta uma
história colectiva :
«E assim, ficámos de longo, ate que ouvimos
aquele grito de Pepa … » p. 75
5. Um narrador multifacetado
• 2- É um narrador « intradiegético » que conta desde
dentro da história. Mas há que distiguir que a narração
se leva a cabo desde posicionamentos totalmente
diferentes:
• A- Narrador protagonista, ou seja, personagem
principal: como no episódio relativo à escola primária
onde ele destaca como aluno sobressalente e ajudante
da mestre- p.69 e seguintes.
• B- Narrador- personagem, ou seja, não protagoniza a
acção, mas participa nela exactamente igual que os
demais como no passagem que relata a astúcia da qual
Pepa foi vctima -p. 75
6. Um narrador multifacetado
• C- Narrador testemunha: Aqui também distinguimos entre
dois tipos:
• - Uma testemunha Ocular: que não é partícipe na ação mas
que tem presenciado os factos e tem visto o ocorrido. Um
exemplo é o relativo ao atrevimiento do seu compnheiro de
classe Di :
« Assim, quando viu a Maria do Céu de pé, aproximou-se
sorrateiro e meteu-lhe ou espelho por debaixo. » p.68
• Uma testemunha ouvinte mas que não tem visto nada.
Neste caso conta o que os demais têm dito. Este é o caso
na mayoria das histórias contadas. Às vezes o mesmo
narrador diz-lo expressamente:
«Depois apareceu muita gente a dezer que …” p.77.
7. Um narrador multifacetado
• Do ponto de grau de conhecimento do narrador, podemos
dizer que é um narrador deficiente, já que não o sabe
tudo. A melhor prova disso é a existência de várias versões
da mesma história, discórdia em frente à qual o narrador
volta à memória colectiva e o que diz e sabe a gente :
« ...a gente sábia que ela passava sempre pela Rua de
Caboco» p.75
« …toda a gente sábia que a Justina nao tinha
homem…»p.77,
« Mas a verdade é que toda a gente estranhava… »p.77,
« … havia um problema que preocupava toda a gente..
»p.78, etc.
8. A acção
O conjunto de episódios narrados em A Ilha Fantástica caracteriza-se
essencialmente por uma clara heterogeneidade.
Trata-se de uma série de histórias cujos protagonistas são geralmente
diferentes e que não sempre se apresentam de uma forma linear. Por
isso há que sublinhar as especificidades seguintes:
1- Impossibilidade de dar um sozinho argumento a toda a obra por se
tratar de histórias que se cruzam, se entrecruzam , se cortam para
depois se complementar.
2- A inexistência de uma personagem que sirva de fio condutor como nas
autobiografías convencionais.
3- A desordem e a narração anacrónica que regem cumplicidade por
parte do leitor.
9. A Ilha Fantâstica: história de histórias
Do ponto de vista argumental podemos dizer que o
bloco narrativo número 3, objecto de nosso estudo,
pode se articular ao menos em 18 histórias que nos
dá uma visão fragmentaria dos acontecimentos e
que podemos apresentar do modo seguinte:
10. Um bloco narrativo framentado em sequências
argumentais
1. História de João Manco da sua ferida durante a
natação p: 56 . Os seus brigas verbais com Mão
Teteia- p.57.
2. História de Florêncio e a filha de nho Manel
pp:56- 57- 58
3. História da defesa das meninas locais durante o
casamento de Bento com uma mulher dae Rabil:
Mari Concha e o discurso de João Manco nunca
acabado : p 58-59
4. História de Ciùme entre João Manco e Tujinho, o
marinheiro: amor por Mari Bijome ou Mari
Moringue ou Mari a de Filancindade 59 -60
5. História de Fortinho e Titina: acosso sexual e
inteligência feminina 61-62
6. História da conquista de mulheres na ilha:
técnicas e usos varonis de Boa vista : p62-64
7. História de Marquinho, Nininha e Dudu :
escândalo de dois apaixonados -p. 64-65
8. História sobre a “cultura” das “pegadas” e a
reacção dos pais e famílias em frente a este
costume especifica da zona p. 65 e seguintes.
9. Volta a história de Florêncio e a filha de nho
Manel que acaba com um noivado oficial com a
intervenção de Tio Tone-p. 65-66
10- História da professora D. Odàlia; a sua forma de
ensinar, o seu comportamento exagerado para os
alunos, os castigos, o volume horário,etc, p.67
11- Lembranças da escola primária, a história de Di e
Maria do Céu - p68
12- História do narrador e o seu irmão Titide :
lembranças pessoais; a sua relação com a
professora mais temida da escola primária –p.69
13- História de D. Chucha ou D. Tchucha : professora
aberta e indulgente -p71
14- História de Tifulinho, a sua conflictiva relação
com Mana Rosa, Mari Bijou e João Manco 71-
74
15- História do novo administrador, o Sr.coralido,
que vem para devolver a ordem e a disciplina a
toda a ilha de Boa-Vista e a sua história com
Tifulinho e Mari Bijome 74
16- História do administrador e Pepa a mulher mais
atrevida da localidade 74-75
17- História da relação entre Pepa e Nez. As suas
briga por Jack Lagosta P75- 76
18- História de Justina , sua mãe Maria Bruxa e o
abuso cometido pelo novo administrador.
pg.76- 81
11. Da acção à estrutura interna
É sabido que, pese à repartição em episódios ou
capítulos :1,2,3,etc,. A Ilha Fantástica não conta
com uma estrutura linear nem com um sozinho
argumento coerente. A existência de uma visão
fragmentaria e de muitas histórias que se
seguem desordeiramente que se interrompem
para se complementar depois, dá um carácter
estrutural muito específico.
12. Só uma leitura atenta é susceptível de permitir
a determinação da estrutura interna da obra para
não dizer estruturas internas das histórias.
De facto, a obra precisa um leitor activo capaz
de poder recompor os fragmentos. Trata-se de
uma obra narrativa que se oferece como um jogo
de puzzle onde o leitor é convidado- de uma
forma ou outra - a rescrever as diferentes e várias
histórias.
Para evidenciar esta tese vamos a recompor e
ordenar a história de Florêncio e a filha de nho
Manel que começa na página 57, se interrompe
na seguinte , se faz referência a ela na história
N.18 sobre a “cultura” das “pegadas” e depois
complementa-se nas páginas 65 e 66.
13. Recomposição da história de Florêncio e a sua amada
Esta história pode recompor-se linearmente em função de um argumento tradicional:
Situação inicial:
-sequência 1: Encontro de dos dois jovens -Florêncio e a Filha de Manel- no marco da tradição local
da « pegadas» e as visitas secretas e nocturnas do pretendiente.
Desenvolvimento:
-Sequência 2: O ataque do cão « Tarzan » , a ferida acidental de florêncio e o escândalo que se arma
quando o pai da jovem se dá conta da relação amorosa.
-Sequência 3: Castigo da filha: proibição de sair fora de casa , corte de cabelo, desapossar dos vestidos
de sair, privação de festas e em casos urgentes sair acompanhada por um membro da família.
- Sequência 4: A astúcia de de Florêncio para continuar a visitarà sua amada na sua própria casa: calmar
a fúria de « Tarzan » mediante troços de carne.
Situação final:
- Sequência 5: A jovem termina grávida:
- Sequência 6: apresentação de Tio Tone para pedir oficialmente a mão da jovem para o seu sobrinho
Florêncio e consentimento do pai
15. Segundo o critério de importância
Por ser uma obra com carácter autobiográfico,
supõe-se que o narrador é o personagem
principal, mas notamos que, devido à
pluralidade e diversidade das tramas
narrativas , podemos dizer que cada
personagem é protagonista da história que
se relaciona com ele.
16. Segundo a natureza das personagens
• Personagen simbólicos: Significam algo independente da sua
própria existência; encarnam uma qualidade ou um valor que às
vezes se assinala até no seu nome:
• Manco:que tem um membro (ou parte dele) de menos, mas
também: defeituoso.
• Maria-Bruxa: com nome de Santa e de Mulher que faz bruxarias.
Uma mulher abandonada que se converte em religiosa mas que
acha que a desgraça da sua filha é resultado da providência divina e
de um destino prescrito.
• Teteia: Brinquedo de crianças.
• Tortinho:Torcido; oblíquo; flectido; empenado, errado; injusto; des-leal,
sanhudo, que gosta de fazer pirraças, etc
• Personagens autobiográficos: Representam aspectos da
personalidade ou vivências reais do narrador.
17. Personagens redondas ou caracteres
• Redondos ou caracteres: São personagens não comuns, contradictorios…
Fazem avançar a trama e evoluem ao longo da história:
• - O Sr. Administrador que vem para pôr ordem no povo mas que resulta
hipócrita e causa a desgraça da Estância de Baixo e sobretudo de Justina.
• Justina a mulher victima, mas também hipócrita e
adúltera que acaba igual como a sua mãe com filhos e uma paternidade
negada.
• João Manco: que devido ao seu complexo de inferioridade - defeito
fisico- desafia aos seus adversários e se esconde trás o seu perfil de
homem ciente e conhecedor da língua de Camões e da sua gramática.
• Mari a de Filancindade , Mari Bijome ou Mari Moringue que muda de
noivos e pretendentes tal como muda o seu nome.
• - Pepa: a mulher desgraçada, abandonada pelos seus próprios filhos e
molestada pela gente do povo, daí o seu carácter de mulher de boateiras e
com temperamento revolucionário contra todos, especialmente contra o
administrador.
• Etc.
18. Um protagonismo colectivo
Da proliferação de personagens, histórias
com quadros espaciais e marcos temporais
diferentes, e inclusive com polifonia de vozes
narradoras, podemos concluir que se trata,
afinal de contas, de um protagonismo
colectivo: o povo ou, mais concretamente, a
população dá Estância de Baixo, de Boa vista
e, por antonomásia, de Cabo Verde.
19. Relação entre as personagens
Pese à diversidade das tramas, as histórias cruzam-se e
entrecruzam e nasce assim uma relação de carácter diverso:
amor, ternura, ódio, Ciùme, amizade,
cumplicidade, indiferença, trahição,
xenofobia, etc.
Exemplos:
- Pepa: Odeia ao Sr. Administrador, fala mau de Justina e é adversária
de Nez.
- João Manco: tem uma aventura com Mari Bijou e está em relação
conflictiva com Mano Teteia, Tujinho, Tifulinho,etc.
- Florêncio: sobrinho de Tio Tone e amigo de João Manco ,
apasionado da filha de Manel com quem mantinha ao princípio
uma relação conflictiva que se converter-se-á depois em relação
de genro-sogro..
22. O espacio real
Todos os acontecimentos se concentram num espaço central que é a ilha de BOA VISTA
que se reduz essencialmente à “Estância de Baixo” que, pela sua vez, vai se concentrando,
segundo as histórias, em outros espaços de acção como o mostra o esquema seguinte:
Cabo Verde
Isla Boa Vista
Estância de Baixo
Casa de Tio Tone
O Quintal dà fammília
De Manel d’Ana
Casa da dà fammília
de Bento
Escola primária
Casa de Mana Rosa
Casa de Maria-Bruxa
Espacios rurais públicos: ruas, prayas,
etc
Casa de
Coralido
23. Alguns espaços físicos podem localizar-se
inclusive no espaço geográfico real como o
mostra o mapa seguinte de Boa vista :
Estância de Baixo
24. Praya Cabral
pp.- 58- p.76
A ribeira de
Rabil pp.55 –
56-58
Espaço principal onde
acontecem todos os
eventos narrados.
25. Modalidades espaciais
Os diferentes lugares ou espaços nos que se desenvolvem
a acções os podemos agrupar nas cinco seguintes
categorias:
1- Espaço rural: Estância de Baixo com as suas paissagens
naturais: hortos, terras de cultivo, ruas, prayas, etc.
2- Espaço real ou histórico: uma localidade – Boa Vista- de
Cabo -Verde realmente existente.
26. Modalidades espaciais
3- Espaços aludidos: são espaços aos que o narrador ou as personagens
fazem alusão sem que sejam espaços escénicos da obra:
Exemplos : S. Viscente onde está Alberto, o marido de Justina, Portugal,
Argentina, O Brasil onde etuvo Tutijinho, e inclusive Rabil, a província vizinha
de onde João Manco comprou as suas“batatas choncha”, etc.
4- Espaços fictícios: Quando se apresenta mais de uma versão da mesma
história, a verdade se perde entre os limites da ficção e a realidade e o
espaço, ainda que seja real, se converte em fictício e às vezes fantástico.
Toda a ilha de Boa vista se converte ao final da novela autobiográfica em
espaço fantástico : razão que justifica o mesmo título da obra.
5- Espaços sicológicos ou “semiotizados”: são espaços que refletem o estado
de ânimo do narrador ou personagem ou que passam à ter um valor
simbólico segundo a acção .
27. Espaços sicologicos ou semiotizados:
Alguns exemplos
A casa simboliza protecção, refúgio, calor familiar. Nho Manel,
como todos os pais do povo, encerra a sua filha na sua própria casa
para impedir que se ponha em contacto com o seu pretendente.
- Mas a casa pode converter-se em prisão, um espaço fechado de
tristeza e inclusive de morte. Este é o caso na história de Justina
que, ao final, se encerra na sua habitação desejando acabar com o
menino bastardo e com a sua própria vida « sei que vou morrer
mas quero morrer sossegada -p.81» .
- As ruas e os espaços públicos abertos não são só lugares de
trânsito, são espacios de boataria, de brigas, de hipocrisia, de
«pegadas» e amores, de injustiça social, de chacota, etc.
- Todo o macro espaço do povo pode se interpretar como um espaço
de prática machista, uma sociedade patriarcal onde rainha e rege a
lógica fálica e masculinista. Nenhuma mulher parece ser feliz.
28. O tempo
Sendo outro elemento narrativo mais (junto ao narrador, a
trama, as personagens e o espaço), o tempo tem uma grande
importância em A Ilha Fantástica na medida em que nos permite
contextualizar a vida colectiva de todo um povo com a sua cultura,
os seus costumes e tradições.
Podemos mencionar neste sentido as modalidades temporais
seguintes:
O tempo da escritura,
O tempo da história,
O tempo histórico ,
O tempo do relato.
29. Tempo da escritura
Os dados biográficos do autor permitem-nos
dizer que o tempo da escritura corresponde
aos anos noventa do século passado. Trata-se
de contos publicados na revista Ponto e
virgula baixo o seudónimo de Romualdo Cruz
e depois reeditados num livro:A Ilha
Fantástica em 1993.
30. Tempo da historia
Já que trata-se de um livro com carácter
autobiográfico, pode afirmar-se que o livro relata
toda uma vida que vai desde a infância do autor
até a data correspondente ao tempo da
escritura. Assim, podemos pretender, com razão,
e pese a que a cada história corresponde um
tempo que lhe é específico, que o tempo da
história abaraca desde mediados dos anos
quarenta até princípios dos anos noventa da
centuria passada.
31. Tempo externo o histórico 1
Com “tempo externo” ou “histórico” referimos-nos à época ou ao tempo histórico –
referencial ou real no que se desenvolvem as acções. Podemos mencionar aqui duas
referência que nos permitem localizar alguns acontecimentos do bloco sequencial
número 3 de A Ilha Fantástica:
Referência I:
« … eu assisti à entrada de Manuel Gomes da Costa em Lisboa no 28 de
Mayo, estava presente quando el fez o seu discurso ali no campo Grande
…» diz Tujinho con muyta ostentação. p60.
A referência ao décimo Presidente português e à data do 28 de maio remete
directamente a um acontecimento histórico e real , a saber a “Revolução portuguesa
de 1926” , ou seja, nome dado ao golpe de estado ocorrido o 28 de maio de 1926.
Esta evocación temporal de ordem histórico permite-nos situar certos eventos narrados
em A Ilha Fantástica na segunda metade do século passado.
32. Tempo externo o histórico 2
Referência 2:
Evocando umas lembranças da infância relacionados com a escola
primária, o narrador assinala que tinha 9 anos naquele tempo. Pois,
tomando em consideração o carácter autobiográfico da obra e
a inquestionável identificação entre a voz narradora e o autor da obra,
podemos concluir facilmente que se trata de 1953.
« … eu tinha apenas nove anos, Titide jà tinha
feito os onze » p.70.
1945 nascimento de Germano Almeida
1953: idade de nove anos.
33. O tempo do relato 1
De modo geral, o tempo do relato ou das acções em A Ilha Fantástica
não se apresenta organizado em função uma linha de tempo
cronológica. Parece que o tempo interno vai regulado por um fluir da
memória tanto individual como colectiva às que recorre o narrador para
contar a suas histórias.
No grupo sequencial número 3 notamos que o rastreamento das
histórias depende do que Roland Barthes chama “a lógica intemporal”,
ou seja, uma lógica “estética”que dá originalidade à narração de Germano
Almeida. Efectivamente o tempo do relato no bloco narrativo, objecto de
nossa análise, está intimamente relacionado com o aspecto estético de
uma narração regida por uma secuenciação temporal e temática
dominada pela lógica dos contos de carácter oral.
.
34. O tempo do relato 1
Ao falar desta tendência à oralidade não nos referimos só ao recurso ao
registo coloquial, familiar e vulgar, nem ao léxico crioulo ou a expressão
fixa e modulada – frases feitas como :
« chover bato= castigar- p74, « somar dois e dois e concluir que…»p-65,
“Chover vara marmelo; colar p.67.
Pois, a parte desta imersão na expresão verbal de uma comunidade
linguística determinada-Estância de Baixo- notamos que há um culto ao
oral através do uso das técnicas do conto oral:
A lógica de espontaneidade na evocação das lembranças.
A mudança contínua dos fios narrativos: aveces é uma personagem, mas
outras vezes é o um tema , um evento, o um espaço , etc.
A tendência a cortar o argumento de uma história para começar outra
nova para voltar a completar a história que ficou incompleta.
35. O tempo do relato 1
Todas estas técnicas , além do recurso, quase generalizado, à retrospecção ou analepse e
prospecção ou Prolepse dão ao tempo do relato em A Ilha Fantástica uma estrutura temporal
muito original.
Há que dizer que estes movimentos temporais para atrás (flash back) ou para adiante
(flashfoward), representam técnicas para dar uma lógica que vai de acordo com o modo de narrar
de Germano Almeida. Os comentários do próprio narrador a este respeito são prova disso:
“Mas palabra puxa palabra, una estória logo traz outra arrastada, fico
aquí nesse vai não vai nunca mais a estória que quero contar se
aprochega..” p.71.
Às vezes o mesmo narrador marca verbalmente a volta a uma história tal como o fazem os
narradores nos contos orales, como para dizer que tinha um corte, uma anticipação de um
acontecimento ou uma retrocesão para atrás:
“Mas voltemos ao Tifulinho. Tifulinho tinha ouvido o acontecido
…”p.71
36. O tempo do relato 2
Desta forma produz-se um tempo totalmente diferente ao real e
estabelece-se uma temporalidade artística, que é única do texto e
organiza o tempo interno do relato de forma anacrónica.
A tudo isto há que acrescentar que o tempo interno se
caracteriza por um ritmo rápido porque em poucas páginas se
narram relatos e acontecimentos relativos à vida de toda uma
galeria de personagens.
Pois, por exemplo, desde a chegada do novo administrador,
passando pelos seus amores secretos com Justina até o nascimento
do filho ilegítimo, passam muitos meses que, sintetizados na obra,
dão um ritmo que acelera o trascurso do tempo.
37. Os eixos temáticos
Do ponto de vista temático, a unidade narrativa , objecto de nossa
análise, descobre-se como um fluir da memória que apresenta uma série
histórias de amor, sofrimentos, decepçãoes, desilusãoes, aventuras,
atrevimentos, costumes, conflitos sociais, etc. até compor um mosaico de
temas que nos acercam à realidade vivida pela população de Voa Vista, ou
mais concretamente dos habitantes da Estância de Baixo.
Devido a esta riqueza temática vamos concentrar-nos em dois eixos
principais:
1. A idiossincrasia islenha: através das fofocas,o sentido do humor e o
carácter de reclusão.
2. A crítica social através da temática tabú do sexo e a imagem da
mulher na ilha.
38. A idiossincrasia islenha
Com idiossincrasia entendemos os rasgos,
temperamento, carácter, etc., distintivos e
próprios da colectividade da Estância de Baixo.
Este aspecto característico podemo-lo
aclarar através do estudo de três tendências
gerais:
a- A fofoca,
b- O sentido de humor,
c- O carácter de reclusão.
39. A fofoca
A vida quotidiana da população de Boa Vista, e da Estância de
Baixo em especial, está dominada em muitos níveis pela sua
tendência a propagar segredos de outrem e conversar sobre
a vida alheia.
A fofoca é entendida aqui no sentido que lhe dá José Ângelo
Gaiarsa :
“ ... a informação alterada de notícia ou o comentário
tendenscioso sobre un terceiro ausente”. P29.
40. A fofoca 2
As fofocas é um tipo de crítica fácil que existe em
demasia nos contos narrados não só na unidade narrativa
objecto de nossa análise, senão também em toda a novela
em geral.
Do ponto de vista funcional podemos assinalar duas
funções esenciais:
1- São fonte básica de informação para o narrador.
2- São responsáveis pelas tensões e conflitos que permitem o
desenvolvimento das acções narradas em A Ilha
Fantástica.
41. Deste modo A Ilha Fantástica oferece-nos uma sociedade onde a
gente se deixa manipular em muitos aspectos dá sua vida pelo que dizem
e pensam os demais. A “vox populi” ou voz popular domina toda a
comunidade e, às vezes, um mesmo acontecimento pode ter várias
versões. Todos parecem falar de todos:
Pepa fala mau do novo administrador, de Nez e de Justina e divulga os
seus segredos.
Todo mundo fala de Bento por deixar as garotas maravilhosas da
localidade e casar com uma jovem de Rabi.
A história de Mari Bijome se converte em tema de conversação pública.
Tutijunho e João Manco criticam-se mutuamente e a cada un fala mau do
outro.
Etc.
A fofoca 3
42. O sentido de humor
O humor com todas as suas modalidades –
linguístico e de acção- revela ao leitor facetas
muito fasciantes e prodigiosas do carácter ilhéu.
Serve para relaxar as tensões e os conflitos
entre as personagens. Mas também serve para
criticar a sociedade mediante uma ironía aguda
como a relacionada com o filho ilegítimo de
Justina:« Era apenas mais um filho que ia ficar
sem pai: chuva deu, ele naceu! »p.77.
43. O sentido de humor 2
O humor serve igualmente para dar uma dimensão fantástica e
prodigiosa aos factos narrados. É muito significativa, neste marco, a
referência por ejemlo:
A aprendizagem da arte da luta por correspondência desde Brasil- p71- ,
O perfil caricatural de personagens como Pepa e a suas ameaças ao
administrador com salpicar-lhe com excrementos p.74,
A caracterização caricatural de João Manco como « trovador » ou poeta
do povo ..
O uso de um dicionário de língua para resolver mal-entendidos - p.73.
Os episódios fantásticos dão ao discurso narrativo um carácter
puramente cómico, mas não se trata de uma comicidade gratuita. É um
humor que traduz o mesmo temperamento prodigioso de toda uma
localidade.
44. O carácter de reclusão
Em A Ilha Fantástica descobrimos igualmente um temperamento de
reclusão e de apego a todo o islenho. A identidade é considerada
como marca de pertence ao próprio espaço local. Daí vem a
animadversão e embirração , sentidas para todo o estrangeiro
Exemplos:
1- Maria de Filacindade deixa o seu trabalho por não querer ter nada
que ver com o ingleses p.60.
2- Ou Bento é severamente criticado por deixar todas as jovens da
sua localidade e optar por uma garota dá província de Rabil: pg.58-59.
3- Todos os administradores que vêm de outras partes são, segundo
Pepa:
«… gente (que )vinha para Boa Vista para perjudicar filho de parida.
Eram todos iguais! Não tiravam companheiro de bordeira»p. 79
45. Sexualidade, mulher e a crítica social
Diz-se que cada literatura leva a sua marca de
identidade. A literatura africana definiu-se, a
maioria das vezes, como uma criação baseada no
pudor; na expressão eufemística sobretudo
quando se trata de temas tabus como o sexo e as
relações carnais.
Em A ilha Fantástica descobrimos uma
expressão libertada e de subversão onde se
mistura o jargão, com o português peninsular e
com a variedade linguística croula e inclusive a
linguagem grosseira.
46. Sexualidade, mulher e a crítica social 2
Efectivamente o tema do sexo e das relações amorosas, sobretudo
ilícitas, representam uma das coordenadas medulares do argumento da
obra.
Deste modo, Germano Almeida não recorre só expressões simbólicas
para integrar as cenas de amor, senão que usa uma expressão
claramente referencial. É de sublinhar aqui que não se trata de
apresentar simples quadros pornográficos com a simples finalidade de
provocar ou excitar.
Pois, o tipo de erotismo que se descobre neste romance
autobiográfico, e que supõe uma manifestação explícita do acto sexual
tem por uma parte uma função testimonial, visto que se trata de um
fenómeno ou comportamento social existente e real. Por outra parte, o
falar da sexualidade implica uma crítica dirigida a sistema sócio-moral de
uma comunidade que se pretende conservadora e o prohíbe pese a que
se trata de uma prática generalizada em toda a comunidade islenha.
47. Sexualidade, mulher e a crítica social 3
A modo de exemplo podemos remeter ao
passagem onde Pepa, um das personagens
fofoqueiras, comenta a cena da relação sexual
ilícita entre Justina e o Sr. Administrador-:
“(…) Justina … só tinha aceitado deitar-se com o
Sr. Administrador com camisa de vénus, que
explicava ser uma bolsinha que os homens
punham nos seus aparelhos e onde as suas
maldades ficavam retidas sem entrar para as
entranhas da mulher…” p78.
48. Sexualidade, mulher e a crítica social 4
Notamos a referência directa não só através do
verbo “deitar-se” que significa “meter-se na
cama” senão também através da alusão à
camisinha ou “CAMISA-DE-VÉNUS” que só se
usa como preservativo ou contraceptivo nos
actos sexuais e também a clara definição que a
personagem dá deste tipo de envoltorio. Pois,
ainda que a cena é descrita de forma eufemística
e metafórica onde as duas palavras “aparelho” e
“entranha” se referem respectiva e
manifestamente aos órgãos genitais masculino e
feminino.
49. Sexualidade, mulher e a crítica social 5
A crítica consiste em demonstrar que a sociedade se
aferra a valores morais que todo mundo sabe que não se
respeitam na prática.
A existência da tradicional « pegada» com todas as suas
implicações supõe uma contradição aberrante no sistema
ético da comunidade islenha. Por uma parte os amores
secretos e realcções sexuais ilícitas castigam-se
severamente – ocasionam fofocas e burlas, prohibição de sair de
casa, corte de cabelo, pancadas, etc.- mas por outra parte há toda
uma tradição e umas regras específicas a este mundo
ilhéu de como há que conquistar uma mulher até chegar a
abusar dela.
50. Sexualidade, mulher e a crítica social 6
A imagem que se dá da mulher é muito negativa.
Evocando as suas lembranças infantis, o narrador faz
referência a uma imagem estereotípica da mulher. Esta
última não é julgada nem pelas suas competências
espirituais nem pela sua inteligência nem pela
instrução que recebe, senão pelas suas habilidades
caseiras. Uma boa mulher é aquela que dispõe das
obrigatórias qualidades de dona-de-casa.
“Conhecia-se, alias, a boa dona de casa pela forma
como fazia a sua cama, se deixava sem rugasn ate
porque a cama principal da casa era un objecto de
sala de visitas” p70.
51. Sexualidade, mulher e a crítica social 7
A mulher é educada numa sociedade patriarcal onde a casa
familiar pode converter num cárcere e onde a menor suspeita de
relação de amor é castigada violentamente.
A mulher é vítima do abandono: o caso de Maria Santa –Bruxa é
muito significativo mas o da sua filha é ainda mais dramático,
porque o seu esposo não está presente e ela está grávida de um
filho que está condenado a crescer como bastardo.
A mulher é igualmente vítima das superstições. A trágica
experiência de Justina interpreta-se pela sua mãe como uma
providência que não se pode evitar. Em vez de jogar a culpa ao
administrador que abusou dela e depois a jogou fora da sua casa,
ela opta por um fatalismo que relaciona a desgraça da sua filha com
a sua própria desgraça:
“… quando é vontade de Deus nada há a fazer em contrário, a
cada um tem que cumprir ou destino com que sai dá barriga dá
sua mãe”p81.
52. Sexualidade, mulher e a crítica social 8
Parece que nesta sociedade regida por uma lógica
fálica e marginalizadora, nenhuma mulher é destinada
a viver feliz. Daí vem o grito alarmado de Pepa, outra
mulher sofrida que vive a sua femindade no
desencanto e abandono totais:
“esse povo não tem alma, não gosta de ver
ninguém levar a sua vida em paz” p78.
É justamente por este desencanto e pela pressão de
um regime social machista e injusto que Pepa se
converte no protótipo feminino revolucionário:
53. Sexualidade, mulher e a crítica social 7
Pepa com, a sua atitude revolucionária, converte-se na
consciência viva do povo, desmasca ra a crueldade de um
sistema de governo que trata aos obreiros com muita
injustiça. A referência à irónica e sarcástica cena onde os
trabalhadores se castigam só por ausentarse uns instantes
devido a uma necesidade biológica é muito significativa;
“E se (ou administrador) achava que um dels tinha um
pupu muito demorado, cortava-lhe logo um dia de
trabalho na folha.” P.79 .
O mesmo Teofilo tem que se encarcerar só por não aceitar
a atitude escravizadora de se pôr de pé e saudar com
humilhante reverência cada vez que se encontra com o Sr.
Administrador. p 80
54. Conclusão
Podemos dizer, em resumidas contas, que a
análise da unidade narrativa que constitui o
bloco número 3 de A Ilha Fantástica nos permitiu
determinar algumas das especificidades do
discurso narrativo da obra em questão.
O estudo da acção, das personagens e das
coordenadas espaço-temporais mostrou-nos a
diversidade e pluralidade dos componentes
narrativos assim como a sua originalidade.
.
55. Conclusão
O exame sequencial das acções mostra que a
obra autobiográfica de Germano Almeida se
baseia no fluir de uma memória individual,
mas que se nutre de toda uma memória
colectiva, a dos mesmos peronajes que se
convertem- como por magia- em narradores
de histórias que nos acercam a cada vez mais
à população de um povo que se nos oferece
como um mundo mítico e mágico..
56. Conclusão
A visão fragmentaria, a secuenciação interna à
imagem de um espelho rompido cujos troços o
leitor tem de recompor, a lógica de uma
anacronía temporal que dá originalidade ao
modo de narrar, o uso das técnicas do conto oral,
a itrrelação de histórias diferentes, a ausência de
diálogos, a primacia do estilo indirecto, a mixtura
mágica de registos linguísticos,etc. são alguns dos
aspectos que distinguem o discurso narrativo de
Almeida e lhe conferem um carácter estético sui-generis.
57. Conclusão
Heredeiro de toda uma tradição oral,
Germano Almeida nos oferece através de A
Ilha Fantástica um “jorro” contínuo de
histórias entrelaçadas que oferecem ao leitor
um mundo cheio de fantasía, ternura, amor,
dor e humor, mas também um retrato
etnográfico fascinante de uma cultura, uns
costumes e uns temperamentos pouco
comuns.
58. BIBLIOGRAFIA
Barthes, Roland, Le Degré zéro de l'écriture, Paris:- Seuil, 1972.
da Costa, Marta Morais, Teoria Da Literatura, IESDE BRASIL, Batel,
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GAIARS, José Ângelo Tratado geral sobre a fofoca: uma análise da
desconfiança humana, São Paulo, Summus Editorial, 1978
HUGLO, Marie-Pascale e ROCHEVILLE, Sarah, Raconter?: les enjeux
de la voix narrative dans le récit contemporain, Paris, Editions
L'Harmattan, 2004
NUNES, Benedito, Tempo na Narrativa, S.Paulo, Atida, 1988.
VEIGA, Manuel , Cabo Verde: insularidade e literatura, Cabo-
Verde KARTHALA Editions, 1998