O documento discute o ciclo do ouro em Minas Gerais no século 18 e a expansão da fronteira agrícola na Amazônia na década de 1970, apontando características comuns como degradação ambiental e desigualdade social. Argumenta que as propostas de alteração do Código Florestal podem levar a grandes perdas ambientais e comprometer compromissos do Brasil com redução de emissões, repetindo a lógica de "colher o fruto sem plantar a árvore".
Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....
Ouro e degradação: lições do passado
1. opinião
Colher o fruto sem
plantar a árvore
VALDIR LAMIM-GUEDES
Universidade Nacional de Timor-Leste “N ela, até agora não pudemos sa-
ber que haja ouro nem prata,
nem nenhuma coisa de metal, nem de
MINERAÇÃO E DEGRADAÇÃO Ao es-
crever sua carta, Caminha não po-
dia saber que menos de dois séculos
ferro; nem as vimos. Mas, a terra em depois o ouro seria descoberto em
si é muito boa de ares, tão frios e tem- uma região distante do litoral, que se-
perados, como os de lá. Águas são mui- ria chamada “das Minas Gerais”, nos
tas e infindas. De tal maneira é gra- locais onde hoje estão situadas as ci-
ciosa que, querendo aproveitá-la dar- dades de Ouro Preto (antiga Vila Ri
-se-á nela tudo por bem das águas que ca), Mariana e Sabará. Todas se de-
tem.” Com essas palavras, a 1º de maio senvolveram em função do ouro e
de 1500, o escrivão Pero Vaz de Ca- tornaram-se oficialmente vilas em
minha (1450-1500) comunica ao rei 1711. Essa descoberta desencadeou
de Portugal, Dom Manoel I (1469- a primeira grande corrente migrató-
1521), a descoberta da costa brasileira. ria de Portugal para o Brasil, além de
Uma descoberta que poderia aten- estimular migrações internas para as
der aos anseios portugueses regiões auríferas.
de “colher o fruto sem A chegada de migrantes e a rique-
plantar a árvore”, expressão za em circulação induziram em Vila
utilizada pelo historiador Sérgio Rica (Ouro Preto) e Mariana um rápi-
Buarque de Holanda (1902-1982) do processo de urbanização. Escolhida
para descrever o ideal de obter ri- em 1720 como capital da recém-cria-
quezas extraindo-as das novas terras da capitania de Minas Gerais, Vila
descobertas nas grandes navegações, Rica tornou-se rapidamente a cidade
sem grandes investimentos nas colô- mais populosa da América Latina, com
nias e sem preocupação com as con- cerca de 80 mil habitantes em 1750.
sequências dessa exploração. Boa parte dessa população era forma-
Dois momentos da história bra- da por escravos. Na mesma época,
sileira – o ciclo do ouro em Minas Nova York tinha menos da metade
Gerais, no século 18, e a expansão dessa população e a vila de São Paulo
da fronteira agrícola na Amazônia, não tinha mais que 8 mil habitantes.
na década de 1970 – podem ser en- Essa região foi a principal área de
quadrados nessa mesma linha de extração de ouro no Brasil no século
pensamento. Esses períodos apre- 18. Só nesse século foram enviadas a
sentam características em comum, Portugal, oficialmente, 800 toneladas
como degradação ambiental e desi- de ouro, sem contar a quantidade ex-
gualdade social, e servem de exem- traída de forma ilegal, fora do controle
plo para que a proposta de alteração da corte portuguesa, e o que ficou na
do Código Florestal, atualmente em colônia enfeitando suntuosas igrejas,
discussão no Congresso Nacional, como a Igreja Matriz de Nossa Senho-
seja reavaliada para evitar um gran- ra do Pilar, em Ouro Preto, em cuja
de perigo socioambiental. decoração foram utilizados 800 kg
de ouro e prata.
Diversos relatos de viajantes que
passaram pela região das minas in-
cluem descrições da degradação am-
biental, como assoreamento dos rios,
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2. O ciclo do ouro em Minas Gerais, no século 18, e a expansão
da fronteira agrícola na Amazônia, na década de 1970, (...)
apresentam características em comum, como degradação
ambiental e desigualdade social
ausência de mata ciliar, águas barren- ocorreram os projetos oficiais de colo- mas agora propostas implicarão sig-
tas, áreas desmatadas e queimadas. nização da Amazônia nos anos 1970, nificativas perdas de áreas com ve-
O barão von Eschwege – o mineralo- são pastagens degradadas e pouco getação natural ainda existentes nos
gista alemão Wilhelm L. von Eschwe- produtivas, índices altíssimos de vio- biomas brasileiros e comprometerão
ge (1777-1855) – viveu em Ouro Pre- lência no campo, cidades sem sanea- compromissos assumidos pelo Brasil
to no início do século 19 e observou: mento básico e com sistemas de edu- em acordos internacionais de redu-
“Revolvendo-se frequentemente as cação e saúde precários. Na verdade, ção de emissões de carbono para a
cabeceiras dos rios, estas se carregam os governos militares atraíram muitas atmosfera e de proteção à biodiver-
cada vez mais de lama, a qual se foi pessoas para a região amazônica, sidade.
depositando sobre a camada rica [em mas faltou trazer o estado de direito. A ideia de desenvolvimento que
ouro], alcançando de ano para ano Nesses dois casos, o ciclo do ouro e embasa essa proposta de alteração do
maior espessura, tal como 20, 30 e a ocupação da Amazônia, o cenário Código Florestal repete de certo
até 50 palmos. Por esse motivo, as sempre foi de enorme contraste entre modo a concepção expressa em “co-
dificuldades tornaram-se tão grandes riqueza e pobreza, com grande degra- lher o fruto sem plantar a árvore”. Ou
que não se pode mais atingir o casca- dação ambiental. Parte dessa situação seja, algumas das normas em discus-
lho virgem”. Com a exploração preda- está associada à noção de que o cres- são consagram a obtenção de lucro
tória, e com o progressivo esgotamen- cimento econômico baseado na utili- fácil, sem maior preocupação com as
to das reservas, a produção do ouro zação de nossos recursos naturais consequências da atividade explora-
teve forte redução ao longo do século apresenta um dilema: proteger ou tória. Como o argumento para a faci-
19, levando a uma estagnação das ci- desenvolver. Esse é um falso dilema. litação dos desmatamentos é a neces-
dades da região dos garimpos minei- No Brasil, como em quase todo o mun- sidade de aumentar a produção, po-
ros, que antes cresciam rapidamente. do, é fácil observar que a renda obtida de-se dizer que a árvore será planta-
com a extração das riquezas naturais da, mas também será cortada logo
OCUPAÇÃO E DESTRUIÇÃO O mesmo não é dividida igualmente. O desen- após a colheita, impedindo que pro-
cenário repetiu-se em grande parte da volvimento econômico, tanto no caso duza frutos para as próximas gera-
região amazônica na década de 1970. dos garimpos do século 18 quanto no ções. Isso porque a grande degrada-
Os governos militares incentivaram a caso da colonização da Amazônia, en- ção ambiental incentivada pelo novo
derrubada da floresta, sob o argumen- riqueceu uma pequena minoria. O Código colocará em risco a própria
to de promover o desenvolvimento da que se viu foi a concentração do lucro produção agrícola e o bem-estar da
região. Fazia parte dessa campanha o e o compartilhamento dos prejuízos população no futuro.
bordão “Homens sem terra para uma – a degradação ambiental e a deterio- Nesse momento, em que a opinião
terra sem homens”. Esse lema era ração das condições de vida da popu- de experimentados cientistas não está
uma mentira dupla, porque a Amazô- lação, por exemplo. sendo considerada por uma grande
nia não era uma terra sem homens, já parcela dos parlamentares, é muito
que ali viviam ribeirinhos, seringuei- LUCRO FÁCIL A solução para o fim adequado citar a observação sobre a
ros e indígenas, com modos de vida da miséria no país não é acabar com degradação ambiental feita em 1817
mais adaptados à floresta, e porque o Brasil. Ao contrário, a valorização pelo naturalista francês Auguste de
os ‘homens sem terra’, na verdade, da floresta, dos campos e da imensa Saint-Hilaire (1779-1853), quando
eram camponeses, em sua maioria biodiversidade do nosso território viajava pela província de Minas Ge-
nordestinos, expulsos de suas terras permitirá criar oportunidades para rais: “É aí [nas florestas] que a natu-
pela seca. gerar riqueza de forma sustentável reza mostra toda a sua magnificência,
Esse processo de ocupação, no (social, econômica e ambiental). De é aí que ela parece desabrochar na
entanto, não foi convertido em desen- acordo com essa perspectiva, é evi- variedade de suas obras; e, devo dizer
volvimento social com qualidade dente que o Brasil não terá ganhos com pesar, essas magníficas florestas
ambiental. O que se vê atualmente, econômicos com a aprovação das al- foram muitas vezes destruídas sem
em praticamente todas as áreas onde terações ao Código Florestal. As nor- necessidade”.
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