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Sobre a obra:
A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo
de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples
teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.
É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial
do presente conteúdo
Sobre nós:
O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade
intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem
ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site:
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
Incertitudes, ô mes délices
vous et moi nous nous en allons
comme s’en vont les écrevisses
à reculons, à reculons.
APOLLINAIRE
Q UANDO FECHOU
o portão da Rua Bojuru, o empregado da boate varria a calçada em frente.
— Deu ladrão na rua.
Não se espantou nem se preocupou, estava com sono, dormira mal, Renata tivera
pesadelo, gastara parte da noite com a filha ao colo, e agora a lombeira, preguiça de descer à
cidade. O mar, no fim da rua, azul, com cheiro de mundo.
Passou pela casa de Seu Amadeu. A velha, noventa anos quase, espiando da janela.
Deu bom dia por molecagem, ela ficará pensando até tarde: quem foi? Ninguém a cumprimenta:
a Ilha sabe odiar.
Dia estúpido à frente, compromissos sem importância, Marcela, discutir com Dico,
beber com Binho, voltar para casa, dormir. O ladrão passando pela rua, no meio da noite. Não
lhe roubará nada, é dos que nunca são roubados, jamais lhe roubaram alguma coisa.
“— Sexta-feira. Nome do amigo do Robinson Crusoe, o que tinha uma ilha. Homero
tinha outra. Vulgar ter uma ilha, não me salva. Napoleão nasceu numa e morreu noutra.”
Ilha, sexta-feira, amanhã é sábado, depois domingo. “Quem existirá por mim no
domingo?”
O cenário sim, permanecerá o mesmo: duas filhas, ladrão que viola as noites, rua, ilha,
mar entrando pelas retinas com gosto de mundo.
E agora até o ladrão.
Se houvesse sol lá fora ia à praia com as meninas. Mas o tempo úmido, o dia encoberto,
o cinza pesado entristecendo tudo, envolvendo as árvores em sombra pressaga. Para os longes do
mar alto a neblina cerrada é muralha que confina com o céu sem cor. As garotas estão
resfriadas — lembrou — não, a praia é impossível.
Sábado sem sol, sem perspectivas. Poderia ouvir música, mas o dia não ajuda. Levanta
para fechar o janelão do living, começa a soprar viração, o gosto de sal e de velas molhadas
paira na sala, as cortinas inflaram ameaçando os bibelôs dos móveis. O quadro que o Raul lhe
dera — a bailarina de saiote vermelho que nem em D. Quixote — fica torto na parede. Endireita
o quadro mas a bailarina continua torta, o arabesque é que era torto, só então reparo nisso.
“Imbecil ter isso pendurado na sala, Irene nunca foi de arabesque, é má no clássico”, e foi por
causa dela que pendurara o quadro em cima do piano.
Abriu o livro, tentou ler, fez esforço para entender o que lia: deu para entender que não
entendia nada. E ainda por cima Renata começou a cantar lá embaixo as canções que aprendera
no Jardim de Infância:
Primavera, primavera,
rainha das estações,
lindas flores dás à terra
e alegria aos corações!
Música tão tola quanto a letra, o que salva é Renata colocar emoção própria ao
desafinar nos agudos.
Pela manhã, antes do tempo se fechar de todo, fora à praia com as meninas. Valéria
mal teve tempo de tomar um sorvete e Renata de machucar o dedo na bicicleta do filho do
Araújo.
Araújo é engenheiro do Estado. Diz que os edifícios da cidade estão em péssimas
condições de segurança, no mês passado viu um, de 12 andares, na Rua do Rosário, enterrando
em seus escombros perto de vinte pessoas. Na semana retrasada caiu o velho pardieiro da Rua
São José, onde funcionava um sebo de livros e discos usados. Edifícios familiares a Cláudio: o
primeiro mantinha uma agência de penhores. No oitavo andar funcionava a costureira que volta
e meia fazia uns vestidos horrorosos para sua sogra.
Foi tudo abaixo. Fora ver os destroços, as pás dos bombeiros entravam na caliça, um
cheiro insuportável saía daquilo. Restaurantes em volta fecharam — ninguém comia sentindo
cheiro de carne humana apodrecendo. Cada corpo desenterrado fazia a polícia impedir o trânsito
em todo o quarteirão, a multidão metia o lenço no nariz mas continuava olhando.
O outro, da Rua São José, não teve cadáveres. Enterrou discos e livros usados, coisas
limpas, sem cheiros comprometedores. Ali vendera discos chiados, livros chatos ou inúteis. Em
compensação, comprara interessante coleção de obras pornográficas e o Manual do Motorista
Sem Mestre que muito o ajudara a ser reprovado duas vezes nas provas de habilitação. Passara
na terceira vez porque subornara a banca examinadora, estratégia que não aprendera no Manual,
mas na Bíblia, lendo o livro dos Juízes.
Tudo ruiu. Foi contemplar os destroços. O sujeito com cara esfomeada catava entre os
montões de terra. Removeu vigas, meteu a mão no pó, apanhou um livro. Espanou-o, soprou-o de
todos os lados, desamassou as pontas, só então viu o título. Deixou-o cair novamente, abanando as
mãos, o miserável.
Lembrava isso enquanto Araújo, com auxílio do tamanco que nunca dispensa por causa
dos cacos de vidro das ruas, fazia croqui demonstrando as causas prováveis dos desabamentos
ocorridos ou a ocorrer. Ficou sabendo de coisas alarmantes, vários prédios na iminência de ruir:
— As vigas estão rachadas, a massa atua no ponto A e C, há sobrecarga motora no
ponto B. Ora, a perícia tem constatado que as rachas estão justamente no ponto B, o sinal é
evidente, os prédios vão cair mais dias menos dia. Foi isso que relatei no meu parecer ao
processo mandado instaurar pelo governador. Mas o diretor do meu departamento despachou
embaixo: “Informe o dia e hora em que vão cair.” Repliquei: “Mande a mãe informar!” Fui
suspenso por 15 dias!
Julgando-o não esclarecido, apagou os primitivos desenhos e começou a esboçar outros,
enormes, ao sabor da areia lisa.
A mulata passou, pisou na pilastra de sustentação. Araújo recompôs a pilastra, com
medo que o desenho ruísse sem aquele ponto de apoio. Foi nesse momento que Renata machucou
o dedo nos aros da bicicleta do filho dele. Ela veio chorando, dedo em pé, sangrando já. Aquele
sangue mais importante que todas as pilastras que sustentam o mundo.
Araújo é delicado. E, como o diz comumente, “é pela justiça”. Pungiu-se, receitou
pomadas, desancou o guri com severidade, torceu-lhe as orelhas — o que no fundo alegrou e
vingou Cláudio, embora esboçasse alma grande por fora, não foi nada, não foi nada, coisa de
crianças.
Levou-a para casa. Na pressa, esqueceu os cigarros. Quando voltou à procura do maço,
já o sol sumira de todo. O vento soprava mais forte, encapelando o mar, tornando as ondas
amareladas e curtas. Ondas que subiram com a maré, levando as pilastras de sustentação do
Araújo. Do vasto desenho sobrou um x assinalando a maior concentração das vigas, das colunas,
do diabo. O x ficou ridículo na área, sozinho.
Um pouco do sangue de Renata — também.
Na esquina da Rua Guiricema, Seu Jair abana a cabeça furiosamente e, com o gesto, o
corpo todo abana, inclusive a saca de compras onde uma tainha bota a cara para fora e parece
tomar parte na discussão. A mulher do Evaristo teimava, nunca tinha visto nada, a Ilha tem é
muito vagabundo, muito safado, desde que o marido fora estagiar no norte, todos os dias recebia
gracinhas na sua própria porta, não podia botar o pé na rua, não respeitavam sequer os filhos, no
armarinho da Avenida Paranapuã, com a filha menor ao colo. Seu Amadeu tomara liberdades
— um devasso. Agora, ladrão não, podia-se dormir de janela aberta, como ela sempre fazia. Na
semana passada um dos garotos tivera dor-de-dente, ela passara parte da noite acordada, só viu
foi a correria do próprio Seu Jair perseguindo um fantasma que para ela não existia.
Seu Jair jura, faz os dedos entrarem pelas órbitas, olhos que um dia a terra comerá — é
o gesto — vira o ladrão, todos os moradores da Rua Bojuru já andavam prevenidos, Seu Amadeu
andava até armado. À mulher se obstinava:
— Ladrão, não. Tarado, pode ser.
Não falaram claro, mas ambos pensaram na história de Tereza. Seu Jair andava em
maré de amor com Seu Amadeu, talvez por causa disso não aprofundou o assunto, também nada
ficara esclarecido, lugar pequeno, mulher moça e forte, cobiçada por muita gente, nuca se
apurou direito o caso de dois anos atrás, já Tereza casara e fora embora para bem longe, por sua
vez o demônio-nu nunca mais apareceu, embora a mulher do Evaristo fizesse pé firme, talvez
fosse o mesmo tarado em busca de mulher.
Cláudio vinha da praia com o maço de cigarros, toma a calçada oposta ao ver Seu Jair,
evita a conversa cacete, o único assunto que mora sob aquele crânio que começa a ficar calvo e
comprido como um ovo. Bem verdade que sempre arrisca um pequeno olhar às pernas da
mulher do Evaristo, assim vestida ninguém dizia, mas na praia aquelas pernas tinham valor.
Seu Jair fez meia-volta, acompanhando o passo de Cláudio para surpreender qualquer
indecisão na marcha e dar o seu bom-dia. Mas Cláudio caminha firme, sem vacilação, duro
como militar em parada. Seu Jair completou o resto da volta novamente face a face com a
vizinha, a tainha abria a bocarra serrada e engolia o pasmo que Seu Jair soltou ao ar e que é a
única frase que Cláudio chega a ouvir:
— Um mistério!
Depois do almoço, cachimbo na boca, caminhando pelas ruas desertas. A Ilha almoça,
não esbarra com ninguém, só com vira-latas que passam ao largo, sem lhe dar importância.
Andar é bom, fuma o cachimbo em paz. Vai até a praia, espia o mar sem cor, opaco
dentro do dia opaco. Um barco teima em enfeitar a paisagem, a vela vermelha vem de
Jurubaíba e vai para o Jequié, oferece ao vento sua carne de pano, flácida. E a viração da barra
entra nos olhos, salgada.
Sobe a Rua Chapot-Prevost e dobra lá em cima, no posto de gasolina do velho Paterone.
Pisa os paralelepípedos incertos da Avenida Paranapuã, tenciona passar pelo bar do cinema,
comprar cigarros, depois voltar para casa pela Rua Guiricema. Prolonga a caminhada mais um
pouco, desce a Rua Jari.
Só então percebe que seu destino era a Rua Jari. Pisar o mesmo asfalto que Marcela
pisava quando voltava da praia — mais que destino, missão.
Junto ao ginásio, para as bandas do novo bairro que construíram, a casa que Marcela
alugou durante o verão. Casa modesta, velha, quase ruína. As janelas verdes, empalidecidas
pelas chuvas e pelo sol. O matagal ao lado, ninho certo de mosquitos, picavam Marcela à noite,
sugavam aquele sangue gostoso — mais tarde ele sugaria o sangue de Marcela, no apartamento
do Denis, quando ela enfiou a agulha no próprio braço para mostrar que não temia a dor física.
Era doce o sangue de Marcela, e quente. Eles começaram a conversar por causa dos mosquitos,
“que que o senhor usa contra os mosquitos?”
Para diante do portão. Tudo fechado. Parece recordação de infância a casa, coisa
definitivamente acabada, consumida. Faz esforço para encher aquilo, abrir as janelas, botar o
maiô grená de Marcela secando ao sol na corda dos fundos. Não adianta. Na corda pousa uma
cambaxirra. Gosta de cambaxirras, lembra que houve um período de sua infância em que o pai
chamava-o de cambaxirra.
O pé de pitangueira, ao lado da varanda. Não gosta de pitangueiras, sofreu muito em
cima de uma, onze anos, a cara do velho Almeida, vermelha, “Dona Helena, seu filho é um
ladrão”. Um ladrão!
A varanda suja, uma chinela no meio do pó. Não, não de Marcela, era da velha, a mãe,
que desconfiara de seu interesse pela filha. Velava pela virtude de Marcela com maior
ferocidade que o marido. Este era bom homem.
Do apartamento em frente, a matrona o observava, avaliando-o. Sonda a possibilidade
de um vizinho, para alugar ou comprar a casa?
Exibia-se, botava a cara na janela para se fazer integrada na paisagem, sólida,
inarredável. Ou talvez quisesse dizer que as chaves estavam com ela, era só pedir e ela lhe
mostraria a casa, as condições.
Não queria chaves nem condições, queria dar o fora, já com raiva por ter ido mexer
em passado tão recente, tão dorido ainda.
Dobrou a esquina. Aquele trecho também lembrava Marcela, quando ela andava de
cara baixa, olhando o chão. A terra a chamava e isso era bom por causa da mecha de cabelos
que lhe caía pela testa, tapando metade do rosto, sem traços regulares, mas cuja profundidade
ele não conseguira medir.
Lembrou certa noite. Espreitava-a, sabia que ela sairia para comprar balas junto do
cinema. Ficou escondido no muro do ginásio, protegido pela árvore que quebrava a luz do
lampião da esquina. A velha ficara na varanda, vigiando as trevas, a miserável conhecia os
passos de Cláudio, desconfiava de sua perseguição: um muro branco e de repente ele aparecia.
Virava uma esquina e ele parecia sair do chão, repentino, inadiável.
Usou de um engenho não destituído de arte, na hora lhe pareceu esplêndido: fingia-se de
coxo. Encurtou uma perna, bamboleou a outra, abandonando as mãos feito asas de moinho,
como se delas precisasse para remar o ar.
O homem gordo que trabalha na Alfândega estava na janela de sua casa. Abriu os olhos
ao ver o coxo inusitado surgir das trevas. Chegou a abrir a boca, o cigarro ficou-lhe preso ao
beiço — o homem não compreendia. Quando Cláudio surgiu, além do matagal, já no passo
normal, o homem não entendeu mais nada. Quê que fora feito do coxo? Mamava o cigarro com
ar prudente, perscrutava as sombras, olhos arregalados, farejando o sobrenatural, “é assim que
os milagres começam!” Ponderou o mato, cheirou o ar. Nem incenso nem enxofre. Como fora
possível, ali em suas barbas! Quando a mulher chegou da ladainha, contou que o coxo era cor-
de-sangue, tinha chifres. Apontou o fura-bolos para o matagal, com autoridade:
— Foi ali!
Para as bandas da praça, envergado de cachaça, Mixole grita contra o mar, coisas
carinhosas, terno, um bêbedo diante do mar. Mais além, no botequim que acompanha a curva do
jardim, Seu Amadeu ofega. Assunto predileto esse, o descompor a ilha depois da ponte. Tudo
começara com o ford verde-claro que parara ao lado. O homem saiu para comprar cigarros e
enquanto esperava o troco perguntara onde ficava a Rua Olímpio Mendes. Ninguém sabia, só Seu
Amadeu. Mas antes de dar a informação valorizou sua ciência e propagou suas ideias. Onde já se
vira nome tão estúpido para uma rua que antes da ponte era simplesmente Rua das Trepadeiras?
Trepadeiras nos dois sentidos, logo ao início, quase a desembocar na praia, havia a chácara do
velho Gusmão, onde não tinha muros, apenas a vasta cerca de trepadeiras vermelhas, tão
vermelhas e tão destacadas do verde em redor que servia de ponto de referência aos pescadores
que se aventuravam pela ilha do Rijo. Trepadeiras também no outro sentido: para os fins da rua,
já na subida do morro que pertence à Marinha, a famosa casa da Dolores, casada com
fazendeiro de Minas, onde se reuniam forçosamente todas as prevaricadoras da ilha, as
malcasadas que flertavam durante as travessias das barcas e tinham medo de frequentar os
ninhos da cidade, perto do local de trabalho dos maridos. Na pasmaceira dos dias de verão, o sol
batendo a pino contra a rua de areia, um ou outro vulto de mulher se esgueirava pelas calçadas.
Os homens eram menos discretos, vinham de bicicleta mesmo, e Dolores recebia a todos, até
meninos se pervertiam com mulheres de quarenta anos — ah! a Rua das Trepadeiras! Veio a
ponte, Dolores foi processada, voltou para Minas, um deputado morreu de enfarte, a Câmara
homenageou-o com aquilo, aí estava, Rua Olímpio Mendes!
O homem já recebera o cigarro, o troco, o excesso de informações de Seu Amadeu. O
ford fez manobra e tomou a direção do Bananal, mas a conversa estava lançada, Seu Jair vinha
distraído com os jornais no braço, parou ao ouvir a voz do vizinho no velho tema:
— Estragaram tudo! Os nomes, as pessoas, os hábitos! Nada agora presta! Até ladrão
anda por aí!
Ponto de coincidência com a ordem de ideias de Seu Jair, que entrou no botequim como
quem não quer nada.
— Aqui está Seu Jair que não me deixa mentir.
Seu Jair pretendia confirmar, mas ao dar com os olhos de Seu Amadeu, olhos
empapuçados que o chope raiava permanentemente de sangue, lembrou-se da conversa com a
mulher do Evaristo, a evocação do episódio de Tereza, o demônio-nu — e sem saber por que,
preferiu ficar calado.
— Seu Jair tem visto o ladrão também, pode confirmar tudo!
Ninguém no bar se interessava pelo ladrão. Era assunto exclusivo de Seu Amadeu e Seu
Jair. O ford já sumira pela avenida da praia em busca da ex-Rua das Trepadeiras, Seu Jair
sentava ao lado do chope e Seu Amadeu gritava para quem quisesse ouvir:
— Qualquer dia a coisa estoura. Ou o ladrão me mata ou eu acabo com o desgraçado!
Gentil Pintor — que pintara os escudos do Vasco e do Flamengo na parede principal do
botequim, com a legenda: MÁXIMAS POTÊNCIAS, e que era pago no varejo da cachaça —
quis saber se o ladrão havia roubado alguma coisa ou pessoa. Seu Amadeu inventariou danos e
perdas de mais de trinta anos nas costas do ladrão.
— Mas o pior não é isso — juntou Seu Jair, esquecendo-se do episódio da Tereza — o
homem é tarado também, só vem à noite, corre como um demônio, pula os muros, parece que
anda atrás de mulher.
A fúria de Seu Amadeu abria um rombo de sangue no olho-azul:
— Eu mato esse desgraçado, no murro!
As quatro garrafas que esvaziara tremeram ao impacto do murro que acompanhou a
ameaça. Seu Jair pedia um copo e mordia uma empada, assustado consigo mesmo por ter feito
Seu Amadeu lembrar o passado.
Gentil Pintor saiu do bar, o negro Gibi chamava-o. O domingo caía sobre a Ilha como
um enorme cenário de teatro mambembe. Mixole, mais ao longe, pifado, mansamente
procurava abrigo sob as amendoeiras da praça, já a chuva fininha embaciava o ar. Pela avenida
da praia passou um homem escuro, saco de carvão às costas, apressado, o suor da barba
confundido com as gotas da chuva que apertava.
A mulher pede-lhe para apanhar Renata no colégio. Chove desde o meio-dia e o carro
está lubrificando no posto do Paterone. Vai de ônibus. Renata espera na porta do Jardim de
Infância, a cara apreensiva. Quando o vê, abre o sorriso clássico, que ele chama de sorriso
renatiano. Um jeito de sorrir com os lábios e com os olhos, feito a Mona Lisa. Tem mais que a
Mona Lisa: sorri com os cabelos, ela toda sorri. Sorri com a ponta do nariz que fica mais grossa e
brilhante, como que comovida com o próprio sorriso. Sorri com seus dentinhos estragados, está
na fase dos dentes, volta e meia vem com dente na mão, pede para jogar em cima do telhado,
contaram-lhe que dá sorte, ela não sabe o que é sorte mas deseja tê-la do mesmo jeito.
Renata espera e sorri. Sorriso que o encanta e o apavora: um dia mudará e para pior.
Talvez fique igual ao seu — e sofre quando pensa nisso. Cruel imaginar a bruxa que substituirá o
anjo que vem sentar em seu colo.
Aproveitando a chuva, ela estreou a capa nova, presente do último aniversário. Estreou
também um guarda-chuva novo, presente de não sabia quem.
Nem deu pela amolação da chuva. Diante de Renata, feliz na capa nova, os problemas
estacionaram por cima da cabeça. Tão forte essa impressão — a inquietação suspensa — que
olhou para cima: uma coisa negra e aberta: o guarda-chuva.
“— Por que os guarda-chuvas serão sempre pretos? Tudo mudou nos meus trinta anos
de vida. Das coisas feitas pela mão do homem só o guarda-chuva continua feio, ar fúnebre e
humilde.”
Jogou-o fora. E ficou comovido, como se tivesse praticado uma boa ação. Na realidade,
sentiu-se livre.
Encervejado, uma poça de sangue em cada olho, Seu Amadeu caminha trôpego pela
praia, de volta à casa. A chuva cai obliquamente e ele não a sente, a cerveja adormeceu-lhe os
sentidos, só a memória trabalha, e o ódio que vela. Voltar para casa para que? Aturar a mulher,
quase quarenta anos mais velha que ele? Guardar mais uma vez a chaga reaberta — cada vez
que o ladrão passa pela rua e a chaga incha como os baiacus incham fora d’água. Tereza inteira
o toma pelo corpo como carícia agora impossível, irremediavelmente impossível. A primeira
noite, o grito que Tereza deu no quarto, Seu Amadeu velou a noite toda e isso fora há uns três
anos, ou menos talvez. Uma semana depois outro grito, Tereza vira o demônio-nu, um corpo
moreno totalmente nu, em cima do peitoril da janela. Seu Amadeu correu, chegou a dar um tiro
para o ar, a aparição sumira de repente.
— Como é a cara dele?
— Não sei. Só vi que estava nu.
Tereza nunca mais gritou. Mas uma noite — e Seu Amadeu ao recordá-la deu um chute
violento na areia pipocada pela chuva — ele acordou com ruídos estranhos dentro de casa. Pé
ante pé foi ao quarto da frente, onde dormia Tereza. A porta fechada, a luz fraca da mesinha de
cabeceira acesa e aquele ruído, aquele ranger de cobertas e corpos que se possuem. Com um
grito esmurrou a porta que pouco resistiu. Viu apenas o traseiro, mais alvo que o resto do corpo, e
logo o vulto nu se atirava às trevas que pousavam na janela, como imensa pálpebra escura.
Teresa, nua também na cama traindo um longo e selvagem rito de sexo, os olhos esbugalhados
de surpresa e de raiva, de insatisfação pelo amor interrompido, e de pavor, já a grossa munheca
de Seu Amadeu descia-lhe pelas coxas, pelo ventre, pelos seios nus que se amassavam, a mão
fechada cevando-se brutalmente naquela carne que desejaria acariciar — e o barulho foi tal que
a velha acordou e veio ver o que se passava e viu Seu Amadeu esbofeteando a filha-de-criação
que estava nua, e quando a velha viu Tereza nua percebeu que há muito tempo a menina que
adotaram recém-nascida era agora um mulherão de boas carnes e que Seu Amadeu naquela
raiva traía o despeito e ela que nunca entendera como o marido podia passar tantos anos sem
procurar mulher na rua — entendia tudo agora, até mais do que desejaria, Seu Amadeu
esbordoava Tereza, sem dó, a mesma mão fechada que destinara às primeiras carícias, íntima
aquela mão à carne de Tereza e os últimos murros foram dados contra os travesseiros, Seu
Amadeu caíra de bruços na cama, chorando.
Cláudio se entrega ao aborrecimento, uma docilidade estranha diante da dor. No fundo,
julga obrigação sua aborrecer-se de vez em quando, para compensar talvez o restante da
semana, bem vivido ou bem sofrido não importa — alguma coisa bem, sim. Depois da semana
acidentada, a monotonia doméstica do fim de semana pesa em silêncio. Não bastando a
monotonia em si, ele encontra motivos para agravá-la, tem boa, excelente capacidade para
agravar as coisas.
Janta sozinho. A mulher fazia pizzas, demorariam a ficar prontas, isso foi pretexto para
que jantasse só, sem esperar pelos outros. Foi fumar o cachimbo na varanda da frente, Valéria o
acompanhou, como de hábito, tentando puxar conversa. As pizzas ficaram prontas, a mulher veio
trazer-lhe uns pedaços. Aceitou para ser gentil, depois subiu ao apartamento. Foi quando
descobriu motivos sérios e tolos, atuais e antigos para ficar aborrecido.
Abre a geladeira. Apanha uma tangerina, vai chupá-la da janela do quarto. Atira
caroços nos fios molhados da rua. A chuva desce, fina. Acerta alguns, os pingos caem ao mesmo
tempo.
Sabor azedo na boca. Aliviou a tensão. “Bom sentir alguma coisa amarga na boca
quando aborrecido por dentro, justificando alguma parte do aborrecimento”. Em Recife, por
exemplo, a terceira noite, estreia do ballet no Teatro Santa Isabel. Comia a torta de maçã com
creme, de repente o Jarbas, rodando nos dedos a chave do carro do Valter, o que dava em cima
de Irene. Bastou isso. Complicado mecanismo funcionou lá dentro, hormônios misteriosos saíram
das glândulas e despejaram no sangue um veneno cruel que o engasgou de súbito.
A torta cresceu dentro da boca como pedaço de estopa suja de óleo. Transbordava para
fora — tanto crescia. Controlou o engulho, sentiu músculos retesados prendendo vômito. Um
tamarindo azedo na boca e talvez a coisa não saísse tão amarga assim. Reagiria melhor
encontrando um justificativo orgânico, “é o tamarindo, é o tamarindo”, o cérebro teria de
responder ao mesmo tempo a dois apelos amargos — e ele sofreria menos.
Não é época de tamarindos. Chupa a tangerina, alivia a pressão. Depois abre o livro,
esforça-se novamente para ir avante na leitura mas é chamado ao apartamento do cunhado para
o parabéns da menina que estão criando e que faz anos. A mulher fez-lhe o bolo, com dez
velinhas por cima.
Quando resolve descer já tinham cantado o parabéns. (A voz de Renata sempre
desafinando nos agudos!) Mesmo assim bate palmas, por nada mesmo, só para fazer qualquer
coisa com as mãos.
“— A família faz pena. Há sempre um pouco de lama, em certas horas, em
determinadas datas, sob determinadas emoções comuns, se esquece a lama. Mas ela paira por
cima de tudo: ao menor pretexto rompe os diques e emporcalha tudo. Ódios velados, amores
recalcados, palavras amargas, gestos apressados formam um mundo misterioso e amargo que se
arrasta com cada um. Sobe-se acima da planície: a família reunida, fotografia antiga onde todos
já tenham cumprido sua missão. Não se pode rotular essa gente quotidiana que entra pela nossa
vida sem licença, imposta.”
Desce mais fundo. E no estranho limite do amor e do ódio encontra uma quase solução.
“Tudo se localiza nesse estreito limite — e limite talvez não seja, mas gradação, hierarquia.”
Sobe novamente. Tenta ler outra vez, custa a encontrar o trecho onde parara. Logo as
crianças sobem para ouvir música na vitrola laqueada de Renata. Músicas de roda, canções que
chateiam por fora mas encontram lugar para doer dentro:
O cravo brigou com a rosa
debaixo de uma sacada
o cravo saiu ferido
a rosa despedaçada.
“— Despedaçada ou despetalada? Ou desfolhada? — Cláudio prefere que seja
despedaçada.
A mulher veio arrumar as plantas que mantém em vasos de cerâmica. Coloca-as no
peitoril da janela para o benefício da noite. Trouxe lá de baixo alguns discos que a cunhada
levara, teve o faro do pior, só levou porcarias, nem cometeu o favor de quebrá-los, devolveu-os
intatos, numa fidelidade ao ruim que só a mulher consegue ter.
Retém na mão, por acaso, um deles, o Batuque, de Nepomuceno. Lembra novamente
Recife. Era o número final, pertence à classe fácil que predispõe a um fim de espetáculo
agradável, satisfaz o gosto do público.
Ele sofria na medida em que esperava. Irene nem esperava terminar: quando as luzes
baixavam na posição final ela saía correndo. As luzes se acendiam outra vez, notava-se a atitude
desfeita, Irene e outras mais apressadas já tinham sumido, não ficavam nem para agradecer aos
aplausos.
Elas começavam a descer, cada grupo arranjara bons lugares para passar a noite.
Convidavam Cláudio, ele mentia, dizia que já tinha compromisso, fazia ar misterioso, o deixavam
então, em paz e em dor.
Sofria à proporção que os camarins iam ficando vazios. Irene era das últimas a descer,
arranjara conhecimentos, frequentava clubes noturnos, voltava madrugada já — e ele sofrendo
com a chave do apartamento dela pendurada no quadro dos hóspedes, houve a manhã em que ao
acordar correu à portaria e no quadro vazio, os pregos apontando para seus olhos atônitos,
destacada, medonha, lá estava a chave imóvel, repousada, provando que Irene passara a noite
fora.
Na última noite ela se aproximou. Convidou-o informalmente, como se não fizesse
questão. O grupo de Irene era o mais fechado, ninguém entrava, ele teria de aproveitar a brecha.
Dançaram a noite toda.
Se acaso você chegasse
no meu chatô encontrasse
aquela mulher que você gostou...
Ela parou de repente, olhou-o fundo nos olhos:
— Você tem um mistério na vida?
Cláudio concordou, modestamente, que diabo, impossível que procurando bem não
encontrasse um mistério na vida.
Um amigo recente deu-lhe o cigarro suspeito, foi fumar na varanda do Iate Clube,
enquanto Paulinho Burgos tocava ao piano uma fantasia sobre músicas espanholas. Felicidade ou
maconha — pairava. Irene humilde, encostada a seu ombro, os olhos úmidos e azuis, cabelos
batendo de leve na sua boca — impaciente boca.
Dia raiando sobre o Capiberibe. Caio Cunha, dono da festa, fez servir gim, o copão
enorme com tônica e gelo. O copão passou de boca em boca feito o cachimbo da paz dos índios.
O gim da paz. Hábito do Iate Clube, para rebater os excessos da noite, consolidar triunfos ou
iniciar o tortuoso caminho dos esquecimentos.
Um gole só. O de Irene foi logo depois do seu. Colocou a boca no mesmo lugar,
demorou os lábios ali, olhando-o.
“— Foi o nosso primeiro beijo.”
Aquilo tudo saía do negro brilho do disco. Batuque. Recife. Irene. Dois anos atrás.
Vontade de quebrar o disco e dele retirar a emoção morta. Disco inquebrável, nonbreakable no
rótulo, “até isso fazem contra a gente”.
“— Saudade lúcida é uma droga. Saudade tem muita lucidez, mais angústia que
ternura.” Não sei por que, associo três andares em arquitetura moderna, vistosos, com frente
para Chapot-Prevost. Entre a antiga casa e o novo prédio, restou o espaçoso quintal que o velho
Andrade mandou cobrir de cerâmica e onde a família se reúne para os churrascos, o pôquer.
Fazendo frente à casa do Andrade, na Rua Bojuru, dando fundos para o cinema da
Avenida Paranapuã, o galpão que desde tempos imemoriais leva o nome de boate.
Periodicamente há danças por lá, como diria Seu Amadeu, antes da ponte, era dos lugares
tradicionais e melhor frequentados de toda a Ilha. A ponte avacalhou com a boate. Mesmo assim
ela persiste, e pelos carnavais, em feriados onde há muitos veranistas, o ambiente melhora.
Durante o resto do ano permanece fechada, um mulatinho pederasta tomando conta das mesas e
cadeiras.
À direita da casa dos Andrades, os vastos domínios de Seu Amadeu, dando saída para as
duas ruas, mas com maior frente. A casa ocupa um quarto do terreno, sendo o resto tomado por
enormes árvores que Seu Amadeu já encontrara ali, quando, há muitos anos, fora o primeiro
morador da rua. Uns quarenta metros após a casa de Seu Amadeu, a praia completa o quadrado
das duas ruas, unindo-as com o matagal que só agora o velho Paterone começa a pôr abaixo para
construir novo edifício.
No prolongamento da Rua Bojuru, para dentro do mar, a pequenina ilha do Manuel
Rodrigues, boa vegetação, uma roda de vento, uns pombos, e uma lanchinha amarela famosa
pelos naufrágios que sofreu. Um pouco à esquerda da Manuel Rodrigues, na pequena enseada
que precede a praia do Barão, um barco azul com fundo vermelho, permanentemente apoitado.
É o REX, do Seu Amadeu.
Mixole uma vez por dia atravessa a nado a distância que vai da praça até a praia do
Barão, espia as margens cautelosamente, sobe no REX e fica de cócoras. Na Ilha inteira sabem o
que Mixole vai fazer ali.
A chuva aumentou. O vento da barra sopra contra as vidraças. A mangueira do Seu
Morais geme soturnamente, açoitada por monstro invisível, no meio da noite. Cláudio, sozinho,
teme as coisas lúcidas que podem acontecer. Os fantasmas lá longe, vindo em silêncio, sem
deixar vestígios, como balões apagados da madrugada. E o ladrão passando pela rua, fantasma
ridículo, dentro das dimensões humanas, “mais dia menos dia a radiopatrulha bota a mão nele”.
Deu nove horas. A mulher encerrou a farra das crianças, Renata abriu a máquina-de-
escrever e pediu para escrever o nome. Valéria também veio, tomar bênção. Há o ritual que se
renova todas as noites: Cláudio faz três cruzes na testa delas, dizendo: “Que Deus te dê bons
sonhos, que Deus te faça muito feliz, que Deus te dê muita saúde!” Renata leva a coisa a sério, já
aprendeu o medo, teme os pesadelos e os ladrões, pensa que a bênção a livrará dos males que
aos poucos vai sabendo a vida cheia. Valéria toma a bênção como farra, a última farra, de um
dia cheio de farras.
Estão todas deitadas. Dormem o primeiro sono na cama dos pais. Quando Cláudio se
deita, lá pela madrugada, passa-as dormindo para o quarto cor-de-rosa, cheio de bonecas.
Quando ele está com preguiça, ou elas dormem agitadas, quem vai para o quarto das bonecas é
ele mesmo. Sente-se ridículo dormindo na cama laqueada de Renata, as pernas sobrando,
bonecas espalhadas em volta. Nunca disse a ninguém, nem tem a quem dizê-lo, mas sente
secreta vergonha disso.
O silêncio volta, pouco a pouco. Lá embaixo, na casa dos sogros, estão todos recolhidos.
A chuva bate com força mas a viração é mais forte quando sopra, insubmissa.
As meninas ouvem a história de todas as noites, a da baratinha que queria se casar. A
mulher tem voz propositadamente arrastada, até parecer reza de beata, sem convicção, um
cantochão que apenas embala. As meninas não resistem, dormem no meio, a mulher termina
vencida pela própria voz, dorme também, antes de concluir.
Quando querem histórias de verdade, as garotas vão pedi-las ao pai. Ele então as
espanta com farrapos de leituras, sonhos malucos que tem às vezes, sem nenhum sentido. Mas
para elas tudo sem sentido se faz bonito.
Por causa dos sonhos, Cláudio prolonga a vigília. Teme a ida para a cama, ou se
entregar aos fantasmas da noite. Não poderia precisar quando, mas há muito é perseguido por
pesadelos. Para evitá-los, prefere a insônia, toma comprimidos, passa duas a três noites insones, a
cara escaveirada a assustar amigos, a intranquilizar a mulher. Até que de repente vem a
brutalidade de dentro dele, a força misteriosa que o arrasta para a cama, inconsciente, e é o sono
violento, profundo, que o deixa atordoado durante os dias seguintes. De início pensou na
incontinência sexual, andava abusando, Marcela o esgotava, e afora Marcela, os casos mais
antigos, Marina, Irene, uma ou outra que volta e meia reaparecia e novamente desaparecia.
Programou vida de asceta, passava três a quatro dias evitando os encontros, mas justamente
nesses períodos acontecia-lhe o sono brutal que o atirava à cama como um possesso. Sofria
quando insone, sofria quando tinha pesadelos e sofria muito mais quando se entregava àquela
letargia mortal que o prostrava horas e horas. Procurava então, voluntariamente, o quarto das
meninas, onde podia dormir ou sofrer mais à vontade, sem incomodar ninguém.
“— Esta noite devo ter um pouco descanso.”
Em geral, após uma noite de sono brutal, sucediam-se duas a três noites suportáveis,
mais ou menos tranquilas, sonhos neutros que não o angustiavam.
Da boate em frente à casa do sogro começam o baile de todos os sábados. Ninguém
sabe o que vem fazer o ladrão em meio a gente tão inroubável. O clarinete sobe no Star Dust
desafinando, a bateria acompanha fora do ritmo, mas a dança persiste, não animada, por
obrigação parece, arrastada, como um dever.
O clarinete faz o floreio e ataca o bolero que andou muito cantado em tempo de samba,
pelo último carnaval. Aquela mesma música penetrou em Cláudio com um perfume: chambley.
O perfume de Marcela. Por que o bolero, por que o chambley? Por que Marcela?
Marcela viera assistir à festa dos veranistas. Houve oportunidade, tomara coragem,
quando deu por si já a tinha nos braços, inteira, flexível como uma enguia — o marido ria,
complacente, tranquilo.
A mecha queimada pelo sol da praia caía na fronte de Marcela. Quando a rodava com
mais força, aqueles cabelos batiam-lhe na boca.
— Vou sentir saudades do verão.
— Eu também.
— Pretendo voltar o ano que vem.
— As coisas não voltam: não adianta nós voltarmos.
— Em todo o caso, obrigada por tudo.
— Não precisa agradecer, não chegou a hora do adeus ainda.
— Isso não é adeus!
— Guarde os agradecimentos ou as censuras até lá. E até lá, o bem e o mal serão
recíprocos.
“Verdade, nós nos amávamos.”
Passado já. Passado de dois meses, tão distante Marcela de dois meses quanto Irene de
dois anos. Montanhas e vales nivelados pela perspectiva do tempo, a planície — “ou planalto?”
Não importa agora Os dias passaram, noites carregaram lentas tristezas e ausências,
difíceis de desfiar lá de dentro. Cláudio fecha os olhos e pensa em nada, mas profundamente.
Profundamente, a noite escorrega, levada pela viração da barra, qual enorme,
indeformável nuvem.
“— O mais estúpido dos domingos é que todos se parecem, como as sextas-feiras-da-
paixão e as quartas-feiras-de-cinzas. Os outros dias da semana trazem sempre algo de novo,
embora nada de único. Domingo não. Dá a impressão de feito em série, no rádio as mesmas
canções, os mesmos resultados no futebol, nas igrejas o mesmo homem bebendo vinho diante de
mulheres ajoelhadas. O dia em que descobrirem métodos seguros de hibernação artificial, irei
hibernar-me todos os sábados. Passarei o domingo na geladeira, renascerei na segunda-feira,
como esses gigantes pré-históricos que um dia despertarão do sono glacial e devastarão a terra
com suas garras e fomes milenares.”
Cláudio recebera uma carta: o homem de negócios pedia-lhe a opinião sobre um
assunto. Lá estava, textualmente: “o senhor é um homem equilibrado.” Homem equilibrado —
eis o homem. Seu pai o exibia com orgulho. Em todos os lugares arrastara a incômoda fama: um
homem equilibrado. Só ele sabe que não tem equilíbrio algum, fica em pé, permanece em pé
pela neutralização dos contários. Mas nada pode fazer por si.
Continua chovendo. A noite toda choveu e pela manhã o sol botou a carantonha para
fora, cuspiu um pouco de fogo e recolheu-se, entendiado. A mulher resolveu fazer faxina no
apartamento, convocou as empregadas para o serviço e ele ficou com as crianças até a hora do
almoço — sim, um homem equilibrado.
Tenta ler o jornal, mas Seu Jair vem pedi-lo emprestado, chegara tarde na banca, os
jornais tinham acabado e ele queria saber da situação na Arábia Saudita, os americanos são uns
safados. Lerá os telegramas e depois deitará sabedoria para cima de Seu Amadeu, ao pé do
chope.
Sobra-lhe o suplemento, artigos sobre Fernand Léger, Tentativa de Interpretação de
Joyce, A Fase Azul de Picasso, uns poemas. A cunhada aparece-lhe ao lado, num dos shorts
justos que ela teima em usar para desespero de muita gente da Ilha. Cláudio ignora se ela está ali
há muito tempo, só a percebe quando se pergunta se está entendendo os poemas. Nesse exato
momento ela lhe faz a mesma pergunta.
Responde que não — é mais fácil e digno. Para valorizar a ignorância, ou desculpá-la,
acrescenta que os poemas não se destinam à compreensão, e sim, à sensação.
É sóbrio:
— Não é para entender. É para sentir.
Ela faz cara de espanto — mas sentir o quê? — e retorna. Some tão repentinamente
como aparece. O noivo lá dentro, ela interrompera o namoro para se intrometer com poemas. Só
isso?
Ou o incidente não existia? Foi alucinação, ele lia os poemas, de repente viu as coxas
nuas, os cabelos louros, a pergunta que foi mais de dentro dele do que dela propriamente.
“— Não, não pode ser alucinação, sou um homem equilibrado, preciso repetir diversas
vezes para mim mesmo, escrever em cada página que leio, em cada muro que ultrapasso: sou
um homem equilibrado!”
Real ou imaginária, ela apareceu a seu lado, fez pergunta idiota, recebeu resposta
também idiota e desapareceu. Incomoda-o a surpresa de ter dado com ela. Geralmente, ele
adivinha a presença dela, há batedores motorizados que a anunciam à distância. Sente-a longe,
pela cor do céu, pelo silêncio das árvores, pela dimensão das nuvens. Sempre o incomoda. Dessa
vez as cautelas diluidoras falharam, ele fora apanhado de surpresa — e não a perdoava por isso.
Imagina um amuo com o noivo. Para valorizar o amuo, ela foi espraiar os cabelos lá
fora. A pergunta justificou sua presença ali, ela sabe que sua presença é bastante dolorosa
quando em silêncio. Voltou logo, a reconciliação deve ter sido gostosa, talvez não tenha sido isso
precisamente, mas Cláudio reconforta-se pensando que foi assim. Procura concentrar-se, sente
que amam às suas costas: “Ainda bem, isso faz sentido”.
O mar, ferida aberta, sangrando azul, lá no fim da rua.
Após o almoço tenta renovar o passeio da véspera. Passa pela Rua Jari mas não sente
nada. Fica pensando na emoção do dia anterior. Compara as duas sensações: qual a verdadeira?
qual a sincera? Ou nenhuma havia sido uma coisa ou outra?
“— O equilíbrio, não me entregar nunca, ficar sempre no meio, equidistante dos
extremos. Para que avançar? Mais se fica no mesmo lugar. Caminhos estáticos, isso sim,
começam e acabam no mesmo ponto estanque, estreito espaço. Tudo parece ter passado, o lado
bom do amor — é morto. Ou o lado virgem do ódio. Mastigar agora, até o fim. Marcela já
deslumbrou. Sei o que vem agora. A falar a verdade, começamos o fim e mal saímos do
começo.”
O encantamento da descoberta — valeu. No reconhecimento de que haveriam de
sofrer ainda, pouparam-se mutuamente, foram práticos, breves. Na realidade, estavam sendo
maduros. Já haviam desperdiçado muito fôlego em batalhas findas: nas mãos vazias, mãos de
gladiadores — apertavam agora o fracasso de tudo.
O costumeiro repasto. Sentia-se inferior a Marcela na capacidade do amor, de aceitar o
amor. Ela dava dignidade a isso tudo. Ele não. Procurava, quando muito, dar equilíbrio. Mas
como sofrer equilibradamente?
“— Sim, ela tem razão, eu sou muito ridículo!” — Tinha as amarras, latas grudadas
atrás de si, como os carros de recém-casados. — “Tenho latas também, mas as minhas têm
férias periódicas, liberto-me não das latas propriamente, mas das teias que me amarram a elas.”
— Não resolve. Ele volta fielmente às latas numa obsessão amarga. Parecem prendê-lo sem
laços, como coisas magnéticas. Marcela não, tem latas e teias isoladas entre si: a hierarquia da
prisão. Faz barulho se alguém a toca. Ou se ela mesma procura fugir.
É quando ele mais a ama. E quando ela mais se despreza.
O primeiro beijo obedecera a um roteiro interior que elaboraram isoladamente, sem
sequer se conhecerem, nem saberem ao certo no que daria a conversa das primeiras manhãs,
“que que o senhor usa contra os mosquitos?”
“— Cada amor é noviciado para outro que se abre à frente.” Cada qual ruminou o
roteiro amargo, na suposição de um mistério prestes a desabar sobre eles. E de repente abriram
os olhos e viram que estavam nus.
A obra de paciência e mistério desaguou naquele beijo: como quem começa a noite
amando uma virgem e de manhã descobre que dormiu com uma meretriz. Ou o contrário.
“— A vida faz dessas com a gente.”
Marcela sentada no meio-fio da rua:
— Sou peixe, sabe? Talvez me compreenda...
— Sou peixe também, há trinta anos, e até hoje não me compreendi. O signo é infame.
Prefiria ser câncer.
— Empatamos. Sejamos galantes então, o melhor é parar.
— Parar?
(“Desde o início sabíamos, por mais que andássemos não chegaríamos nunca a lugar
algum, nem sequer sairíamos do mesmo lugar.”)
— Temos muito a sofrer, Marcela.
— Juntos?
— Ou separados. Isso não conta. Conta é nossa predestinação, nossa vocação ao
sofrimento.
— Ao amor?
— Dá no mesmo.
— Sim, tudo dá no mesmo, quer continuemos ou não.
A chuvinha miúda começara a cair, ele sentia as costas molhadas.
— Vamos para dentro do carro?
— Para quê? Estou bem aqui.
— Honestamente, eu me sinto ridículo diante de você.
— E eu? pior ainda!
— Que que vai ser de nós dois agora?
Marcela deu de ombros. Pediu-lhe um cigarro. Parecia humilhada, houvera despudor
na sua primeira fraqueza, ela se oferecera, tomara o carro em situação tão equívoca que lhe
dava o direito de ser brutal. Diante daquela fraqueza, Cláudio se surpreendia, tão corrompido já,
como se fosse criança, tentando amparar um irmão menor. E ali estavam, a noite cúmplice, o
carro, a impotência em serem infelizes separados — “há que ser infelizes juntos, às vezes”.
— As aparências são contra.
— Tudo é contra.
Marcela riu. Fica feia quando ri, o riso agônico, sem nuança, boneco que ri quando a
corda dispara. Depois ficou séria. Inclinou a cabeça sobre o ombro dele, e ofereceu-lhe a boca,
aberta já. Cheirava a fumo, nervosa, parecia boca íntima, beijada não sabia quando.
Súbito, manda-lhe o olhar feroz. Descobriu tarde que podia ter prolongado a espera, não
soara a hora do suor comum.
Soou a hora.
Maduros, esperar mais e apodreceriam lado a lado, mesquinhos e inúteis. Descascaram
o fruto, chegavam ao bagaço. Precisavam do rito para compensar.
Primeira posse sofrida. Como que se perdoavam.
Não chegaram a chorar — seria doloroso demais. Mas o rito foi pranto alongado em
dois, pranto silencioso, humilde, tão sofrido que só às vezes parecia prazer.
Descanso também. No abraço final que os uniu, na posse — “como posse coisa tão
impossuída?” — sentiram as amarras todas, latas, passado, futuro, tudo o que os unia e separava
como faíscas que se repelem e atraem, cegas.
“— Para andarem no infinito, os aviões criam grades imaginárias. Tantos quilômetros
para frente, tantos quilômetros para trás, tantos à esquerda, tantos à direita, tantos acima, tantos
abaixo.
“Nesse quadrado imaginário se locomovem em paz, seguros.
“É o tijolo de segurança.”
“Os outros aviões respeitam esse quadrado, carregam ao redor de si tijolos iguais.”
Marcela e Cláudio. Finalmente um dentro do outro. “Que que o senhor usa contra os
mosquitos.”
— Vem, toma!
— Marcela!
— Toma! Toma! Aperta minha mão!
Sentiam o peso de grades que não se rompiam: “Tantos quilômetros para a frente,
tantos quilômetros para trás. Por mais que se espremessem, por mais que entrassem um no outro,
continuavam intatos, impossuídos. Quadrados petrificados, zona neutra entre os dois.”
— Toma! Assim, agora, assim!
Doía.
A PRIMEIRA SENSAÇÃO
foi estranha: os globos de luz da Praça Paris aproximaram-se, rodaram, afastaram-se
distantes, como no fundo de um túnel escuro, depois voltaram outra vez, enormes, entrando pelos
olhos. Binho agarrava o volante não mais para corrigir a posição do carro, mas para não ser
lançado fora. O lotação freou abruptamente ao lado, ferros rangeram, a senhora que esperava
alguém na alameda do centro deu um grito.
O susto foi tanto que ninguém no carro gritou, nem mesmo Tom, músico do Orfeu, cuja
mão parecia presa entre a carroçaria do MG e a gorda árvore que barrara o rodopio do carro.
Fora da pista, o MG ofega, tremendo, meio tombado. Um camarada salta do lotação,
ajuda Tom a sair, a mão bamba, a primeira impressão é triste, Tom nunca mais tocaria os
sambas bonitos que sabia fazer. Cláudio pula, o coração na boca, mas apesar do susto tem
presença de espírito para ir acudir Binho.
Junta gente. O lotação dá atrás e vai embora. Os carros que passam diminuem a
marcha, caras curiosas aparecem para inventariar os mortos e feridos. Um sujeito aparece de
repente, querendo prender todo mundo, diz-se autoridade, ameaça puxar poderosa carteira do
bolso mas fica no gesto, Binho analisa os danos do carro, paguei 18 contos de lanternagem na
semana passada, foi tudo para o beleléu, isso na hora não dói, amanhã é que vou ficar
desesperado. Só depois de examinar os pneus torcidos, a bengala caída, a lataria totalmente
amassada do lado da árvore é que se lembra da mão de Tom. Não havia sido nada, apenas um
arranhão. Tom aperta com a outra mão o pulso, mexe com os dedos, como garras de um polvo,
para testar os reflexos.
O sujeito quer levar alguém preso, depois de ver que ninguém aprova a prisão de
ninguém. Binho cheira a uísque, os olhos injetados, cabelos caídos pela testa. Cláudio manda a
autoridade à merda e o homem fica fora de si, exige respeito, faz novamente o gesto de quem
puxa onipotente carteira do bolso. Tom, o que menos berra, é o mais lúcido: chama o táxi, ele e
Cláudio empurram Binho para dentro, à força.
— Quebro a cara daquele veado!
— Quebra nada, Binho, o homem é do Distrito.
— Distrito uma ova, o homem é vigarista, não tem carteira nem nada, é cascata!
— Ele queria um cadáver. É desses que andam com vela acesa no bolso. Morre um
sujeito no diabo, longe de qualquer recurso, dois minutos depois aparece uma vela acesa ao lado.
O sujeito que bota essa vela é ele. Ficou puto porque não teve cadáver.
— Não fale em cadáver. Por pouco ...
— Vocês pensam que eu estou de porre?
— Pensamos.
— Merda para vocês!
— Não fique falando e olhando para trás. Olha que você vomita.
— Nunca mais dou carona a teso!
— Mas quem pagou o uísque fui eu!
— E quem vai pagar o estrago na minha mão?
— A mãe!
— Para onde vamos?
— Para a casa de Marina.
— Quem é Marina?
— Uma coroa que o Cláudio explora.
— Não é bem assim. É uma amiga minha.
— Todo mundo sabe que você é cafetão de Marina. Toma dinheiro dela para gastar
com outras.
— Mas você não é casado?
— O Binho está bêbedo, não ligue para o que ele diz.
— Isso é argumento de veado!
— Os senhores podem dizer para onde vão?
— Rua Duvivier.
— Zona de cafajeste.
— Amanhã tenho uma gravação, a mão está doendo.
— Nunca mais te dou carona, Tom.
— Não estou reclamando.
— Da outra vez vá de ônibus.
— Foi você quem convidou, eu não pedi.
— Eu estava de porre, você devia ter visto.
— Está ainda. O meu já passou, com o susto.
— Cláudio, você é um chato quando bebe!
— Já disse, não estou mais, a trombada curou.
— Pior: quando está lúcido é um imbecil!
— Você bebeu porque quis.
— Vira para a frente.
O motorista encosta o carro no meio-fio, Binho bota a cara para fora e despeja na
calçada um jato colorido, cheirando a azedo.
— Você mora aqui mesmo?
— Não. Moro na Ilha. Marina é apenas uma amiga.
— E ainda vai hoje para a Ilha?
— Deixei o carro na Esplanada.
— Tem carro? E por que deixou Binho dirigir?
— Eu estava ruim. Pensei que Binho dirigia bem, mesmo ruim.
— No carnaval ele entrou na traseira de um bonde, com o Citroen antigo.
— Ele me contou.
— O MG vai durar pouco na mão dele.
— Acho que já durou.
— Podemos ir?
— Vamos, está perto.
Binho passa o lenço pela boca, os cabelos caídos, fedendo a vômito, a cara de nojo.
Cláudio imagina a desculpa para invadir a casa de Marina tão tarde, com dois amigos altos, era o
diabo. O túnel do Leme fica para trás, a brisa do Atlântico varre o cheiro de vômito que se
espalhara pelo carro.
— Vou parar de beber.
— Faz bem.
— ]á te disse que você é nojento quando se mete a dar conselhos. Prefiro você bêbedo,
lúcido é uma droga.
Cláudio ouve pela segunda vez a palavra lúcido. Insistência cruel de Binho aquela,
chamá-lo de lúcido.
Marina abre a porta e finge não se incomodar com a visita àquela hora.
— São uns amigos, houve um acidente.
Marina conhece Binho de referências, não o imaginava tão pequenino.
— Tem sal de fruta?
Três doses iguais. Marina vai apanhar mercúrio-cromo, enfaixa a mão de Tom. Binho
deitado no sofá bate com as mãos na própria cabeça:
— Estou arruinado!
— Quem mandou beber?
— Não foi a bebida. Aquela curva é esquisita, não vi o meio-fio direito, bati com a roda
da frente, pisei nos freios desastradamente, o resto foi aquilo. Agora o carro está quebrado, é
jogar fora!
— Você teve sorte, podia ter matado um ou todos.
— Por mim vocês podiam ir todos à merda.
— Basta o lotação que vinha atrás não parar na hora.
Tom vem lá de dentro:
— Binho, respeite a casa.
— Nunca mais me meto com chatos, com burgueses-avaros!
Burguês-avaro — outra das senhas do Binho. Marina manda a empregada servir
pequeno lanche aos três, Cláudio olha Binho estendido no sofá, um pouco de raiva do amigo.
Amizade antiga, desde os tempos de colégio. Sumia e desaparecia de sua vida guardando certa
coerência tanto no afastamento como na aproximação. Períodos calmos para Cláudio, em que
tudo corria bem e Binho virava fantasma que não incomodava. Tempestades próximas, crises de
insônia e de dor-de-corno em potencial, e Binho surgia do chão, como sombra saída dos infernos.
Andara afastado de Binho há tempos, mudara de bar para não encontrá-lo. Mas no dia
em que possuíra Marcela pela primeira vez, ou pelo cansaço, ou levado por invisível mão, abriu a
pesada porta de vidro do Juca’s Bar, “o melhor ar refrigerado da cidade” — dizia a carteirinha de
fósforos que distribuíam como propaganda. Evitou o primeiro pavimento, subiu para o segundo,
enfiou-se num canto, solitário, a ruminar o Johnnie-Walker e o cheiro de chambley que lhe ficara
de Marcela em todo o corpo. Binho então apareceu como decorrência, como quem acorda e vê
a luz da manhã entrando pelas venezianas da janela: abrindo a janela o sol dá de cara, pontual.
Sujeito plácido e histérico o Binho. Plácido para com os outros, histérico para com ele
mesmo, dá a impressão de que está sob o efeito de droga, comido por fogo interior — é um
demônio por causa disso, a roupa de linho, o nó Windsor da gravata, os cabelos bem penteados
pretendem esconder o pé-de-cabra daquelas histórias em que o diabo toma aparências de
príncipe encantado para seduzir virgens: na noite de núpcias, ao tirar os sapatos, o pé-de-cabra é
o terrível estigma que o marca, eterno.
Marina chama para o lanche. Tom dá explicações, o carro vinha assim mas a roda
bateu na calçada e aí, Marina se força a ser gentil, mas demonstra impaciência no canto da boca,
esperara Cláudio desde as sete horas, ele prometera vir, já há duas semanas não aparecia, e
chegava àquela hora, com amigos uiscados, volta e meia vinha-lhe vontade de chorar ali mesmo,
em frente a todos, para que os amigos de Cláudio soubessem como ele era mau. O orgulho
impedia-lhe isso, Cláudio nunca mais a perdoaria, e ela não poderia viver sem ele, agora já não
tinha dúvida, era seu último amante, despertara a atenção dele aos quarenta anos, então havia
tempo, agora não, nem sequer tinha mais disposição para arranjar outro, depois de Cláudio era a
velhice, o fim, e continha a vontade de chorar para que ninguém soubesse que ela temia o fim.
— Binho tem bebido muito, é bom que Cláudio o fiscalize um pouco. Foi imperdoável
da parte dele deixar Binho dirigir no estado em que estava, eu não reparei porque havia bebido
também e não sei dirigir, e agora está aí, o carro quebrado, a mão doendo, amanhã tenho uma
gravação.
— O senhor é músico?
— Mais ou menos. Componho também.
Cláudio esquecera-se de apresentar Tom. Pensa em interferir na conversa dos dois,
mas prefere ficar calado. Evita assim o olhar ansiado de Marina que lhe pede contas e lhe cobra
faltas. Binho ameaça dormir e Cláudio vai acordá-lo, tinham de ir ver o carro, àquela altura já a
polícia tomara conta da situação, esperava o dono, a chapa anotada, Binho tinha de se explicar de
qualquer maneira, bastava o carro abandonado para contrariar os regulamentos.
— Cláudio, você não vem comer?
— Não.
Tom come à vontade, o acidente abre-lhe o apetite, mantém conversa com Marina e
Cláudio é-lhe grato por isso. Levanta-se, cutuca Binho com o braço:
— Não dorme não. Temos de voltar lá.
— Vão vocês. Reboquem o carro, façam o que puderem. Eu não aguento mais!
Vira a cara e emborca.
Marina aproveita estar a sós, manda-lhe finalmente o olhar que ameaçava desde o
início. Cláudio faz um gesto aborrecido:
— Pelo amor de Deus, hoje não, depois eu explico! Tom volta do lanche, satisfeito,
fumando cigarro, a mão enfaixada por Marina parecendo mais leve que a outra:
— Binho dormiu?
— Dormiu. Vamos nós ver o carro.
Saem. Marina olha agoniada para Binho dormindo em seu sofá e para Cláudio que se
retira.
— Não se preocupe, ele está inofensivo, lá pelo meio da noite acorda e vai embora.
Pelo jeito com que vai calado no elevador, Cláudio percebe que Tom o censura pelo
tratamento dado a Marina. Pretende explicar qualquer coisa mas sobe-lhe uma vaga preguiça de
abrir a boca.
“— Pense o que quiser! Dá no mesmo!”
Na Praça Paris, quase deserta, o aglomerado de seis pessoas marca a presença do MG
espatifado. Dois guardas conversam, encostados nas motos paradas em cima da calçada. Tom e
Cláudio dão explicações, não há derramamento de sangue nem ameaça de. Pagam a
intervenção cirúrgica da gravidez tubária da amante de um dos guardas, os dois racham o preço
da gravidez tubária bem nas barbas deles e tudo fica nisso mesmo.
— Podem mandar rebocar.
Tom conhece a garagem onde Binho guarda o carro, vai dar o telefonema. Cláudio
toma o táxi, volta à cidade, vê o studebaker sozinho na imensa esplanada, deserta então. O carro
escuro tem algo de resignado. Sem saber por que, lembra o silêncio de Tom no elevador. O carro
parece censurá-lo também. Outra espécie de censura, maior, mais funda, mais sua.
Pelo caminho, rumo à Ilha, pensa em Marcela que foi sua pelo meio da tarde. No
acidente que trouxera a morte tão próxima e já tão distante outra vez. Nem com a posse de
Marcela, nem com a visão da morte conseguira romper os quadrados de segurança. Perseverava
intato no seu mistério — ou na sua lucidez.
Julga-se um estranho que guarda o intato indefinidamente, como a criança que não abre
seu saquinho de balas para que fique eterno.
O studebaker corre macio pelo concreto da ponte. As luzes do Galeão refletem-se nas
águas da baía, a luzinha vermelha do avião pisca lá em cima, iniciando a curva para tomar pista.
Cláudio diminui a marcha para coincidir a passagem com a descida do avião. Mas logo percebe
que a luzinha vermelha se afasta cada vez mais, e penetra, como uma estrela, na enseada da
noite.
— Papai, hoje tem arrozinho?
Cláudio suspende a leitura e olha a cara da filha.
— Você não jantou lá embaixo?
— Não. Só tomei café com sanduíche.
Valéria chega do quarto, correndo:
— Faz arroz, papai!
A mulher não gosta, mas cala, atenção nos sapatinhos de lã que está fazendo para uma
sobrinha que ainda vai nascer.
— Vamos!
Não sabia como, aprendera a cozinhar. Gostava de lidar com panelas, com temperos,
tinha boa mão, famosa pelos verões a sua sirizada da meia-noite, um panelão de siri refogado no
azeite. Renata e Valéria preferiam o arroz complicado no qual entrava toucinho, paio, linguiça,
cenoura, temperos todos e arroz naturalmente, que não chegava a lavar, para não prejudicar a
autenticidade do arroz.
Renata e Valéria comiam um prato cheio. Cláudio comia-o pelando, botando mais sal,
para justificar o vasto copo de água gelada. No fundo, sabia que preparava com o arroz de hoje a
úlcera de amanhã.
O bom senso da mulher:
— Você está estragando o estômago dessas meninas!
— Elas é que pediram!
Valéria quer agora o cachimbo. Cláudio dá-lhe um, não mais em uso, a filha recalcitra,
quer o que o pai está fumando. Cláudio oferece-lhe outros, de sua coleção. Tem uma porção e as
garotas o julgam muito importante, o camarada mais importante do mundo. De uma só tragada o
veem fumar cigarro e cachimbos de todos os feitios e tamanhos. Isso estabelece tabus dentro de
casa, os pacotes de fumo são intocáveis, os cachimbos são vasos sagrados do Templo. Elas
sabem que ele mexe naquilo com intimidade de Sumo Sacerdote, espiam-no do fundo de seus
olhinhos miúdos e o consideram a coisa mais poderosa do universo.
A mulher não forma na mesma opinião. Os apetrechos são trambolho, reclama contra
tantos cachimbos, tantos objetos feios e inúteis que sujam os tapetes.
As meninas vão deitar. O ritual da bênção renovado, que Deus te dê muito isso, muito
aquilo. Valéria recebe a bênção rindo. Renata leva a sério, para evitar os pesadelos, os ladrões da
noite.
— Papai, ontem eu sonhei que estava dando ladrão!
— Não foi nada, isso de ladrão é mentira, é para as crianças ficarem bem
comportadas...
— É que nem bicho-papão?
— Mais ou menos. Ninguém acredita mais em bicho-papão, então os adultos inventam
o ladrão que rouba as criancinhas...
— Por que os homens grandes são tão maus?
— Porque são grandes, minha filha.
Cláudio, sozinho agora, no living, descobre que tem medo também. Medo de não sabe
bem o quê. Mas não tem ninguém a quem pedir bênção. Tenta se abençoar sozinho, mas não é a
mesma coisa.
Abre o janelão. Araújo vem da praia, de braço com a mulher, os dois filhos à frente,
falando alto.
— Boa-noite!
— Boa-noite. Na praia está frio.
Cláudio não dá conversa, Araújo é desses de ficar a noite toda falando.
— Até amanhã.
Pensa em ir deitar. Mas vive fase de repulsa à cama. Na véspera dormira tão
violentamente que nem sentira: Valéria passara para sua cama, tinha um alfinete segurando a
medalhinha do anjo da guarda, o alfinete estava aberto, entrou no braço de Cláudio e ele nem
sentiu, quando acordou viu o lençol sujo de sangue, precisou raciocinar para sentir a dor.
“— Não quero perder meus domínios, ficar solto, sem minhas amarras, sem meu
equilíbrio, sem quadrado de segurança. Não deve ser nada, excesso de bebida talvez.”
Desde o dia do acidente com o carro de Binho que deixara de beber Johnnie-Walker,
passara a beber rum. Na garrafa tinha o rótulo: Santiago de Cuba. O negro de. Garcia Lorca,
verde que te quero verde.
“— Verde que te quero verde me quedo sozinho. O homem tem de resolver sozinho
todos os problemas realmente importantes. Nem mesmo a experiência alheia ajuda: como é a
morte, quem é Deus?”
Silêncio invadindo a casa. Cláudio ouve o barulho da sogra fechando as portas lá de
baixo. É uma mulher barroca de olhos azuis. Existem um ao lado do outro, sem palavras, mas o
silêncio entre eles não tem nenhum significado, nem chega a ser silêncio, é um vazio de duas
pessoas que nada têm a se dizer. Não há futuro nem passado entre os dois. Cláudio pode beijá-la
ou esbofeteá-la, sem motivos para uma coisa ou outra.
“— Ora, os vermes também comem os olhos azuis!”
Há muito tempo que Seu Jair não tem mais nada o que fazer. Apareceu pela Ilha como
quem não quer nada, para ajudar a irmã a fazer a casa. A irmã fez a casa, morou uns tempos e
foi embora, Seu Jair ficou e ameaça ficar para sempre. É entendido em flores e em arte naval,
quando a Chris-Craft do velho Andrade pifa nas saídas, Seu Jair é o primeiro a levantar a tampa
do motor e meter o bedelho:
— É o platinado!
Enguiço em motor de lancha é no platinado, em motor de automóvel é no carburador, o
vento que sopra é sempre o nordeste, nunca há outros ventos, venha de dentro ou de fora Seu Jair
olha com intimidade as ondas, sonda as nuvens:
— É o nordeste!
Entende ainda de macumbas, de esoterismo e de situação internacional. Como não tem
público para nada disso, julga-se incompreendido e o é, de fato. Seu Amadeu sabe histórias dele,
a mulher que fugiu com um padre, lá no sertão de Minas. Seu Jair não ignora que Seu Amadeu
espalha aos ventos sua desgraça conjugal. Em compensação, a Ilha inteira conheceu os detalhes
escabrosos da história de Tereza-Demônio-Nu através do fantasioso relato de Seu Jair. Dão-se
por bem pagos e é possível que se estimem.
— Pois isso não está me cheirando bem...
— Seu Jair, já vi muita coisa esquisita nesta Ilha.
— Será o mesmo sujeito, o demônio-nu?
— Não. Não... quer dizer, jurar não posso, mas por que o sujeitinho voltaria sem mais
nem menos, após quase três anos?
— Seu Amadeu, o senhor viu os dois, pode fazer um juízo, eu não vi o outro...
— Bem, ver, só vi mesmo esse ladrão de agora, no escuro, e de longe.
— E não viu bem o outro?
— Só a bunda. Muito branca, nua, o camarada andava tostado de sol, era frequentador
de praia, isso era.
— Qualquer dia fico acordado para ver.
— Não tem dia certo de aparecer. Passa pelo meio da rua, pula os muros, espia as
janelas. Noutro dia subiu numa árvore lá de casa.
— Para quê?
— Sei lá? Subiu, pulou, quando saí correndo ele desapareceu para os fundos da casa de
Seu Morais.
— É preciso uma providência...
— Qual, ninguém quer nada. Falei com o Andrade, ainda não viu nada, pensa que é
falta do que fazer da gente.
— E olhe que em matéria de mulher aquela casa é cheia.
Trocaram um olhar cauteloso, medindo cada qual o grau de possível intimidade do
outro com os Andrades, para desabafar. O receio de uma palavra impensada travou os
pensamentos de parte a parte.
— É, é bom que ele se acautele, afinal, nós não temos nada a perder. Minha velha já
está mais para lá do que para cá, e o senhor, ao que me consta é solteiro, não é, Seu Jair?
Em brios, Seu Jair se desapertou:
— O senhor fala com muita experiência, Seu Amadeu, até hoje não esqueço aquela
história de Tereza...
— Até logo, Seu Jair.
— Bom dia para o senhor, Seu Amadeu.
A mulher do Evaristo vem chegando da praia, corta a rua para pegar a calçada oposta,
não gosta de passar de maiô perto de Seu Amadeu, aquele olho azul raiado de vermelho come-
lhe as coxas com brutalidade que lhe dá náusea.
Mais ao longe, a nado, só a cabeça magra fora da água, Mixole cruza a pequena
enseada do fim da praia, em busca do REX.
À noitinha, olhando um anúncio luminoso que se acendia, a cabeça começa-lhe a doer.
De início parece um pensamento, uma ideia triste que o incomoda. Vai crescendo até virar
matéria e ter limites: só a cabeça parece existir, enorme, vergando o corpo de dor.
Doloroso até olhar. Caminha de olhos fechados pelas ruas, cegueira voluntária que lhe
faz bem. Tem a sensação de estar habituado a andar de olhos fechados, trevas íntimas, talvez
amadas. Quando atravessa zonas intensamente iluminadas a luz é uma gargalhada entrando pelos
poros de sua carne. O colorido dos néons — como sente cada cor profunda. Barulhos crescem,
vêm do muro negro, alguns se destacam, isolados. Tosses — como tanta gente tosse — o bonde
virando a curva do Largo da Carioca, os músicos ambulantes da Cinelândia, um tango.
Cego, esquece a dor de cabeça, não tem mais cabeça, monstro acéfalo andando pelas
ruas sem meter medo a ninguém. Não mete medo mas causa contratempo a um cidadão na
esquina do Odeon: pisa-lhe os sapatos. O homem pergunta, solene, se ele não enxerga:
— Às vezes, não.
Janta em Copacabana, em casa de Marina. Ela quis explicações, mas Cláudio aponta
para a cabeça, com uma ponta de desespero não fingido:
— Não fale! Depois eu explico!
Vai apanhar a mulher na casa dos compadres. O compadre dá-lhe um comprimido,
branco como hóstia. Toma-o com docilidade estranha diante da dor.
No studebaker, a mulher inclina a cabeça para trás e dorme. Há tempos, Cláudio vira
um sujeito assassinado dentro de um carro, no mesmo banco da frente. A cabeça caíra para trás,
abandonada, tal qual a da mulher agora. Fica pensando no que sentiria se estivesse levando, na
verdade, o cadáver da mulher. Jogá-lo-ia do alto da ponte. Mas o ônibus que vai para São Paulo
corta-lhe a frente abruptamente, com a meia-freada do studebaker a mulher acorda:
— Esses ônibus são malucos. Isso não é velocidade para dentro da cidade.
— Eles precisam correr. Todo mundo lá dentro tem pressa.
Ela se ajeita novamente, a cabeça cai para trás. Há tempos os dois andavam juntinhos
no carro, ele nem podia dirigir direito. Agora a mulher parece um cadáver. “Jogaria no mar, não
há dúvida.”
De repente, a vontade de ver Marcela. Podia fazer muita coisa, tinha mesmo muita
coisa a fazer. Mas a loucura veio súbita, inadiável: Marcela, Marcela, sem Marcela não há mais
salvação.
A cabeça dói-lhe um pouco, da véspera ainda. Principalmente em torno dos olhos, um
peso no fundo, aro invisível a comprimir órbitas doridas.
Marcela não aparece. Espera até as cinco horas, a hora fatal da mulher casada, “depois
das cinco nada mais é possível”.
No ar, isolado da terra, de si mesmo, espírito pairando sobre as águas, no gênese da dor.
“— Deus começou a fazer o mundo em estado semelhante, perdeu algo equivalente a Marcela,
pairou sobre as águas e fez o mundo para se vingar ou para fazer qualquer coisa de prático, eu
também sou assim, gosto de trabalhar com as mãos quando estou corneado ou suspeito disso,
naquele dia em que Irene ameaçou acabar com tudo eu me meti a consertar torneiras lá de casa
e foi o diabo. Quando perco alguma coisa — grandes perdas, grandes perdas! — sofro como se
estivesse em avião sem tripulantes, sem ninguém que o saiba guiar, à espera da primeira
montanha — ou da última — para o fim.”
Dura duas horas, ou mais, seu pânico interior. Marcela, Marcela, Marcela. Vácuo em
torno. Robinson na ilha deserta, Robinson cego, sentindo apenas a ilha, a consciência da ilha: um
passo em falso e o abismo tragaria tudo: Ou o antes-da-montanha, o avião cego, isolado,
rumando para o choque com tranquilidade, indefeso e belo. Cada vez que respira pode ser a
última, sorve o ar, faminto, quer morrer cheio de vento: quando a montanha o estraçalhar o ar
sairá de seu corpo como o gás de um balão.
Pior quando se descobre sentado na mesa de trabalho Onde se metera? Quem o guiara
através da treva? Pensa num monstro invisível que o transportasse em meio à escuridão — dava
para se explicar, não para o salvar.
Logo Marcela telefona. Não houvera nada, não haviam combinado encontro algum, ela
não podia adivinhar, na véspera o avisara que iria com o marido a um coquetel na Hípica — só
se lembra disso agora, a voz de Marcela penetrando-o, como a luz de um farol, puxando-o para a
terra.
Que é que fora fazer no apartamento então? Por que a espera idiota? Onde andara sua
cabeça? Em que dimensão vivera? Lembra a dor da véspera, o monstro acéfalo andando pelas
ruas, pisando sapatos alheios. Pisara em si mesmo agora, sentia-se esmagado.
Marcela falando, a voz é de um fantasma bom, que o frequenta sempre. Reencontra a
cabeça, ajusta-a no devido lugar — ajeita o nó da gravata para ter pretexto de sentir o pescoço, a
cabeça por cima.
As orelhas suadas. Aperta o fone contra a cabeça, importante senti-la ali, medo que saia
voando outra vez. Marcela fala, “comprei um livro para você, vi uns discos para nosso
apartamento”. Cláudio observa os outros, parecem peças inteiriças, fabricadas em série, como os
cigarros e os sabonetes. O Pereira raspara a cabeça, tem ares de sentenciado, cabeça sólida
aquela, nunca andou voando. O Armando, a gravata borboleta cor-de-sangue no pescoço — um
ponto de sangue isolando a cabeça do rosto.
— Já passou?
— O quê?
— O pânico...
— Daqui a pouco volta.
— Zangado comigo?
— O quê?
— Posso pedir uma coisa?
— Pode.
— Um beijo.
— Não.
— Ué! Por quê?
— Sei lá onde tenho a cabeça!
Marcela ri, distraída, o sofrimento dele bem servia para isso, distrair os outros. “—
Vontade de sair de mim e espiar como sou sofrendo. E rir, também, se puder.”
Desligam. A orelha vermelha, Cláudio vai olhá-la no espelho. Lá está, a rodela
marcando o risco arroxeado. A voz de Marcela penetrara por ali, cabeça reencontrada, aquário
com água renovada, cabeça satisfeita, como se tivesse feito uma boa ação.
Tudo nos lugares: orelha, cabeça, pescoço. Van Gogh. Não há navalha perto e mesmo
que houvesse Cláudio não cortaria a orelha. Que que não diria o marido de Marcela vendo sua
orelha embrulhada num Jornal do Brasil?
Pela cidade outra vez, olhos bem abertos agora, vontade de gritar:
— Encontrei, encontrei minha cabeça!
A luz dos néons não dói: mancha a noite, tintas esparramadas na palheta escura. Não
mais o penetra, como punhal.
Dois conhecidos passam. Foge deles, podem perguntar o que havia de novo, ele seria
honesto, diria: a minha cabeça, eles olhariam, examinariam bem, achariam parecida com a
outra, não entenderiam nada.
Passa pelo Teatro, luz no gabinete do Murilo, tem dois assuntos a tratar com ele, mas
não desperdiçaria aquela carícia nova, o orgasmo demorado dentro da cabeça — sente-se um
pouco obsceno sentindo prazer em ter uma cabeça por cima do pescoço.
Antes do telefone, a cidade era um túnel, labirinto cinzento, “são piores os labirintos
cinzentos, os totalmente negros não dão para se sentir nada, a gente espera sair deles de repente,
pode-se encontrar a luz na próxima curva ou na seguinte, tiram a percepção da perda, a lucidez
do labirinto”.
Dentro do labirinto espesso, mortos estranhos, andando compenetrados, como nos
pesadelos. Todos parecem embrulhos, sem contatos, estanques, impessoais como árvores —
florestas caminhando, em silêncio, procurando condução para casa.
Cláudio anda também. Esperando a qualquer momento a montanha, — seu labirinto
terminaria na montanha — é uma certeza interior que incha dentro dele — e vinha o último
impacto ou a primeira luz.
Marcela ao seu lado, trazia-a consigo, numa consistência viscosa: o labirinto, a cidade,
tudo é Marcela. Os outros entram pela carne dela, ela recebe a humanidade imensa, a floresta
inteira, abrigando-a como numa gruta, só ele fica de fora, testemunhal: o dano, pior que a morte.
Isso no antes-montanha. Agora os transeuntes são homens normais, rotulados, cheios de
adjetivos, vidrinhos de farmácia homeopática, corretores, advogados, comerciários, homens
vestidos e abotoados, sapatos engraxados, mulheres gordas levando embrulhos. Na Galeria
Cruzeiro um carteiro comendo pastéis embanharados.
Antes, nada disso, os homens eram nus, sem sexo, sem história. Só agora, após o seu
reencontro com a cabeça, arrastavam as latas todas, comiam pastéis com dentes sólidos,
fincados em gengivas vivas.
Não mais a dimensão da angústia. Telefone, orelha arroxeada, voz de Marcela
passando pelo fio, — tudo verdade, tão sólida quanto o pastel embanharado. O avião retomara
seus contatos, voz de Marcela funcionou certo, avião XYZ, aqui fala Marcela, aqui fala Marcela,
atitude tanto, longitude tanto, vento contrário — “sempre contrário” — ponto tracinho ponto,
ponto tracinho ponto, a montanha ficava lá embaixo, vencida. — “Não gosto desta perspectiva,
montanha é para se ver acima das coisas do mundo, nada melhor que duvidar do horizonte:
aquilo lá longe é uma montanha ou uma nuvem?”
Ponto tracinho ponto. Acabava a pane, motores certinhos, retificados. Cláudio toma o
studebaker e volta para casa, o cais o esperando, “vou sempre de carro para o cais, não preciso
de navios para me amarrar a um”.
Pela Avenida Brasil, os postes de luz, um após outro, ponto tracinho ponto. Rota segura.
Na ponte do Fundão mar calmo, pescam siri lá para as bandas de Tubiacanga, lanternas de
querosene tremem contra a noite, mansas. “Se eu tivesse um barco partiria agora” — era um
verso idiota que volta e meia lhe vinha à cabeça, quando via o mar. Pois tinha barco, carro,
avião, tinha tudo para ser seguro, “oito mil anos de experiência humana me transmitiram códigos
e antiderrapantes, sim, sou seguro”, ponto tracinho ponto, a segurança o esmagava. Um escravo,
a liberdade lá em cima, no meio das nuvens, errante, sem contato. No Galeão, um avião levanta
voo, a massa cinzenta e irada passa por cima de sua cabeça, o bojo da noite o espera, tragando-o.
Aquele avião não tinha Marcela, nem cais, nem ponto tracinho ponto. Cláudio deseja que o avião
estoure ali mesmo, veria o clarão, a explosão na treva, talvez ouvisse gritos. Amanhã diria aos
jornais: — “sim, vi o avião explodir em pleno ar, foi um espetáculo grotesco, estou vingado.”
Goiabada tem cara de goiabada mesmo. Vem todos os dias, fica na praia olhando as
mulheres tomar banho. Silencioso, nunca se lhe ouve a voz, nunca ninguém ouviu Goiabada falar
alguma coisa. Chapéu de palha enterrado na testa, apenas olha e ri quando tenciona
cumprimentar alguém.
O pessoal das peladas chama Goiabada quando há vaga nos times. Goiabada é ruim,
levanta a perna e a bola passa por baixo, mas é dócil, só ele aceita ir para o gol na hora dos
pênaltis para levar com petardos pela cara, com Goiabada no gol — é regra tácita entre todos —
vale encher o pé. Quando a bola cai nas casas muradas, ele é quem pula o muro e vai enfrentar
os cachorros. Todas as missões de sacrifício são dele.
Pelo carnaval aparece com um lança-perfume metálico apertado no bolso traseiro das
calças. Segura a bisnaga de metal como se tivesse entre os dedos um pássaro frágil que pudesse
fugir de suas mãos. Economiza o éter. No último dia descobre que não gastou nada ainda — e
fica mais triste que alegre com essa descoberta. Gasta o líquido então, matando formigas,
escrevendo no chão uns nomes estranhos que nunca vê acabados, às últimas letras já as
primeiras se evaporaram. Joga um pouco nele mesmo, disfarçadamente, e verifica se ficou
cheiroso. Depois fica esperando outro carnaval para comprar outro lança-perfume.
Seu Amadeu — soube-se na Ilha inteira — deu uma corrida no Goiabada. Pegou-o
durante a noite, trepado na amendoeira em frente de sua casa. Com uma vara de bambu,
Goiabada cutucava as carambolas do quintal que amadureciam no pé, inúteis.
Foi calmo, esperou Goiabada descer para catar as carambolas do chão. Todos viram
depois Goiabada, os beiços sangrando, lavando no mar seu sangue sofrido.
Cláudio espera Marcela, numa das esquinas do Largo da Carioca. Cansado, um pouco
saudoso do túnel-labirinto da véspera, aborrece-se, sente-se igual a todo mundo. Foi comer um
pastel na Galeria, sem fome, sem vontade, só para sentir como é amargo ser como os outros.
Esperava Marcela mas quem aparece primeiro é Lília, a de olhos abertos e verdes:
— Que que houve, Lília?
— Nada.
Os olhos abrem-se mais ainda, tragando o mundo, o sol, as pessoas, engolindo sem
digerir, devolvendo o mundo intato.
— Andou tomando alguma droga?
Faz que sim com a cabeça.
— Que que foi?
— Nada.
— Entorpecente?
— Uns comprimidos novos, para aliviar a tensão.
— Algum problema?
Outro sim, com a cabeça.
Lília não fala nunca, tudo tem de ser arrancado como nos catecismos: Deus existe? Sim,
Deus existe; Deus é bom? Sim, Deus é bom; Deus é justo? Sim, Deus é justo.
— Afinal, que que houve?
— Foi domingo, dia do seu cais...
— Então... aconteceu aquilo?
— Parece.
— Tudo?
Deu de ombros, não o sabia:
— Sei lá. Não entendo disso, ignoro o meu corpo, nem sei bem como essas coisas
acontecem. Mas acho que sim.
Lília fora desvirginada. Coisa prevista, apenas Cláudio não tivera emoção ou vontade
muito forte para dar o passo. Ignorava que ela tivesse algum caso, talvez um amante de
circunstância, um defloramento circunstancial.
Já era mulher: animal rasgado, brinquedo de carne para alguns, túnel-labirinto para
outros.
— Que que eu tenho a ver com isso?
— Nada, ué. Disse por dizer, afinal nós nos proibíramos isso uma porção de vezes.
— Continuo não tendo nada com isso.
Cláudio olha o ventre dela. Ventre desvirginado, com gosto de esperma para o resto da
vida. Lília de olhos verdes, abertos, imensos, deflorados: lá dentro espanto; cá fora uma ameaça
de lágrima.
— E agora?
— Que agora?
— O nosso agora.
— Não temos agora, Lília.
— Já sei, o cais, os barbantes, as latas... Você se repete muito, sabe?
— Tenho culpa?
Lília olha e espera, parece esperar sempre alguma coisa, a hora das coisas
acontecerem, o sol, a chuva, o amor, a morte.
— Você não tem ensaio hoje?
— Está me mandando embora?
— Não. Mas a vida continua, isso não vai alterar nada. Você não pode ser minha
mulher, nem minha amante, nem minha amiga. Não podemos ser nada um para o outro, escreva
isso na testa.
Ela faz com o dedo o gesto de quem escreve qualquer coisa na testa. Cláudio sente
vontade de acariciá-la em plena rua.
— O fato de possuir ou não o seu corpo, ou de outro ou outros o possuírem, não altera
nada, ouviu?
— Assim pensam os homens.
— Assim procedem as mulheres.
— E os ciganinhos?
Os ciganinhos eram filhos hipotéticos que Cláudio prometera fazer em Lília quando
houvesse disposição e oportunidade. Compraria um carroção de cigano — Lília o chama de
cigano — um violino, tocaria as danças de Brahms, as czardas de Monti, ela dançaria com um
pandeiro cheio de fitas encarnadas e teriam muitos ciganinhos, uma porção. Plano feito em noite
de calor. Cláudio bêbedo, Lília de olhos verdes e nus — não o salvara mas o desculpava.
— Não há mais ciganinhos, Lília, não há mais ciganinhos. Se algum dia houver certas
circunstâncias, determinado estado de espírito, então que os ciganinhos se danem se nascerem de
nós.
— Fica tudo para as circunstâncias. Um amor de circunstâncias, foi o que você disse.
— Sim, cais basta um, portos de escala ou de reabastecimento, dois ou três chegam. O
resto é saque, pirataria de alto bordo.
— Você teve um antepassado que foi pirata a soldo da Rainha da Inglaterra, não?
— Já lhe contei isso ou foi você quem desconfiou do meu sangue mau?
— As duas coisas.
— Assim é melhor. Não gosto de dar nem de receber explicações. E a rigor, não há
nada o que explicar.
— A explicação foi minha, eu prometera explicar...
— Mas o sangue não me pertenceu.
Lília olha duro. O verde dos olhos fica tão verde que escorre na gota de água verde:
— Depende. Nem só no início há sangue. Às vezes há sangue também no fim.
Marcela chega logo que Lília some no beco do Teatro.
Vem num costume azul-claro, as ancas apertadas, as pernas bem delineadas e longas
— os homens passam e deitam olhos pulhas em cima.
Um amor brutal. Ela foi disposta a achar defeitos em tudo, soltou porção de verdades
que não doeu a Cláudio. Doeram as meias-verdades, ditas talvez sem querer.
Brutal, também, caiu o temporal sobre a cidade, alagando tudo. Tinham de sair às
quatro, justamente nessa hora a chuva caía com mais força, à água cantando nas calçadas,
sensação de abandono, náufragos isolados, entrega cada vez mais lânguida.
Não choque com a montanha: a aterrissagem. Os picos da montanha, tão ásperos na
véspera, transformavam-se em campo de macio pouso, seguro. Descida suave, aos poucos, total.
Preso à terra, acabava a aventura aérea. Podia jogar fora o tijolo de segurança. Cláudio
pensa no avião da véspera, àquela hora estaria voando ainda? A boca de Marcela, sopro morno,
selvagem na hora do prazer, depois cansado, intercalado, como o final de um choro. E o
chambley pegajoso pelo suor de sua carne — possuída carne. As nuvens ficavam lá em cima,
pesadas, inchadas.
O temporal causa estragos na cidade. O governador declara, pelo rádio da mesinha de
cabeceira, que a chuva custará x milhões de cruzeiros aos cofres públicos. No morro de São
Carlos, o barranco que tombou mata a velha que tomava conta de dois órfãos.
Sob a chuva que caía ainda, amortecida, quase não-chuva, Cláudio caminha cansado,
em busca do carro — “sou um homem equilibrado, sou um homem equilibrado”.
Quadrado de segurança funcionando direitinho, parando nos cruzamentos: amarelo
atenção, verde siga. E ele seguia, verde que te quero verde, verdes astros.
Jornais abertos nas bancas. Encrencas na política, militares ameaçando quarteladas,
cruzeiro baixando, dólar subindo, café com péssima cotação em Nova York. Um professor de
violino suicidara-se com a aluna-amante, mocinha de 16 anos, caso escabroso, os pais da moça
deram queixa da fuga, a polícia internou-a numa casa de repouso sob alegação de doença
nervosa. O professor entrou na casa-de-saúde disfarçado em varredor, com baldes, panos,
vassouras e uma lata de soda cáustica. Passou pelas barbas dos policiais, dos enfermeiros, do
curador de menores. Amaram-se mais uma vez lá dentro, beberam a soda cáustica depois. Na
pressa de fotografarem os corpos, pegaram o braço do professor estrebuchando ainda. A menina
morreu logo, morre-se depressa aos 16 anos, “aos sessenta a vida é um mau hábito que custa a ir
embora”. O braço que tocava Schumann — foi com Schumann que os dois fizeram
conhecimento e amor — fez um último esforço. Em direção ao corpo da menina: a fotografia
saiu tremida.
Tudo aquilo havia acontecido e Cláudio não sabia de nada. Compra o jornal para se
inteirar, repentinamente reconciliado com o mundo. Dólar subindo, cruzeiro em preço vil, libra
descendo por causa de uma ameaça de greve nos estaleiros de Sua Majestade. O mundo não
estava arrumado feito farmácia de homeopatia. Lá de cima, Cláudio julgara-o liso, tranquilo,
lama estagnada. Mas essa lama estagnada se mexia, ameaçava greves, tomava soda cáustica.
Erro de perspectiva, sem dúvida. Ministro da Guerra insultando as Câmaras, café apodrecendo
nos portos nacionais, Lília desvirginada, isso fugia à lei do lodo. “Ou seria a própria lei do lodo?”
Agora, novamente escravo, olha os libertos como trânsfugas.
Vai cedo para casa. As meninas o recebem alegres, leva-lhes bombons em
homenagem à sua libertação.
A mulher vai arrancar dente amanhã.
Dá-lhe a injeção de penicilina, tomando cuidado para que a picada não doa muito —
ela tem pele sensível.
Vão dormir cedo, todos juntos, numa cama só, como as crianças tanto gostam. Valéria
custa a dormir. Já a mulher e Renata dormem e ela teima, olhinhos acesos no meio do escuro. Às
vezes olha sério e o pai pensa que ela o está censurando.
Finalmente dormem.
Cláudio vai deitá-las no quarto das bonecas. Abençoa-as em nome do Deus de sua
infância, um Deus esquisito que persiste ainda, fiel a ele mesmo, que serve para abençoar
crianças que dormem, livrá-las das bruxas, dos ladrões da noite, dos homens complicados.
Deita-se então. A seu lado, a mulher dorme, o vinco na testa, preocupação pelo dente
de amanhã que sobrenada ao sono. Cláudio não pode fazer nada por ela, tudo tem de ser feito
sozinho, cada um se arranja como pode, como quando nasce ou se morre.
Vira-se para o outro lado. Faz um “Em nome do Padre” apressado, enfia a cara nos
travesseiros. — “Sou um ateu suficientemente puro para rezar ainda, a fim de ter sonhos
bonitos.”
TARTARUGA UNE
os dedos da mão, leva-os à boca e estala boca e dedos num gesto grotesco, com mau
significado:
— Papou!
Seu Jair balança a cabeça.
— Não acredito, só vendo com meus olhos.
— Papou, está na cara, há muito que aquilo tinha de acabar assim, eu acompanho a
coisa.
Seu Jair olha para o mar.
— Daqui a gente vê muita coisa, Seu Jair. Não troco esta casinha à beira da praia nem
pela casa do Paterone.
O contraste da casa do Tartaruga, ao lado da imensa mansão do velho Paterone,
acentua mais ainda a pobreza e o desleixo daquela frente de janelas castanhas, a caiação ralada,
um pedaço de tijolo à mostra, ferida jamais cicatrizada. Naquela birosca Tartaruga mora há
anos, apega-se a ela, de sua janela vê o mar, o amanhecer de cada dia, o sol incendiando a baía
lá pela foz do rio Suruí. E a viração das tardes — Paterone há pouco esfolara o palacete de alto a
baixo para botar ar refrigerado — Tartaruga jamais precisaria de ar refrigerado puxado por
cavalos-vapor, tem a viração de todas as noites, grátis, no mais forte dos verões chega a puxar
cobertas pelas madrugadas que trazem a aragem do mar largo, salgada, virgem.
E daquela janela vira o que nunca ninguém da Ilha esperava ver: o broto mais em
evidência de toda a praia prevaricar no escuro. Seu Jair já combinara passar uma noite em claro
com Seu Amadeu para ver o ladrão. Tartaruga não tinha nada a ser roubado, a mulher um bofe,
sem filhas, mas apesar disso ficava acordado por conta própria, velava durante as noites apenas
para surpreender as lassidões da neta do Paterone, seu mudar de roupa, há tempos a vira nua,
cruzar um corredor da casa, naquele dia a Ilha inteira soube que as nádegas da neta do Paterone
não eram tão rijas quanto pareciam na praia, apertadas pelos maiôs de lastex. E agora vira tudo,
jura, estala os beiços:
— Vi. Era ela, ali no muro, já passava da meia-noite, todo mundo dormindo. Ela
desceu, eu tinha tomado umas canas, estava sem sono, ouvi o barulho. O camarada veio da Rua
Bojuru, ficou atrás da árvore, ela desceu, de baby-doll, ficaram lá atrás na bolinação, depois
pularam para a areia. Não vi mais nada, mas pelo tempo que demoraram deu para o serviço ser
feito. Ela voltou sozinha, correndo, entrou para casa, o camarada então caiu na água, nadou até lá
longe, saiu outra vez em frente à Bojuru, subiu a rampa e entrou na rua.
— Impossível, Seu Guilherme, impossível, eu e Seu Amadeu ficamos acordados até às
quatro por causa do ladrão, não vimos ninguém, a última pessoa que passou pela rua foi o
Cláudio, genro do Andrade, no studebaker, aí pela meia-noite. Depois não passou mais ninguém,
juro.
— Pois olhe, me pareceu ser gente de lá.
— Do Andrade?
— Ou do Andrade ou de outro morador da Bojuru.
— Seu Guilherme, o senhor sonhou, precisa se abster das canas, a gente termina vendo
coisas...
Tartaruga não se importa em ser tratado de bêbedo.
— Seu Jair, posso beber esse mar inteiro de cachaça, fico ruim das pernas, isso fico,
uma tremedeira que não posso ficar em pé, mas da cabeça não. O que vi, está visto.
Seu Jair admite. Afinal, quem não esperava mais dia menos dia por aquilo? A neta do
Paterone vivia na boca e no desejo de todos. Para fazer páreo com ela, só mesmo a filha mais
moça do Andrade, mesmo assim perdia. Seu Jair certa vez fora consertar a válvula da privada na
casa do Paterone, passou por um quarto, viu a guria ajeitando a blusa dentro do short que estava
arriado. Viu as duas ancas inchadas, adolescentes, o redondo do ventre virgem, leite intocado
antes da fervura. Impossível que a rapaziada não desse em cima para valer. E ali estava.
Tartaruga vê Seu Jair desaparecer na curva da praça, em busca dos jornais da manhã.
Estava feito. Lá pelo meio-dia a Ilha toda saberia, Seu Jair é eficaz no jornal-falado, Tartaruga
não precisa repetir a história para mais ninguém, o outro se encarregaria de aumentá-la por
conta própria, isso não importa, quanto pior falassem do Paterone melhor para ele Tartaruga.
Não que deseje mal ao velho, ou lhe inveje a fortuna, isso nunca. Tartaruga é pobre e ama ser
pobre, evangelicamente. Não suporta é o nariz empinado, a arrogância daqueles ricaços todos.
Dez anos de vizinhança, vizinhança quotidiana, a praia comum servindo de centro de interesse e
recreio para pobres e ricos e aquela gente nunca lhe dirigira a palavra, todas as tardes Tartaruga
monta a mesa que roubara de um caminhão da Brahma, bota dois bancos ao lado, fica até tarde
bebendo cerveja ou cachaça, os Peterones velhos e moços passam-lhe pelas barbas e nunca lhe
dão bom-dia, nem um aceno de cabeça, só aquele olhar duro para a frente, nariz empinado,
como se sentissem mau cheiro. Da garota até que não tinha raiva. Não se excetuava os demais,
baixava a cara quando cruzava com ele, ignorava a pança do Tartaruga, seu olhar sequioso de
um sorriso. Mas era muito gostosa, uma festa para os olhos de Tartaruga habituados às pelancas
da própria esposa — constrange-se ao ter de admitir que ficaria triste no dia em que a garota se
fosse, como às vezes ameaçavam mandá-la embora, estudar nos Estados Unidos, Tartaruga se
afligia, desejava uma guerra atômica que acabasse com todos os antros onde se estudasse lá nos
Estados Unidos, só para não perder o recheio de carne adolescente que cruza a rua saltando nos
pés para evitar o calor do asfalto, ou aquelas pernas salgadas pelo mar, gotejante, que vêm quase
em sua direção, o maiô molhado marcando a depressão lombar, não haveria fortuna do mundo
que retirasse Tartaruga da mesa da Brahma aos verões, só para ver, duas, três ou dez vezes ao
dia o mesmo espetáculo, nunca igual, a garota mudava o maiô, ou o short, o rabo-de-cavalo, as
tranças, o coque — Tartaruga não precisa sonhar para ser feliz.
E mal Seu Jair some na curva da praça, Seu Amadeu aparece, vermelho de sol e
indignação. Tartaruga pensa em abrir exceção e contar para Seu Amadeu o negócio da neta do
Paterone. Mas não pode. Seu Amadeu vem resfolegando, teve discussão com Seu Morais, quase
brigaram, Seu Morais chamou-o de maníaco, a história do ladrão era passatempo de quem não
tinha nada o que fazer. Seu Amadeu nunca trabalhara na vida, vivera sempre das rendas da
velha, Seu Jair era aposentado do Arsenal de Marinha, natural que dois desocupados se dessem
ao trabalho de dormir durante o dia e gastassem as noites embaixo das árvores, espiando os
escuros. Qualquer pessoa que passasse seria suspeita. Seu Morais perguntara: quem tinha sido
roubado até agora? Ninguém. Logo, não havia ladrão nem nada, mesmo que alguém, por
brincadeira, promessa de macumba ou desfastio escolhesse as horas da noite para passear, nada
havia contra isso, todo mundo tinha o direito de andar pela rua a qualquer hora.
— Mas subiu nas árvores, pulou o muro do Andrade, provavelmente já pulou o seu
muro, na parte que faz limite com a casa do Andrade.
— E o que me roubou? Nada!
— Quem sabe?
— Ora, roubar podia roubar mangas verdes que começam a dar, ou algumas mudas de
plantas. É a única coisa que pode ser roubada em meu quintal.
— É, mas eu tenho muita coisa além das frutas, aquela oficina que penhorei e fiquei
com ela, são mais de cem contos em peças e ferramentas, está tudo no alpendre dos fundos do
meu quintal...
Verdade. Um dos inquilinos da velha passara ano e meio sem pagar a casa, Seu
Amadeu executou contra, o camarada fugiu, a justiça tomou-lhe as ferramentas, alguns pneus
velhos, um radiador e outras peças sem importância, pagas as custas só sobrou aquilo mesmo,
Seu Amadeu deixou tudo no alpendre, sob a tabuleta azul com letra verde: VENDE-SE.
Seu Morais recusara-se a cooperar na vigilância noturna. E além de negar participação
ao movimento, resolvera esculhambar com os outros, os que se preocupavam e velavam, noites
e noites, para a tranquilidade geral. Seu Amadeu ofega, apesar de Tartaruga já ter ido lá dentro
em busca de dois copos e de uma aguardente do Recife que recebera do cunhado, caixeiro-
viajante.
— O negócio anda sério assim?
— Sério uma ova! Ninguém quer cooperar, são uns imprestáveis. É sempre assim,
depois da porta arrombada é que botam trancas. Olha o Andrade, já falamos, eu e Seu Jair, uma
porção de vezes com ele, para tomar cuidado, ao menos botar um cachorro valente no quintal,
aquilo é um perigo, muita mulher em casa, e muito o que roubar também, o ladrão já lhe pulou o
muro três vezes, na noite em que saí correndo atrás dele, foi lá que se escondeu, pelo quintal.
Depois pulou para o lado de Chapot-Prevost, vi quando o cachorrão do Mário latiu. Mas o
Andrade não quer nada, ninguém lá quer nada, tem os dois filhos, o genro, o futuro genro,
podiam ajudar... Só Seu Jair me ajuda!
Tartaruga bate no ombro de Seu Amadeu:
— Podem contar comigo. Fico mesmo pela praia, vou dormir tarde, posso vigiar o
trecho...
— Já ia mesmo falar com você, Guilherme — Seu Amadeu fez uma pausa para
lembrar o nome verdadeiro do vizinho, não queria chamá-lo pelo apelido — bem que podia dar
uma mãozinha, é só olhar aquele final da Rua Chapot-Prevost, na confluência com a Rua Bojuru.
Sem precisar sair de casa você pode tomar conta da maior área. Bem, o ladrão não costuma vir
por aqui, aparece das bandas da Paranapuã, lá por cima, desce a Chapot-Prevost ou a Bojuru,
desaparece ou pela Guiricema ou pela pedreira do velho Paterone. Em todo o caso, sempre
passa por aqui ou ali...
Com o dedo aponta o roteiro. Tartaruga enche outra vez o cálice, a aguardente azula o
vidro.
— Pode deixar, já dei serviço até no Catete, no tempo do Washington Luís, pouco antes
da revolução, fui sentinela do Palácio, sei como se vigia um setor...
— Isso, Guilherme, a união faz a força...
— À nossa!
Seu Amadeu ia bater o cálice no copo do Tartaruga mas para no meio do gesto. Da
casa ao lado, estreando uma saída-de-praia nova, as polpas de fora, a neta do Paterone desce as
escadas, apetitosa, fresca.
— Olha o que estou vendo!
Tartaruga gira o enorme pescoço.
— Tá visto! Seu Amadeu, se o senhor soubesse como aquilo é bom!
— Então eu não sei?! Aquilo está em ponto de pica.
— Já passou do ponto!
— Não me diga!
Curva a cabeça, o bafo de cachaça do Tartaruga bate-lhe no ouvido.
— Isso foi gente do Andrade.
— Não posso dizer nada, sou amigo da verdade, não vi quem foi. Poder, pode, mas
jurar não juro.
— Foi gente de lá, Guilherme, aquela gente papa tudo, até cabrita.
— Sou amigo do pessoal de lá, Seu Amadeu. A rapaziada é boa, me convida para
peladas, nunca me desfeiteou...
— Mas fazem o serviço quando podem...
— É da natureza.
— São uns sacanas.
— Não exagera, também a garota abriu as pernas.
— Aquela gente toda já está comprometida, casada, noiva, que que tinha que seduzir a
garota?
— E a garota por que anda com esses shorts com as polpas de fora? Olha que se ela
desse bola até aqui o papai entrava!
— Essa Ilha é uma perdição, Guilherme, uma perdição. Até gente nua já pulou minha
janela atrás de mulher. E olhe, tenho uma suspeita, sabe, a menina Tereza era como se fosse
minha filha, não tenho mais queixa, ela casou, espera o terceiro filho já, vive feliz. Mas aquela
noite fatal, o tal demônio-nu, vi-lhe a bunda, estava escuro mas tenho uma suspeita aqui dentro...
talvez seja bobagem minha, honestamente não quero acreditar que seja ele, mas volta e meia a
suspeita retorna. É gente do Andrade.
— O demônio-nu era alguém do Andrade?
— Quem sabe?
Tartaruga, em sinal de respeito pelo drama alheio, encerra o assunto:
— À nossa.
Seu Amadeu abandona o cálice bem em cima do H da mesa da Brahma, sai andando,
duro, como que levado pela raiva, ou pela dúvida, talvez apenas pela saudade.
A manhã em sol vai pela metade. Na praia, pouca gente ainda, o verão apenas se
aproxima. Do banco que o próprio sogro mandou construir para apreciar as chegadas de sua
lancha, Cláudio toma conta das meninas que nadam, Renata de maiô estampado, Valéria de short
mesmo, o busto nu, como um menino. A neta do Paterone brinca com a duas, joga Valéria para
cima e deixa que afunde n’água.
A mulher vem pelas costas:
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  • 2. DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.us ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
  • 3.
  • 4. Incertitudes, ô mes délices vous et moi nous nous en allons comme s’en vont les écrevisses à reculons, à reculons. APOLLINAIRE
  • 5. Q UANDO FECHOU o portão da Rua Bojuru, o empregado da boate varria a calçada em frente. — Deu ladrão na rua. Não se espantou nem se preocupou, estava com sono, dormira mal, Renata tivera pesadelo, gastara parte da noite com a filha ao colo, e agora a lombeira, preguiça de descer à cidade. O mar, no fim da rua, azul, com cheiro de mundo. Passou pela casa de Seu Amadeu. A velha, noventa anos quase, espiando da janela. Deu bom dia por molecagem, ela ficará pensando até tarde: quem foi? Ninguém a cumprimenta: a Ilha sabe odiar. Dia estúpido à frente, compromissos sem importância, Marcela, discutir com Dico, beber com Binho, voltar para casa, dormir. O ladrão passando pela rua, no meio da noite. Não lhe roubará nada, é dos que nunca são roubados, jamais lhe roubaram alguma coisa. “— Sexta-feira. Nome do amigo do Robinson Crusoe, o que tinha uma ilha. Homero tinha outra. Vulgar ter uma ilha, não me salva. Napoleão nasceu numa e morreu noutra.” Ilha, sexta-feira, amanhã é sábado, depois domingo. “Quem existirá por mim no domingo?” O cenário sim, permanecerá o mesmo: duas filhas, ladrão que viola as noites, rua, ilha, mar entrando pelas retinas com gosto de mundo. E agora até o ladrão. Se houvesse sol lá fora ia à praia com as meninas. Mas o tempo úmido, o dia encoberto, o cinza pesado entristecendo tudo, envolvendo as árvores em sombra pressaga. Para os longes do mar alto a neblina cerrada é muralha que confina com o céu sem cor. As garotas estão resfriadas — lembrou — não, a praia é impossível. Sábado sem sol, sem perspectivas. Poderia ouvir música, mas o dia não ajuda. Levanta para fechar o janelão do living, começa a soprar viração, o gosto de sal e de velas molhadas paira na sala, as cortinas inflaram ameaçando os bibelôs dos móveis. O quadro que o Raul lhe dera — a bailarina de saiote vermelho que nem em D. Quixote — fica torto na parede. Endireita o quadro mas a bailarina continua torta, o arabesque é que era torto, só então reparo nisso. “Imbecil ter isso pendurado na sala, Irene nunca foi de arabesque, é má no clássico”, e foi por causa dela que pendurara o quadro em cima do piano. Abriu o livro, tentou ler, fez esforço para entender o que lia: deu para entender que não entendia nada. E ainda por cima Renata começou a cantar lá embaixo as canções que aprendera no Jardim de Infância: Primavera, primavera, rainha das estações, lindas flores dás à terra e alegria aos corações! Música tão tola quanto a letra, o que salva é Renata colocar emoção própria ao desafinar nos agudos. Pela manhã, antes do tempo se fechar de todo, fora à praia com as meninas. Valéria mal teve tempo de tomar um sorvete e Renata de machucar o dedo na bicicleta do filho do
  • 6. Araújo. Araújo é engenheiro do Estado. Diz que os edifícios da cidade estão em péssimas condições de segurança, no mês passado viu um, de 12 andares, na Rua do Rosário, enterrando em seus escombros perto de vinte pessoas. Na semana retrasada caiu o velho pardieiro da Rua São José, onde funcionava um sebo de livros e discos usados. Edifícios familiares a Cláudio: o primeiro mantinha uma agência de penhores. No oitavo andar funcionava a costureira que volta e meia fazia uns vestidos horrorosos para sua sogra. Foi tudo abaixo. Fora ver os destroços, as pás dos bombeiros entravam na caliça, um cheiro insuportável saía daquilo. Restaurantes em volta fecharam — ninguém comia sentindo cheiro de carne humana apodrecendo. Cada corpo desenterrado fazia a polícia impedir o trânsito em todo o quarteirão, a multidão metia o lenço no nariz mas continuava olhando. O outro, da Rua São José, não teve cadáveres. Enterrou discos e livros usados, coisas limpas, sem cheiros comprometedores. Ali vendera discos chiados, livros chatos ou inúteis. Em compensação, comprara interessante coleção de obras pornográficas e o Manual do Motorista Sem Mestre que muito o ajudara a ser reprovado duas vezes nas provas de habilitação. Passara na terceira vez porque subornara a banca examinadora, estratégia que não aprendera no Manual, mas na Bíblia, lendo o livro dos Juízes. Tudo ruiu. Foi contemplar os destroços. O sujeito com cara esfomeada catava entre os montões de terra. Removeu vigas, meteu a mão no pó, apanhou um livro. Espanou-o, soprou-o de todos os lados, desamassou as pontas, só então viu o título. Deixou-o cair novamente, abanando as mãos, o miserável. Lembrava isso enquanto Araújo, com auxílio do tamanco que nunca dispensa por causa dos cacos de vidro das ruas, fazia croqui demonstrando as causas prováveis dos desabamentos ocorridos ou a ocorrer. Ficou sabendo de coisas alarmantes, vários prédios na iminência de ruir: — As vigas estão rachadas, a massa atua no ponto A e C, há sobrecarga motora no ponto B. Ora, a perícia tem constatado que as rachas estão justamente no ponto B, o sinal é evidente, os prédios vão cair mais dias menos dia. Foi isso que relatei no meu parecer ao processo mandado instaurar pelo governador. Mas o diretor do meu departamento despachou embaixo: “Informe o dia e hora em que vão cair.” Repliquei: “Mande a mãe informar!” Fui suspenso por 15 dias! Julgando-o não esclarecido, apagou os primitivos desenhos e começou a esboçar outros, enormes, ao sabor da areia lisa. A mulata passou, pisou na pilastra de sustentação. Araújo recompôs a pilastra, com medo que o desenho ruísse sem aquele ponto de apoio. Foi nesse momento que Renata machucou o dedo nos aros da bicicleta do filho dele. Ela veio chorando, dedo em pé, sangrando já. Aquele sangue mais importante que todas as pilastras que sustentam o mundo. Araújo é delicado. E, como o diz comumente, “é pela justiça”. Pungiu-se, receitou pomadas, desancou o guri com severidade, torceu-lhe as orelhas — o que no fundo alegrou e vingou Cláudio, embora esboçasse alma grande por fora, não foi nada, não foi nada, coisa de crianças. Levou-a para casa. Na pressa, esqueceu os cigarros. Quando voltou à procura do maço, já o sol sumira de todo. O vento soprava mais forte, encapelando o mar, tornando as ondas amareladas e curtas. Ondas que subiram com a maré, levando as pilastras de sustentação do
  • 7. Araújo. Do vasto desenho sobrou um x assinalando a maior concentração das vigas, das colunas, do diabo. O x ficou ridículo na área, sozinho. Um pouco do sangue de Renata — também. Na esquina da Rua Guiricema, Seu Jair abana a cabeça furiosamente e, com o gesto, o corpo todo abana, inclusive a saca de compras onde uma tainha bota a cara para fora e parece tomar parte na discussão. A mulher do Evaristo teimava, nunca tinha visto nada, a Ilha tem é muito vagabundo, muito safado, desde que o marido fora estagiar no norte, todos os dias recebia gracinhas na sua própria porta, não podia botar o pé na rua, não respeitavam sequer os filhos, no armarinho da Avenida Paranapuã, com a filha menor ao colo. Seu Amadeu tomara liberdades — um devasso. Agora, ladrão não, podia-se dormir de janela aberta, como ela sempre fazia. Na semana passada um dos garotos tivera dor-de-dente, ela passara parte da noite acordada, só viu foi a correria do próprio Seu Jair perseguindo um fantasma que para ela não existia. Seu Jair jura, faz os dedos entrarem pelas órbitas, olhos que um dia a terra comerá — é o gesto — vira o ladrão, todos os moradores da Rua Bojuru já andavam prevenidos, Seu Amadeu andava até armado. À mulher se obstinava: — Ladrão, não. Tarado, pode ser. Não falaram claro, mas ambos pensaram na história de Tereza. Seu Jair andava em maré de amor com Seu Amadeu, talvez por causa disso não aprofundou o assunto, também nada ficara esclarecido, lugar pequeno, mulher moça e forte, cobiçada por muita gente, nuca se apurou direito o caso de dois anos atrás, já Tereza casara e fora embora para bem longe, por sua vez o demônio-nu nunca mais apareceu, embora a mulher do Evaristo fizesse pé firme, talvez fosse o mesmo tarado em busca de mulher. Cláudio vinha da praia com o maço de cigarros, toma a calçada oposta ao ver Seu Jair, evita a conversa cacete, o único assunto que mora sob aquele crânio que começa a ficar calvo e comprido como um ovo. Bem verdade que sempre arrisca um pequeno olhar às pernas da mulher do Evaristo, assim vestida ninguém dizia, mas na praia aquelas pernas tinham valor. Seu Jair fez meia-volta, acompanhando o passo de Cláudio para surpreender qualquer indecisão na marcha e dar o seu bom-dia. Mas Cláudio caminha firme, sem vacilação, duro como militar em parada. Seu Jair completou o resto da volta novamente face a face com a vizinha, a tainha abria a bocarra serrada e engolia o pasmo que Seu Jair soltou ao ar e que é a única frase que Cláudio chega a ouvir: — Um mistério! Depois do almoço, cachimbo na boca, caminhando pelas ruas desertas. A Ilha almoça, não esbarra com ninguém, só com vira-latas que passam ao largo, sem lhe dar importância. Andar é bom, fuma o cachimbo em paz. Vai até a praia, espia o mar sem cor, opaco dentro do dia opaco. Um barco teima em enfeitar a paisagem, a vela vermelha vem de Jurubaíba e vai para o Jequié, oferece ao vento sua carne de pano, flácida. E a viração da barra entra nos olhos, salgada. Sobe a Rua Chapot-Prevost e dobra lá em cima, no posto de gasolina do velho Paterone. Pisa os paralelepípedos incertos da Avenida Paranapuã, tenciona passar pelo bar do cinema, comprar cigarros, depois voltar para casa pela Rua Guiricema. Prolonga a caminhada mais um pouco, desce a Rua Jari. Só então percebe que seu destino era a Rua Jari. Pisar o mesmo asfalto que Marcela
  • 8. pisava quando voltava da praia — mais que destino, missão. Junto ao ginásio, para as bandas do novo bairro que construíram, a casa que Marcela alugou durante o verão. Casa modesta, velha, quase ruína. As janelas verdes, empalidecidas pelas chuvas e pelo sol. O matagal ao lado, ninho certo de mosquitos, picavam Marcela à noite, sugavam aquele sangue gostoso — mais tarde ele sugaria o sangue de Marcela, no apartamento do Denis, quando ela enfiou a agulha no próprio braço para mostrar que não temia a dor física. Era doce o sangue de Marcela, e quente. Eles começaram a conversar por causa dos mosquitos, “que que o senhor usa contra os mosquitos?” Para diante do portão. Tudo fechado. Parece recordação de infância a casa, coisa definitivamente acabada, consumida. Faz esforço para encher aquilo, abrir as janelas, botar o maiô grená de Marcela secando ao sol na corda dos fundos. Não adianta. Na corda pousa uma cambaxirra. Gosta de cambaxirras, lembra que houve um período de sua infância em que o pai chamava-o de cambaxirra. O pé de pitangueira, ao lado da varanda. Não gosta de pitangueiras, sofreu muito em cima de uma, onze anos, a cara do velho Almeida, vermelha, “Dona Helena, seu filho é um ladrão”. Um ladrão! A varanda suja, uma chinela no meio do pó. Não, não de Marcela, era da velha, a mãe, que desconfiara de seu interesse pela filha. Velava pela virtude de Marcela com maior ferocidade que o marido. Este era bom homem. Do apartamento em frente, a matrona o observava, avaliando-o. Sonda a possibilidade de um vizinho, para alugar ou comprar a casa? Exibia-se, botava a cara na janela para se fazer integrada na paisagem, sólida, inarredável. Ou talvez quisesse dizer que as chaves estavam com ela, era só pedir e ela lhe mostraria a casa, as condições. Não queria chaves nem condições, queria dar o fora, já com raiva por ter ido mexer em passado tão recente, tão dorido ainda. Dobrou a esquina. Aquele trecho também lembrava Marcela, quando ela andava de cara baixa, olhando o chão. A terra a chamava e isso era bom por causa da mecha de cabelos que lhe caía pela testa, tapando metade do rosto, sem traços regulares, mas cuja profundidade ele não conseguira medir. Lembrou certa noite. Espreitava-a, sabia que ela sairia para comprar balas junto do cinema. Ficou escondido no muro do ginásio, protegido pela árvore que quebrava a luz do lampião da esquina. A velha ficara na varanda, vigiando as trevas, a miserável conhecia os passos de Cláudio, desconfiava de sua perseguição: um muro branco e de repente ele aparecia. Virava uma esquina e ele parecia sair do chão, repentino, inadiável. Usou de um engenho não destituído de arte, na hora lhe pareceu esplêndido: fingia-se de coxo. Encurtou uma perna, bamboleou a outra, abandonando as mãos feito asas de moinho, como se delas precisasse para remar o ar. O homem gordo que trabalha na Alfândega estava na janela de sua casa. Abriu os olhos ao ver o coxo inusitado surgir das trevas. Chegou a abrir a boca, o cigarro ficou-lhe preso ao beiço — o homem não compreendia. Quando Cláudio surgiu, além do matagal, já no passo normal, o homem não entendeu mais nada. Quê que fora feito do coxo? Mamava o cigarro com ar prudente, perscrutava as sombras, olhos arregalados, farejando o sobrenatural, “é assim que
  • 9. os milagres começam!” Ponderou o mato, cheirou o ar. Nem incenso nem enxofre. Como fora possível, ali em suas barbas! Quando a mulher chegou da ladainha, contou que o coxo era cor- de-sangue, tinha chifres. Apontou o fura-bolos para o matagal, com autoridade: — Foi ali! Para as bandas da praça, envergado de cachaça, Mixole grita contra o mar, coisas carinhosas, terno, um bêbedo diante do mar. Mais além, no botequim que acompanha a curva do jardim, Seu Amadeu ofega. Assunto predileto esse, o descompor a ilha depois da ponte. Tudo começara com o ford verde-claro que parara ao lado. O homem saiu para comprar cigarros e enquanto esperava o troco perguntara onde ficava a Rua Olímpio Mendes. Ninguém sabia, só Seu Amadeu. Mas antes de dar a informação valorizou sua ciência e propagou suas ideias. Onde já se vira nome tão estúpido para uma rua que antes da ponte era simplesmente Rua das Trepadeiras? Trepadeiras nos dois sentidos, logo ao início, quase a desembocar na praia, havia a chácara do velho Gusmão, onde não tinha muros, apenas a vasta cerca de trepadeiras vermelhas, tão vermelhas e tão destacadas do verde em redor que servia de ponto de referência aos pescadores que se aventuravam pela ilha do Rijo. Trepadeiras também no outro sentido: para os fins da rua, já na subida do morro que pertence à Marinha, a famosa casa da Dolores, casada com fazendeiro de Minas, onde se reuniam forçosamente todas as prevaricadoras da ilha, as malcasadas que flertavam durante as travessias das barcas e tinham medo de frequentar os ninhos da cidade, perto do local de trabalho dos maridos. Na pasmaceira dos dias de verão, o sol batendo a pino contra a rua de areia, um ou outro vulto de mulher se esgueirava pelas calçadas. Os homens eram menos discretos, vinham de bicicleta mesmo, e Dolores recebia a todos, até meninos se pervertiam com mulheres de quarenta anos — ah! a Rua das Trepadeiras! Veio a ponte, Dolores foi processada, voltou para Minas, um deputado morreu de enfarte, a Câmara homenageou-o com aquilo, aí estava, Rua Olímpio Mendes! O homem já recebera o cigarro, o troco, o excesso de informações de Seu Amadeu. O ford fez manobra e tomou a direção do Bananal, mas a conversa estava lançada, Seu Jair vinha distraído com os jornais no braço, parou ao ouvir a voz do vizinho no velho tema: — Estragaram tudo! Os nomes, as pessoas, os hábitos! Nada agora presta! Até ladrão anda por aí! Ponto de coincidência com a ordem de ideias de Seu Jair, que entrou no botequim como quem não quer nada. — Aqui está Seu Jair que não me deixa mentir. Seu Jair pretendia confirmar, mas ao dar com os olhos de Seu Amadeu, olhos empapuçados que o chope raiava permanentemente de sangue, lembrou-se da conversa com a mulher do Evaristo, a evocação do episódio de Tereza, o demônio-nu — e sem saber por que, preferiu ficar calado. — Seu Jair tem visto o ladrão também, pode confirmar tudo! Ninguém no bar se interessava pelo ladrão. Era assunto exclusivo de Seu Amadeu e Seu Jair. O ford já sumira pela avenida da praia em busca da ex-Rua das Trepadeiras, Seu Jair sentava ao lado do chope e Seu Amadeu gritava para quem quisesse ouvir: — Qualquer dia a coisa estoura. Ou o ladrão me mata ou eu acabo com o desgraçado! Gentil Pintor — que pintara os escudos do Vasco e do Flamengo na parede principal do botequim, com a legenda: MÁXIMAS POTÊNCIAS, e que era pago no varejo da cachaça —
  • 10. quis saber se o ladrão havia roubado alguma coisa ou pessoa. Seu Amadeu inventariou danos e perdas de mais de trinta anos nas costas do ladrão. — Mas o pior não é isso — juntou Seu Jair, esquecendo-se do episódio da Tereza — o homem é tarado também, só vem à noite, corre como um demônio, pula os muros, parece que anda atrás de mulher. A fúria de Seu Amadeu abria um rombo de sangue no olho-azul: — Eu mato esse desgraçado, no murro! As quatro garrafas que esvaziara tremeram ao impacto do murro que acompanhou a ameaça. Seu Jair pedia um copo e mordia uma empada, assustado consigo mesmo por ter feito Seu Amadeu lembrar o passado. Gentil Pintor saiu do bar, o negro Gibi chamava-o. O domingo caía sobre a Ilha como um enorme cenário de teatro mambembe. Mixole, mais ao longe, pifado, mansamente procurava abrigo sob as amendoeiras da praça, já a chuva fininha embaciava o ar. Pela avenida da praia passou um homem escuro, saco de carvão às costas, apressado, o suor da barba confundido com as gotas da chuva que apertava. A mulher pede-lhe para apanhar Renata no colégio. Chove desde o meio-dia e o carro está lubrificando no posto do Paterone. Vai de ônibus. Renata espera na porta do Jardim de Infância, a cara apreensiva. Quando o vê, abre o sorriso clássico, que ele chama de sorriso renatiano. Um jeito de sorrir com os lábios e com os olhos, feito a Mona Lisa. Tem mais que a Mona Lisa: sorri com os cabelos, ela toda sorri. Sorri com a ponta do nariz que fica mais grossa e brilhante, como que comovida com o próprio sorriso. Sorri com seus dentinhos estragados, está na fase dos dentes, volta e meia vem com dente na mão, pede para jogar em cima do telhado, contaram-lhe que dá sorte, ela não sabe o que é sorte mas deseja tê-la do mesmo jeito. Renata espera e sorri. Sorriso que o encanta e o apavora: um dia mudará e para pior. Talvez fique igual ao seu — e sofre quando pensa nisso. Cruel imaginar a bruxa que substituirá o anjo que vem sentar em seu colo. Aproveitando a chuva, ela estreou a capa nova, presente do último aniversário. Estreou também um guarda-chuva novo, presente de não sabia quem. Nem deu pela amolação da chuva. Diante de Renata, feliz na capa nova, os problemas estacionaram por cima da cabeça. Tão forte essa impressão — a inquietação suspensa — que olhou para cima: uma coisa negra e aberta: o guarda-chuva. “— Por que os guarda-chuvas serão sempre pretos? Tudo mudou nos meus trinta anos de vida. Das coisas feitas pela mão do homem só o guarda-chuva continua feio, ar fúnebre e humilde.” Jogou-o fora. E ficou comovido, como se tivesse praticado uma boa ação. Na realidade, sentiu-se livre. Encervejado, uma poça de sangue em cada olho, Seu Amadeu caminha trôpego pela praia, de volta à casa. A chuva cai obliquamente e ele não a sente, a cerveja adormeceu-lhe os sentidos, só a memória trabalha, e o ódio que vela. Voltar para casa para que? Aturar a mulher, quase quarenta anos mais velha que ele? Guardar mais uma vez a chaga reaberta — cada vez que o ladrão passa pela rua e a chaga incha como os baiacus incham fora d’água. Tereza inteira o toma pelo corpo como carícia agora impossível, irremediavelmente impossível. A primeira noite, o grito que Tereza deu no quarto, Seu Amadeu velou a noite toda e isso fora há uns três
  • 11. anos, ou menos talvez. Uma semana depois outro grito, Tereza vira o demônio-nu, um corpo moreno totalmente nu, em cima do peitoril da janela. Seu Amadeu correu, chegou a dar um tiro para o ar, a aparição sumira de repente. — Como é a cara dele? — Não sei. Só vi que estava nu. Tereza nunca mais gritou. Mas uma noite — e Seu Amadeu ao recordá-la deu um chute violento na areia pipocada pela chuva — ele acordou com ruídos estranhos dentro de casa. Pé ante pé foi ao quarto da frente, onde dormia Tereza. A porta fechada, a luz fraca da mesinha de cabeceira acesa e aquele ruído, aquele ranger de cobertas e corpos que se possuem. Com um grito esmurrou a porta que pouco resistiu. Viu apenas o traseiro, mais alvo que o resto do corpo, e logo o vulto nu se atirava às trevas que pousavam na janela, como imensa pálpebra escura. Teresa, nua também na cama traindo um longo e selvagem rito de sexo, os olhos esbugalhados de surpresa e de raiva, de insatisfação pelo amor interrompido, e de pavor, já a grossa munheca de Seu Amadeu descia-lhe pelas coxas, pelo ventre, pelos seios nus que se amassavam, a mão fechada cevando-se brutalmente naquela carne que desejaria acariciar — e o barulho foi tal que a velha acordou e veio ver o que se passava e viu Seu Amadeu esbofeteando a filha-de-criação que estava nua, e quando a velha viu Tereza nua percebeu que há muito tempo a menina que adotaram recém-nascida era agora um mulherão de boas carnes e que Seu Amadeu naquela raiva traía o despeito e ela que nunca entendera como o marido podia passar tantos anos sem procurar mulher na rua — entendia tudo agora, até mais do que desejaria, Seu Amadeu esbordoava Tereza, sem dó, a mesma mão fechada que destinara às primeiras carícias, íntima aquela mão à carne de Tereza e os últimos murros foram dados contra os travesseiros, Seu Amadeu caíra de bruços na cama, chorando. Cláudio se entrega ao aborrecimento, uma docilidade estranha diante da dor. No fundo, julga obrigação sua aborrecer-se de vez em quando, para compensar talvez o restante da semana, bem vivido ou bem sofrido não importa — alguma coisa bem, sim. Depois da semana acidentada, a monotonia doméstica do fim de semana pesa em silêncio. Não bastando a monotonia em si, ele encontra motivos para agravá-la, tem boa, excelente capacidade para agravar as coisas. Janta sozinho. A mulher fazia pizzas, demorariam a ficar prontas, isso foi pretexto para que jantasse só, sem esperar pelos outros. Foi fumar o cachimbo na varanda da frente, Valéria o acompanhou, como de hábito, tentando puxar conversa. As pizzas ficaram prontas, a mulher veio trazer-lhe uns pedaços. Aceitou para ser gentil, depois subiu ao apartamento. Foi quando descobriu motivos sérios e tolos, atuais e antigos para ficar aborrecido. Abre a geladeira. Apanha uma tangerina, vai chupá-la da janela do quarto. Atira caroços nos fios molhados da rua. A chuva desce, fina. Acerta alguns, os pingos caem ao mesmo tempo. Sabor azedo na boca. Aliviou a tensão. “Bom sentir alguma coisa amarga na boca quando aborrecido por dentro, justificando alguma parte do aborrecimento”. Em Recife, por exemplo, a terceira noite, estreia do ballet no Teatro Santa Isabel. Comia a torta de maçã com creme, de repente o Jarbas, rodando nos dedos a chave do carro do Valter, o que dava em cima de Irene. Bastou isso. Complicado mecanismo funcionou lá dentro, hormônios misteriosos saíram das glândulas e despejaram no sangue um veneno cruel que o engasgou de súbito.
  • 12. A torta cresceu dentro da boca como pedaço de estopa suja de óleo. Transbordava para fora — tanto crescia. Controlou o engulho, sentiu músculos retesados prendendo vômito. Um tamarindo azedo na boca e talvez a coisa não saísse tão amarga assim. Reagiria melhor encontrando um justificativo orgânico, “é o tamarindo, é o tamarindo”, o cérebro teria de responder ao mesmo tempo a dois apelos amargos — e ele sofreria menos. Não é época de tamarindos. Chupa a tangerina, alivia a pressão. Depois abre o livro, esforça-se novamente para ir avante na leitura mas é chamado ao apartamento do cunhado para o parabéns da menina que estão criando e que faz anos. A mulher fez-lhe o bolo, com dez velinhas por cima. Quando resolve descer já tinham cantado o parabéns. (A voz de Renata sempre desafinando nos agudos!) Mesmo assim bate palmas, por nada mesmo, só para fazer qualquer coisa com as mãos. “— A família faz pena. Há sempre um pouco de lama, em certas horas, em determinadas datas, sob determinadas emoções comuns, se esquece a lama. Mas ela paira por cima de tudo: ao menor pretexto rompe os diques e emporcalha tudo. Ódios velados, amores recalcados, palavras amargas, gestos apressados formam um mundo misterioso e amargo que se arrasta com cada um. Sobe-se acima da planície: a família reunida, fotografia antiga onde todos já tenham cumprido sua missão. Não se pode rotular essa gente quotidiana que entra pela nossa vida sem licença, imposta.” Desce mais fundo. E no estranho limite do amor e do ódio encontra uma quase solução. “Tudo se localiza nesse estreito limite — e limite talvez não seja, mas gradação, hierarquia.” Sobe novamente. Tenta ler outra vez, custa a encontrar o trecho onde parara. Logo as crianças sobem para ouvir música na vitrola laqueada de Renata. Músicas de roda, canções que chateiam por fora mas encontram lugar para doer dentro: O cravo brigou com a rosa debaixo de uma sacada o cravo saiu ferido a rosa despedaçada. “— Despedaçada ou despetalada? Ou desfolhada? — Cláudio prefere que seja despedaçada. A mulher veio arrumar as plantas que mantém em vasos de cerâmica. Coloca-as no peitoril da janela para o benefício da noite. Trouxe lá de baixo alguns discos que a cunhada levara, teve o faro do pior, só levou porcarias, nem cometeu o favor de quebrá-los, devolveu-os intatos, numa fidelidade ao ruim que só a mulher consegue ter. Retém na mão, por acaso, um deles, o Batuque, de Nepomuceno. Lembra novamente Recife. Era o número final, pertence à classe fácil que predispõe a um fim de espetáculo agradável, satisfaz o gosto do público. Ele sofria na medida em que esperava. Irene nem esperava terminar: quando as luzes baixavam na posição final ela saía correndo. As luzes se acendiam outra vez, notava-se a atitude desfeita, Irene e outras mais apressadas já tinham sumido, não ficavam nem para agradecer aos aplausos. Elas começavam a descer, cada grupo arranjara bons lugares para passar a noite. Convidavam Cláudio, ele mentia, dizia que já tinha compromisso, fazia ar misterioso, o deixavam
  • 13. então, em paz e em dor. Sofria à proporção que os camarins iam ficando vazios. Irene era das últimas a descer, arranjara conhecimentos, frequentava clubes noturnos, voltava madrugada já — e ele sofrendo com a chave do apartamento dela pendurada no quadro dos hóspedes, houve a manhã em que ao acordar correu à portaria e no quadro vazio, os pregos apontando para seus olhos atônitos, destacada, medonha, lá estava a chave imóvel, repousada, provando que Irene passara a noite fora. Na última noite ela se aproximou. Convidou-o informalmente, como se não fizesse questão. O grupo de Irene era o mais fechado, ninguém entrava, ele teria de aproveitar a brecha. Dançaram a noite toda. Se acaso você chegasse no meu chatô encontrasse aquela mulher que você gostou... Ela parou de repente, olhou-o fundo nos olhos: — Você tem um mistério na vida? Cláudio concordou, modestamente, que diabo, impossível que procurando bem não encontrasse um mistério na vida. Um amigo recente deu-lhe o cigarro suspeito, foi fumar na varanda do Iate Clube, enquanto Paulinho Burgos tocava ao piano uma fantasia sobre músicas espanholas. Felicidade ou maconha — pairava. Irene humilde, encostada a seu ombro, os olhos úmidos e azuis, cabelos batendo de leve na sua boca — impaciente boca. Dia raiando sobre o Capiberibe. Caio Cunha, dono da festa, fez servir gim, o copão enorme com tônica e gelo. O copão passou de boca em boca feito o cachimbo da paz dos índios. O gim da paz. Hábito do Iate Clube, para rebater os excessos da noite, consolidar triunfos ou iniciar o tortuoso caminho dos esquecimentos. Um gole só. O de Irene foi logo depois do seu. Colocou a boca no mesmo lugar, demorou os lábios ali, olhando-o. “— Foi o nosso primeiro beijo.” Aquilo tudo saía do negro brilho do disco. Batuque. Recife. Irene. Dois anos atrás. Vontade de quebrar o disco e dele retirar a emoção morta. Disco inquebrável, nonbreakable no rótulo, “até isso fazem contra a gente”. “— Saudade lúcida é uma droga. Saudade tem muita lucidez, mais angústia que ternura.” Não sei por que, associo três andares em arquitetura moderna, vistosos, com frente para Chapot-Prevost. Entre a antiga casa e o novo prédio, restou o espaçoso quintal que o velho Andrade mandou cobrir de cerâmica e onde a família se reúne para os churrascos, o pôquer. Fazendo frente à casa do Andrade, na Rua Bojuru, dando fundos para o cinema da Avenida Paranapuã, o galpão que desde tempos imemoriais leva o nome de boate. Periodicamente há danças por lá, como diria Seu Amadeu, antes da ponte, era dos lugares tradicionais e melhor frequentados de toda a Ilha. A ponte avacalhou com a boate. Mesmo assim ela persiste, e pelos carnavais, em feriados onde há muitos veranistas, o ambiente melhora. Durante o resto do ano permanece fechada, um mulatinho pederasta tomando conta das mesas e cadeiras. À direita da casa dos Andrades, os vastos domínios de Seu Amadeu, dando saída para as
  • 14. duas ruas, mas com maior frente. A casa ocupa um quarto do terreno, sendo o resto tomado por enormes árvores que Seu Amadeu já encontrara ali, quando, há muitos anos, fora o primeiro morador da rua. Uns quarenta metros após a casa de Seu Amadeu, a praia completa o quadrado das duas ruas, unindo-as com o matagal que só agora o velho Paterone começa a pôr abaixo para construir novo edifício. No prolongamento da Rua Bojuru, para dentro do mar, a pequenina ilha do Manuel Rodrigues, boa vegetação, uma roda de vento, uns pombos, e uma lanchinha amarela famosa pelos naufrágios que sofreu. Um pouco à esquerda da Manuel Rodrigues, na pequena enseada que precede a praia do Barão, um barco azul com fundo vermelho, permanentemente apoitado. É o REX, do Seu Amadeu. Mixole uma vez por dia atravessa a nado a distância que vai da praça até a praia do Barão, espia as margens cautelosamente, sobe no REX e fica de cócoras. Na Ilha inteira sabem o que Mixole vai fazer ali. A chuva aumentou. O vento da barra sopra contra as vidraças. A mangueira do Seu Morais geme soturnamente, açoitada por monstro invisível, no meio da noite. Cláudio, sozinho, teme as coisas lúcidas que podem acontecer. Os fantasmas lá longe, vindo em silêncio, sem deixar vestígios, como balões apagados da madrugada. E o ladrão passando pela rua, fantasma ridículo, dentro das dimensões humanas, “mais dia menos dia a radiopatrulha bota a mão nele”. Deu nove horas. A mulher encerrou a farra das crianças, Renata abriu a máquina-de- escrever e pediu para escrever o nome. Valéria também veio, tomar bênção. Há o ritual que se renova todas as noites: Cláudio faz três cruzes na testa delas, dizendo: “Que Deus te dê bons sonhos, que Deus te faça muito feliz, que Deus te dê muita saúde!” Renata leva a coisa a sério, já aprendeu o medo, teme os pesadelos e os ladrões, pensa que a bênção a livrará dos males que aos poucos vai sabendo a vida cheia. Valéria toma a bênção como farra, a última farra, de um dia cheio de farras. Estão todas deitadas. Dormem o primeiro sono na cama dos pais. Quando Cláudio se deita, lá pela madrugada, passa-as dormindo para o quarto cor-de-rosa, cheio de bonecas. Quando ele está com preguiça, ou elas dormem agitadas, quem vai para o quarto das bonecas é ele mesmo. Sente-se ridículo dormindo na cama laqueada de Renata, as pernas sobrando, bonecas espalhadas em volta. Nunca disse a ninguém, nem tem a quem dizê-lo, mas sente secreta vergonha disso. O silêncio volta, pouco a pouco. Lá embaixo, na casa dos sogros, estão todos recolhidos. A chuva bate com força mas a viração é mais forte quando sopra, insubmissa. As meninas ouvem a história de todas as noites, a da baratinha que queria se casar. A mulher tem voz propositadamente arrastada, até parecer reza de beata, sem convicção, um cantochão que apenas embala. As meninas não resistem, dormem no meio, a mulher termina vencida pela própria voz, dorme também, antes de concluir. Quando querem histórias de verdade, as garotas vão pedi-las ao pai. Ele então as espanta com farrapos de leituras, sonhos malucos que tem às vezes, sem nenhum sentido. Mas para elas tudo sem sentido se faz bonito. Por causa dos sonhos, Cláudio prolonga a vigília. Teme a ida para a cama, ou se entregar aos fantasmas da noite. Não poderia precisar quando, mas há muito é perseguido por pesadelos. Para evitá-los, prefere a insônia, toma comprimidos, passa duas a três noites insones, a
  • 15. cara escaveirada a assustar amigos, a intranquilizar a mulher. Até que de repente vem a brutalidade de dentro dele, a força misteriosa que o arrasta para a cama, inconsciente, e é o sono violento, profundo, que o deixa atordoado durante os dias seguintes. De início pensou na incontinência sexual, andava abusando, Marcela o esgotava, e afora Marcela, os casos mais antigos, Marina, Irene, uma ou outra que volta e meia reaparecia e novamente desaparecia. Programou vida de asceta, passava três a quatro dias evitando os encontros, mas justamente nesses períodos acontecia-lhe o sono brutal que o atirava à cama como um possesso. Sofria quando insone, sofria quando tinha pesadelos e sofria muito mais quando se entregava àquela letargia mortal que o prostrava horas e horas. Procurava então, voluntariamente, o quarto das meninas, onde podia dormir ou sofrer mais à vontade, sem incomodar ninguém. “— Esta noite devo ter um pouco descanso.” Em geral, após uma noite de sono brutal, sucediam-se duas a três noites suportáveis, mais ou menos tranquilas, sonhos neutros que não o angustiavam. Da boate em frente à casa do sogro começam o baile de todos os sábados. Ninguém sabe o que vem fazer o ladrão em meio a gente tão inroubável. O clarinete sobe no Star Dust desafinando, a bateria acompanha fora do ritmo, mas a dança persiste, não animada, por obrigação parece, arrastada, como um dever. O clarinete faz o floreio e ataca o bolero que andou muito cantado em tempo de samba, pelo último carnaval. Aquela mesma música penetrou em Cláudio com um perfume: chambley. O perfume de Marcela. Por que o bolero, por que o chambley? Por que Marcela? Marcela viera assistir à festa dos veranistas. Houve oportunidade, tomara coragem, quando deu por si já a tinha nos braços, inteira, flexível como uma enguia — o marido ria, complacente, tranquilo. A mecha queimada pelo sol da praia caía na fronte de Marcela. Quando a rodava com mais força, aqueles cabelos batiam-lhe na boca. — Vou sentir saudades do verão. — Eu também. — Pretendo voltar o ano que vem. — As coisas não voltam: não adianta nós voltarmos. — Em todo o caso, obrigada por tudo. — Não precisa agradecer, não chegou a hora do adeus ainda. — Isso não é adeus! — Guarde os agradecimentos ou as censuras até lá. E até lá, o bem e o mal serão recíprocos. “Verdade, nós nos amávamos.” Passado já. Passado de dois meses, tão distante Marcela de dois meses quanto Irene de dois anos. Montanhas e vales nivelados pela perspectiva do tempo, a planície — “ou planalto?” Não importa agora Os dias passaram, noites carregaram lentas tristezas e ausências, difíceis de desfiar lá de dentro. Cláudio fecha os olhos e pensa em nada, mas profundamente. Profundamente, a noite escorrega, levada pela viração da barra, qual enorme, indeformável nuvem. “— O mais estúpido dos domingos é que todos se parecem, como as sextas-feiras-da- paixão e as quartas-feiras-de-cinzas. Os outros dias da semana trazem sempre algo de novo,
  • 16. embora nada de único. Domingo não. Dá a impressão de feito em série, no rádio as mesmas canções, os mesmos resultados no futebol, nas igrejas o mesmo homem bebendo vinho diante de mulheres ajoelhadas. O dia em que descobrirem métodos seguros de hibernação artificial, irei hibernar-me todos os sábados. Passarei o domingo na geladeira, renascerei na segunda-feira, como esses gigantes pré-históricos que um dia despertarão do sono glacial e devastarão a terra com suas garras e fomes milenares.” Cláudio recebera uma carta: o homem de negócios pedia-lhe a opinião sobre um assunto. Lá estava, textualmente: “o senhor é um homem equilibrado.” Homem equilibrado — eis o homem. Seu pai o exibia com orgulho. Em todos os lugares arrastara a incômoda fama: um homem equilibrado. Só ele sabe que não tem equilíbrio algum, fica em pé, permanece em pé pela neutralização dos contários. Mas nada pode fazer por si. Continua chovendo. A noite toda choveu e pela manhã o sol botou a carantonha para fora, cuspiu um pouco de fogo e recolheu-se, entendiado. A mulher resolveu fazer faxina no apartamento, convocou as empregadas para o serviço e ele ficou com as crianças até a hora do almoço — sim, um homem equilibrado. Tenta ler o jornal, mas Seu Jair vem pedi-lo emprestado, chegara tarde na banca, os jornais tinham acabado e ele queria saber da situação na Arábia Saudita, os americanos são uns safados. Lerá os telegramas e depois deitará sabedoria para cima de Seu Amadeu, ao pé do chope. Sobra-lhe o suplemento, artigos sobre Fernand Léger, Tentativa de Interpretação de Joyce, A Fase Azul de Picasso, uns poemas. A cunhada aparece-lhe ao lado, num dos shorts justos que ela teima em usar para desespero de muita gente da Ilha. Cláudio ignora se ela está ali há muito tempo, só a percebe quando se pergunta se está entendendo os poemas. Nesse exato momento ela lhe faz a mesma pergunta. Responde que não — é mais fácil e digno. Para valorizar a ignorância, ou desculpá-la, acrescenta que os poemas não se destinam à compreensão, e sim, à sensação. É sóbrio: — Não é para entender. É para sentir. Ela faz cara de espanto — mas sentir o quê? — e retorna. Some tão repentinamente como aparece. O noivo lá dentro, ela interrompera o namoro para se intrometer com poemas. Só isso? Ou o incidente não existia? Foi alucinação, ele lia os poemas, de repente viu as coxas nuas, os cabelos louros, a pergunta que foi mais de dentro dele do que dela propriamente. “— Não, não pode ser alucinação, sou um homem equilibrado, preciso repetir diversas vezes para mim mesmo, escrever em cada página que leio, em cada muro que ultrapasso: sou um homem equilibrado!” Real ou imaginária, ela apareceu a seu lado, fez pergunta idiota, recebeu resposta também idiota e desapareceu. Incomoda-o a surpresa de ter dado com ela. Geralmente, ele adivinha a presença dela, há batedores motorizados que a anunciam à distância. Sente-a longe, pela cor do céu, pelo silêncio das árvores, pela dimensão das nuvens. Sempre o incomoda. Dessa vez as cautelas diluidoras falharam, ele fora apanhado de surpresa — e não a perdoava por isso. Imagina um amuo com o noivo. Para valorizar o amuo, ela foi espraiar os cabelos lá fora. A pergunta justificou sua presença ali, ela sabe que sua presença é bastante dolorosa
  • 17. quando em silêncio. Voltou logo, a reconciliação deve ter sido gostosa, talvez não tenha sido isso precisamente, mas Cláudio reconforta-se pensando que foi assim. Procura concentrar-se, sente que amam às suas costas: “Ainda bem, isso faz sentido”. O mar, ferida aberta, sangrando azul, lá no fim da rua. Após o almoço tenta renovar o passeio da véspera. Passa pela Rua Jari mas não sente nada. Fica pensando na emoção do dia anterior. Compara as duas sensações: qual a verdadeira? qual a sincera? Ou nenhuma havia sido uma coisa ou outra? “— O equilíbrio, não me entregar nunca, ficar sempre no meio, equidistante dos extremos. Para que avançar? Mais se fica no mesmo lugar. Caminhos estáticos, isso sim, começam e acabam no mesmo ponto estanque, estreito espaço. Tudo parece ter passado, o lado bom do amor — é morto. Ou o lado virgem do ódio. Mastigar agora, até o fim. Marcela já deslumbrou. Sei o que vem agora. A falar a verdade, começamos o fim e mal saímos do começo.” O encantamento da descoberta — valeu. No reconhecimento de que haveriam de sofrer ainda, pouparam-se mutuamente, foram práticos, breves. Na realidade, estavam sendo maduros. Já haviam desperdiçado muito fôlego em batalhas findas: nas mãos vazias, mãos de gladiadores — apertavam agora o fracasso de tudo. O costumeiro repasto. Sentia-se inferior a Marcela na capacidade do amor, de aceitar o amor. Ela dava dignidade a isso tudo. Ele não. Procurava, quando muito, dar equilíbrio. Mas como sofrer equilibradamente? “— Sim, ela tem razão, eu sou muito ridículo!” — Tinha as amarras, latas grudadas atrás de si, como os carros de recém-casados. — “Tenho latas também, mas as minhas têm férias periódicas, liberto-me não das latas propriamente, mas das teias que me amarram a elas.” — Não resolve. Ele volta fielmente às latas numa obsessão amarga. Parecem prendê-lo sem laços, como coisas magnéticas. Marcela não, tem latas e teias isoladas entre si: a hierarquia da prisão. Faz barulho se alguém a toca. Ou se ela mesma procura fugir. É quando ele mais a ama. E quando ela mais se despreza. O primeiro beijo obedecera a um roteiro interior que elaboraram isoladamente, sem sequer se conhecerem, nem saberem ao certo no que daria a conversa das primeiras manhãs, “que que o senhor usa contra os mosquitos?” “— Cada amor é noviciado para outro que se abre à frente.” Cada qual ruminou o roteiro amargo, na suposição de um mistério prestes a desabar sobre eles. E de repente abriram os olhos e viram que estavam nus. A obra de paciência e mistério desaguou naquele beijo: como quem começa a noite amando uma virgem e de manhã descobre que dormiu com uma meretriz. Ou o contrário. “— A vida faz dessas com a gente.” Marcela sentada no meio-fio da rua: — Sou peixe, sabe? Talvez me compreenda... — Sou peixe também, há trinta anos, e até hoje não me compreendi. O signo é infame. Prefiria ser câncer. — Empatamos. Sejamos galantes então, o melhor é parar. — Parar? (“Desde o início sabíamos, por mais que andássemos não chegaríamos nunca a lugar
  • 18. algum, nem sequer sairíamos do mesmo lugar.”) — Temos muito a sofrer, Marcela. — Juntos? — Ou separados. Isso não conta. Conta é nossa predestinação, nossa vocação ao sofrimento. — Ao amor? — Dá no mesmo. — Sim, tudo dá no mesmo, quer continuemos ou não. A chuvinha miúda começara a cair, ele sentia as costas molhadas. — Vamos para dentro do carro? — Para quê? Estou bem aqui. — Honestamente, eu me sinto ridículo diante de você. — E eu? pior ainda! — Que que vai ser de nós dois agora? Marcela deu de ombros. Pediu-lhe um cigarro. Parecia humilhada, houvera despudor na sua primeira fraqueza, ela se oferecera, tomara o carro em situação tão equívoca que lhe dava o direito de ser brutal. Diante daquela fraqueza, Cláudio se surpreendia, tão corrompido já, como se fosse criança, tentando amparar um irmão menor. E ali estavam, a noite cúmplice, o carro, a impotência em serem infelizes separados — “há que ser infelizes juntos, às vezes”. — As aparências são contra. — Tudo é contra. Marcela riu. Fica feia quando ri, o riso agônico, sem nuança, boneco que ri quando a corda dispara. Depois ficou séria. Inclinou a cabeça sobre o ombro dele, e ofereceu-lhe a boca, aberta já. Cheirava a fumo, nervosa, parecia boca íntima, beijada não sabia quando. Súbito, manda-lhe o olhar feroz. Descobriu tarde que podia ter prolongado a espera, não soara a hora do suor comum. Soou a hora. Maduros, esperar mais e apodreceriam lado a lado, mesquinhos e inúteis. Descascaram o fruto, chegavam ao bagaço. Precisavam do rito para compensar. Primeira posse sofrida. Como que se perdoavam. Não chegaram a chorar — seria doloroso demais. Mas o rito foi pranto alongado em dois, pranto silencioso, humilde, tão sofrido que só às vezes parecia prazer. Descanso também. No abraço final que os uniu, na posse — “como posse coisa tão impossuída?” — sentiram as amarras todas, latas, passado, futuro, tudo o que os unia e separava como faíscas que se repelem e atraem, cegas. “— Para andarem no infinito, os aviões criam grades imaginárias. Tantos quilômetros para frente, tantos quilômetros para trás, tantos à esquerda, tantos à direita, tantos acima, tantos abaixo. “Nesse quadrado imaginário se locomovem em paz, seguros. “É o tijolo de segurança.” “Os outros aviões respeitam esse quadrado, carregam ao redor de si tijolos iguais.” Marcela e Cláudio. Finalmente um dentro do outro. “Que que o senhor usa contra os mosquitos.”
  • 19. — Vem, toma! — Marcela! — Toma! Toma! Aperta minha mão! Sentiam o peso de grades que não se rompiam: “Tantos quilômetros para a frente, tantos quilômetros para trás. Por mais que se espremessem, por mais que entrassem um no outro, continuavam intatos, impossuídos. Quadrados petrificados, zona neutra entre os dois.” — Toma! Assim, agora, assim! Doía.
  • 20. A PRIMEIRA SENSAÇÃO foi estranha: os globos de luz da Praça Paris aproximaram-se, rodaram, afastaram-se distantes, como no fundo de um túnel escuro, depois voltaram outra vez, enormes, entrando pelos olhos. Binho agarrava o volante não mais para corrigir a posição do carro, mas para não ser lançado fora. O lotação freou abruptamente ao lado, ferros rangeram, a senhora que esperava alguém na alameda do centro deu um grito. O susto foi tanto que ninguém no carro gritou, nem mesmo Tom, músico do Orfeu, cuja mão parecia presa entre a carroçaria do MG e a gorda árvore que barrara o rodopio do carro. Fora da pista, o MG ofega, tremendo, meio tombado. Um camarada salta do lotação, ajuda Tom a sair, a mão bamba, a primeira impressão é triste, Tom nunca mais tocaria os sambas bonitos que sabia fazer. Cláudio pula, o coração na boca, mas apesar do susto tem presença de espírito para ir acudir Binho. Junta gente. O lotação dá atrás e vai embora. Os carros que passam diminuem a marcha, caras curiosas aparecem para inventariar os mortos e feridos. Um sujeito aparece de repente, querendo prender todo mundo, diz-se autoridade, ameaça puxar poderosa carteira do bolso mas fica no gesto, Binho analisa os danos do carro, paguei 18 contos de lanternagem na semana passada, foi tudo para o beleléu, isso na hora não dói, amanhã é que vou ficar desesperado. Só depois de examinar os pneus torcidos, a bengala caída, a lataria totalmente amassada do lado da árvore é que se lembra da mão de Tom. Não havia sido nada, apenas um arranhão. Tom aperta com a outra mão o pulso, mexe com os dedos, como garras de um polvo, para testar os reflexos. O sujeito quer levar alguém preso, depois de ver que ninguém aprova a prisão de ninguém. Binho cheira a uísque, os olhos injetados, cabelos caídos pela testa. Cláudio manda a autoridade à merda e o homem fica fora de si, exige respeito, faz novamente o gesto de quem puxa onipotente carteira do bolso. Tom, o que menos berra, é o mais lúcido: chama o táxi, ele e Cláudio empurram Binho para dentro, à força. — Quebro a cara daquele veado! — Quebra nada, Binho, o homem é do Distrito. — Distrito uma ova, o homem é vigarista, não tem carteira nem nada, é cascata! — Ele queria um cadáver. É desses que andam com vela acesa no bolso. Morre um sujeito no diabo, longe de qualquer recurso, dois minutos depois aparece uma vela acesa ao lado. O sujeito que bota essa vela é ele. Ficou puto porque não teve cadáver. — Não fale em cadáver. Por pouco ... — Vocês pensam que eu estou de porre? — Pensamos. — Merda para vocês! — Não fique falando e olhando para trás. Olha que você vomita. — Nunca mais dou carona a teso! — Mas quem pagou o uísque fui eu! — E quem vai pagar o estrago na minha mão? — A mãe!
  • 21. — Para onde vamos? — Para a casa de Marina. — Quem é Marina? — Uma coroa que o Cláudio explora. — Não é bem assim. É uma amiga minha. — Todo mundo sabe que você é cafetão de Marina. Toma dinheiro dela para gastar com outras. — Mas você não é casado? — O Binho está bêbedo, não ligue para o que ele diz. — Isso é argumento de veado! — Os senhores podem dizer para onde vão? — Rua Duvivier. — Zona de cafajeste. — Amanhã tenho uma gravação, a mão está doendo. — Nunca mais te dou carona, Tom. — Não estou reclamando. — Da outra vez vá de ônibus. — Foi você quem convidou, eu não pedi. — Eu estava de porre, você devia ter visto. — Está ainda. O meu já passou, com o susto. — Cláudio, você é um chato quando bebe! — Já disse, não estou mais, a trombada curou. — Pior: quando está lúcido é um imbecil! — Você bebeu porque quis. — Vira para a frente. O motorista encosta o carro no meio-fio, Binho bota a cara para fora e despeja na calçada um jato colorido, cheirando a azedo. — Você mora aqui mesmo? — Não. Moro na Ilha. Marina é apenas uma amiga. — E ainda vai hoje para a Ilha? — Deixei o carro na Esplanada. — Tem carro? E por que deixou Binho dirigir? — Eu estava ruim. Pensei que Binho dirigia bem, mesmo ruim. — No carnaval ele entrou na traseira de um bonde, com o Citroen antigo. — Ele me contou. — O MG vai durar pouco na mão dele. — Acho que já durou. — Podemos ir? — Vamos, está perto. Binho passa o lenço pela boca, os cabelos caídos, fedendo a vômito, a cara de nojo. Cláudio imagina a desculpa para invadir a casa de Marina tão tarde, com dois amigos altos, era o diabo. O túnel do Leme fica para trás, a brisa do Atlântico varre o cheiro de vômito que se espalhara pelo carro.
  • 22. — Vou parar de beber. — Faz bem. — ]á te disse que você é nojento quando se mete a dar conselhos. Prefiro você bêbedo, lúcido é uma droga. Cláudio ouve pela segunda vez a palavra lúcido. Insistência cruel de Binho aquela, chamá-lo de lúcido. Marina abre a porta e finge não se incomodar com a visita àquela hora. — São uns amigos, houve um acidente. Marina conhece Binho de referências, não o imaginava tão pequenino. — Tem sal de fruta? Três doses iguais. Marina vai apanhar mercúrio-cromo, enfaixa a mão de Tom. Binho deitado no sofá bate com as mãos na própria cabeça: — Estou arruinado! — Quem mandou beber? — Não foi a bebida. Aquela curva é esquisita, não vi o meio-fio direito, bati com a roda da frente, pisei nos freios desastradamente, o resto foi aquilo. Agora o carro está quebrado, é jogar fora! — Você teve sorte, podia ter matado um ou todos. — Por mim vocês podiam ir todos à merda. — Basta o lotação que vinha atrás não parar na hora. Tom vem lá de dentro: — Binho, respeite a casa. — Nunca mais me meto com chatos, com burgueses-avaros! Burguês-avaro — outra das senhas do Binho. Marina manda a empregada servir pequeno lanche aos três, Cláudio olha Binho estendido no sofá, um pouco de raiva do amigo. Amizade antiga, desde os tempos de colégio. Sumia e desaparecia de sua vida guardando certa coerência tanto no afastamento como na aproximação. Períodos calmos para Cláudio, em que tudo corria bem e Binho virava fantasma que não incomodava. Tempestades próximas, crises de insônia e de dor-de-corno em potencial, e Binho surgia do chão, como sombra saída dos infernos. Andara afastado de Binho há tempos, mudara de bar para não encontrá-lo. Mas no dia em que possuíra Marcela pela primeira vez, ou pelo cansaço, ou levado por invisível mão, abriu a pesada porta de vidro do Juca’s Bar, “o melhor ar refrigerado da cidade” — dizia a carteirinha de fósforos que distribuíam como propaganda. Evitou o primeiro pavimento, subiu para o segundo, enfiou-se num canto, solitário, a ruminar o Johnnie-Walker e o cheiro de chambley que lhe ficara de Marcela em todo o corpo. Binho então apareceu como decorrência, como quem acorda e vê a luz da manhã entrando pelas venezianas da janela: abrindo a janela o sol dá de cara, pontual. Sujeito plácido e histérico o Binho. Plácido para com os outros, histérico para com ele mesmo, dá a impressão de que está sob o efeito de droga, comido por fogo interior — é um demônio por causa disso, a roupa de linho, o nó Windsor da gravata, os cabelos bem penteados pretendem esconder o pé-de-cabra daquelas histórias em que o diabo toma aparências de príncipe encantado para seduzir virgens: na noite de núpcias, ao tirar os sapatos, o pé-de-cabra é o terrível estigma que o marca, eterno. Marina chama para o lanche. Tom dá explicações, o carro vinha assim mas a roda
  • 23. bateu na calçada e aí, Marina se força a ser gentil, mas demonstra impaciência no canto da boca, esperara Cláudio desde as sete horas, ele prometera vir, já há duas semanas não aparecia, e chegava àquela hora, com amigos uiscados, volta e meia vinha-lhe vontade de chorar ali mesmo, em frente a todos, para que os amigos de Cláudio soubessem como ele era mau. O orgulho impedia-lhe isso, Cláudio nunca mais a perdoaria, e ela não poderia viver sem ele, agora já não tinha dúvida, era seu último amante, despertara a atenção dele aos quarenta anos, então havia tempo, agora não, nem sequer tinha mais disposição para arranjar outro, depois de Cláudio era a velhice, o fim, e continha a vontade de chorar para que ninguém soubesse que ela temia o fim. — Binho tem bebido muito, é bom que Cláudio o fiscalize um pouco. Foi imperdoável da parte dele deixar Binho dirigir no estado em que estava, eu não reparei porque havia bebido também e não sei dirigir, e agora está aí, o carro quebrado, a mão doendo, amanhã tenho uma gravação. — O senhor é músico? — Mais ou menos. Componho também. Cláudio esquecera-se de apresentar Tom. Pensa em interferir na conversa dos dois, mas prefere ficar calado. Evita assim o olhar ansiado de Marina que lhe pede contas e lhe cobra faltas. Binho ameaça dormir e Cláudio vai acordá-lo, tinham de ir ver o carro, àquela altura já a polícia tomara conta da situação, esperava o dono, a chapa anotada, Binho tinha de se explicar de qualquer maneira, bastava o carro abandonado para contrariar os regulamentos. — Cláudio, você não vem comer? — Não. Tom come à vontade, o acidente abre-lhe o apetite, mantém conversa com Marina e Cláudio é-lhe grato por isso. Levanta-se, cutuca Binho com o braço: — Não dorme não. Temos de voltar lá. — Vão vocês. Reboquem o carro, façam o que puderem. Eu não aguento mais! Vira a cara e emborca. Marina aproveita estar a sós, manda-lhe finalmente o olhar que ameaçava desde o início. Cláudio faz um gesto aborrecido: — Pelo amor de Deus, hoje não, depois eu explico! Tom volta do lanche, satisfeito, fumando cigarro, a mão enfaixada por Marina parecendo mais leve que a outra: — Binho dormiu? — Dormiu. Vamos nós ver o carro. Saem. Marina olha agoniada para Binho dormindo em seu sofá e para Cláudio que se retira. — Não se preocupe, ele está inofensivo, lá pelo meio da noite acorda e vai embora. Pelo jeito com que vai calado no elevador, Cláudio percebe que Tom o censura pelo tratamento dado a Marina. Pretende explicar qualquer coisa mas sobe-lhe uma vaga preguiça de abrir a boca. “— Pense o que quiser! Dá no mesmo!” Na Praça Paris, quase deserta, o aglomerado de seis pessoas marca a presença do MG espatifado. Dois guardas conversam, encostados nas motos paradas em cima da calçada. Tom e Cláudio dão explicações, não há derramamento de sangue nem ameaça de. Pagam a intervenção cirúrgica da gravidez tubária da amante de um dos guardas, os dois racham o preço
  • 24. da gravidez tubária bem nas barbas deles e tudo fica nisso mesmo. — Podem mandar rebocar. Tom conhece a garagem onde Binho guarda o carro, vai dar o telefonema. Cláudio toma o táxi, volta à cidade, vê o studebaker sozinho na imensa esplanada, deserta então. O carro escuro tem algo de resignado. Sem saber por que, lembra o silêncio de Tom no elevador. O carro parece censurá-lo também. Outra espécie de censura, maior, mais funda, mais sua. Pelo caminho, rumo à Ilha, pensa em Marcela que foi sua pelo meio da tarde. No acidente que trouxera a morte tão próxima e já tão distante outra vez. Nem com a posse de Marcela, nem com a visão da morte conseguira romper os quadrados de segurança. Perseverava intato no seu mistério — ou na sua lucidez. Julga-se um estranho que guarda o intato indefinidamente, como a criança que não abre seu saquinho de balas para que fique eterno. O studebaker corre macio pelo concreto da ponte. As luzes do Galeão refletem-se nas águas da baía, a luzinha vermelha do avião pisca lá em cima, iniciando a curva para tomar pista. Cláudio diminui a marcha para coincidir a passagem com a descida do avião. Mas logo percebe que a luzinha vermelha se afasta cada vez mais, e penetra, como uma estrela, na enseada da noite. — Papai, hoje tem arrozinho? Cláudio suspende a leitura e olha a cara da filha. — Você não jantou lá embaixo? — Não. Só tomei café com sanduíche. Valéria chega do quarto, correndo: — Faz arroz, papai! A mulher não gosta, mas cala, atenção nos sapatinhos de lã que está fazendo para uma sobrinha que ainda vai nascer. — Vamos! Não sabia como, aprendera a cozinhar. Gostava de lidar com panelas, com temperos, tinha boa mão, famosa pelos verões a sua sirizada da meia-noite, um panelão de siri refogado no azeite. Renata e Valéria preferiam o arroz complicado no qual entrava toucinho, paio, linguiça, cenoura, temperos todos e arroz naturalmente, que não chegava a lavar, para não prejudicar a autenticidade do arroz. Renata e Valéria comiam um prato cheio. Cláudio comia-o pelando, botando mais sal, para justificar o vasto copo de água gelada. No fundo, sabia que preparava com o arroz de hoje a úlcera de amanhã. O bom senso da mulher: — Você está estragando o estômago dessas meninas! — Elas é que pediram! Valéria quer agora o cachimbo. Cláudio dá-lhe um, não mais em uso, a filha recalcitra, quer o que o pai está fumando. Cláudio oferece-lhe outros, de sua coleção. Tem uma porção e as garotas o julgam muito importante, o camarada mais importante do mundo. De uma só tragada o veem fumar cigarro e cachimbos de todos os feitios e tamanhos. Isso estabelece tabus dentro de casa, os pacotes de fumo são intocáveis, os cachimbos são vasos sagrados do Templo. Elas sabem que ele mexe naquilo com intimidade de Sumo Sacerdote, espiam-no do fundo de seus
  • 25. olhinhos miúdos e o consideram a coisa mais poderosa do universo. A mulher não forma na mesma opinião. Os apetrechos são trambolho, reclama contra tantos cachimbos, tantos objetos feios e inúteis que sujam os tapetes. As meninas vão deitar. O ritual da bênção renovado, que Deus te dê muito isso, muito aquilo. Valéria recebe a bênção rindo. Renata leva a sério, para evitar os pesadelos, os ladrões da noite. — Papai, ontem eu sonhei que estava dando ladrão! — Não foi nada, isso de ladrão é mentira, é para as crianças ficarem bem comportadas... — É que nem bicho-papão? — Mais ou menos. Ninguém acredita mais em bicho-papão, então os adultos inventam o ladrão que rouba as criancinhas... — Por que os homens grandes são tão maus? — Porque são grandes, minha filha. Cláudio, sozinho agora, no living, descobre que tem medo também. Medo de não sabe bem o quê. Mas não tem ninguém a quem pedir bênção. Tenta se abençoar sozinho, mas não é a mesma coisa. Abre o janelão. Araújo vem da praia, de braço com a mulher, os dois filhos à frente, falando alto. — Boa-noite! — Boa-noite. Na praia está frio. Cláudio não dá conversa, Araújo é desses de ficar a noite toda falando. — Até amanhã. Pensa em ir deitar. Mas vive fase de repulsa à cama. Na véspera dormira tão violentamente que nem sentira: Valéria passara para sua cama, tinha um alfinete segurando a medalhinha do anjo da guarda, o alfinete estava aberto, entrou no braço de Cláudio e ele nem sentiu, quando acordou viu o lençol sujo de sangue, precisou raciocinar para sentir a dor. “— Não quero perder meus domínios, ficar solto, sem minhas amarras, sem meu equilíbrio, sem quadrado de segurança. Não deve ser nada, excesso de bebida talvez.” Desde o dia do acidente com o carro de Binho que deixara de beber Johnnie-Walker, passara a beber rum. Na garrafa tinha o rótulo: Santiago de Cuba. O negro de. Garcia Lorca, verde que te quero verde. “— Verde que te quero verde me quedo sozinho. O homem tem de resolver sozinho todos os problemas realmente importantes. Nem mesmo a experiência alheia ajuda: como é a morte, quem é Deus?” Silêncio invadindo a casa. Cláudio ouve o barulho da sogra fechando as portas lá de baixo. É uma mulher barroca de olhos azuis. Existem um ao lado do outro, sem palavras, mas o silêncio entre eles não tem nenhum significado, nem chega a ser silêncio, é um vazio de duas pessoas que nada têm a se dizer. Não há futuro nem passado entre os dois. Cláudio pode beijá-la ou esbofeteá-la, sem motivos para uma coisa ou outra. “— Ora, os vermes também comem os olhos azuis!” Há muito tempo que Seu Jair não tem mais nada o que fazer. Apareceu pela Ilha como quem não quer nada, para ajudar a irmã a fazer a casa. A irmã fez a casa, morou uns tempos e
  • 26. foi embora, Seu Jair ficou e ameaça ficar para sempre. É entendido em flores e em arte naval, quando a Chris-Craft do velho Andrade pifa nas saídas, Seu Jair é o primeiro a levantar a tampa do motor e meter o bedelho: — É o platinado! Enguiço em motor de lancha é no platinado, em motor de automóvel é no carburador, o vento que sopra é sempre o nordeste, nunca há outros ventos, venha de dentro ou de fora Seu Jair olha com intimidade as ondas, sonda as nuvens: — É o nordeste! Entende ainda de macumbas, de esoterismo e de situação internacional. Como não tem público para nada disso, julga-se incompreendido e o é, de fato. Seu Amadeu sabe histórias dele, a mulher que fugiu com um padre, lá no sertão de Minas. Seu Jair não ignora que Seu Amadeu espalha aos ventos sua desgraça conjugal. Em compensação, a Ilha inteira conheceu os detalhes escabrosos da história de Tereza-Demônio-Nu através do fantasioso relato de Seu Jair. Dão-se por bem pagos e é possível que se estimem. — Pois isso não está me cheirando bem... — Seu Jair, já vi muita coisa esquisita nesta Ilha. — Será o mesmo sujeito, o demônio-nu? — Não. Não... quer dizer, jurar não posso, mas por que o sujeitinho voltaria sem mais nem menos, após quase três anos? — Seu Amadeu, o senhor viu os dois, pode fazer um juízo, eu não vi o outro... — Bem, ver, só vi mesmo esse ladrão de agora, no escuro, e de longe. — E não viu bem o outro? — Só a bunda. Muito branca, nua, o camarada andava tostado de sol, era frequentador de praia, isso era. — Qualquer dia fico acordado para ver. — Não tem dia certo de aparecer. Passa pelo meio da rua, pula os muros, espia as janelas. Noutro dia subiu numa árvore lá de casa. — Para quê? — Sei lá? Subiu, pulou, quando saí correndo ele desapareceu para os fundos da casa de Seu Morais. — É preciso uma providência... — Qual, ninguém quer nada. Falei com o Andrade, ainda não viu nada, pensa que é falta do que fazer da gente. — E olhe que em matéria de mulher aquela casa é cheia. Trocaram um olhar cauteloso, medindo cada qual o grau de possível intimidade do outro com os Andrades, para desabafar. O receio de uma palavra impensada travou os pensamentos de parte a parte. — É, é bom que ele se acautele, afinal, nós não temos nada a perder. Minha velha já está mais para lá do que para cá, e o senhor, ao que me consta é solteiro, não é, Seu Jair? Em brios, Seu Jair se desapertou: — O senhor fala com muita experiência, Seu Amadeu, até hoje não esqueço aquela história de Tereza... — Até logo, Seu Jair.
  • 27. — Bom dia para o senhor, Seu Amadeu. A mulher do Evaristo vem chegando da praia, corta a rua para pegar a calçada oposta, não gosta de passar de maiô perto de Seu Amadeu, aquele olho azul raiado de vermelho come- lhe as coxas com brutalidade que lhe dá náusea. Mais ao longe, a nado, só a cabeça magra fora da água, Mixole cruza a pequena enseada do fim da praia, em busca do REX. À noitinha, olhando um anúncio luminoso que se acendia, a cabeça começa-lhe a doer. De início parece um pensamento, uma ideia triste que o incomoda. Vai crescendo até virar matéria e ter limites: só a cabeça parece existir, enorme, vergando o corpo de dor. Doloroso até olhar. Caminha de olhos fechados pelas ruas, cegueira voluntária que lhe faz bem. Tem a sensação de estar habituado a andar de olhos fechados, trevas íntimas, talvez amadas. Quando atravessa zonas intensamente iluminadas a luz é uma gargalhada entrando pelos poros de sua carne. O colorido dos néons — como sente cada cor profunda. Barulhos crescem, vêm do muro negro, alguns se destacam, isolados. Tosses — como tanta gente tosse — o bonde virando a curva do Largo da Carioca, os músicos ambulantes da Cinelândia, um tango. Cego, esquece a dor de cabeça, não tem mais cabeça, monstro acéfalo andando pelas ruas sem meter medo a ninguém. Não mete medo mas causa contratempo a um cidadão na esquina do Odeon: pisa-lhe os sapatos. O homem pergunta, solene, se ele não enxerga: — Às vezes, não. Janta em Copacabana, em casa de Marina. Ela quis explicações, mas Cláudio aponta para a cabeça, com uma ponta de desespero não fingido: — Não fale! Depois eu explico! Vai apanhar a mulher na casa dos compadres. O compadre dá-lhe um comprimido, branco como hóstia. Toma-o com docilidade estranha diante da dor. No studebaker, a mulher inclina a cabeça para trás e dorme. Há tempos, Cláudio vira um sujeito assassinado dentro de um carro, no mesmo banco da frente. A cabeça caíra para trás, abandonada, tal qual a da mulher agora. Fica pensando no que sentiria se estivesse levando, na verdade, o cadáver da mulher. Jogá-lo-ia do alto da ponte. Mas o ônibus que vai para São Paulo corta-lhe a frente abruptamente, com a meia-freada do studebaker a mulher acorda: — Esses ônibus são malucos. Isso não é velocidade para dentro da cidade. — Eles precisam correr. Todo mundo lá dentro tem pressa. Ela se ajeita novamente, a cabeça cai para trás. Há tempos os dois andavam juntinhos no carro, ele nem podia dirigir direito. Agora a mulher parece um cadáver. “Jogaria no mar, não há dúvida.” De repente, a vontade de ver Marcela. Podia fazer muita coisa, tinha mesmo muita coisa a fazer. Mas a loucura veio súbita, inadiável: Marcela, Marcela, sem Marcela não há mais salvação. A cabeça dói-lhe um pouco, da véspera ainda. Principalmente em torno dos olhos, um peso no fundo, aro invisível a comprimir órbitas doridas. Marcela não aparece. Espera até as cinco horas, a hora fatal da mulher casada, “depois das cinco nada mais é possível”. No ar, isolado da terra, de si mesmo, espírito pairando sobre as águas, no gênese da dor. “— Deus começou a fazer o mundo em estado semelhante, perdeu algo equivalente a Marcela,
  • 28. pairou sobre as águas e fez o mundo para se vingar ou para fazer qualquer coisa de prático, eu também sou assim, gosto de trabalhar com as mãos quando estou corneado ou suspeito disso, naquele dia em que Irene ameaçou acabar com tudo eu me meti a consertar torneiras lá de casa e foi o diabo. Quando perco alguma coisa — grandes perdas, grandes perdas! — sofro como se estivesse em avião sem tripulantes, sem ninguém que o saiba guiar, à espera da primeira montanha — ou da última — para o fim.” Dura duas horas, ou mais, seu pânico interior. Marcela, Marcela, Marcela. Vácuo em torno. Robinson na ilha deserta, Robinson cego, sentindo apenas a ilha, a consciência da ilha: um passo em falso e o abismo tragaria tudo: Ou o antes-da-montanha, o avião cego, isolado, rumando para o choque com tranquilidade, indefeso e belo. Cada vez que respira pode ser a última, sorve o ar, faminto, quer morrer cheio de vento: quando a montanha o estraçalhar o ar sairá de seu corpo como o gás de um balão. Pior quando se descobre sentado na mesa de trabalho Onde se metera? Quem o guiara através da treva? Pensa num monstro invisível que o transportasse em meio à escuridão — dava para se explicar, não para o salvar. Logo Marcela telefona. Não houvera nada, não haviam combinado encontro algum, ela não podia adivinhar, na véspera o avisara que iria com o marido a um coquetel na Hípica — só se lembra disso agora, a voz de Marcela penetrando-o, como a luz de um farol, puxando-o para a terra. Que é que fora fazer no apartamento então? Por que a espera idiota? Onde andara sua cabeça? Em que dimensão vivera? Lembra a dor da véspera, o monstro acéfalo andando pelas ruas, pisando sapatos alheios. Pisara em si mesmo agora, sentia-se esmagado. Marcela falando, a voz é de um fantasma bom, que o frequenta sempre. Reencontra a cabeça, ajusta-a no devido lugar — ajeita o nó da gravata para ter pretexto de sentir o pescoço, a cabeça por cima. As orelhas suadas. Aperta o fone contra a cabeça, importante senti-la ali, medo que saia voando outra vez. Marcela fala, “comprei um livro para você, vi uns discos para nosso apartamento”. Cláudio observa os outros, parecem peças inteiriças, fabricadas em série, como os cigarros e os sabonetes. O Pereira raspara a cabeça, tem ares de sentenciado, cabeça sólida aquela, nunca andou voando. O Armando, a gravata borboleta cor-de-sangue no pescoço — um ponto de sangue isolando a cabeça do rosto. — Já passou? — O quê? — O pânico... — Daqui a pouco volta. — Zangado comigo? — O quê? — Posso pedir uma coisa? — Pode. — Um beijo. — Não. — Ué! Por quê? — Sei lá onde tenho a cabeça!
  • 29. Marcela ri, distraída, o sofrimento dele bem servia para isso, distrair os outros. “— Vontade de sair de mim e espiar como sou sofrendo. E rir, também, se puder.” Desligam. A orelha vermelha, Cláudio vai olhá-la no espelho. Lá está, a rodela marcando o risco arroxeado. A voz de Marcela penetrara por ali, cabeça reencontrada, aquário com água renovada, cabeça satisfeita, como se tivesse feito uma boa ação. Tudo nos lugares: orelha, cabeça, pescoço. Van Gogh. Não há navalha perto e mesmo que houvesse Cláudio não cortaria a orelha. Que que não diria o marido de Marcela vendo sua orelha embrulhada num Jornal do Brasil? Pela cidade outra vez, olhos bem abertos agora, vontade de gritar: — Encontrei, encontrei minha cabeça! A luz dos néons não dói: mancha a noite, tintas esparramadas na palheta escura. Não mais o penetra, como punhal. Dois conhecidos passam. Foge deles, podem perguntar o que havia de novo, ele seria honesto, diria: a minha cabeça, eles olhariam, examinariam bem, achariam parecida com a outra, não entenderiam nada. Passa pelo Teatro, luz no gabinete do Murilo, tem dois assuntos a tratar com ele, mas não desperdiçaria aquela carícia nova, o orgasmo demorado dentro da cabeça — sente-se um pouco obsceno sentindo prazer em ter uma cabeça por cima do pescoço. Antes do telefone, a cidade era um túnel, labirinto cinzento, “são piores os labirintos cinzentos, os totalmente negros não dão para se sentir nada, a gente espera sair deles de repente, pode-se encontrar a luz na próxima curva ou na seguinte, tiram a percepção da perda, a lucidez do labirinto”. Dentro do labirinto espesso, mortos estranhos, andando compenetrados, como nos pesadelos. Todos parecem embrulhos, sem contatos, estanques, impessoais como árvores — florestas caminhando, em silêncio, procurando condução para casa. Cláudio anda também. Esperando a qualquer momento a montanha, — seu labirinto terminaria na montanha — é uma certeza interior que incha dentro dele — e vinha o último impacto ou a primeira luz. Marcela ao seu lado, trazia-a consigo, numa consistência viscosa: o labirinto, a cidade, tudo é Marcela. Os outros entram pela carne dela, ela recebe a humanidade imensa, a floresta inteira, abrigando-a como numa gruta, só ele fica de fora, testemunhal: o dano, pior que a morte. Isso no antes-montanha. Agora os transeuntes são homens normais, rotulados, cheios de adjetivos, vidrinhos de farmácia homeopática, corretores, advogados, comerciários, homens vestidos e abotoados, sapatos engraxados, mulheres gordas levando embrulhos. Na Galeria Cruzeiro um carteiro comendo pastéis embanharados. Antes, nada disso, os homens eram nus, sem sexo, sem história. Só agora, após o seu reencontro com a cabeça, arrastavam as latas todas, comiam pastéis com dentes sólidos, fincados em gengivas vivas. Não mais a dimensão da angústia. Telefone, orelha arroxeada, voz de Marcela passando pelo fio, — tudo verdade, tão sólida quanto o pastel embanharado. O avião retomara seus contatos, voz de Marcela funcionou certo, avião XYZ, aqui fala Marcela, aqui fala Marcela, atitude tanto, longitude tanto, vento contrário — “sempre contrário” — ponto tracinho ponto, ponto tracinho ponto, a montanha ficava lá embaixo, vencida. — “Não gosto desta perspectiva,
  • 30. montanha é para se ver acima das coisas do mundo, nada melhor que duvidar do horizonte: aquilo lá longe é uma montanha ou uma nuvem?” Ponto tracinho ponto. Acabava a pane, motores certinhos, retificados. Cláudio toma o studebaker e volta para casa, o cais o esperando, “vou sempre de carro para o cais, não preciso de navios para me amarrar a um”. Pela Avenida Brasil, os postes de luz, um após outro, ponto tracinho ponto. Rota segura. Na ponte do Fundão mar calmo, pescam siri lá para as bandas de Tubiacanga, lanternas de querosene tremem contra a noite, mansas. “Se eu tivesse um barco partiria agora” — era um verso idiota que volta e meia lhe vinha à cabeça, quando via o mar. Pois tinha barco, carro, avião, tinha tudo para ser seguro, “oito mil anos de experiência humana me transmitiram códigos e antiderrapantes, sim, sou seguro”, ponto tracinho ponto, a segurança o esmagava. Um escravo, a liberdade lá em cima, no meio das nuvens, errante, sem contato. No Galeão, um avião levanta voo, a massa cinzenta e irada passa por cima de sua cabeça, o bojo da noite o espera, tragando-o. Aquele avião não tinha Marcela, nem cais, nem ponto tracinho ponto. Cláudio deseja que o avião estoure ali mesmo, veria o clarão, a explosão na treva, talvez ouvisse gritos. Amanhã diria aos jornais: — “sim, vi o avião explodir em pleno ar, foi um espetáculo grotesco, estou vingado.” Goiabada tem cara de goiabada mesmo. Vem todos os dias, fica na praia olhando as mulheres tomar banho. Silencioso, nunca se lhe ouve a voz, nunca ninguém ouviu Goiabada falar alguma coisa. Chapéu de palha enterrado na testa, apenas olha e ri quando tenciona cumprimentar alguém. O pessoal das peladas chama Goiabada quando há vaga nos times. Goiabada é ruim, levanta a perna e a bola passa por baixo, mas é dócil, só ele aceita ir para o gol na hora dos pênaltis para levar com petardos pela cara, com Goiabada no gol — é regra tácita entre todos — vale encher o pé. Quando a bola cai nas casas muradas, ele é quem pula o muro e vai enfrentar os cachorros. Todas as missões de sacrifício são dele. Pelo carnaval aparece com um lança-perfume metálico apertado no bolso traseiro das calças. Segura a bisnaga de metal como se tivesse entre os dedos um pássaro frágil que pudesse fugir de suas mãos. Economiza o éter. No último dia descobre que não gastou nada ainda — e fica mais triste que alegre com essa descoberta. Gasta o líquido então, matando formigas, escrevendo no chão uns nomes estranhos que nunca vê acabados, às últimas letras já as primeiras se evaporaram. Joga um pouco nele mesmo, disfarçadamente, e verifica se ficou cheiroso. Depois fica esperando outro carnaval para comprar outro lança-perfume. Seu Amadeu — soube-se na Ilha inteira — deu uma corrida no Goiabada. Pegou-o durante a noite, trepado na amendoeira em frente de sua casa. Com uma vara de bambu, Goiabada cutucava as carambolas do quintal que amadureciam no pé, inúteis. Foi calmo, esperou Goiabada descer para catar as carambolas do chão. Todos viram depois Goiabada, os beiços sangrando, lavando no mar seu sangue sofrido. Cláudio espera Marcela, numa das esquinas do Largo da Carioca. Cansado, um pouco saudoso do túnel-labirinto da véspera, aborrece-se, sente-se igual a todo mundo. Foi comer um pastel na Galeria, sem fome, sem vontade, só para sentir como é amargo ser como os outros. Esperava Marcela mas quem aparece primeiro é Lília, a de olhos abertos e verdes: — Que que houve, Lília? — Nada.
  • 31. Os olhos abrem-se mais ainda, tragando o mundo, o sol, as pessoas, engolindo sem digerir, devolvendo o mundo intato. — Andou tomando alguma droga? Faz que sim com a cabeça. — Que que foi? — Nada. — Entorpecente? — Uns comprimidos novos, para aliviar a tensão. — Algum problema? Outro sim, com a cabeça. Lília não fala nunca, tudo tem de ser arrancado como nos catecismos: Deus existe? Sim, Deus existe; Deus é bom? Sim, Deus é bom; Deus é justo? Sim, Deus é justo. — Afinal, que que houve? — Foi domingo, dia do seu cais... — Então... aconteceu aquilo? — Parece. — Tudo? Deu de ombros, não o sabia: — Sei lá. Não entendo disso, ignoro o meu corpo, nem sei bem como essas coisas acontecem. Mas acho que sim. Lília fora desvirginada. Coisa prevista, apenas Cláudio não tivera emoção ou vontade muito forte para dar o passo. Ignorava que ela tivesse algum caso, talvez um amante de circunstância, um defloramento circunstancial. Já era mulher: animal rasgado, brinquedo de carne para alguns, túnel-labirinto para outros. — Que que eu tenho a ver com isso? — Nada, ué. Disse por dizer, afinal nós nos proibíramos isso uma porção de vezes. — Continuo não tendo nada com isso. Cláudio olha o ventre dela. Ventre desvirginado, com gosto de esperma para o resto da vida. Lília de olhos verdes, abertos, imensos, deflorados: lá dentro espanto; cá fora uma ameaça de lágrima. — E agora? — Que agora? — O nosso agora. — Não temos agora, Lília. — Já sei, o cais, os barbantes, as latas... Você se repete muito, sabe? — Tenho culpa? Lília olha e espera, parece esperar sempre alguma coisa, a hora das coisas acontecerem, o sol, a chuva, o amor, a morte. — Você não tem ensaio hoje? — Está me mandando embora? — Não. Mas a vida continua, isso não vai alterar nada. Você não pode ser minha mulher, nem minha amante, nem minha amiga. Não podemos ser nada um para o outro, escreva
  • 32. isso na testa. Ela faz com o dedo o gesto de quem escreve qualquer coisa na testa. Cláudio sente vontade de acariciá-la em plena rua. — O fato de possuir ou não o seu corpo, ou de outro ou outros o possuírem, não altera nada, ouviu? — Assim pensam os homens. — Assim procedem as mulheres. — E os ciganinhos? Os ciganinhos eram filhos hipotéticos que Cláudio prometera fazer em Lília quando houvesse disposição e oportunidade. Compraria um carroção de cigano — Lília o chama de cigano — um violino, tocaria as danças de Brahms, as czardas de Monti, ela dançaria com um pandeiro cheio de fitas encarnadas e teriam muitos ciganinhos, uma porção. Plano feito em noite de calor. Cláudio bêbedo, Lília de olhos verdes e nus — não o salvara mas o desculpava. — Não há mais ciganinhos, Lília, não há mais ciganinhos. Se algum dia houver certas circunstâncias, determinado estado de espírito, então que os ciganinhos se danem se nascerem de nós. — Fica tudo para as circunstâncias. Um amor de circunstâncias, foi o que você disse. — Sim, cais basta um, portos de escala ou de reabastecimento, dois ou três chegam. O resto é saque, pirataria de alto bordo. — Você teve um antepassado que foi pirata a soldo da Rainha da Inglaterra, não? — Já lhe contei isso ou foi você quem desconfiou do meu sangue mau? — As duas coisas. — Assim é melhor. Não gosto de dar nem de receber explicações. E a rigor, não há nada o que explicar. — A explicação foi minha, eu prometera explicar... — Mas o sangue não me pertenceu. Lília olha duro. O verde dos olhos fica tão verde que escorre na gota de água verde: — Depende. Nem só no início há sangue. Às vezes há sangue também no fim. Marcela chega logo que Lília some no beco do Teatro. Vem num costume azul-claro, as ancas apertadas, as pernas bem delineadas e longas — os homens passam e deitam olhos pulhas em cima. Um amor brutal. Ela foi disposta a achar defeitos em tudo, soltou porção de verdades que não doeu a Cláudio. Doeram as meias-verdades, ditas talvez sem querer. Brutal, também, caiu o temporal sobre a cidade, alagando tudo. Tinham de sair às quatro, justamente nessa hora a chuva caía com mais força, à água cantando nas calçadas, sensação de abandono, náufragos isolados, entrega cada vez mais lânguida. Não choque com a montanha: a aterrissagem. Os picos da montanha, tão ásperos na véspera, transformavam-se em campo de macio pouso, seguro. Descida suave, aos poucos, total. Preso à terra, acabava a aventura aérea. Podia jogar fora o tijolo de segurança. Cláudio pensa no avião da véspera, àquela hora estaria voando ainda? A boca de Marcela, sopro morno, selvagem na hora do prazer, depois cansado, intercalado, como o final de um choro. E o chambley pegajoso pelo suor de sua carne — possuída carne. As nuvens ficavam lá em cima, pesadas, inchadas.
  • 33. O temporal causa estragos na cidade. O governador declara, pelo rádio da mesinha de cabeceira, que a chuva custará x milhões de cruzeiros aos cofres públicos. No morro de São Carlos, o barranco que tombou mata a velha que tomava conta de dois órfãos. Sob a chuva que caía ainda, amortecida, quase não-chuva, Cláudio caminha cansado, em busca do carro — “sou um homem equilibrado, sou um homem equilibrado”. Quadrado de segurança funcionando direitinho, parando nos cruzamentos: amarelo atenção, verde siga. E ele seguia, verde que te quero verde, verdes astros. Jornais abertos nas bancas. Encrencas na política, militares ameaçando quarteladas, cruzeiro baixando, dólar subindo, café com péssima cotação em Nova York. Um professor de violino suicidara-se com a aluna-amante, mocinha de 16 anos, caso escabroso, os pais da moça deram queixa da fuga, a polícia internou-a numa casa de repouso sob alegação de doença nervosa. O professor entrou na casa-de-saúde disfarçado em varredor, com baldes, panos, vassouras e uma lata de soda cáustica. Passou pelas barbas dos policiais, dos enfermeiros, do curador de menores. Amaram-se mais uma vez lá dentro, beberam a soda cáustica depois. Na pressa de fotografarem os corpos, pegaram o braço do professor estrebuchando ainda. A menina morreu logo, morre-se depressa aos 16 anos, “aos sessenta a vida é um mau hábito que custa a ir embora”. O braço que tocava Schumann — foi com Schumann que os dois fizeram conhecimento e amor — fez um último esforço. Em direção ao corpo da menina: a fotografia saiu tremida. Tudo aquilo havia acontecido e Cláudio não sabia de nada. Compra o jornal para se inteirar, repentinamente reconciliado com o mundo. Dólar subindo, cruzeiro em preço vil, libra descendo por causa de uma ameaça de greve nos estaleiros de Sua Majestade. O mundo não estava arrumado feito farmácia de homeopatia. Lá de cima, Cláudio julgara-o liso, tranquilo, lama estagnada. Mas essa lama estagnada se mexia, ameaçava greves, tomava soda cáustica. Erro de perspectiva, sem dúvida. Ministro da Guerra insultando as Câmaras, café apodrecendo nos portos nacionais, Lília desvirginada, isso fugia à lei do lodo. “Ou seria a própria lei do lodo?” Agora, novamente escravo, olha os libertos como trânsfugas. Vai cedo para casa. As meninas o recebem alegres, leva-lhes bombons em homenagem à sua libertação. A mulher vai arrancar dente amanhã. Dá-lhe a injeção de penicilina, tomando cuidado para que a picada não doa muito — ela tem pele sensível. Vão dormir cedo, todos juntos, numa cama só, como as crianças tanto gostam. Valéria custa a dormir. Já a mulher e Renata dormem e ela teima, olhinhos acesos no meio do escuro. Às vezes olha sério e o pai pensa que ela o está censurando. Finalmente dormem. Cláudio vai deitá-las no quarto das bonecas. Abençoa-as em nome do Deus de sua infância, um Deus esquisito que persiste ainda, fiel a ele mesmo, que serve para abençoar crianças que dormem, livrá-las das bruxas, dos ladrões da noite, dos homens complicados. Deita-se então. A seu lado, a mulher dorme, o vinco na testa, preocupação pelo dente de amanhã que sobrenada ao sono. Cláudio não pode fazer nada por ela, tudo tem de ser feito sozinho, cada um se arranja como pode, como quando nasce ou se morre. Vira-se para o outro lado. Faz um “Em nome do Padre” apressado, enfia a cara nos
  • 34. travesseiros. — “Sou um ateu suficientemente puro para rezar ainda, a fim de ter sonhos bonitos.”
  • 35. TARTARUGA UNE os dedos da mão, leva-os à boca e estala boca e dedos num gesto grotesco, com mau significado: — Papou! Seu Jair balança a cabeça. — Não acredito, só vendo com meus olhos. — Papou, está na cara, há muito que aquilo tinha de acabar assim, eu acompanho a coisa. Seu Jair olha para o mar. — Daqui a gente vê muita coisa, Seu Jair. Não troco esta casinha à beira da praia nem pela casa do Paterone. O contraste da casa do Tartaruga, ao lado da imensa mansão do velho Paterone, acentua mais ainda a pobreza e o desleixo daquela frente de janelas castanhas, a caiação ralada, um pedaço de tijolo à mostra, ferida jamais cicatrizada. Naquela birosca Tartaruga mora há anos, apega-se a ela, de sua janela vê o mar, o amanhecer de cada dia, o sol incendiando a baía lá pela foz do rio Suruí. E a viração das tardes — Paterone há pouco esfolara o palacete de alto a baixo para botar ar refrigerado — Tartaruga jamais precisaria de ar refrigerado puxado por cavalos-vapor, tem a viração de todas as noites, grátis, no mais forte dos verões chega a puxar cobertas pelas madrugadas que trazem a aragem do mar largo, salgada, virgem. E daquela janela vira o que nunca ninguém da Ilha esperava ver: o broto mais em evidência de toda a praia prevaricar no escuro. Seu Jair já combinara passar uma noite em claro com Seu Amadeu para ver o ladrão. Tartaruga não tinha nada a ser roubado, a mulher um bofe, sem filhas, mas apesar disso ficava acordado por conta própria, velava durante as noites apenas para surpreender as lassidões da neta do Paterone, seu mudar de roupa, há tempos a vira nua, cruzar um corredor da casa, naquele dia a Ilha inteira soube que as nádegas da neta do Paterone não eram tão rijas quanto pareciam na praia, apertadas pelos maiôs de lastex. E agora vira tudo, jura, estala os beiços: — Vi. Era ela, ali no muro, já passava da meia-noite, todo mundo dormindo. Ela desceu, eu tinha tomado umas canas, estava sem sono, ouvi o barulho. O camarada veio da Rua Bojuru, ficou atrás da árvore, ela desceu, de baby-doll, ficaram lá atrás na bolinação, depois pularam para a areia. Não vi mais nada, mas pelo tempo que demoraram deu para o serviço ser feito. Ela voltou sozinha, correndo, entrou para casa, o camarada então caiu na água, nadou até lá longe, saiu outra vez em frente à Bojuru, subiu a rampa e entrou na rua. — Impossível, Seu Guilherme, impossível, eu e Seu Amadeu ficamos acordados até às quatro por causa do ladrão, não vimos ninguém, a última pessoa que passou pela rua foi o Cláudio, genro do Andrade, no studebaker, aí pela meia-noite. Depois não passou mais ninguém, juro. — Pois olhe, me pareceu ser gente de lá. — Do Andrade? — Ou do Andrade ou de outro morador da Bojuru. — Seu Guilherme, o senhor sonhou, precisa se abster das canas, a gente termina vendo
  • 36. coisas... Tartaruga não se importa em ser tratado de bêbedo. — Seu Jair, posso beber esse mar inteiro de cachaça, fico ruim das pernas, isso fico, uma tremedeira que não posso ficar em pé, mas da cabeça não. O que vi, está visto. Seu Jair admite. Afinal, quem não esperava mais dia menos dia por aquilo? A neta do Paterone vivia na boca e no desejo de todos. Para fazer páreo com ela, só mesmo a filha mais moça do Andrade, mesmo assim perdia. Seu Jair certa vez fora consertar a válvula da privada na casa do Paterone, passou por um quarto, viu a guria ajeitando a blusa dentro do short que estava arriado. Viu as duas ancas inchadas, adolescentes, o redondo do ventre virgem, leite intocado antes da fervura. Impossível que a rapaziada não desse em cima para valer. E ali estava. Tartaruga vê Seu Jair desaparecer na curva da praça, em busca dos jornais da manhã. Estava feito. Lá pelo meio-dia a Ilha toda saberia, Seu Jair é eficaz no jornal-falado, Tartaruga não precisa repetir a história para mais ninguém, o outro se encarregaria de aumentá-la por conta própria, isso não importa, quanto pior falassem do Paterone melhor para ele Tartaruga. Não que deseje mal ao velho, ou lhe inveje a fortuna, isso nunca. Tartaruga é pobre e ama ser pobre, evangelicamente. Não suporta é o nariz empinado, a arrogância daqueles ricaços todos. Dez anos de vizinhança, vizinhança quotidiana, a praia comum servindo de centro de interesse e recreio para pobres e ricos e aquela gente nunca lhe dirigira a palavra, todas as tardes Tartaruga monta a mesa que roubara de um caminhão da Brahma, bota dois bancos ao lado, fica até tarde bebendo cerveja ou cachaça, os Peterones velhos e moços passam-lhe pelas barbas e nunca lhe dão bom-dia, nem um aceno de cabeça, só aquele olhar duro para a frente, nariz empinado, como se sentissem mau cheiro. Da garota até que não tinha raiva. Não se excetuava os demais, baixava a cara quando cruzava com ele, ignorava a pança do Tartaruga, seu olhar sequioso de um sorriso. Mas era muito gostosa, uma festa para os olhos de Tartaruga habituados às pelancas da própria esposa — constrange-se ao ter de admitir que ficaria triste no dia em que a garota se fosse, como às vezes ameaçavam mandá-la embora, estudar nos Estados Unidos, Tartaruga se afligia, desejava uma guerra atômica que acabasse com todos os antros onde se estudasse lá nos Estados Unidos, só para não perder o recheio de carne adolescente que cruza a rua saltando nos pés para evitar o calor do asfalto, ou aquelas pernas salgadas pelo mar, gotejante, que vêm quase em sua direção, o maiô molhado marcando a depressão lombar, não haveria fortuna do mundo que retirasse Tartaruga da mesa da Brahma aos verões, só para ver, duas, três ou dez vezes ao dia o mesmo espetáculo, nunca igual, a garota mudava o maiô, ou o short, o rabo-de-cavalo, as tranças, o coque — Tartaruga não precisa sonhar para ser feliz. E mal Seu Jair some na curva da praça, Seu Amadeu aparece, vermelho de sol e indignação. Tartaruga pensa em abrir exceção e contar para Seu Amadeu o negócio da neta do Paterone. Mas não pode. Seu Amadeu vem resfolegando, teve discussão com Seu Morais, quase brigaram, Seu Morais chamou-o de maníaco, a história do ladrão era passatempo de quem não tinha nada o que fazer. Seu Amadeu nunca trabalhara na vida, vivera sempre das rendas da velha, Seu Jair era aposentado do Arsenal de Marinha, natural que dois desocupados se dessem ao trabalho de dormir durante o dia e gastassem as noites embaixo das árvores, espiando os escuros. Qualquer pessoa que passasse seria suspeita. Seu Morais perguntara: quem tinha sido roubado até agora? Ninguém. Logo, não havia ladrão nem nada, mesmo que alguém, por brincadeira, promessa de macumba ou desfastio escolhesse as horas da noite para passear, nada
  • 37. havia contra isso, todo mundo tinha o direito de andar pela rua a qualquer hora. — Mas subiu nas árvores, pulou o muro do Andrade, provavelmente já pulou o seu muro, na parte que faz limite com a casa do Andrade. — E o que me roubou? Nada! — Quem sabe? — Ora, roubar podia roubar mangas verdes que começam a dar, ou algumas mudas de plantas. É a única coisa que pode ser roubada em meu quintal. — É, mas eu tenho muita coisa além das frutas, aquela oficina que penhorei e fiquei com ela, são mais de cem contos em peças e ferramentas, está tudo no alpendre dos fundos do meu quintal... Verdade. Um dos inquilinos da velha passara ano e meio sem pagar a casa, Seu Amadeu executou contra, o camarada fugiu, a justiça tomou-lhe as ferramentas, alguns pneus velhos, um radiador e outras peças sem importância, pagas as custas só sobrou aquilo mesmo, Seu Amadeu deixou tudo no alpendre, sob a tabuleta azul com letra verde: VENDE-SE. Seu Morais recusara-se a cooperar na vigilância noturna. E além de negar participação ao movimento, resolvera esculhambar com os outros, os que se preocupavam e velavam, noites e noites, para a tranquilidade geral. Seu Amadeu ofega, apesar de Tartaruga já ter ido lá dentro em busca de dois copos e de uma aguardente do Recife que recebera do cunhado, caixeiro- viajante. — O negócio anda sério assim? — Sério uma ova! Ninguém quer cooperar, são uns imprestáveis. É sempre assim, depois da porta arrombada é que botam trancas. Olha o Andrade, já falamos, eu e Seu Jair, uma porção de vezes com ele, para tomar cuidado, ao menos botar um cachorro valente no quintal, aquilo é um perigo, muita mulher em casa, e muito o que roubar também, o ladrão já lhe pulou o muro três vezes, na noite em que saí correndo atrás dele, foi lá que se escondeu, pelo quintal. Depois pulou para o lado de Chapot-Prevost, vi quando o cachorrão do Mário latiu. Mas o Andrade não quer nada, ninguém lá quer nada, tem os dois filhos, o genro, o futuro genro, podiam ajudar... Só Seu Jair me ajuda! Tartaruga bate no ombro de Seu Amadeu: — Podem contar comigo. Fico mesmo pela praia, vou dormir tarde, posso vigiar o trecho... — Já ia mesmo falar com você, Guilherme — Seu Amadeu fez uma pausa para lembrar o nome verdadeiro do vizinho, não queria chamá-lo pelo apelido — bem que podia dar uma mãozinha, é só olhar aquele final da Rua Chapot-Prevost, na confluência com a Rua Bojuru. Sem precisar sair de casa você pode tomar conta da maior área. Bem, o ladrão não costuma vir por aqui, aparece das bandas da Paranapuã, lá por cima, desce a Chapot-Prevost ou a Bojuru, desaparece ou pela Guiricema ou pela pedreira do velho Paterone. Em todo o caso, sempre passa por aqui ou ali... Com o dedo aponta o roteiro. Tartaruga enche outra vez o cálice, a aguardente azula o vidro. — Pode deixar, já dei serviço até no Catete, no tempo do Washington Luís, pouco antes da revolução, fui sentinela do Palácio, sei como se vigia um setor... — Isso, Guilherme, a união faz a força...
  • 38. — À nossa! Seu Amadeu ia bater o cálice no copo do Tartaruga mas para no meio do gesto. Da casa ao lado, estreando uma saída-de-praia nova, as polpas de fora, a neta do Paterone desce as escadas, apetitosa, fresca. — Olha o que estou vendo! Tartaruga gira o enorme pescoço. — Tá visto! Seu Amadeu, se o senhor soubesse como aquilo é bom! — Então eu não sei?! Aquilo está em ponto de pica. — Já passou do ponto! — Não me diga! Curva a cabeça, o bafo de cachaça do Tartaruga bate-lhe no ouvido. — Isso foi gente do Andrade. — Não posso dizer nada, sou amigo da verdade, não vi quem foi. Poder, pode, mas jurar não juro. — Foi gente de lá, Guilherme, aquela gente papa tudo, até cabrita. — Sou amigo do pessoal de lá, Seu Amadeu. A rapaziada é boa, me convida para peladas, nunca me desfeiteou... — Mas fazem o serviço quando podem... — É da natureza. — São uns sacanas. — Não exagera, também a garota abriu as pernas. — Aquela gente toda já está comprometida, casada, noiva, que que tinha que seduzir a garota? — E a garota por que anda com esses shorts com as polpas de fora? Olha que se ela desse bola até aqui o papai entrava! — Essa Ilha é uma perdição, Guilherme, uma perdição. Até gente nua já pulou minha janela atrás de mulher. E olhe, tenho uma suspeita, sabe, a menina Tereza era como se fosse minha filha, não tenho mais queixa, ela casou, espera o terceiro filho já, vive feliz. Mas aquela noite fatal, o tal demônio-nu, vi-lhe a bunda, estava escuro mas tenho uma suspeita aqui dentro... talvez seja bobagem minha, honestamente não quero acreditar que seja ele, mas volta e meia a suspeita retorna. É gente do Andrade. — O demônio-nu era alguém do Andrade? — Quem sabe? Tartaruga, em sinal de respeito pelo drama alheio, encerra o assunto: — À nossa. Seu Amadeu abandona o cálice bem em cima do H da mesa da Brahma, sai andando, duro, como que levado pela raiva, ou pela dúvida, talvez apenas pela saudade. A manhã em sol vai pela metade. Na praia, pouca gente ainda, o verão apenas se aproxima. Do banco que o próprio sogro mandou construir para apreciar as chegadas de sua lancha, Cláudio toma conta das meninas que nadam, Renata de maiô estampado, Valéria de short mesmo, o busto nu, como um menino. A neta do Paterone brinca com a duas, joga Valéria para cima e deixa que afunde n’água. A mulher vem pelas costas: