1) O documento discute os fundamentos bíblicos, antropológicos e teológicos da eficácia dos sacramentos segundo o Catecismo da Igreja Católica. 2) A eficácia dos sacramentos depende da Palavra de Deus, da fé e disposições do recebedor, embora Cristo seja o verdadeiro administrador. 3) Os sacramentos têm origem na Paixão de Cristo e realizam a graça que significam pelo poder do Espírito Santo.
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João Miguel Pereira – joaofreigil@hotmail.com
Apresenta as principais linhas de compreensão da eficácia dos sacramentos a partir de fundamentos bíblicos,
antropológicos e teológicos.
O Catecismo da Igreja Católica (CIC) diz-nos que sacramentum é a tradução latina da palavra grega mysterion
e que «exprime prevalentemente o sinal visível da realidade oculta da salvação» (CIC 774). Para afastar o perigo de
conotações com as religiões mistéricas pagãs, os padres ocidentais preferiram a adoção do termo sacramentum,
equivalente ao que nas Igrejas do Oriente prevalecem chamando “santos mistérios” (cf. CIC 774), e na liturgia ocidental
na aclamação “mistério da fé” na Oração Eucarística. Com o tempo, embora não rigidamente, o termo mysterium adotou
um sentido de realidade sobrenatural, ao passo que sacramentum o sentido de instrumento eficaz da graça santificante.
Nos primeiros 4 séculos, os padres latinos raramente utilizam o termo mysterium para falar de sacramentos; restringem-
no, quase sempre, ao que são as verdades da fé. St. Agostinho refere que: «Nem há outro mistério senão Cristo. A obra
salvífica da sua humanidade santa e santificadora é o sacramento da salvação, que se manifesta e atua nos sacramentos
da Igreja (que as Igrejas do Oriente chamam também «os santos mistérios». Ora, são sete os sacramentos; sinais e
instrumentos «pelos quais o Espírito Santo derrama a graça de Cristo, que é a Cabeça, na Igreja que é o seu Corpo»
(CIC 774). Por sua vez, «a Igreja em Cristo é como que o sacramento ou sinal e instrumento da íntima união com Deus
e da unidade de todo o género humano» (LG 5). É pela Igreja que Cristo, agora sentado à direita do Pai, derramando o
Espírito Santo, age pelos sacramentos, que instituiu para comunicar a sua graça de forma sensível e acessível à
humanidade de todos os tempos, comunicando-nos a vida divina. Não estando confinada unicamente a eles (cf. Pedro
Lombardo), os sacramentos «realizam eficazmente a graça que significam, em virtude da ação de Cristo e pelo poder
do Espírito Santo» (CIC 1084).
De que depende essa eficácia dos sacramentos?
a) Fundamentos bíblicos:
St. Agostinho (In Ioannis Evangelium) apoia que o sinal sensível só adquire a sua virtualidade sobrenatural desde o
conteúdo da fé que se transmite pela palavra de Deus. Assim, o sinal sacramental implica o elemento (matéria
sacramental) ao qual a palavra (fórmula sacramental) acreditada, confere carácter de sinal sacramental. O sacramento
não é um símbolo arbitrário mas é um sinal “convencional” em continuidade e com raízes nos sinais da história salvífica
e cuja chave de leitura é a Palavra: Sagrada Escritura e a fórmula sacramental. Mas, além da Palavra iluminar a situação,
a provoca ou a recria1
. Kasper anota o carácter performativo da Palavra: «na medida em que o senhorio de Deus, tal
como se revelou na obediência de Cristo, é invocado a partir da fé, Deus se cria, em e através da obediência crente,
espaço na história. O seu reino vem, pois, na medida em que é invocado. […] É palavra eficaz, criadora (cf. Rom 1,16;
1Cor 2,15s; Heb 4,12s); acontece “na demonstração do poder do Espírito” (1Cor 2,4)»2
. Também Arnau é da mesma
opinião: «Os sacramentos causam a graça que significam porque a palavra de Deus, que é infalível, age mediante a
intenção da Igreja, que a expressa ao professar a fé acreditada e celebrada na oração». «Os sacramentos assumem as
situações humanas primeiras e convertem-nas mediante a palavra em situações salvíficas, em momentos de graça, em
sinais da graça divina entre os homens»3
. «A palavra é a alma (forma) do sacramento e, enquanto tal, possui uma função
interpretadora e consecratória para o sacramento. Por isso, o sacramento é outra forma da pregação (cf. 1Cor 11,26)»4
.
b) Fundamentos antropológicos:
O Concílio de Trento declarou que «os sacramentos agem ex opere operato, isto é, desde que o rito seja corretamente
realizado com intenção de fazer o que faz a Igreja. Poderia passar-se daí para uma conceção puramente mágica: o rito é
realizado, logo, “o resto funciona” automaticamente»5
. Todavia, «ele não diz que o rito supra automaticamente a
ausência de fé e de disposições requeridas naquele que recebe o sacramento»6
. S. Cipriano apresentou os sacramentos
como sinais que conferem a graça e animam o Homem para uma vida salutar quando unidas a verdade (litúrgica) e a fé
(reconhecimento sobrenatural dos sinais). Por sua vez, St. Agostinho apresentou o sacramento como «sinal visível de
uma graça invisível», reconhecendo a sua eficácia mas não numa linha fisicista7
. Segundo ele, o Homem precisa de se
apoiar em realidades visíveis, externas e sensíveis, para chegar às realidades divinas e espirituais. O Espírito conduz o
Homem do visível ao invisível, do corporal ao espiritual, do temporal ao eterno. E sustenta (In Ioannis Evangelium) que
a eficácia dos sacramentos está assegurada, independentemente da santidade do ministro (vicário) que o celebra, pois é
Cristo o verdadeiro e único administrador dos sacramentos e Ele nunca falha. Pedro Lombardo não deixa de salientar
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que a virtude do sacramento (res sacramenti8
) só se recebe quando este se celebra com fé9
e que esta pode ser recebida
mesmo sem que se celebre o sacramento (p/ex. o batismo de desejo e dos mártires). Caso não haja fé, apenas se recebe
o exterior, a matéria do sinal (sacramentum10
). Tomás de Aquino defende também que os sacramentos são eficazes
quando se acredita na Paixão de Cristo: causam graça e são sinais de fé. A Escola franciscana-escotista considera que
os sacramentos causam sempre graça, a não ser que o Homem lhe opusesse obstáculos (causalidade moral). Trento
sustenta igualmente que os sacramentos não se devem aos méritos do Homem mas à disposição com que se os recebem.
Os sacramentos supõem a fé e alimentam-na: não há verdadeira experiência de fé sem sacramento, nem sacramento
pleno sem experiência de fé11
. Mas nem a experiência de fé se encerra nesta expressão sacramental, nem o sacramento
se reduz a esta experiência de fé (cf. Boróbio). Os sacramentos, dom gratuito de Deus, não são coisas ou objetos, mas
ações através das quais Deus realiza a sua salvação, no encontro que estabelecem com aqueles que os acolhem com
liberdade e fé. Esse dom, infalível porque apoiado na vontade ou promessa de Cristo, só produz efeito se aceite pela
liberdade humana. «O fruto do sacramento dependerá da qualidade do amor do fiel»12
.
Os sacramentos, tendo a sua origem em Deus, respondem às necessidades do Homem, acompanham toda a sua vida
e estão presentes sobretudo nos momentos ou “centros existenciais” que se revestem de “excelência” e “transcendência”.
As situações fundamentais da vida humana13
e as «ações simbólicas sociais profundamente humanas»14
não são em
absoluto estranhas ao mistério de Cristo, nem à sua própria vida15
. «Ele assumiu-as com toda a sua peculiaridade no
mistério pascal» (Boróbio). «O sacramento da Igreja assume a situação humana, e por meio da palavra revelada faz dela
uma situação explícita de salvação, um sinal explícito do encontro de graça entre Deus e Homem. Através da mediação
da Igreja, e com a iluminação da palavra revelada, que explica o seu sentido e desperta a fé, as situações fundamentais
tornam-se verdadeiras situações sacramentais salvíficas» (Boróbio).
c) Fundamentos teológicos:
Tertuliano sustenta que a eficácia dos sacramentos (sinais sensíveis através dos quais Deus concede a sua graça)
está diretamente vinculada com a Cruz. Para S. Tomás, também a origem e causalidade dos sacramentos é a Paixão de
Cristo16
e foram instituídos (in concreto) na sua matéria e forma pelo próprio Cristo na mesma altura em que lhes
conferiu a sua eficácia, pelo que qualquer alteração significa a destruição do sinal sacramental e da sua eficácia. [Disso
difere a teologia atual sobre a instituição in genere ou mediada: «Os próprios sinais visíveis que usam a sagrada liturgia
foram escolhidos por Cristo ou pela Igreja (instituição mediata) para significar realidades divinas invisíveis» (SC 32).]
Cristo é o “protosacramento” que visibiliza a graça de Deus de forma suprema. Ele é sacramento pelo seu próprio ser e
verdade ontológica, pela sua obra (palavras e gestos). Os sacramentos da Igreja, pelo envio do Espírito Santo após a
ascensão, são o prolongamento da humanidade de Cristo “causas instrumentais segundas” da santificação e salvação do
Homem. A sacramentalidade de Cristo é o fundamento radical da dimensão cristológica dos sacramentos (origem,
sentido e centro). Assim, os sacramentos «são eficazes porque são símbolos onde se manifesta e se torna presente a vida
de Jesus Cristo e da sua comunidade»17
. Não admira portanto que no pós Vaticano II «se reconheceu aos sacramentos
seu carácter de actio litúrgica de toda a comunidade reunida, seu contexto histórico-salvífico e sua relação com o
ministério da Igreja, assim como a unidade e reciprocidade de palavras e sacramentos ou, se se preferir, de fé e
sacramentos. A compreensão mais pessoal dos sacramentos possibilitou uma melhor integração de um conceito de
sacramento unilateralmente orientado ao opus operantum»18
. «Celebrados dignamente na fé, os sacramentos conferem
a graça que significam. Eles são eficazes, porque neles é o próprio Cristo que opera: é Ele que batiza, é Ele que age nos
sacramentos para comunicar a graça que o sacramento significa. O Pai atende sempre a oração da Igreja do seu Filho, a
qual, na epiclese de cada sacramento, exprime a sua fé no poder do Espírito. Tal como o fogo transforma em si tudo
quanto atinge, assim o Espírito Santo transforma em vida divina tudo quanto se submete ao seu poder» (CIC 1127).
«Desde que um sacramento seja celebrado conforme a intenção da Igreja, o poder de Cristo e do seu Espírito age nele e
por ele, independentemente da santidade pessoal do ministro. No entanto, os frutos dos sacramentos dependem também
das disposições de quem os recebe» (CIC 1128).
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1
Cf. Walter Kasper, La liturgia de la Iglesia (Maliaño: Sal Terrae, 2015), 119.
2
Walter Kasper, La liturgia de la Iglesia (Maliaño: Sal Terrae, 2015), 114.
3
Ibidem, 120.
4
Ibidem, 123.
5
Bernard Sesboué, Convite a pensar e viver a fé no terceiro milénio II (Coimbra: Gráfica de Coimbra), 49. Sobre isto diz ainda Jesús
Espeja: «O “ex opere operato” (obra realizada) não quer dizer que o rito sacramental em si mesmo, como por arte de magia, possa
modificar interiormente o homem. Nem sequer diz que, ao participar num sacramento, se receba infalivelmente a graça ou
encontro pessoal entre Deus e o homem; segundo o mesmo concílio de Trento, é imprescindível a abertura em liberdade por
parte de quem recebe o sacramento. Com razão, a teologia escolástica distinguia entre “graça santificante” e “graça eficaz”: Deus
salva-nos, porém não sem o nosso livre compromisso nessa tarefa. Unicamente se afirma: na celebração do sacramento atualiza-
se e oferece-se infalivelmente a graça, que é já realidade viva em Cristo e na Igreja». Jesús Espeja, Para compreender os
sacramentos (Coimbra: Gráfica de Coimbra), 22-23.
6
Bernard Sesboué, Convite a pensar e viver a fé no terceiro milénio II (Coimbra: Gráfica de Coimbra), 49.
7
Sobre isto, ver também a opinião de Tertuliano em Bernard Sesboué, Convite a pensar e viver a fé no terceiro milénio II (Coimbra:
Gráfica de Coimbra), 49.
8
Res tantum, na linguagem de São Tomás de Aquino.
9
Res et sacramentum, refere-se ao sacramento celebrado com fé - na linguagem de São Tomás de Aquino - no qual se recolhe a
significação do sinal/rito exterior e a justificação significada.
10
Sacramentum tantum, na linguagem de São Tomás de Aquino.
11
Sobre isto diz Kasper: «Os sacramentos são sacramenta fidei; só têm sentido e resultam frutíferos no espaço da fé. Isto devia
libertar-nos de uma falsa fixação no opus operatum. A fé é mais que a disposição para o sacramento. É initium, fundamentum et
radix, principio, fundamento e raiz de toda a justificação. Assim pois, não se encontra apenas ao início, mas constitui o fundamento
permanente e sustentados sem o qual o resto do edifício se desmoronaria; e ao mesmo tempo é a raiz, a partir da qual tudo tem
de desdobrar-se organicamente». Walter Kasper, La liturgia de la Iglesia (Maliaño: Sal Terrae, 2015), 124.
12
Bernard Sesboué, Convite a pensar e viver a fé no terceiro milénio II (Coimbra: Gráfica de Coimbra), 49.
13
Sobre isto ver Walter Kasper, La liturgia de la Iglesia (Maliaño: Sal Terrae, 2015), 118.
14
Walter Kasper, La liturgia de la Iglesia (Maliaño: Sal Terrae, 2015), 117.
15
Sobre isto diz Kasper: «Jesus Cristo ingressou “sem mistura nem separação” na situação da condição humana. É homem
verdadeiro, igual em tudo a nós, somente com a exceção do pecado (cf. Heb 4,15). Deste modo assumiu tudo o que com carácter
de palavra e de sinal é próprio da situação humana. Determinou adicionalmente como palavra e sinal salvíficos de Deus a
especificação verbal e o carácter simbólico que pertencem à condição humana enquanto tal». Walter Kasper, La liturgia de la
Iglesia (Maliaño: Sal Terrae, 2015), 119.
16
Escreveu assim: «O sacramento é sinal rememorativo daquilo que o precedeu, ou seja, da paixão de Cristo; e demontrativo
daquilo que em nós a paixão de Cristo realiza, ou seja, da graça; e prognóstico, quer dizer, que anuncia de antemão a vida futura».
Citado a partir do Catecismo da Igreja Católica, n. 1130 [São Tomás de Aquino, Summa theologiae, 3, q. 60, a. 3.: Ed. Leon. 12, 6].
17
Jesús Espeja, Para compreender os sacramentos (Coimbra: Gráfica de Coimbra), 22.
18
Walter Kasper, La liturgia de la Iglesia (Maliaño: Sal Terrae, 2015), 105.
UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA
FACULDADE DE TEOLOGIA
MESTRADO INTEGRADO EM TEOLOGIA (1.º grau canónico)
JOÃO MIGUEL PEREIRA
Trabalho realizado no âmbito de Sacramentos - Iniciação
sob orientação de:
Prof. Doutor Pe. Joaquim Félix
Braga
2019