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Aud D’Angelo Dias – Ouro Preto, dezembro de 2018.
Do outro lado da rua
Desculpe, mas creio que não teria tempo. Disse Eduardo dirigindo-se para a sacada. Da
sacada a luz anunciava o dia de ver, do segundo andar, a vendedora de jornais
anunciando o fim de mais um desgoverno selvagem. Eduardo, meio dissimulado atrás
de um reposteiro roxo, peça de péssimo gosto que lhe fora presenteada pela dona de um
brechó, olhava sempre, nas cálidas manhãs a confusão da rua. Dentre os transeuntes
acostumados ao passo automático observávamos a menina, nosso desejo mereceu um
lampejo de esperança e novo despertar ao ver o rosto de Luciana.
Estranho, ela mal tivera alta e já estava pensando nela do mesmo jeito que antes. Culpa
dos hormônios? Subir e descer aquelas escadas tão rapidamente só para fazer jus à
alcunha que me dera de Ligeirinho e, de quebra, poder ver mais vezes a silhueta magra
da pobre Luciana. Escadas... não saberia dizer o porquê, mas nelas as pessoas sempre
parecem ter só pernas e braços.
Deixei Eduardo novamente em meio a suas crises alucinatórias, resultado da
noite mal dormida, e desci para a rua. A Rua Januária foi uma das poucas da região
central que não tinha trafego algum. Rua sem saída. Aos finais de semana aproveitava-
se o pouquíssimo movimento do comercio e a fuga dos escassos moradores para
promover alguma festinha barulhenta com risco menor de bronca dos síndicos. Eduardo
morava ali. Luciana apenas trabalhava.
Eu ia sempre por não ter outra opção mais descente, neste tempo era aluno
bolsista da Belas Artes e Eduardo um amigo que me socorria na escassez. Gostava da
conversa digna de Eduardo, um anarquista convicto que tentava me mostrar as
diferenças entre o que ele agora chamava de socialismo libertário, mas eu por mim o
considerava um sínico e lhe dizia que por um D seria o síndico.
Eduardo não aparentava nada do estilo militar adotado por alguns amigos, não
era sua identidade e, não entendia seu entusiasmo pela disciplina seja ela qual fosse, em
outros tempos mais remotos o consideraria um perfeito dândi. Ele dizia que a questão
era de ordem, e os anarquistas não são contra a ordem? Claro que não, apenas
antipatriarcalistas. Visão curta? Míope sempre achei que ver as coisas de perto fosse
bem melhor.
Eu morava próximo ao Centro Cultural dos Correios e, seguindo a ponte
Mauricio de Nassau levava mais ou menos dez minutos até a casa de Eduardo, se
caminhasse rapidamente, o que era raro. Gostava de andar devagar, gostava de vagar e
ir pela ponte Buarque de Macedo, sempre recitando o Augusto dos anjos: Olhava a
sombra magra e tinha medo... tarde descobri que o Augusto dos Anjos me excitava,
trocadilhos à parte o citava.
Eduardo dizia que os moradores do Januária, quase todos, tinham uma casa de
campo, só não sabia aonde, pois morar na orla é um convite inadiável para o mar, para
a praia, o campo era a praia no imaginário eternamente caótico de Eduardo. Os que
ficavam para o fim de semana tendiam a ir a alguma atividade cultural e indo cedo
voltavam tarde e alterados, de início julgava que apenas pelo álcool, hoje sabemos que
não.
Especulava, desejava, arquitetava uma galeria ali. Eduardo foi um dos raros
moradores do segundo, geralmente primeiro e segundo só tinha lojas, escritórios,
comercio. Moradores apenas no quinto e, daí para cima cada aparte era muito mini.
Achava que fosse por causa do barulho da rua e hoje sei que aquele apartamento fora
construído fora do padrão, não havia apartamentos mesmo na planta, senão nos quintos.
Então ficava pensando que era coisa de anarquista mesmo, alguém burlou a lei,
remodelou o plano, fez o que quis para morar em uma loja com divisórias; inexplicável.
Um dia Eduardo convidara Luciana para almoçar, o estranho é que foi em um
domingo, nesses dias ela não trabalhava, e como morava longe, teria de se deslocar
muito para vir, o ônibus a deixava longe do trabalho e tinha o inconveniente dos
horários, ônibus domingo só de hora em hora e meia, e olhe lá. Entanto Luciana veio.
Mesmo sabendo que Eduardo estava sozinho, Eduardo tinha quase dezoito, os pais
haviam viajado. Eu? Apareci. Tive de certo algum ciúme daquela reunião intima
contive-me, porém, não éramos sequer amigos de fato e, nem sei o que devíamos ser.
Passava um daqueles apertos danados os quais não deixavam moeda nem para
um pão e tivera de me virar. A conquista do pão. Seria prudente ter o de hoje antes de
me pôr a pensar no futuro mas, essa parecia uma voz do além, destas vozes que surgem
como que de um buraco negro na quinta dimensão dizendo – fica. E o garotinho que era
dizia calmamente, ficar pode ser um erro. Delírio? Eu pensando que meu eu futuro para
dizer aquilo tinha de ir até lá, fazer um deslocamento temporal enorme, viver sete anos
ou mais para cada hora terrena, e, ir muito longe no espaço tão longe que a barreira era
intransponível para o retorno. Viagem demais? Talvez não. Vejamos se a vida
confirma, para tanto o registro. Acordamos, volto para a conquista do pão: havia uma
caixinha de sapato onde vez por outra depositava uma moeda para o fim de mês,
depois, bem depois viria a saber que isso era coisa de estudante das republicas de Ouro
Preto.
Andando sem rumo na rua do poeta. Resolvi passar na Januária e, da calçada já
me deparei com a visão da porta da sacada aberta, o reposteiro brega demais
balançando em um meio do dia sem vento. No momento a visão me deu um alívio, já
sabia onde procurar refúgio e pão. Matar a fome e vender mais um convite para um
espetáculo da noite. Sem fome a lei passa a ter mais sentido? Já pensou emancipado,
papo cheio pagando tributo, melhor que com fome. Uma estranha revolução, diferente
da francesa, igualdade? Nem tanto. Liberdade? Conjugada com a sua. Fraternidade?
Exijo.
Quando apertei a campainha Eduardo não tardou atender, pela brecha da porta pediu
sussurrando que voltasse mais tarde, estava ocupado, uma visita feminina importante.
Entendi sem entender. Sabia que Eduardo andara de flerte com uma morena, mas não
entendia aquilo, sempre soube, intuitivamente, que Eduardo não era afeito ao sexo
oposto e por vira, tanto nos comentários de Eduardo como nos flertes, e mesmo nas
transas com a De Milo uma pura brincadeira, uma ironia tola. Agora já passava a ver
nestes atos uma crise de fim de adolescência, identidade tardiamente assumida.
A De Milo? Explico em tempo. Uma profissional do sexo que apelidamos assim, ela
ficava na rua mesmo, esquinas, ou ocupando uma mesa de bar na orla e, por um
problema congênito não tinha os braços. Linda. Cheguei a fazer um quadro dela,
contratei uma hora, ela posou nua em pelo, desenhei, paguei, pintei depois e perdi. Na
verdade, deixei com o Eduardo para ele vender com sorte Eduardo mesmo ficaria com a
obra, foi isso naquele dia, frustrado por não ter nem abrigo nem pão, coloquei
novamente o pé no caminho de volta, desta vez pela ponte Buarque de Macedo, à noite
e, sem sombra de dúvidas com meio tostão furado nos bolsos.
Dormi o sono dos idiotas, o idiota da família. Dormindo aguardava que a fome
esquecesse de mim e acordei com uma ânsia de vomito tão grande que nem pensei duas
vezes, no baú dispensa, escondido do mundo e dos lordes ratos restava, solitário, um
pacote de feijão. Lembrei da sopa de pedra do Pedro Malasarte e entendi o quanto era
bobo. Tivesse um pouquinho da sorte e esperteza desse querido personagem e faria uma
sopa bem rica com um pouco de pedras e de feijão.
Eduardo não era amigo de faculdade, era um “cidadão comum, destes que se vê
na rua” que frequentava o Purgatório. Purgatório? Desculpe... Bar do Porto, vulgo
purgatório. O engraçado é que sempre ofereciam um marisco ou uma porção de
qualquer coisa com farinha e no cardápio nunca tinha farinha. Eduardo gostava de tudo
com farinha. Pouco a pouco fui entendendo que o Edu não era amigo de jeito nenhum,
nem de faculdade nem da rua nem da vida, só alguém que passou de um modo mais
demorado. Foi a primeira vez que nos vimos, estava acompanhado com uma guria
prenha. Desculpe o palavreado, não quis degenerar o perfil da guria, era como ela
mesma se definia; como se chama querida? E ela sempre respondia, eu sou a guria
prenha. A custo obtive um nome. Quem? Seu nome? Era a Luciana.
Lú trabalhava no Januária, como já havia dito e vendia cosméticos (essa parte
ainda não tinha dito) falava e ria alto, interrompeu seu breve colóquio sobre uma
querela besta com uma cliente loira e me convidou a ir ver os afrescos na esquina da
Olímpia com Duarte Veiga, duas quadras. Afrescos pintados em um muro emoldurado
com mármore amarelo, lindo, fachada de edifício luxuoso, coisa da elite recifense. Fui
pela arte.
Fomos e voltamos rápido, tão rápido que flagramos o Eduardo abraçado com a
De Milo. Recostado na grade do parador sem olhar o rumo do mar. As mãos
despudoradas debaixo da saia dela. Estranhei tanto a cena quanto o ciúme de Luciana e,
por fim sobrou para mim. Eduardo me pediu para leva-la para casa. Qual casa? - A sua
lógico, já estou acompanhado, dizia.
Creio, de verdade, que Luciana não estava prenha, mas queria. Depois fiquei
sabendo em que trabalhava. Eis a causa dos tantos risos altos e da ironia, Luciana
vendia erva. Quando viu o anuncio de emprego no jornal era para ir participar apenas
de uma reunião de consultoras, conheceu uma amiga do terreiro que a levou à Casa da
Erva Medicinal e ‘para os da família com que morava’ a vendedora de erva ficou sendo
vendedora de cosméticos.
Dissera-me que a tal família era evangélica e por eles aquilo era um crime.
Entanto vendia mesmo para os da casa. E, achava pena que a erva era pouca. Chá de
arruda para revitalizar os cabelos, sabonete de manjericão para amaciar a pele... E ria
muito. Tudo assim bem barato e ecológico. Isso era o bom da coisa. E chá de folha de
Agave é bom para quê Luciana? Canseira. Para lembrar das paisagens mexicanas sei
que era, mas Agave na medicina floral do doutor Bach é um fortificante. Reestabelece
as forças psíquicas e te torna mais persistente. Hoje todos precisamos.
No dia seguinte fui ter com ela no emprego e descobri a morada de Eduardo.
Duas semanas depois aconteceu tudo o que já narrei antes. O que? O lance de estar sem
dinheiro, a caminhada até o Januária, a porta semiaberta, Luciana lá para o almoço de
domingo, o quadro que deixei para vender, e o espetáculo à noite. Vendi três ingressos
na rua, fiquei com um. Voltei cedo para casa, fiz a sopa de feijão na madrugada e fui
dormir na rede. O tempo parecia estar rodando tanto quanto eu. E, de repente as coisas
tomaram outro rumo. Meu eu dizendo tudo do buraco negro. Ou, foi tão bom que o
velho Nietzsche recomendou um eterno retorno. Gente, a vida retorna todos os dias.
Persistimos na existência, continuamos com os mesmos ideais, plantando arvores,
escrevendo sempre o mesmo livro. Tem gente que diz isso, para cada autor todos os
livros são um só. Noites brancas não são noites em branco. Linda história que todos
devíamos pagar com atenta leitura ao Dostoievsky.
Luciana bateu lá em casa cedo e estranhei. Segunda feira antes das sete a
campainha sonando, estranhei Luciana pedindo um café e não estranhei quando me
relatou os fatos do dia anterior. Dormiu. Novamente. Com o Eduardo. Ele bêbado.
Durante o sono pedindo um abraço da De Milo e, “descuidaram” do preservativo. Ela
então ali, entre chorando e sorrindo tentava me dizer os detalhes, não sei bem se por
ciúmes pedi que não expusesse a intimidade desta forma. Na verdade, fui brusco – nada
daqueles detalhes que queria tanto saber.
Ela enfim parou perto da porta da sala, por um momento olhava para os lebistes
que tentavam comer os filhotes no aquário e, disse: - Te amo! Fiquei com o Eduardo
porque te amo. Estou grávida, o filho é teu e quero que Eduardo seja o pai. Era demais,
como eu seria pai, como não seria? Infelizmente o seu ofício não me dá sustento,
completou. Claro que aquilo foi o motivo de tanta confusão para a minha cabeça que
não tivera outra escolha a não ser o singular convite para que Luciana viesse morar
definitivamente comigo.
Lú trazia todas as notícias que não me interessavam, - Eduardo vendeu o quadro
que deixara no domingo e inteirou a compra das passagens que precisava, estava de
partida para Portugal, iria a trabalho poderia mandar dinheiro mês a mês para ajudar
nos custos da gravidez. Bom, respondi, então ele já pode te dar um tanto da venda do
meu quadro.
Luciana queria ficar comigo, sustentava que o filho era meu e que me amava.
Luciana abriu a porta lentamente, retirou a chave e pós na bolsa. - Até mais tarde. À
noite Luciana me perguntava romântica - Se pudesse escolher qualquer pessoa no
mundo, quem convidaria para jantar? Foi a primeira pergunta que me fez assim que
voltei do atelier na faculdade. A única reação possível foi convida-la para outra sopa de
feijão. Tanta insistência em um nome que terminei por deseja-la.
Gostaria de ser famoso? De que forma... não, não gostaria de ser famoso. Então
porque é artista? As perguntas de Lu me tornavam tenso, faziam pensar no destino, na
sombra magra, na pele de rinoceronte. Augusto, o dos anjos que teria mandado o
recado se pudesse. Vai ser um buda, praticar o budismo moderno.
Para Luciana ser artista era querer ser famoso. Para mim, ser famoso não é ser
artista, a fama não é mais que simples consequência do fazer artístico, sempre pensei a
obra como uma possibilidade de compreender como a mente funciona como poderia
dizer o que pretendo dizer. A arte não é produto como outro qualquer, a fluência
estética é o que importa mesmo na obra pronta. E me perdia nas considerações que não
lhe interessavam.
Talvez nosso erro tenham sido os beijos antes de escovar os dentes. Já passava
da meia noite quando usualmente íamos dormir. Os problemas se acumulavam junto
com as dívidas e resolvi abandonar o barco, remar com a maré e aproveitar o vento.
Lu? Não aparentava gravidez, aparentava uma demência intencional, adotei o silêncio.
Sempre me incomodei com os ruídos dela até o dia em que ouvi no clamor do ruído um
grito não genérico, um grito coletivo desejoso da paz. E o ruído passou a ser o discurso
de uma estética relativa, uma estética contra o absoluto da harmonia, contra as vozes
dilaceradas da razão. O ruído se firmava em intermitente excentricidade. Tudo entre nós
passou a ser barulho, a deturpar os diálogos secos. Os barulhos da casa eram o eco
dentro do abismo, e eu no fundo do abismo pensava em Sócrates não pelo desejo da
cicuta, mas por tentar me livrar da tirania das aparências. Ou ética ou estética.... Nada
disto um desejo de vida que se faça compreender na aparência na imagem. E Luciana
me impunha uma imagem gasta, de repente entendi que éramos pobres de um jeito
distinto de pobreza. Um contra o consumo, eu orgulhoso do sapato furado, a outra se
sentindo humilhada por usar um sapato furado. Já que o número era o mesmo trocamos
de sapato. Ninguém reparou no meu traje feminino. Nem o sapato, nem a troca nem o
engano contaram tanto, jamais pude me acostumar com os ruídos e, por isso fui pouco a
pouco me educando, e tentando educar no ruído para os valores do silêncio. Assim tive
a certeza de que Luciana me ouvia e me respeitava.
Esta era a pedagogia tácita que cometia. As pessoas desrespeitadoras do ruído
também são intolerantes com o silêncio. Quando passei a tomar decisões contrárias aos
gostos e hábitos de Luciana entendi, com a pele gasta, com as vísceras, o valor das
imposições sociais. Mesmo sabendo que as minhas decisões e opiniões não seriam
prejudiciais a ninguém, antes ao contrário benéficas para mim, para ela e para tantos
outros que nem conhecia. Odiava a T.V ligada, tudo para mim era propaganda, não
suportava ver todos os livros precocemente reorganizados na estante, a bagunça de
calcinhas e sutiãs no baú dos cobertores. Meu deus, se juntei ali o Nietzsche e o
Herman Melville não foi nem de longe por questões alfabéticas, claro ir do N ao H ia
ser muito bom, mas foi, pelas considerações sobre Deus. Pelo diabo no corpo do
capitão que via o diabo na baleia. O meu lado demônio apontando com desejo de
vingança a Lu; os doces escondidos dela atrás dos estojos de pinceis e das tintas em
troca das minhas paletas que jogou no lixo, uma casa um oceano infernal sem canibais.
Segui por fim o conselho de Zaratustra e me guardei de cuspir contra o vento. Bom.
Certas coisas tomaram o seu lugar convencional. Outras não pude realocar. A T.V ficou
logo obsoleta e estragou e doei para um amigo que fez uma instalação com ela e depois
encheu o tubo de terra e pós no jardim da casa do pai. Tudo sob o meu olhar. Os livros
desordenados? Melhor ver a Lú concentrada nas suas leituras de Proudhon, Malatesta
ou Kropotkin, juro. Pôr em ordem é um prazer assim. Calcinhas e sutiãs eu deixava
junto com as minhas roupas propositalmente, o feminino preenche o meu dia e o nosso
guarda-roupas, não digo se usei. Doces e tintas não combinam? As cores adocicadas
inspiram... o mais educar para repensar o consumo e o lixo. Isso se ajeita. Luciana
anarquista é muito interessante e mais ética e erótica.
Ali, dentro daquele lar passei a ser o estranho, por vezes o famigerado inimigo,
geralmente incompreendido porem julgado. Em curtas semanas meu erro foi ser e
assumir, depois seria estar determinado a partir se a situação se tornasse insustentável
como se tornara. Estranho, tudo ia bem, mas o avançar da gravidez mudou o meu
animo. Sempre acreditei que abandonar o jogo seria melhor que burlar regras, o
coletivo abomina os que abandonam o jogo se não podem adotar as sanções previstas.
Sem regras não há jogo? Eu chutando a bola para o mato sempre. Sem jogo, desejando
a linha direta do eu no ser, do estar com ela sem rupturas e, talvez pela paixão, tudo
desandou.
As condições se deterioravam a cada hora, a cada dia, empreendi alguns toques
e trouxe o momentâneo êxito. Logo após a certeza do mérito voltei-me aos antigos
caminhos porque neles a frustração não foi evidente, apenas cumulativa. E não havia
gravidez aparente. Como? No adiantado da gravidez, de um útero que não cresce uma
metamorfose minha mais aparente que a do feto?
Assim como o proselitismo grosseiro, imediatista e materialista não pode
ignorar os subjetivos valores da tradição, pois inevitavelmente dela se nutre, assim,
ainda que desejosa da minha partida, no cais da ignorância, Luciana balançava o lenço
pardo da saudade: dizia adeus sem dizer. Fiquei me sentindo Eduardo.
Parti, e trouxe comigo os momentos e os preceitos que permitiram o fim de uma
relação que não foi tal como foi e por isso terminou. Fiz do esquecimento um ideal
pacífico. O esquecimento também enfada. Sobretudo se fazemos dele uma baliza para a
memória. É o grito de quem se exclui por ter nos olhos a vida que não se reduz ao ser
no outro. Tanta metafisica para que? Enquanto pude mantive as contas pagas, meses e
anos após deixa-la.
Três anos depois, já nesta outra histórica cidade, esperava a lotação na Barra
querendo outra história e, hoje suponho, deus meu, que só atravessei a rua com o
mesmo costume do livro a tiracolo, desta vez ‘Sinfonias’ de Raimundo Correia, relendo
As Pombas e... Uma breve descrição de algo que me pareceu mais uma alucinação.
Uma senhorinha atravessava a ponte Marília de Dirceu vindo em minha direção, tarde
de cores homogêneas e homologamente tudo parecia paz na nevoa. O vulto inquietante
agitava o vestido a cada passo auxiliado pelo fremir de um vento frio e constante.
Sem saber até que ponto a imaginação clamava observava o semblante de uma
vida estranha a me entreter com o movimento da veste larga, fundeando a cena as casas
de paredes caiadas, a invisível serra. Meu Deus? Enfim meu primeiro fantasma
ouropretano. Destes que rondam as ruas calcadas de Ouro Preto. A chuva lavou a muito
o suor mas quantas destas centenárias pedras ainda estão no mesmo lugar que as mãos
escravas colocaram? Alucinação? Nada. Mais de perto, da calçada, sobrepondo todas as
cruas nuances, me pareceu apenas outra vida gasta, o fantasma se materializou e então
imaginava que, no ato da passagem, via em mim um puro, quis ir ao encontro, parece-
me que há nesta constância de desejos levemente lúbricos uma motivação a mais para
os passos ofegantes. Cena inusitada que desejei pintar, sem o colorido que lhe era
propicio, sem o efusivo olhar de uma senhorinha que, alegre e distante olhava para
dentro de si mesma.
Decidido a ter e não ter, “aquecer, aquiescer e por fim esquecer”, quanto súbito
acordado a senhora de longe me acena, verdade! Fui ao encontro e me deparei com
outra pessoa, uma senhorinha linda me pedindo para ler uma carta. - Sabe ler não sabe?
Sim, e sou quase um padre, confesso. Buscamos a passos lentos um lugar entre íntimo e
iluminado, respirei com o intuito de me entregar e comecei a ler pensando na
aproximação.
Querida mamãe,
Desculpe a ousadia de querer falar um pouco mais sobre a noite em que
ele partiu. A última vez que nos vimos estava tão solitária e nua que
fomos dormir, após a maldita sopa de feijão, sem escovar os dentes.
Assombrada, detive-me olhando o semblante dele e querendo novamente
partir sem despedidas. Triste, amargurada, tendendo a ceder todos os
impulsos e contendo desejos. Esquecida dos conselhos de papai,
querendo um filho, ou filha, desejando, excessiva para mim mesma. À
mente atordoada tudo o que me vinha eram impressões do mar visto da
ponte Buarque de Macedo, olhava o céu e pensava nele, fitava o mar e
revia a imagem do navio em que Eduardo partira. Horizonte tempestivo.
Enroscada em seus braços, caindo, rolando feito uma dura rocha no
colchão velho, me sentia leve e levada. Desculpe-me, foram os
momentos felizes que minha feminilidade intrépida permitiu. E não me
lembrava de papai, não pensava em papai. Não me pareceu coincidência
o fato de acordar sem ele, de tomar o café magro sem saber seu rumo, de
ir trabalhar com o cheiro de alecrim nos cabelos e esperar na saída das
escadas um passo ligeiro. Naquele momento queria estar a muitas milhas
do Recife, outra vez longe do mar, voltar aos estudos em uma
universidade, mas não queria morar novamente com senhora e papai.
Desculpe-me. Não ouso falar nada da gravidez, não ouso falar de
Eduardo, não usei seu nome, quis chamar meu rebento de filha e por isso
lhe dei o mesmo nome da senhora, mamãe. Chamei-a Alice. Quis dizer o
quanto o amava amando antes esta minha filha, esta que então é tua neta
e filha e que se encontra contigo, a pequena Alice. Obrigada por cuidar
de sua neta. Eduardo enviou uma carta, espero que a última, estava no
Porto de Luderitz na Namíbia, com uma família de contrabandistas, foi
pego tentando retirar diamantes. São as noticias da última carta. Alias,
ele te citava, dizia que não devia confiar em covardes, confiasse antes em
ti. Disse que há uma obra valiosa sua exposta na Casa dos Contos,
certamente sua porem com a assinatura adulterada, com a assinatura de
papai. Confio que tudo isso não passa de um delírio, quero acreditar que
estejamos juntas de mãos dadas. Sei das tuas renúncias e nem todas
compreendo e aprovo. Por isso não quis responder, não quis mandar a
delituosa carta ao presídio. A vontade era dizer no rosto o quanto sofrera
com a gravidez de Alice e isso iria trazer outra dor, a dor de Eduardo sem
os diamantes. A pequena Alice é filha de outro, do que amo. Não posso
responder nada. Iria reclamar de muitas coisas quando tudo o que
Eduardo precisa é de um conselho sincero. Espero que um dia saia para
poder dizer o quanto sofri e para fazê-lo sofrer. Não sofro mais. Não o
desejo mais, A pequena Alice tem outro pai e outra mãe, um pai que não
sei onde está e uma mãe que é a minha mãe. Fica em paz mamãe, nos
veremos novamente em breve e com gratas surpresas.
Lú
Observei com decoro o endereço da remetente, Lú, e a coincidência se desfez.
Espantado prometi que iríamos juntos responder à carta, mais por desejo de tornar a vê-
la, minha senhorinha. Antes de partir, com um brilho efêmero, ousado e alegre por
acreditar que a neblina encobriria a feição e disfarçaria a intenção das palavras,
agradecido por partilhar comigo esta intimidade. Grato, duas vezes, quis tocar-lhe as
mãos receosas e me surpreendi com o caloroso abraço.
Súbito lembrei-me da figura do pai. Confuso quanto à origem da singela
afinidade, se consequência apenas da aproximação sutil do teu corpo tão feminino ou se
do passado duplamente revelado, percebi no teu rosto, senhorinha, uma indefinida
volúpia. Os riscos me maltratavam, antecipando doce angustia quis saber dos detalhes
de sua vida e, sem dizer palavra me despedi. Partia lentamente e entanto os pés já não
me obedeciam.
Uma grande coincidência. Mudo pensava. Outra Luciana, outra gravidez, outro
Eduardo, outro quadro... quis saber qual a tua fé e tentar desvendar os fatos, reunir,
neste mesmo universo humano, mãe e filha, quis crer que era a mesma Luciana. Não
me parecia protestar, entanto ansiava crer que esta outra Luciana mentira ou delirava.
Desconversei, consolei. A lotação apontou na estação e corri. Voltei às Sinfonias de
Raimundo Correia. (...) enfim dezenas de pombas vão-se dos pombais, apenas Raia
sanguínea e fresca a madrugada (...).
A verdade era crua, saber de Eduardo não fora agradável, encontra-la e saber
que é a mãe de Luciana, foi um fato estranho, curioso, angustiante, despertou um anseio
coibido. Queria saber apenas do quadro. Uma obra na Casa dos Contos. Desci da
lotação na Praça da Sé, gostava de descer a certa distância do campus quando tinha
tempo de caminhar. Um dia calmo, um passeio despropositado um entardecer enevoado
e, enfim mais uma noite de concentração, leituras e sonhos lascivos. Dia ou noite, a
pleno sol ou no frio espesso tudo era a confusão dos sonhos com a terna saudade.
Outra grande coincidência. A casa da frente sempre me parecera abandonada e
por isso fora objeto de algumas especulações. Estranhamente andava à cata de
respostas. Nas entrevistas mais ousadas propunham-me um método de derrubar suas
portas quedando com os muros e com os encantamentos, quem sabe alguém não a
invada e termine o martírio do abandono. Poderá vir a ser uma República. Outras
entrevistadas viam com ar romântico a possibilidade de um tombamento, um
historiador altruísta investigando a vida, a obra, o estilo, a fartura e o estio, o período e
propondo a eternidade. Duas possibilidades e uma resposta tácita, subliminar – À casa
abandonada, duas propostas de invasão, entanto nada me faria crer que o encantamento
estava perdido.
Mudei a forma de perguntar, metamorfoseei as palavras, fui atrás e através de
novos informantes. Perguntando a uma pobre senhora sobre o fato essa me deu a
resposta que, sendo inusitada me pareceu a mais esperada. Há ali mais moradores do
que imaginas. Quais moradores teriam a condição de jamais entrar ou sair, quais teriam
a condição da invisibilidade, do ego desfeito, da porta trancada ser apenas uma
metáfora para outro universo.
Os ratos fariam ninhos no sótão e nos porões, se esses locais ali houvessem,
entanto a casa permanecia isenta destes famintos roedores. Haveria ossos ali, uma
multidão de esqueletos, uma família trucidada, acovardados que optaram pelo medo
ante o fim da guerra. Pasmei. As ruínas superaram a paz, a guerra para a casa não
existiu e executou-se o lar. Os lares que vivenciaram a guerra não foram sublevados,
apenas invadidos e transformados em ambientes psicológicos insalubres. Na casa, as
especulares cortinas brancas que pendiam quietas, caladas diziam da última decoração,
a labuta trágica de uma senhora ordenança. As janelas intactas cujo acumulo de poeira
ofuscava o reflexo do jardim tomado pelo mato.
Era tudo o que não via após anos de caprichosa observação. Pensava no meu
universo simbólico e do meu universo simbólico só podia inferir os detalhes do que
conhecia. O tempo personificado nesta casa me deu a literal oportunidade de desejar
uma via de acesso a outra dimensão, uma que trouxesse a opacidade e não me
permitisse ver nos teus olhos o fundo do abismo. Opaco e impossível de ser decifrado.
Outro, o outro não humano não pessoal, o ponto em que o intimo se afirmaria sem
temor e sem vontade de êxito.
Mérito sombrio o mérito das lavadeiras que tendo um trabalho interminável
ousam, ao fim do dia, arrancar todas as roupas e se lançar ao rio para o banho
definitivo. O banho que garanta à roupa um corpo limpo. Que garanta às cortinas uma
janela ofuscada, uma película que as proteja do vento fresco, do orvalho doce, do
perfume de terra molhada e das mazelas que a permitiriam uma curta vida. Em um belo
dia de outono chuvoso quando a vi, uma senhora parada em frente ao portão da casa
abandonada, retirou da bolsa uma chave dourada, introduziu a haste na fresta da
fechadura, empurrou o portão de madeira bruta, as dobradiças rangeram.
Desci alegre e apreçado as escadas abri instintivamente a porta atravesse o mais
ligeiro que pude o curto jardim e me detive diante do portão aberto. Sem a prudência do
guarda-chuva sentia o corpo dilacerado pela tempestade, súbito atravessei a calçada e
os paralelepípedos, entretanto sem a ousadia ou pensamento qualquer que me prendesse
a humano labirinto moral adentrei a casa abandonada e, só consegui me deter diante da
tua imagem, jovem senhora.
- Feliz em te ver senhorinha, quem é está linda criança?
- Alice. Diga olá para o senhor.
Alice quieta, calada, me observava e eu observando Alice.
- Quantos anos o senhor tem?
- Alice??? Por favor, seja educada, está aborrecendo o senhor.
- Não me aborrece, tenho 70.
- Pois não parece, senhor.
- É o efeito do sorriso, respondi, com outro franco sorriso.
- E a senhorinha, quantos anos teria então Alice?
- Mamãe?
- Também tenho 70, Alice tem dois, e se não os convenço é
também por causa do sorriso!
- Entendido.
E ainda, sabendo que não adiantariam tantos pesares insistiria no hábito de
ressentir. Talvez por pura nostalgia, por saber que na pontada inicial houvesse
um brevíssimo momento em que se é mais de si mesmo. Logo, querida,
andávamos pela casa sonhando a desilusão do ideal desfeito. A culpa é para os
mortos o que os vermes são para os vivos, os desejos, que fazer com eles?
- Reparei que vossa casa, senhorinha tem uma estreita e antiquíssima
fachada. Alice abrira a porta e convidara-me a entrar. Antes que pudesse refutar, ainda
com os olhos baixos, constrangido a senhorinha me fez olhar outro detalhe na portada,
quase tocando minhas mãos e me fitando os olhos.
- Por favor, temos de responder à carta.
Engoli algumas palavras, meu deus, o tempo, o portal, o eu da quinta dimensão,
onde estava mesmo? tentava dissimular os pensamentos. Querendo saber do marido da
senhorinha aproveitei um momento em que ela se retira e perguntei a pequena Alice por
seu pai. E fui arrancado logo do presente ao futuro.
- Papai não mora conosco.
Fui surpreendido naquele momento por vossa presença desconcertante,
senhorinha, que também desconcertada julgo haver percebido em mim a mesma alegria
e timidez.
- O café está pronto.
Sentamo-nos em uma coberta no quintal e, observando os gatos, passamos à
tarefa. Escrever uma singela carta, uma carta ditada que poderia me dar tantas
respostas. Antes porem precisava saber conter uma curiosidade.
- São muitos os quadros na parede, senhorinha, porem a maioria sem
assinaturas, algumas com uma assinatura masculina. Lindos quadros coloridos
espalhados por toda a vossa pequena casa, mesmo nos corredores mais escuros.
Seriam tuas obras? Gostei de todas...
- A carta.... Dissera-me insistentemente.
Querida Luciana,
Uma semana fria de inebriante calma. As angustias que me sobrevém
são abafadas por um amor que, contido ainda assim teima em emergir.
Lembrei-me hoje, acompanhando nossa pequena Alice em um curto
passeio, de uma missiva antiga que encontrei entre outros bilhetes e
cartas da família. Quando completava quinze anos recebi uma carta
simples e anônima que gostaria de transcrever e, entanto melhor que isso
ei de fazer, mando-a junto com esta com o pedido de que a devolva
brevemente. A pequena Alice está bem. Feliz, educada e birrenta, tem o
mesmo sorriso do pai, idêntica teimosia da mãe e um presente que
anuncia um futuro sem expectativas. Que esperaria uma criança de dois
anos do futuro? Graças ao Bom que nada. Gosto da ideia de estar perto
dela, de esperar o momento certo para ensinar tantas coisas sobre as
pessoas e o mundo. Para a pequena Alice é dado o tempo da infância e da
ingenuidade, para ti Luciana o tempo da maturidade, do remorso, dos
erros sublimes, da ignorância, o tempo de viver sem pensar que haverá
um fim e neste percurso de liberdades e tropeços achar uma finalidade
para os atos teus. Atos tão humanos e por si desumanos. Se digo tudo
isso de ti é por considerar que cada ser possui em si o germe dos
questionamentos, e esta pequena semente crescendo nos faz crescer.
Haverei de ensinar a pequena Alice que não se devem abandonar amigos,
ainda que os amigos se tornem criminosos. Deveríamos abandonar as
boas intenções se estas apontassem o sofrimento? Há de convir que não
sejamos imorais, e desumanos a ponto de aprovar a assassínio material
tanto quanto a morte social por meio da exclusão involuntária. Só é
possível aprender o valor da renúncia quando o objeto renunciado nos é
caro. Apenas constato a suposição de que tais sofrimentos involuntários
sejam evitáveis, para o amor, sofrer é um meio de valorizar o desejo, de
adentrar um turbilhão de emoções humanas. Que espécie de emoção há
no coração canino que acompanha o cadáver do dono até o jazigo ou
cova e, ali permanece como se diante de uma morada eterna? O amor de
um cão. O isolamento talvez lhe permita uma reflexão sobre a
sociabilidade. Respondemos por nossos atos individuais e vivemos
inseridos em uma civilização mutante. A vida muda porque juntos
involuntariamente mudamos a vida, por isso falar de atos naturais é
arriscado em relação aos humanos. Possamos hoje estar novamente na
fronteira entre caçar e sermos caçados, entanto se há realismo nesta
afirmação que ela se traduza em amargas metáforas de uma sociedade
que se devora. Quem são os predadores? E agora não basta saber o que, é
preciso acompanhar os porquês. Este teu amigo Eduardo fez-se iludido
caçador, quis à força de um ímpeto ter a prometida felicidade atendida, e
não é exceção. Infelizmente entre a ousadia de Eduardo e o louvor dos
abastados só há uma distância possível, a violência explicitada o fato
imediato e a tradição. A tradição encobre a violência e lhe apresenta o
saboroso prato elitizado, antes a tua sopa de feijão que o resultado de um
sacrifício. Os diamantes, que serão para ti? Façamos deles um símbolo da
beleza e da estupidez. Gostaria de responder sua carta com todas as
afirmações e conselhos costumeiros, e me vejo na obrigação de tentar
fazer-te pensar, se a pequena Alice já não é tua filha, também já não é
minha neta e não sei se tem um pai, pois teu pai já não está conosco e o
pai dela saberá ainda hoje se o é. Quando disse que a pequena Alice tem
o sorriso do pai quis dizer que não tem a tua ironia. Volta para o teu lar,
filha. Para o alento desse coração que já se esqueceu de sofrer e solitária
espera, ansiosa, que todos os teus erros futuros sejam cometidos aqui,
perto dos que sabem o valor do perdão. Volta antes que possamos dizer
que estou só e apaixonada, que ao abraçar nossa pequena Alice abraço a
ti e a ele. Aguardo por todos os meus últimos dias, amo-te ainda e mais.
Feliz aniversário meu amor.
Alice
Ditada a carta, minha querida senhorinha, aos poucos me revelou tão capaz de
ler quanto de escrever. Naquela tarde, minhas lagrimas misturavam-se ao café, nosso
pão era uma côdea de afago, já não existíamos separados. Nossa pequena Alice traria
outros felizes momentos e naquele nos despertou para outro sonho. Cedo postamos as
cartas, tarde entendi que o presente dito nas cartas era intemporal, refazia no presente
um passado imaginário, apostava em um futuro que ainda não é mesmo quando lido.
Em outro passeio à igreja de São Pedro, mãos dadas, perdido na contemplação
ou, antes submerso em um ponto entre a geodésica e o nada, entre o ângulo e o brilho,
no temor de mim mesmo e inteiro capitulava. Pela retina adentro entre os arcos
romanos, as sombras e os espectros se aproximavam, deixei de pensar na somatória dos
ângulos de um triangulo e na equivalência com a somatória de dois ângulos do
quadrado. Uma voz infantil e um curto gesto. Os semblantes embaçados pararam.
Coloquei novamente o óculo. O outono se desfez, o inverno havia sido uma estação
úmida. Na primavera abandonei minha casa. Fui viver do outro lado da rua.
A pequena Alice crescia tão feliz quanto jamais pude ser e me pedia o gesto
impossível. O que dizer em um dia especial para uma menina que não gostava de
fotografia? Bom, poderia dizer diante da tempestade o melhor é gostar de guarda-
chuvas, mas e se não chovesse? O melhor a fazer seria aproveitar o dia ensolarado e
fazer talvez uma agradável leitura. Em dia de aniversário tudo deveria ser permitido
desde estudar muito, até sonhar com um beijo apaixonado. Porque afinal de contas a
vida não passará de um sonho e, melhor que a mãe ou o pai puxando pelo pé, ou
arrancando o cobertor, dizendo que já passava da hora de levantar, bem melhor que isso
será sonhar acordada e perder a condução só porque o mocinho no ponto de ônibus
esteve te flertando. Imagine? Deixar de perder o horário por ‘ele’ será como deixar de
acreditar em papai Noel.
O tempo passará e um dia destes, num aniversário destes, descobrirá que a
infância passou, a adolescência passou, e principalmente que estas mudanças de
personalidade e de modelito não foram devidas apenas ao passar dos anos. A
consciência das coisas irá ganhando formas e a tornará mulher, tudo muito natural e
nem por isso indolor. Sofrer faz parte da trajetória, o problema é que os motivos
mudam. Se ontem ainda choravas porque papai não te deixou sair com os amigos,
amanhã choraria por não poder voltar para a casa dos pais. O bom é que a tempestade
passa, toma-se um copo de lagrimas e sabe-se que, no final das contas sempre
estaremos lá. Não estaremos?
Por falar em anos, quantos mesmos? Sem susto, o decoro prescreve que não se
deve perguntar isso a uma dama então, quantos anos mesmo serão necessários para que
o próximo aniversário seja valido por mais três décadas? Chegará aos trinta e sempre
parará de contar? Se antes de pedir a nova remessa de pó de arroz, ao olhar para o pote
vazio, flertar novamente com o espelho pensando que passa da hora de iniciar o tal
regime e.... tudo o que poderia dizer seria, neste futuro iluminado, - Feliz aniversário
meu amor! Aproveite a torta de chocolate, que tanto ama, junte os amigos para uma
farra que possa ser apropriada às crianças da casa, convide os avós para aniversário dos
teus filhos e entenda de uma vez por todas que aniversário não é apenas mais uma data,
seja ele o seu ou o do outro. A vida vale o esforço e vale o esforço com um sorriso
lindo feito o seu para que a vida seja repleta de surpresas agradáveis. Eis tudo o que
diria. Interromperia assim um ciclo de palavras interessantes e acontecimentos
repletos desta felicidade cotidiana.
Aos poucos fora me dando conta de que o relacionamento com Luciana, tendo
sido um abusivo agravo, deixou-me esta herança saudável, Alice e a pequena Alice.
Surpreso com a inversão cronológica, com este relativismo temporal, com esta
discrepância onde a filha me dera por legado à mãe, este iluminado passo dado este
espaço preenchido de lucidez e fascínio onde os encontros de pai e avó foram possíveis
graças a duas crianças.
Ainda assim e mesmo por isso as esperanças do retorno de Luciana trariam a
fortuna e a angustia, dividia meu pequeno mundo com uma rua antiga, entre dois velhos
casarões. Sentia-me incapaz de dizer a mim mesmo a inacreditável verdade, agarrava-
me à impossibilidade de que Alice, que tanto amava, intimamente soubesse que a
pequena Alice era nossa legitima filha. E mais uma vez o destino me acorda para a
verdade da existência humana.
- Bom dia papai! Era a pequena Alice trazendo uma carta de Luciana. Boas
notícias. Estará na cidade segunda feira.
Teria o fim de semana para arrumar as coisas, providenciar um lar para
Luciana? Impossível. Tinha a casa que poderia ceder ao menos em parte e acreditava
que ali estaria confortavelmente abrigada. Mas ainda não seria um lar, um lar tem de ser
cativado, entretanto dizia de mim e não mais de Alice, para elas Luciana sempre seria
alguém cujos movimentos influenciariam a vida. Morando com Alice na casa antiga me
sentia feliz entanto a simples notícia da presença de Luciana me incomodava. Teria de
explicar muitas coisas e não sei se a pequena Alice aceitaria ou compreenderia.
Optei durante muito tempo pelo silêncio e agora não poderia assumir tal
posição. Luciana viria, diria, contaria uma versão dos fatos que certamente justificaria
seus atos de forma a manter sua integridade moral.
Não nutria a vontade de ver em Luciana a mudança, esperava e não desejava,
eram dúbios os meus sentimentos, sentia-me perturbado e por isso tudo o que se
apresentava mutável tornava-se intimamente imutável.
Via nas sombras o que desejava ver e a sombra era a projeção de outras coisas,
não coincidiam com meu imaginário. Muitas vezes me acusei de egoísta apenas por
estar cuidando de um bem coletivo, era a minha família, tão nova e tão minha quanto
pode ser a vista da serra desde um novo edifício. Queria ser o mesmo e jamais o seria
não estando de bem comigo. A plena capacidade de agir, real necessidade, estava
comprometida por esta falsa lucidez. Faltava-me a integridade sobejava o segredo.
Precisava cuidar de mim e cuidar de Alice tal como se esta fosse uma solitária
tarefa autodesignada e, sem detrimento, humanitária. Preenchi meu peito com paz,
serenidade e com a firme decisão de ser mais e melhor hoje.
Abstive-me de possuir Alice e contei, delatei-me, abandonei todos os sonhos e
esperanças em suas mãos. Tranquei-me no quarto por estes dois dias e escrevi esta
confissão que hoje releio e guardo.
A pequena Alice apenas ouvia, olhando da janela o pequeno jardim e suas dálias
amarelas, suas margaridas brancas, seus gerânios azuis, o jardim abandonado o mato
sempre quase extinto que fazia parte da paisagem intima.
- Escrevo o meu diário e nele os amores e os arrependimentos, pois ambos se
identificam e se distanciam quando ouso dar o próximo passo para a felicidade. Era a
segunda resposta da pequena Alice, dada anos mais tarde quando mamãe estava em seu
último leito. A primeira resposta era o sorriso cativante, o abraço sincero, as deliciosas
brincadeiras. Tudo após haver me ouvido com sóbria avidez, com temor, com
serenidade, e com amor. Ouviu-me quatro vezes descrever o fenômeno de minha vida,
leu-me nesta passagem descrita com a verossimilhança e sem o tardar de uma breve
memória. Alice, meu grande amor, sem resposta me estendera as mãos e os lábios.
Não sei de que se trata, mas sei que nossa vida é uma obra de arte, pintura
abstrata para os que estão de fora, entanto juntos estamos dentro desta obra, somos o
conjunto destas pinceladas e vivenciamos esta coletiva pintura intimista. Arranjamos a
casa de Luciana com estas cores coloniais, do outro lado da rua.
Ouro Preto, setembro de 1988. G.
FIM
Post scriptum – Necessárias considerações
Papai cedeu para Luciana a casa em que morava antes de vir morar com mamãe.
Luciana e eu vemo-nos cotidianamente, temos uma relação madura e tratamo-
nos como duas grandes amigas entanto minha consideração de mãe é para com
Alice. Luciana mora com uma amiga desde que voltou de Recife. Papai e eu
acreditamos que se trata de uma relação homoafetiva embora ela nunca tenha me
dito nada abertamente. Dois meses após Luciana ter vindo morar aqui, entregou-
me uma correspondência de Eduardo, uma pequena caixa de madeira com o meu
nome gravado. Papai e eu a enterramos no quintal entre os pés de cedro, copaíba
e araucárias. Papai, atualmente um simpático velhinho, dedica seu tempo
acordado a ler, escrever e educar os gatos.
Ouro Preto, setembro de 1997
Pequena Alice.
DEDICATÓRIA
Quero dedicar este pequeno colóquio ficcional à minha família. A grande
família, esta que inclui todos, aos que não tem laços genéticos diretos, mas que
convivem de alguma forma com os sonhos, desejos e valores que atualizamos dia a dia
nas relações pessoais e, sobretudo a algumas pessoas que auxiliam com seu
entendimento, com sua competência, com sua honestidade e afago. Deste grupo em
especial à minha sogra. Grato à minha querida prima Márcia Alkmim revisora e
curadora, ao meu irmão Edgar Dias, e também aos três, aos meus pais, Manuel e
Mercês, à minha linda esposa Malu D’Angelo e à filha linda que arranjamos e
cuidamos: Manuelita.
Aud D’Angelo Dias
dez de 2018.

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Encontro casual revela negócio inusitado de vendedora

  • 1. Aud D’Angelo Dias – Ouro Preto, dezembro de 2018. Do outro lado da rua Desculpe, mas creio que não teria tempo. Disse Eduardo dirigindo-se para a sacada. Da sacada a luz anunciava o dia de ver, do segundo andar, a vendedora de jornais anunciando o fim de mais um desgoverno selvagem. Eduardo, meio dissimulado atrás de um reposteiro roxo, peça de péssimo gosto que lhe fora presenteada pela dona de um brechó, olhava sempre, nas cálidas manhãs a confusão da rua. Dentre os transeuntes acostumados ao passo automático observávamos a menina, nosso desejo mereceu um lampejo de esperança e novo despertar ao ver o rosto de Luciana. Estranho, ela mal tivera alta e já estava pensando nela do mesmo jeito que antes. Culpa dos hormônios? Subir e descer aquelas escadas tão rapidamente só para fazer jus à alcunha que me dera de Ligeirinho e, de quebra, poder ver mais vezes a silhueta magra da pobre Luciana. Escadas... não saberia dizer o porquê, mas nelas as pessoas sempre parecem ter só pernas e braços. Deixei Eduardo novamente em meio a suas crises alucinatórias, resultado da noite mal dormida, e desci para a rua. A Rua Januária foi uma das poucas da região central que não tinha trafego algum. Rua sem saída. Aos finais de semana aproveitava- se o pouquíssimo movimento do comercio e a fuga dos escassos moradores para promover alguma festinha barulhenta com risco menor de bronca dos síndicos. Eduardo morava ali. Luciana apenas trabalhava. Eu ia sempre por não ter outra opção mais descente, neste tempo era aluno bolsista da Belas Artes e Eduardo um amigo que me socorria na escassez. Gostava da conversa digna de Eduardo, um anarquista convicto que tentava me mostrar as diferenças entre o que ele agora chamava de socialismo libertário, mas eu por mim o considerava um sínico e lhe dizia que por um D seria o síndico. Eduardo não aparentava nada do estilo militar adotado por alguns amigos, não era sua identidade e, não entendia seu entusiasmo pela disciplina seja ela qual fosse, em outros tempos mais remotos o consideraria um perfeito dândi. Ele dizia que a questão era de ordem, e os anarquistas não são contra a ordem? Claro que não, apenas antipatriarcalistas. Visão curta? Míope sempre achei que ver as coisas de perto fosse bem melhor. Eu morava próximo ao Centro Cultural dos Correios e, seguindo a ponte Mauricio de Nassau levava mais ou menos dez minutos até a casa de Eduardo, se caminhasse rapidamente, o que era raro. Gostava de andar devagar, gostava de vagar e ir pela ponte Buarque de Macedo, sempre recitando o Augusto dos anjos: Olhava a sombra magra e tinha medo... tarde descobri que o Augusto dos Anjos me excitava, trocadilhos à parte o citava. Eduardo dizia que os moradores do Januária, quase todos, tinham uma casa de campo, só não sabia aonde, pois morar na orla é um convite inadiável para o mar, para a praia, o campo era a praia no imaginário eternamente caótico de Eduardo. Os que
  • 2. ficavam para o fim de semana tendiam a ir a alguma atividade cultural e indo cedo voltavam tarde e alterados, de início julgava que apenas pelo álcool, hoje sabemos que não. Especulava, desejava, arquitetava uma galeria ali. Eduardo foi um dos raros moradores do segundo, geralmente primeiro e segundo só tinha lojas, escritórios, comercio. Moradores apenas no quinto e, daí para cima cada aparte era muito mini. Achava que fosse por causa do barulho da rua e hoje sei que aquele apartamento fora construído fora do padrão, não havia apartamentos mesmo na planta, senão nos quintos. Então ficava pensando que era coisa de anarquista mesmo, alguém burlou a lei, remodelou o plano, fez o que quis para morar em uma loja com divisórias; inexplicável. Um dia Eduardo convidara Luciana para almoçar, o estranho é que foi em um domingo, nesses dias ela não trabalhava, e como morava longe, teria de se deslocar muito para vir, o ônibus a deixava longe do trabalho e tinha o inconveniente dos horários, ônibus domingo só de hora em hora e meia, e olhe lá. Entanto Luciana veio. Mesmo sabendo que Eduardo estava sozinho, Eduardo tinha quase dezoito, os pais haviam viajado. Eu? Apareci. Tive de certo algum ciúme daquela reunião intima contive-me, porém, não éramos sequer amigos de fato e, nem sei o que devíamos ser. Passava um daqueles apertos danados os quais não deixavam moeda nem para um pão e tivera de me virar. A conquista do pão. Seria prudente ter o de hoje antes de me pôr a pensar no futuro mas, essa parecia uma voz do além, destas vozes que surgem como que de um buraco negro na quinta dimensão dizendo – fica. E o garotinho que era dizia calmamente, ficar pode ser um erro. Delírio? Eu pensando que meu eu futuro para dizer aquilo tinha de ir até lá, fazer um deslocamento temporal enorme, viver sete anos ou mais para cada hora terrena, e, ir muito longe no espaço tão longe que a barreira era intransponível para o retorno. Viagem demais? Talvez não. Vejamos se a vida confirma, para tanto o registro. Acordamos, volto para a conquista do pão: havia uma caixinha de sapato onde vez por outra depositava uma moeda para o fim de mês, depois, bem depois viria a saber que isso era coisa de estudante das republicas de Ouro Preto. Andando sem rumo na rua do poeta. Resolvi passar na Januária e, da calçada já me deparei com a visão da porta da sacada aberta, o reposteiro brega demais balançando em um meio do dia sem vento. No momento a visão me deu um alívio, já sabia onde procurar refúgio e pão. Matar a fome e vender mais um convite para um espetáculo da noite. Sem fome a lei passa a ter mais sentido? Já pensou emancipado, papo cheio pagando tributo, melhor que com fome. Uma estranha revolução, diferente da francesa, igualdade? Nem tanto. Liberdade? Conjugada com a sua. Fraternidade? Exijo. Quando apertei a campainha Eduardo não tardou atender, pela brecha da porta pediu sussurrando que voltasse mais tarde, estava ocupado, uma visita feminina importante. Entendi sem entender. Sabia que Eduardo andara de flerte com uma morena, mas não entendia aquilo, sempre soube, intuitivamente, que Eduardo não era afeito ao sexo oposto e por vira, tanto nos comentários de Eduardo como nos flertes, e mesmo nas transas com a De Milo uma pura brincadeira, uma ironia tola. Agora já passava a ver nestes atos uma crise de fim de adolescência, identidade tardiamente assumida.
  • 3. A De Milo? Explico em tempo. Uma profissional do sexo que apelidamos assim, ela ficava na rua mesmo, esquinas, ou ocupando uma mesa de bar na orla e, por um problema congênito não tinha os braços. Linda. Cheguei a fazer um quadro dela, contratei uma hora, ela posou nua em pelo, desenhei, paguei, pintei depois e perdi. Na verdade, deixei com o Eduardo para ele vender com sorte Eduardo mesmo ficaria com a obra, foi isso naquele dia, frustrado por não ter nem abrigo nem pão, coloquei novamente o pé no caminho de volta, desta vez pela ponte Buarque de Macedo, à noite e, sem sombra de dúvidas com meio tostão furado nos bolsos. Dormi o sono dos idiotas, o idiota da família. Dormindo aguardava que a fome esquecesse de mim e acordei com uma ânsia de vomito tão grande que nem pensei duas vezes, no baú dispensa, escondido do mundo e dos lordes ratos restava, solitário, um pacote de feijão. Lembrei da sopa de pedra do Pedro Malasarte e entendi o quanto era bobo. Tivesse um pouquinho da sorte e esperteza desse querido personagem e faria uma sopa bem rica com um pouco de pedras e de feijão. Eduardo não era amigo de faculdade, era um “cidadão comum, destes que se vê na rua” que frequentava o Purgatório. Purgatório? Desculpe... Bar do Porto, vulgo purgatório. O engraçado é que sempre ofereciam um marisco ou uma porção de qualquer coisa com farinha e no cardápio nunca tinha farinha. Eduardo gostava de tudo com farinha. Pouco a pouco fui entendendo que o Edu não era amigo de jeito nenhum, nem de faculdade nem da rua nem da vida, só alguém que passou de um modo mais demorado. Foi a primeira vez que nos vimos, estava acompanhado com uma guria prenha. Desculpe o palavreado, não quis degenerar o perfil da guria, era como ela mesma se definia; como se chama querida? E ela sempre respondia, eu sou a guria prenha. A custo obtive um nome. Quem? Seu nome? Era a Luciana. Lú trabalhava no Januária, como já havia dito e vendia cosméticos (essa parte ainda não tinha dito) falava e ria alto, interrompeu seu breve colóquio sobre uma querela besta com uma cliente loira e me convidou a ir ver os afrescos na esquina da Olímpia com Duarte Veiga, duas quadras. Afrescos pintados em um muro emoldurado com mármore amarelo, lindo, fachada de edifício luxuoso, coisa da elite recifense. Fui pela arte. Fomos e voltamos rápido, tão rápido que flagramos o Eduardo abraçado com a De Milo. Recostado na grade do parador sem olhar o rumo do mar. As mãos despudoradas debaixo da saia dela. Estranhei tanto a cena quanto o ciúme de Luciana e, por fim sobrou para mim. Eduardo me pediu para leva-la para casa. Qual casa? - A sua lógico, já estou acompanhado, dizia. Creio, de verdade, que Luciana não estava prenha, mas queria. Depois fiquei sabendo em que trabalhava. Eis a causa dos tantos risos altos e da ironia, Luciana vendia erva. Quando viu o anuncio de emprego no jornal era para ir participar apenas de uma reunião de consultoras, conheceu uma amiga do terreiro que a levou à Casa da Erva Medicinal e ‘para os da família com que morava’ a vendedora de erva ficou sendo vendedora de cosméticos. Dissera-me que a tal família era evangélica e por eles aquilo era um crime. Entanto vendia mesmo para os da casa. E, achava pena que a erva era pouca. Chá de arruda para revitalizar os cabelos, sabonete de manjericão para amaciar a pele... E ria
  • 4. muito. Tudo assim bem barato e ecológico. Isso era o bom da coisa. E chá de folha de Agave é bom para quê Luciana? Canseira. Para lembrar das paisagens mexicanas sei que era, mas Agave na medicina floral do doutor Bach é um fortificante. Reestabelece as forças psíquicas e te torna mais persistente. Hoje todos precisamos. No dia seguinte fui ter com ela no emprego e descobri a morada de Eduardo. Duas semanas depois aconteceu tudo o que já narrei antes. O que? O lance de estar sem dinheiro, a caminhada até o Januária, a porta semiaberta, Luciana lá para o almoço de domingo, o quadro que deixei para vender, e o espetáculo à noite. Vendi três ingressos na rua, fiquei com um. Voltei cedo para casa, fiz a sopa de feijão na madrugada e fui dormir na rede. O tempo parecia estar rodando tanto quanto eu. E, de repente as coisas tomaram outro rumo. Meu eu dizendo tudo do buraco negro. Ou, foi tão bom que o velho Nietzsche recomendou um eterno retorno. Gente, a vida retorna todos os dias. Persistimos na existência, continuamos com os mesmos ideais, plantando arvores, escrevendo sempre o mesmo livro. Tem gente que diz isso, para cada autor todos os livros são um só. Noites brancas não são noites em branco. Linda história que todos devíamos pagar com atenta leitura ao Dostoievsky. Luciana bateu lá em casa cedo e estranhei. Segunda feira antes das sete a campainha sonando, estranhei Luciana pedindo um café e não estranhei quando me relatou os fatos do dia anterior. Dormiu. Novamente. Com o Eduardo. Ele bêbado. Durante o sono pedindo um abraço da De Milo e, “descuidaram” do preservativo. Ela então ali, entre chorando e sorrindo tentava me dizer os detalhes, não sei bem se por ciúmes pedi que não expusesse a intimidade desta forma. Na verdade, fui brusco – nada daqueles detalhes que queria tanto saber. Ela enfim parou perto da porta da sala, por um momento olhava para os lebistes que tentavam comer os filhotes no aquário e, disse: - Te amo! Fiquei com o Eduardo porque te amo. Estou grávida, o filho é teu e quero que Eduardo seja o pai. Era demais, como eu seria pai, como não seria? Infelizmente o seu ofício não me dá sustento, completou. Claro que aquilo foi o motivo de tanta confusão para a minha cabeça que não tivera outra escolha a não ser o singular convite para que Luciana viesse morar definitivamente comigo. Lú trazia todas as notícias que não me interessavam, - Eduardo vendeu o quadro que deixara no domingo e inteirou a compra das passagens que precisava, estava de partida para Portugal, iria a trabalho poderia mandar dinheiro mês a mês para ajudar nos custos da gravidez. Bom, respondi, então ele já pode te dar um tanto da venda do meu quadro. Luciana queria ficar comigo, sustentava que o filho era meu e que me amava. Luciana abriu a porta lentamente, retirou a chave e pós na bolsa. - Até mais tarde. À noite Luciana me perguntava romântica - Se pudesse escolher qualquer pessoa no mundo, quem convidaria para jantar? Foi a primeira pergunta que me fez assim que voltei do atelier na faculdade. A única reação possível foi convida-la para outra sopa de feijão. Tanta insistência em um nome que terminei por deseja-la. Gostaria de ser famoso? De que forma... não, não gostaria de ser famoso. Então porque é artista? As perguntas de Lu me tornavam tenso, faziam pensar no destino, na
  • 5. sombra magra, na pele de rinoceronte. Augusto, o dos anjos que teria mandado o recado se pudesse. Vai ser um buda, praticar o budismo moderno. Para Luciana ser artista era querer ser famoso. Para mim, ser famoso não é ser artista, a fama não é mais que simples consequência do fazer artístico, sempre pensei a obra como uma possibilidade de compreender como a mente funciona como poderia dizer o que pretendo dizer. A arte não é produto como outro qualquer, a fluência estética é o que importa mesmo na obra pronta. E me perdia nas considerações que não lhe interessavam. Talvez nosso erro tenham sido os beijos antes de escovar os dentes. Já passava da meia noite quando usualmente íamos dormir. Os problemas se acumulavam junto com as dívidas e resolvi abandonar o barco, remar com a maré e aproveitar o vento. Lu? Não aparentava gravidez, aparentava uma demência intencional, adotei o silêncio. Sempre me incomodei com os ruídos dela até o dia em que ouvi no clamor do ruído um grito não genérico, um grito coletivo desejoso da paz. E o ruído passou a ser o discurso de uma estética relativa, uma estética contra o absoluto da harmonia, contra as vozes dilaceradas da razão. O ruído se firmava em intermitente excentricidade. Tudo entre nós passou a ser barulho, a deturpar os diálogos secos. Os barulhos da casa eram o eco dentro do abismo, e eu no fundo do abismo pensava em Sócrates não pelo desejo da cicuta, mas por tentar me livrar da tirania das aparências. Ou ética ou estética.... Nada disto um desejo de vida que se faça compreender na aparência na imagem. E Luciana me impunha uma imagem gasta, de repente entendi que éramos pobres de um jeito distinto de pobreza. Um contra o consumo, eu orgulhoso do sapato furado, a outra se sentindo humilhada por usar um sapato furado. Já que o número era o mesmo trocamos de sapato. Ninguém reparou no meu traje feminino. Nem o sapato, nem a troca nem o engano contaram tanto, jamais pude me acostumar com os ruídos e, por isso fui pouco a pouco me educando, e tentando educar no ruído para os valores do silêncio. Assim tive a certeza de que Luciana me ouvia e me respeitava. Esta era a pedagogia tácita que cometia. As pessoas desrespeitadoras do ruído também são intolerantes com o silêncio. Quando passei a tomar decisões contrárias aos gostos e hábitos de Luciana entendi, com a pele gasta, com as vísceras, o valor das imposições sociais. Mesmo sabendo que as minhas decisões e opiniões não seriam prejudiciais a ninguém, antes ao contrário benéficas para mim, para ela e para tantos outros que nem conhecia. Odiava a T.V ligada, tudo para mim era propaganda, não suportava ver todos os livros precocemente reorganizados na estante, a bagunça de calcinhas e sutiãs no baú dos cobertores. Meu deus, se juntei ali o Nietzsche e o Herman Melville não foi nem de longe por questões alfabéticas, claro ir do N ao H ia ser muito bom, mas foi, pelas considerações sobre Deus. Pelo diabo no corpo do capitão que via o diabo na baleia. O meu lado demônio apontando com desejo de vingança a Lu; os doces escondidos dela atrás dos estojos de pinceis e das tintas em troca das minhas paletas que jogou no lixo, uma casa um oceano infernal sem canibais. Segui por fim o conselho de Zaratustra e me guardei de cuspir contra o vento. Bom. Certas coisas tomaram o seu lugar convencional. Outras não pude realocar. A T.V ficou logo obsoleta e estragou e doei para um amigo que fez uma instalação com ela e depois encheu o tubo de terra e pós no jardim da casa do pai. Tudo sob o meu olhar. Os livros
  • 6. desordenados? Melhor ver a Lú concentrada nas suas leituras de Proudhon, Malatesta ou Kropotkin, juro. Pôr em ordem é um prazer assim. Calcinhas e sutiãs eu deixava junto com as minhas roupas propositalmente, o feminino preenche o meu dia e o nosso guarda-roupas, não digo se usei. Doces e tintas não combinam? As cores adocicadas inspiram... o mais educar para repensar o consumo e o lixo. Isso se ajeita. Luciana anarquista é muito interessante e mais ética e erótica. Ali, dentro daquele lar passei a ser o estranho, por vezes o famigerado inimigo, geralmente incompreendido porem julgado. Em curtas semanas meu erro foi ser e assumir, depois seria estar determinado a partir se a situação se tornasse insustentável como se tornara. Estranho, tudo ia bem, mas o avançar da gravidez mudou o meu animo. Sempre acreditei que abandonar o jogo seria melhor que burlar regras, o coletivo abomina os que abandonam o jogo se não podem adotar as sanções previstas. Sem regras não há jogo? Eu chutando a bola para o mato sempre. Sem jogo, desejando a linha direta do eu no ser, do estar com ela sem rupturas e, talvez pela paixão, tudo desandou. As condições se deterioravam a cada hora, a cada dia, empreendi alguns toques e trouxe o momentâneo êxito. Logo após a certeza do mérito voltei-me aos antigos caminhos porque neles a frustração não foi evidente, apenas cumulativa. E não havia gravidez aparente. Como? No adiantado da gravidez, de um útero que não cresce uma metamorfose minha mais aparente que a do feto? Assim como o proselitismo grosseiro, imediatista e materialista não pode ignorar os subjetivos valores da tradição, pois inevitavelmente dela se nutre, assim, ainda que desejosa da minha partida, no cais da ignorância, Luciana balançava o lenço pardo da saudade: dizia adeus sem dizer. Fiquei me sentindo Eduardo. Parti, e trouxe comigo os momentos e os preceitos que permitiram o fim de uma relação que não foi tal como foi e por isso terminou. Fiz do esquecimento um ideal pacífico. O esquecimento também enfada. Sobretudo se fazemos dele uma baliza para a memória. É o grito de quem se exclui por ter nos olhos a vida que não se reduz ao ser no outro. Tanta metafisica para que? Enquanto pude mantive as contas pagas, meses e anos após deixa-la. Três anos depois, já nesta outra histórica cidade, esperava a lotação na Barra querendo outra história e, hoje suponho, deus meu, que só atravessei a rua com o mesmo costume do livro a tiracolo, desta vez ‘Sinfonias’ de Raimundo Correia, relendo As Pombas e... Uma breve descrição de algo que me pareceu mais uma alucinação. Uma senhorinha atravessava a ponte Marília de Dirceu vindo em minha direção, tarde de cores homogêneas e homologamente tudo parecia paz na nevoa. O vulto inquietante agitava o vestido a cada passo auxiliado pelo fremir de um vento frio e constante. Sem saber até que ponto a imaginação clamava observava o semblante de uma vida estranha a me entreter com o movimento da veste larga, fundeando a cena as casas de paredes caiadas, a invisível serra. Meu Deus? Enfim meu primeiro fantasma ouropretano. Destes que rondam as ruas calcadas de Ouro Preto. A chuva lavou a muito o suor mas quantas destas centenárias pedras ainda estão no mesmo lugar que as mãos escravas colocaram? Alucinação? Nada. Mais de perto, da calçada, sobrepondo todas as cruas nuances, me pareceu apenas outra vida gasta, o fantasma se materializou e então
  • 7. imaginava que, no ato da passagem, via em mim um puro, quis ir ao encontro, parece- me que há nesta constância de desejos levemente lúbricos uma motivação a mais para os passos ofegantes. Cena inusitada que desejei pintar, sem o colorido que lhe era propicio, sem o efusivo olhar de uma senhorinha que, alegre e distante olhava para dentro de si mesma. Decidido a ter e não ter, “aquecer, aquiescer e por fim esquecer”, quanto súbito acordado a senhora de longe me acena, verdade! Fui ao encontro e me deparei com outra pessoa, uma senhorinha linda me pedindo para ler uma carta. - Sabe ler não sabe? Sim, e sou quase um padre, confesso. Buscamos a passos lentos um lugar entre íntimo e iluminado, respirei com o intuito de me entregar e comecei a ler pensando na aproximação. Querida mamãe, Desculpe a ousadia de querer falar um pouco mais sobre a noite em que ele partiu. A última vez que nos vimos estava tão solitária e nua que fomos dormir, após a maldita sopa de feijão, sem escovar os dentes. Assombrada, detive-me olhando o semblante dele e querendo novamente partir sem despedidas. Triste, amargurada, tendendo a ceder todos os impulsos e contendo desejos. Esquecida dos conselhos de papai, querendo um filho, ou filha, desejando, excessiva para mim mesma. À mente atordoada tudo o que me vinha eram impressões do mar visto da ponte Buarque de Macedo, olhava o céu e pensava nele, fitava o mar e revia a imagem do navio em que Eduardo partira. Horizonte tempestivo. Enroscada em seus braços, caindo, rolando feito uma dura rocha no colchão velho, me sentia leve e levada. Desculpe-me, foram os momentos felizes que minha feminilidade intrépida permitiu. E não me lembrava de papai, não pensava em papai. Não me pareceu coincidência o fato de acordar sem ele, de tomar o café magro sem saber seu rumo, de ir trabalhar com o cheiro de alecrim nos cabelos e esperar na saída das escadas um passo ligeiro. Naquele momento queria estar a muitas milhas do Recife, outra vez longe do mar, voltar aos estudos em uma universidade, mas não queria morar novamente com senhora e papai. Desculpe-me. Não ouso falar nada da gravidez, não ouso falar de Eduardo, não usei seu nome, quis chamar meu rebento de filha e por isso lhe dei o mesmo nome da senhora, mamãe. Chamei-a Alice. Quis dizer o quanto o amava amando antes esta minha filha, esta que então é tua neta e filha e que se encontra contigo, a pequena Alice. Obrigada por cuidar de sua neta. Eduardo enviou uma carta, espero que a última, estava no Porto de Luderitz na Namíbia, com uma família de contrabandistas, foi pego tentando retirar diamantes. São as noticias da última carta. Alias, ele te citava, dizia que não devia confiar em covardes, confiasse antes em ti. Disse que há uma obra valiosa sua exposta na Casa dos Contos, certamente sua porem com a assinatura adulterada, com a assinatura de papai. Confio que tudo isso não passa de um delírio, quero acreditar que
  • 8. estejamos juntas de mãos dadas. Sei das tuas renúncias e nem todas compreendo e aprovo. Por isso não quis responder, não quis mandar a delituosa carta ao presídio. A vontade era dizer no rosto o quanto sofrera com a gravidez de Alice e isso iria trazer outra dor, a dor de Eduardo sem os diamantes. A pequena Alice é filha de outro, do que amo. Não posso responder nada. Iria reclamar de muitas coisas quando tudo o que Eduardo precisa é de um conselho sincero. Espero que um dia saia para poder dizer o quanto sofri e para fazê-lo sofrer. Não sofro mais. Não o desejo mais, A pequena Alice tem outro pai e outra mãe, um pai que não sei onde está e uma mãe que é a minha mãe. Fica em paz mamãe, nos veremos novamente em breve e com gratas surpresas. Lú Observei com decoro o endereço da remetente, Lú, e a coincidência se desfez. Espantado prometi que iríamos juntos responder à carta, mais por desejo de tornar a vê- la, minha senhorinha. Antes de partir, com um brilho efêmero, ousado e alegre por acreditar que a neblina encobriria a feição e disfarçaria a intenção das palavras, agradecido por partilhar comigo esta intimidade. Grato, duas vezes, quis tocar-lhe as mãos receosas e me surpreendi com o caloroso abraço. Súbito lembrei-me da figura do pai. Confuso quanto à origem da singela afinidade, se consequência apenas da aproximação sutil do teu corpo tão feminino ou se do passado duplamente revelado, percebi no teu rosto, senhorinha, uma indefinida volúpia. Os riscos me maltratavam, antecipando doce angustia quis saber dos detalhes de sua vida e, sem dizer palavra me despedi. Partia lentamente e entanto os pés já não me obedeciam. Uma grande coincidência. Mudo pensava. Outra Luciana, outra gravidez, outro Eduardo, outro quadro... quis saber qual a tua fé e tentar desvendar os fatos, reunir, neste mesmo universo humano, mãe e filha, quis crer que era a mesma Luciana. Não me parecia protestar, entanto ansiava crer que esta outra Luciana mentira ou delirava. Desconversei, consolei. A lotação apontou na estação e corri. Voltei às Sinfonias de Raimundo Correia. (...) enfim dezenas de pombas vão-se dos pombais, apenas Raia sanguínea e fresca a madrugada (...). A verdade era crua, saber de Eduardo não fora agradável, encontra-la e saber que é a mãe de Luciana, foi um fato estranho, curioso, angustiante, despertou um anseio coibido. Queria saber apenas do quadro. Uma obra na Casa dos Contos. Desci da lotação na Praça da Sé, gostava de descer a certa distância do campus quando tinha tempo de caminhar. Um dia calmo, um passeio despropositado um entardecer enevoado e, enfim mais uma noite de concentração, leituras e sonhos lascivos. Dia ou noite, a pleno sol ou no frio espesso tudo era a confusão dos sonhos com a terna saudade. Outra grande coincidência. A casa da frente sempre me parecera abandonada e por isso fora objeto de algumas especulações. Estranhamente andava à cata de
  • 9. respostas. Nas entrevistas mais ousadas propunham-me um método de derrubar suas portas quedando com os muros e com os encantamentos, quem sabe alguém não a invada e termine o martírio do abandono. Poderá vir a ser uma República. Outras entrevistadas viam com ar romântico a possibilidade de um tombamento, um historiador altruísta investigando a vida, a obra, o estilo, a fartura e o estio, o período e propondo a eternidade. Duas possibilidades e uma resposta tácita, subliminar – À casa abandonada, duas propostas de invasão, entanto nada me faria crer que o encantamento estava perdido. Mudei a forma de perguntar, metamorfoseei as palavras, fui atrás e através de novos informantes. Perguntando a uma pobre senhora sobre o fato essa me deu a resposta que, sendo inusitada me pareceu a mais esperada. Há ali mais moradores do que imaginas. Quais moradores teriam a condição de jamais entrar ou sair, quais teriam a condição da invisibilidade, do ego desfeito, da porta trancada ser apenas uma metáfora para outro universo. Os ratos fariam ninhos no sótão e nos porões, se esses locais ali houvessem, entanto a casa permanecia isenta destes famintos roedores. Haveria ossos ali, uma multidão de esqueletos, uma família trucidada, acovardados que optaram pelo medo ante o fim da guerra. Pasmei. As ruínas superaram a paz, a guerra para a casa não existiu e executou-se o lar. Os lares que vivenciaram a guerra não foram sublevados, apenas invadidos e transformados em ambientes psicológicos insalubres. Na casa, as especulares cortinas brancas que pendiam quietas, caladas diziam da última decoração, a labuta trágica de uma senhora ordenança. As janelas intactas cujo acumulo de poeira ofuscava o reflexo do jardim tomado pelo mato. Era tudo o que não via após anos de caprichosa observação. Pensava no meu universo simbólico e do meu universo simbólico só podia inferir os detalhes do que conhecia. O tempo personificado nesta casa me deu a literal oportunidade de desejar uma via de acesso a outra dimensão, uma que trouxesse a opacidade e não me permitisse ver nos teus olhos o fundo do abismo. Opaco e impossível de ser decifrado. Outro, o outro não humano não pessoal, o ponto em que o intimo se afirmaria sem temor e sem vontade de êxito. Mérito sombrio o mérito das lavadeiras que tendo um trabalho interminável ousam, ao fim do dia, arrancar todas as roupas e se lançar ao rio para o banho definitivo. O banho que garanta à roupa um corpo limpo. Que garanta às cortinas uma janela ofuscada, uma película que as proteja do vento fresco, do orvalho doce, do perfume de terra molhada e das mazelas que a permitiriam uma curta vida. Em um belo dia de outono chuvoso quando a vi, uma senhora parada em frente ao portão da casa abandonada, retirou da bolsa uma chave dourada, introduziu a haste na fresta da fechadura, empurrou o portão de madeira bruta, as dobradiças rangeram. Desci alegre e apreçado as escadas abri instintivamente a porta atravesse o mais ligeiro que pude o curto jardim e me detive diante do portão aberto. Sem a prudência do guarda-chuva sentia o corpo dilacerado pela tempestade, súbito atravessei a calçada e
  • 10. os paralelepípedos, entretanto sem a ousadia ou pensamento qualquer que me prendesse a humano labirinto moral adentrei a casa abandonada e, só consegui me deter diante da tua imagem, jovem senhora. - Feliz em te ver senhorinha, quem é está linda criança? - Alice. Diga olá para o senhor. Alice quieta, calada, me observava e eu observando Alice. - Quantos anos o senhor tem? - Alice??? Por favor, seja educada, está aborrecendo o senhor. - Não me aborrece, tenho 70. - Pois não parece, senhor. - É o efeito do sorriso, respondi, com outro franco sorriso. - E a senhorinha, quantos anos teria então Alice? - Mamãe? - Também tenho 70, Alice tem dois, e se não os convenço é também por causa do sorriso! - Entendido. E ainda, sabendo que não adiantariam tantos pesares insistiria no hábito de ressentir. Talvez por pura nostalgia, por saber que na pontada inicial houvesse um brevíssimo momento em que se é mais de si mesmo. Logo, querida, andávamos pela casa sonhando a desilusão do ideal desfeito. A culpa é para os mortos o que os vermes são para os vivos, os desejos, que fazer com eles? - Reparei que vossa casa, senhorinha tem uma estreita e antiquíssima fachada. Alice abrira a porta e convidara-me a entrar. Antes que pudesse refutar, ainda com os olhos baixos, constrangido a senhorinha me fez olhar outro detalhe na portada, quase tocando minhas mãos e me fitando os olhos. - Por favor, temos de responder à carta. Engoli algumas palavras, meu deus, o tempo, o portal, o eu da quinta dimensão, onde estava mesmo? tentava dissimular os pensamentos. Querendo saber do marido da senhorinha aproveitei um momento em que ela se retira e perguntei a pequena Alice por seu pai. E fui arrancado logo do presente ao futuro. - Papai não mora conosco. Fui surpreendido naquele momento por vossa presença desconcertante, senhorinha, que também desconcertada julgo haver percebido em mim a mesma alegria e timidez. - O café está pronto. Sentamo-nos em uma coberta no quintal e, observando os gatos, passamos à tarefa. Escrever uma singela carta, uma carta ditada que poderia me dar tantas respostas. Antes porem precisava saber conter uma curiosidade.
  • 11. - São muitos os quadros na parede, senhorinha, porem a maioria sem assinaturas, algumas com uma assinatura masculina. Lindos quadros coloridos espalhados por toda a vossa pequena casa, mesmo nos corredores mais escuros. Seriam tuas obras? Gostei de todas... - A carta.... Dissera-me insistentemente. Querida Luciana, Uma semana fria de inebriante calma. As angustias que me sobrevém são abafadas por um amor que, contido ainda assim teima em emergir. Lembrei-me hoje, acompanhando nossa pequena Alice em um curto passeio, de uma missiva antiga que encontrei entre outros bilhetes e cartas da família. Quando completava quinze anos recebi uma carta simples e anônima que gostaria de transcrever e, entanto melhor que isso ei de fazer, mando-a junto com esta com o pedido de que a devolva brevemente. A pequena Alice está bem. Feliz, educada e birrenta, tem o mesmo sorriso do pai, idêntica teimosia da mãe e um presente que anuncia um futuro sem expectativas. Que esperaria uma criança de dois anos do futuro? Graças ao Bom que nada. Gosto da ideia de estar perto dela, de esperar o momento certo para ensinar tantas coisas sobre as pessoas e o mundo. Para a pequena Alice é dado o tempo da infância e da ingenuidade, para ti Luciana o tempo da maturidade, do remorso, dos erros sublimes, da ignorância, o tempo de viver sem pensar que haverá um fim e neste percurso de liberdades e tropeços achar uma finalidade para os atos teus. Atos tão humanos e por si desumanos. Se digo tudo isso de ti é por considerar que cada ser possui em si o germe dos questionamentos, e esta pequena semente crescendo nos faz crescer. Haverei de ensinar a pequena Alice que não se devem abandonar amigos, ainda que os amigos se tornem criminosos. Deveríamos abandonar as boas intenções se estas apontassem o sofrimento? Há de convir que não sejamos imorais, e desumanos a ponto de aprovar a assassínio material tanto quanto a morte social por meio da exclusão involuntária. Só é possível aprender o valor da renúncia quando o objeto renunciado nos é caro. Apenas constato a suposição de que tais sofrimentos involuntários sejam evitáveis, para o amor, sofrer é um meio de valorizar o desejo, de adentrar um turbilhão de emoções humanas. Que espécie de emoção há no coração canino que acompanha o cadáver do dono até o jazigo ou cova e, ali permanece como se diante de uma morada eterna? O amor de um cão. O isolamento talvez lhe permita uma reflexão sobre a sociabilidade. Respondemos por nossos atos individuais e vivemos inseridos em uma civilização mutante. A vida muda porque juntos involuntariamente mudamos a vida, por isso falar de atos naturais é arriscado em relação aos humanos. Possamos hoje estar novamente na
  • 12. fronteira entre caçar e sermos caçados, entanto se há realismo nesta afirmação que ela se traduza em amargas metáforas de uma sociedade que se devora. Quem são os predadores? E agora não basta saber o que, é preciso acompanhar os porquês. Este teu amigo Eduardo fez-se iludido caçador, quis à força de um ímpeto ter a prometida felicidade atendida, e não é exceção. Infelizmente entre a ousadia de Eduardo e o louvor dos abastados só há uma distância possível, a violência explicitada o fato imediato e a tradição. A tradição encobre a violência e lhe apresenta o saboroso prato elitizado, antes a tua sopa de feijão que o resultado de um sacrifício. Os diamantes, que serão para ti? Façamos deles um símbolo da beleza e da estupidez. Gostaria de responder sua carta com todas as afirmações e conselhos costumeiros, e me vejo na obrigação de tentar fazer-te pensar, se a pequena Alice já não é tua filha, também já não é minha neta e não sei se tem um pai, pois teu pai já não está conosco e o pai dela saberá ainda hoje se o é. Quando disse que a pequena Alice tem o sorriso do pai quis dizer que não tem a tua ironia. Volta para o teu lar, filha. Para o alento desse coração que já se esqueceu de sofrer e solitária espera, ansiosa, que todos os teus erros futuros sejam cometidos aqui, perto dos que sabem o valor do perdão. Volta antes que possamos dizer que estou só e apaixonada, que ao abraçar nossa pequena Alice abraço a ti e a ele. Aguardo por todos os meus últimos dias, amo-te ainda e mais. Feliz aniversário meu amor. Alice Ditada a carta, minha querida senhorinha, aos poucos me revelou tão capaz de ler quanto de escrever. Naquela tarde, minhas lagrimas misturavam-se ao café, nosso pão era uma côdea de afago, já não existíamos separados. Nossa pequena Alice traria outros felizes momentos e naquele nos despertou para outro sonho. Cedo postamos as cartas, tarde entendi que o presente dito nas cartas era intemporal, refazia no presente um passado imaginário, apostava em um futuro que ainda não é mesmo quando lido. Em outro passeio à igreja de São Pedro, mãos dadas, perdido na contemplação ou, antes submerso em um ponto entre a geodésica e o nada, entre o ângulo e o brilho, no temor de mim mesmo e inteiro capitulava. Pela retina adentro entre os arcos romanos, as sombras e os espectros se aproximavam, deixei de pensar na somatória dos ângulos de um triangulo e na equivalência com a somatória de dois ângulos do quadrado. Uma voz infantil e um curto gesto. Os semblantes embaçados pararam. Coloquei novamente o óculo. O outono se desfez, o inverno havia sido uma estação úmida. Na primavera abandonei minha casa. Fui viver do outro lado da rua. A pequena Alice crescia tão feliz quanto jamais pude ser e me pedia o gesto impossível. O que dizer em um dia especial para uma menina que não gostava de fotografia? Bom, poderia dizer diante da tempestade o melhor é gostar de guarda- chuvas, mas e se não chovesse? O melhor a fazer seria aproveitar o dia ensolarado e
  • 13. fazer talvez uma agradável leitura. Em dia de aniversário tudo deveria ser permitido desde estudar muito, até sonhar com um beijo apaixonado. Porque afinal de contas a vida não passará de um sonho e, melhor que a mãe ou o pai puxando pelo pé, ou arrancando o cobertor, dizendo que já passava da hora de levantar, bem melhor que isso será sonhar acordada e perder a condução só porque o mocinho no ponto de ônibus esteve te flertando. Imagine? Deixar de perder o horário por ‘ele’ será como deixar de acreditar em papai Noel. O tempo passará e um dia destes, num aniversário destes, descobrirá que a infância passou, a adolescência passou, e principalmente que estas mudanças de personalidade e de modelito não foram devidas apenas ao passar dos anos. A consciência das coisas irá ganhando formas e a tornará mulher, tudo muito natural e nem por isso indolor. Sofrer faz parte da trajetória, o problema é que os motivos mudam. Se ontem ainda choravas porque papai não te deixou sair com os amigos, amanhã choraria por não poder voltar para a casa dos pais. O bom é que a tempestade passa, toma-se um copo de lagrimas e sabe-se que, no final das contas sempre estaremos lá. Não estaremos? Por falar em anos, quantos mesmos? Sem susto, o decoro prescreve que não se deve perguntar isso a uma dama então, quantos anos mesmo serão necessários para que o próximo aniversário seja valido por mais três décadas? Chegará aos trinta e sempre parará de contar? Se antes de pedir a nova remessa de pó de arroz, ao olhar para o pote vazio, flertar novamente com o espelho pensando que passa da hora de iniciar o tal regime e.... tudo o que poderia dizer seria, neste futuro iluminado, - Feliz aniversário meu amor! Aproveite a torta de chocolate, que tanto ama, junte os amigos para uma farra que possa ser apropriada às crianças da casa, convide os avós para aniversário dos teus filhos e entenda de uma vez por todas que aniversário não é apenas mais uma data, seja ele o seu ou o do outro. A vida vale o esforço e vale o esforço com um sorriso lindo feito o seu para que a vida seja repleta de surpresas agradáveis. Eis tudo o que diria. Interromperia assim um ciclo de palavras interessantes e acontecimentos repletos desta felicidade cotidiana. Aos poucos fora me dando conta de que o relacionamento com Luciana, tendo sido um abusivo agravo, deixou-me esta herança saudável, Alice e a pequena Alice. Surpreso com a inversão cronológica, com este relativismo temporal, com esta discrepância onde a filha me dera por legado à mãe, este iluminado passo dado este espaço preenchido de lucidez e fascínio onde os encontros de pai e avó foram possíveis graças a duas crianças. Ainda assim e mesmo por isso as esperanças do retorno de Luciana trariam a fortuna e a angustia, dividia meu pequeno mundo com uma rua antiga, entre dois velhos casarões. Sentia-me incapaz de dizer a mim mesmo a inacreditável verdade, agarrava- me à impossibilidade de que Alice, que tanto amava, intimamente soubesse que a pequena Alice era nossa legitima filha. E mais uma vez o destino me acorda para a verdade da existência humana.
  • 14. - Bom dia papai! Era a pequena Alice trazendo uma carta de Luciana. Boas notícias. Estará na cidade segunda feira. Teria o fim de semana para arrumar as coisas, providenciar um lar para Luciana? Impossível. Tinha a casa que poderia ceder ao menos em parte e acreditava que ali estaria confortavelmente abrigada. Mas ainda não seria um lar, um lar tem de ser cativado, entretanto dizia de mim e não mais de Alice, para elas Luciana sempre seria alguém cujos movimentos influenciariam a vida. Morando com Alice na casa antiga me sentia feliz entanto a simples notícia da presença de Luciana me incomodava. Teria de explicar muitas coisas e não sei se a pequena Alice aceitaria ou compreenderia. Optei durante muito tempo pelo silêncio e agora não poderia assumir tal posição. Luciana viria, diria, contaria uma versão dos fatos que certamente justificaria seus atos de forma a manter sua integridade moral. Não nutria a vontade de ver em Luciana a mudança, esperava e não desejava, eram dúbios os meus sentimentos, sentia-me perturbado e por isso tudo o que se apresentava mutável tornava-se intimamente imutável. Via nas sombras o que desejava ver e a sombra era a projeção de outras coisas, não coincidiam com meu imaginário. Muitas vezes me acusei de egoísta apenas por estar cuidando de um bem coletivo, era a minha família, tão nova e tão minha quanto pode ser a vista da serra desde um novo edifício. Queria ser o mesmo e jamais o seria não estando de bem comigo. A plena capacidade de agir, real necessidade, estava comprometida por esta falsa lucidez. Faltava-me a integridade sobejava o segredo. Precisava cuidar de mim e cuidar de Alice tal como se esta fosse uma solitária tarefa autodesignada e, sem detrimento, humanitária. Preenchi meu peito com paz, serenidade e com a firme decisão de ser mais e melhor hoje. Abstive-me de possuir Alice e contei, delatei-me, abandonei todos os sonhos e esperanças em suas mãos. Tranquei-me no quarto por estes dois dias e escrevi esta confissão que hoje releio e guardo. A pequena Alice apenas ouvia, olhando da janela o pequeno jardim e suas dálias amarelas, suas margaridas brancas, seus gerânios azuis, o jardim abandonado o mato sempre quase extinto que fazia parte da paisagem intima. - Escrevo o meu diário e nele os amores e os arrependimentos, pois ambos se identificam e se distanciam quando ouso dar o próximo passo para a felicidade. Era a segunda resposta da pequena Alice, dada anos mais tarde quando mamãe estava em seu último leito. A primeira resposta era o sorriso cativante, o abraço sincero, as deliciosas brincadeiras. Tudo após haver me ouvido com sóbria avidez, com temor, com serenidade, e com amor. Ouviu-me quatro vezes descrever o fenômeno de minha vida, leu-me nesta passagem descrita com a verossimilhança e sem o tardar de uma breve memória. Alice, meu grande amor, sem resposta me estendera as mãos e os lábios. Não sei de que se trata, mas sei que nossa vida é uma obra de arte, pintura abstrata para os que estão de fora, entanto juntos estamos dentro desta obra, somos o conjunto destas pinceladas e vivenciamos esta coletiva pintura intimista. Arranjamos a casa de Luciana com estas cores coloniais, do outro lado da rua.
  • 15. Ouro Preto, setembro de 1988. G. FIM Post scriptum – Necessárias considerações Papai cedeu para Luciana a casa em que morava antes de vir morar com mamãe. Luciana e eu vemo-nos cotidianamente, temos uma relação madura e tratamo- nos como duas grandes amigas entanto minha consideração de mãe é para com Alice. Luciana mora com uma amiga desde que voltou de Recife. Papai e eu acreditamos que se trata de uma relação homoafetiva embora ela nunca tenha me dito nada abertamente. Dois meses após Luciana ter vindo morar aqui, entregou- me uma correspondência de Eduardo, uma pequena caixa de madeira com o meu nome gravado. Papai e eu a enterramos no quintal entre os pés de cedro, copaíba e araucárias. Papai, atualmente um simpático velhinho, dedica seu tempo acordado a ler, escrever e educar os gatos. Ouro Preto, setembro de 1997 Pequena Alice. DEDICATÓRIA Quero dedicar este pequeno colóquio ficcional à minha família. A grande família, esta que inclui todos, aos que não tem laços genéticos diretos, mas que convivem de alguma forma com os sonhos, desejos e valores que atualizamos dia a dia nas relações pessoais e, sobretudo a algumas pessoas que auxiliam com seu entendimento, com sua competência, com sua honestidade e afago. Deste grupo em especial à minha sogra. Grato à minha querida prima Márcia Alkmim revisora e curadora, ao meu irmão Edgar Dias, e também aos três, aos meus pais, Manuel e Mercês, à minha linda esposa Malu D’Angelo e à filha linda que arranjamos e cuidamos: Manuelita. Aud D’Angelo Dias dez de 2018.