1. O tratamento com casais e com famílias vem ganhando progressiva demanda e
relevância em nosso meio. Existe uma substanciosa literatura científica referente a essa
temática, provinda de distintas correntes, com os respectivos seguidores, terapeutas de
família. Não cabe, aqui, esmiuçá-las, no entanto cabe assinalar que começa a aumentar
uma aproximação e uma integração, por parte de um número significativo de terapeutas
de família da linha sistêmica, com a psicanalítica.
Os princípios psicanalíticos estão mais dirigidos aos diversificados tipos de
conflitos que procedem do inconsciente dos indivíduos e dos grupos. Os sistêmicos, por
sua vez, privilegiam o funcionamento de um casal ou família, sob o enfoque de um
sistema, isto é, esses terapeutas trabalham em um nível mais próprio do consciente e
ficam mais voltados para a permanente interação que sempre existe entre todos os in-
tegrantes de uma família, com uma determinada ocupação de lugares e de papéis, por
parte de cada um deles, de sorte que cada um influencia e é influenciado pelos demais.
Não obstante ser evidente o fato de que cada corrente segue os seus próprios
referenciais teóricos e técnicos, com abordagens técnicas e táticas bastante distintas
entre si, particularmente, concordo com aqueles que advogam a concomitância de uma
visão holística, que abranja, ao mesmo tempo, uma compreensão psicanalítica com
outra sistêmica e com outra cognitiva.
Parto da concepção de que todo indivíduo é um grupo, pois, dentro de cada sujeito,
ao longo de toda a existência, vivem e convivem personagens (um pai “bom” e, ao
mesmo tempo, pai “mau”; uma mãe, igualmente “boa” e “má”; a relação deste casal; os
filhos; e os vínculos entre os irmãos, etc.). O que importa destacar é o fato de que esses
múltiplos personagens são, de alguma forma, buscados na vida exterior, de sorte que,
sem nos darmos conta, reproduzimos, com outros personagens atuais, um mesmo script
que já estava previamente programado. Cabe uma metáfora com uma peça teatral:
embora mudem os atores, o enredo é o mesmo; a mesma coisa se passa com teatro da
mente.
Essa tendência à busca e à repetição do mundo interior, no mundo exterior, pela lei
matemática das combinações, determina a formação de múltiplas e diferentes
modalidades de configurações vinculares, em um casal, em um família ou em grupos
sociais. A corrente “sistêmica” frequentemente utiliza a expressão colusão para
conceituar algum tipo de combinação vincular, muitas vezes com uma configuração
patológica, que se estabelece entre os membros de um determinado casal, ou a tota-
2. lidade de uma família. Assim, a colusão pode ser manifestamente harmônica ou
desarmônica, ego-sintônica ou egodistônica, etc.
PATOLOGIA DE CASAIS
As configurações vinculares repousam fundamentalmente nos tipos de vínculos
– os de amor, de ódio, de conhecimento e de reconhecimento – que, conjuntamente,
cimentam todos os relacionamentos de qualquer pessoa, tal como é, por exemplo, na
estruturação – normal ou patológica – de um casal. Em um capítulo específico deste
livro – “Uma forma patológica de amar: o vínculo tantalizante”-, abordo mais
detalhadamente os aludidos aspectos vinculares.
No presente capítulo, nesta parte referente aos casais, vou me restringir
unicamente à abordagem de algumas facetas de casais patológicos, que necessitam ser
trabalhados na terapia de base analítica. Na grande maioria das vezes, quando o casal
procura o tratamento, espontaneamente ou por encaminhamento, é porque o convívio
comum entre eles está em crise, em pleno processo de separação ou em vias de.
A motivação principal para a busca de tratamento do casal é a de uma destas
possibilidades: uma tentativa de salvar o casamento; ou a de aceitar que a separação já
esteja irreversível, porém o casal deseja que a mesma seja o menos traumática possível,
especialmente para os filhos; também acontece frequentemente que um dos cônjuges já
esteja decidido pelo divórcio, enquanto o outro não aceita de forma alguma e luta pela
manutenção da união.
bastante freqüente que, individualmente, tanto o homem quanto a mulher sejam
pessoas “legais”, bem-sucedidas, porém, como casal, podem estar emaranhados em uma
colusão muito doentia que, em grande parte, deriva do fato de que problemas e conflitos
inconscientes de uma mesma categoria (embora, aparentemente possam parecer
totalmente opostos) exercem uma grande atração mútua. Na verdade, virtualmente,
todos casais, em algum momento e de alguma forma, já manifestaram um desejo de
separação.
Existe um expressivo número de casais que está em crise, sem saber disto, porque
dissimulam, acomodaram-se ou estabeleceram algum tipo de arranjo que vem auxiliado
pelo recurso defensivo da negação, o qual serve para ambos do casal. Entretanto, é
necessário ressaltar que muitas crises são muito favoráveis, no sentido de que
3. representem um ponto de culminância de que algo de importante, e mais sadio, vá se
transformar na relação do casal.
No momento em que redijo estas linhas, acode à minha mente duas lembranças:
uma frase de Buda e um verso de um compositor brasileiro. Diz o profeta e líder
religioso Buda que estar unido com aquilo (aquele) que não gostamos, é sofrer,
separarmo-nos daquilo que gostamos é sofrer e não conseguir o que queremos é sofrer
(eu me permitiria completar: sair de uma relação doentia, na qual um é o “duplo” do
outro, também é sofrer, de sorte que muitos casais não conseguem viver juntos e,
tampouco, separados). Minha segunda lembrança, que serve como exemplo de um
vínculo dissimulado, ou acomodado, é a deste trecho da composição Falso sincero
amor, em que o compositor Nélson Sargento, da Escola de Samba Mangueira, assim
verseja: “Nosso amor é muito bonito ela finge que me ama e eu finjo que acredito”.
Na maioria das vezes, o ato de separação aciona um processo que desmascara e
atualiza conflitos anteriores, além de trazer à tona o que estava denegado. A crise de
separação pode ser comparada à da adolescência, pois em ambas se reativam os antigos
conflitos com as famílias de origem, do que resulta uma desordem nas identificações.
Todo casal presta-se a um jogo dialético entre o “repetir” e o “recriar”, porém, algumas
vezes, acontece unicamente o “repetir”, em cujos casos fica evidenciada a
predominância das pulsões tanáticas, lutos nãoelaborados, segredos familiares ou fixa-
ções excessivas em etapas evolutivas malresolvidas. Eventuais relações sexuais com
o(a) “ex”-companheiro(a) costumam ser uma for-ma de recompor o seu próprio corpo e
identidade de gênero sexual (que ficam desordenados e decompostos) através do –
familiarizado – corpo do outro.
O que favorece e/ou desfavorece o casal
As principais causas que desgastam um casal, a ponto de conduzir a um desejo de
separação, em linhas gerais, são as seguintes:
1. Uma profunda desilusão quando a realidade desmente a expectativa
paradisíaca que a – recíproca – idealização extrema, própria da fase da paixão, prometeu
a ambos;
4. 2. Personalidades por demais imaturas e dependentes sucumbem diante de
exigências para as quais não estão preparados, como é o nascimento e cuidados com os
filhos, crises existenciais, etc.
3. A entrada em cena de uma terceira pessoa, a do(a) amante de um dos
cônjuges. Este aspecto referente à infidelidade, sabidamente bastante comum, às vezes
aparece de forma aleatória, porém, na maioria dos casos, já representa ser um sintoma
de que as coisas já não estavam bem entre eles (o que não significa, necessariamente,
que a situação crítica não possa ser revertida, especialmente se ambos aceitarem fazer
uma terapia de casal).
4. A propósito da infidelidade conjugal, pela sua frequência e importância, cabe
fazer algumas considerações: a) Em um grande número de vezes, existe um “secreto
conluio inconsciente” entre os protagonistas do triângulo amoroso, decorrente de
conflitos neuróticos (quase sempre edípicos) que se complementam. b) O desejo
predominante daquele que trai é o de que a(o) amante supra as falhas do cônjuge traído,
as quais podem ser reais. c) Em muitas outras situações, a entrada de um “terceiro”
representa uma tentativa de preencher as faltas de uma “incompletude”, de restaurar a
eterna e ilusória (é o que acontece, na imensa maioria das vezes) busca esperançosa de,
finalmente, encontrar a “fada madrinha” ou o “príncipe encantado”. d) A infidelidade
pode estar representando uma forma de vingança, com propósitos agressivos, às vezes,
cruéis. e) Em alguns casos, paradoxalmente, a infidelidade pode estar significando o
início de um movimento de “individuação”. f) Neste último caso, a inclusão de um
“terceiro” pode aliviar a ansiedade de “engolfamento” do casal, a qual, às vezes, pode
atingir um alto grau do temor de permanecerem em estados de “indiferenciação” e de
perda da identidade individual: neste caso, o alívio do sufoco dá-se porque a figura do
amante permite as táticas alternativas de inclusão e de exclusão. g) A consentida
inclusão do amante, embora disfarçada por uma denegação, pode estar a serviço de
conflitos inconscientes, de natureza homossexual.
5. A existência de lutos patológicos não-elaborados pode fazer com que revivam
os fantasmas do passado que habitam o interior de um deles, ou de ambos. Assim
introjetados, tais fantasmas funcionam como corpos estranhos, não-metabolizados,
determinando uma conduta inconsciente do casal, frequentemente de natureza
masoquista. No caso, cabe lembrar o estado de melancolia que Freud (1917) descreveu
como sendo resultante de algo como o ego haver sido atingido pela sombra de algum
objeto e, pode-se completar, a partir daí que ela pode obrigar um dos cônjuges a seguir o
5. mesmo caminho daquele objeto (constituindo aquilo que, particularmente, costumo
denominar como identificação com a vítima).
6. Assim, não é incomum que um ou os dois do casal sintam-se impelidos a,
inconscientemente, reproduzir a mesma configuração vincular que caracterizou a união
dos respectivos pais. A metáfora que me ocorre novamente é a da lei física que reproduz
o comportamento dos vasos comunicantes, pela qual, independentemente do formato e
da largura de cada um dos braços dos vasos, que se ligam na forma de um “U”, quando
se coloca água em um dos braços do vaso, automaticamente a água fica no mesmo
nível, no outro. Destarte, se os pais da esposa, por exemplo, se divorciaram em certa
época, e se o vínculo dos pais dela era do tipo sadomasoquístico, é bastante provável
que o mesmo acontecerá com o casamento dela própria.
7. Constantes agressões recíprocas, tanto de formas diretas e francamente
manifestas quanto de formas sutis, resultam de querelas competitivas, cobranças
excessivas, controle tirânico, mútuas responsabilizações indevidas, desqualificações,
humilhações, lancetadas nos pontos frágeis de cada um, deboches, acusações,
exigências, críticas e ameaças, tendo como principal instrumento o uso sistemático e
exagerado de identificações projetivas daquilo que cada um não suporta reconhecer em
si, e projeta no outro.
8. Às vezes, essa configuração vincular sádica e masoquista, tal como foi
exemplificada, pode se prolongar eternamente, quando um do casal representa ser o
duplo (ou doublé, ou “alter ego”) do outro; logo, necessitam-se reciprocamente para
manter e complementar a “unidade”, que está dissociada, por parte de ambos.
9. Existe uma grande importância das identificações patógenas. Muitas
internalizações de figuras paternais não se dão por um, normal, processo continuado de
elaboração; antes, pode se tratar de um “enquistamento”, uma forma de incrustração do
objeto, na qual esse fica como um corpo estranho que permanece por várias gerações,
determinando uma similaridade de conduta, mandamentos, expectativas, papéis e de
vínculos objetais. Pode ser tão intensa a busca de um objeto do passado que inclusive o
encontro repetitivo de situações de sofrimento – que, de alguma forma, represente
algum personagem perdido – pode ser procurado como sendo um fetiche. Esse aspecto é
muito importante porque a busca de sofrimento em tais circunstâncias pode simular ser
um masoquismo típico, mas não o é.
6. 10. Um desempenho estereotipado de papéis é uma outra característica de
expressiva relevância. Assim, de regra, um “casal patológico” mantém uma certa
divisão e constância no desempenho de papéis, que se complementam entre si. Por
exemplo, a um deles, cabe o papel de sádico, controlador, subjugador, enquanto o outro
cônjuge desempenha papéis contrários, respectivamente de masoquista, controlado e
subjugado. Um outro exemplo, igualmente bastante comum: um deles, digamos que seja
o marido, é altamente idealizado e venerado pela mulher, enquanto esta se resigna a
ficar em uma posição de pessoa esvaziada, “apagadinha”. Acontece que existe a possi-
bilidade de que a “vítima” – ou porque ela está em tratamento analítico, ou por
influência de amigas, leituras, filmes, etc. – decida sair deste papel. Fica ameaçado o
equilíbrio neurótico que o casal mantinha, do que resulta um impasse: ou o outro
também se modifica para poder acompanhar o cônjuge que se “rebelou”, e ambos
crescem juntos, com novas regras de relacionamento; ou a separação se torna bastante
provável.
11. Assim, um fator que pode ser deletério para o casal é o que refere uma
indefinição dos respectivos papéis e dos limites, não só entre eles, mas também em
relação com os pais, sogros e filhos. Em relação aos limites, existe o risco de duas
possibilidades extremas; ou eles são por demais difusos ou exageradamente rígidos.
12. Relativamente aos pais e sogros, é relevante incluir o problema da
existência de uma transgeracionalidade, ou seja, cada um dos cônjuges carrega dentro
de si profundas identificações, sadias e patógenas, com as respectivas figuras parentais,
além dos valores, costume e crenças que caracterizam cada família em particular.
Especialmente em relação aos casais jovens, pesa bastante o fato de que, com alta
velocidade, mudam os valores socioculturais, de sorte que também mudam os tabus,
como, por exemplo, as adolescentes terem vergonha de negar ou postergar a vida sexual
com o na-morado para não passar por “babaca”; uma aparente indiferença diante da
infidelidade; dúvidas se podem exigir uma união estável, ou se isso “já é coisa
superada”; dificuldade em reconhecer, admitir e demonstrar sentimen-tos de amor,
dependência e falta do outro, para não ficar sujeito a ser submetido, rejeitado, etc.; e
assim por diante.
TIPOS DE COLUSÕES
7. De forma esquemática, cabe discriminar que as colusões patogênicas de um casal
podem assumir uma das formas que, de modo muitíssimo resumido, seguem abaixo
enumeradas, separadamente, embora elas se superponham entre si.
1. Amor paixão. Deve-se levar em conta as duas faces da paixão: uma é o seu
lado sadio e lindo, como um despertar para a vida amorosa – conforme é regra nos
adolescentes – ou como a paixão sendo o prelúdio de um amor que pode se solidificar e
estabilizar de forma permanente. A outra face da paixão é aquela que se torna
“obcecante, escravizadora, cega e burra”, em nome da qual há muito masoquismo e
sadismo, além do que muitas “bobagens” são cometidas.
2. Amor simbiótico. O apego amoroso pode ser tão exageradamente intenso (no
fundo, corresponde a um intenso medo de desamparo), a ponto de poder haver uma
espécie de “sufocação”, tal como pode ser significada na frase de que um abraço
demasiado forte, no lugar de afago, afoga o amor que está demonstrando ao outro.
3. Amor distante. Cada vez mais, as pessoas em geral, homens e mulheres,
evidenciam um sistema defensivo dos sentimentos amorosos. É comum que mantenham
breves relações sexuais, sempre com o freio puxado contra um maior envolvimento, de
assumir um compromisso mais sério, sobretudo pelo medo de uma futura desilusão, de
ter que compartilhar prováveis momentos difíceis e de vir a perder a “liberdade”.
4. Amor sadomasoquista. A grande característica consiste em recíprocas
agressões, às vezes francamente manifestas e outras vezes bem dissimuladas; às vezes
cabe a um do casal exercer o permanente papel de sádico e ao outro o de manter a
exclusividade de masoquista, porém, em outras ocasiões, tais papéis se revezam de
forma alternante, num ritmo de maior ou menor velocidade.
5. Amor narcisista. Neste caso, mais importante do que “amar” é ter provas de
que se “é amado pelo outro” de uma forma incondicional, o que costuma gerar
incontáveis protestos em um deles (ou nos dois) de que esteja “faltando mais amor”;
existe um continuado fluxo de demandas de presentes, de alguma forma de
exibicionismo, de consumismo exagerado e de coisas do gênero. Impera o uso de
alguma forma de fetiche (pode ser dinheiro, prestígio, poder, beleza, conquistas
amorosas, extravagâncias...) que provoque nas demais pessoas um sentimento de
admiração e inveja.
6. Amor com controle obsessivo. Esta é uma forma bastante frequente na
vinculação amorosa de um casal, de sorte que um deles (às vezes os dois) assume o
papel de exercer um controle rígido e tirânico sobre o outro. Por vezes, a forma de
8. controlar consiste em manter o outro por meio de constantes desqualificações e
imputação de culpas, em um estado de permanente “infantilização”, fato que, no fundo,
é uma garantia do controlador de que o outro nunca o abandonará, visto que sempre
dependerá dele para tudo. Também é comum que esse tipo de amor adquira uma
modalidade paranóide, cuja forma mais corriqueira é a de um ciúme patológico.
7. Amor tantalizante. Tendo em vista a importância na prática clínica deste tipo
de vínculo patológico, até pela frequência com que se manifesta este tipo de colusão,
um capítulo específico consta no presente livro.
8. Outras formas. Poder-se-ia caracterizar uma forma histérica de colusão, tal
como algumas referências já foram feitas. Ou uma modalidade fóbica (a evitação de
situações novas a tônica e, muitas vezes, a fobia expressa-se com uma sexualidade
excessivamente reprimi- da, ou sob a forma de uma fobia social, etc.). Um conluio do
tipo perverso também é relativamente comum (sob a forma de don-juanismo;
ninfomania; sadomasoquismo exagerado; um jogo tantalizante, em que falta o
sentimento de consideração pelo outro) e, naturalmente, existe o amor sadio (não é a
mesma coisa que um eterno amor-paixão, ou amor de perfeição, ou, tampouco, que não
haja atritos entre o casal) que, aqui, neste capítulo, não foi considerado.
NA PRÁTICA CLÍNICA
Os objetivos de uma terapia de casal visam a que o terapeuta contribua para os
seguintes aspectos:
1. Reconhecer o tipo de colusão que preside o vínculo do casal. As colusões
formam-se a partir de um jogo, uma forma de “brincar”, conjunta, que não é
reconhecido conscientemente pelos integrantes do casal, individualmente,
principalmente em decorrência do fato de que ambos compartilham um fundamental
conflito inconsciente similar. Aliás, a palavra “colusão” se forma de co (junto) e ludere
(brincar). O referido conflito de cada um, que não foi superado nas respectivas etapas
evolutivas, manifesta-se pelo desempenho de papéis, às vezes diametralmente opostos,
o que pode dar a falsa impressão de que eles sejam bem diferentes, que cada um deles é
o oposto do outro, quando, na verdade, são polos contrários de uma mesmidade.
2. Cada um do casal faz tentativas de satisfazer a duas necessidades básicas:
uma, buscar no outro uma complementação daquilo que falta em si próprio; a segunda
consiste em depositar no outro tudo aquilo que não tolera em si. Isso explica por que
9. esses casais às vezes se organizam de uma forma simbiótica, na qual vivem brigando,
ameaçam continuamente uma separação, desgastam-se bastante, porém, não obstante
tudo isso, quase nunca se separam (ou se separam durante algum tempo, porém depois
se reaproximam), a ponto de que não conseguem viver juntos e, tampouco, separados.
3. Restabelecer o processo de comunicação que, habitualmente, já está muito
compro- metido, de modo a possibilitar uma forma menos beligerante na transmissão do
discurso e uma melhor capacidade de escuta daquilo que o outro está tentando
comunicar. O terapeuta deve enfatizar o quanto a palavra deixou de ser um vínculo de
comunicação e se tornou um instrumento a serviço de projeções agressivas.
4.Uma recomendação útil é a de que o terapeuta possa assinalar o fato bastante
comum de que o casal pensa que está dialogando, no entanto, é evidente que se trata de
uma pseudocomunicação, que não passa de dois monólogos em paralelo, no qual cada
um quer provar e impor a sua tese ao outro. 5. Mostrar que a radicalização dos papéis e
das posições (presente na maioria das vezes), por parte de cada um, atingiu tal ponto
que, no rastro disso, ambos se escudam na sua família de origem e ataca a do outro, de
forma que o campo dinâmico do casal, ainda que de forma invisível, fica muito
ampliado e tumultuado.
6. Relativamente ao desempenho de papéis, que em grande parte determinam os
aspectos regressivos e os progressivos de cada um dos cônjuges, pode acontecer que um
deles – ou ambos, em um movimento de gangorra – sinta-se obrigado a representar e a
desempenhar o papel de “adulto” (progressivo), às custas de ter que reprimir os seus
desejos regressivos (na nossa cultura, para o homem é algo vedado o seu direito de
regredir, chorar, etc., pois lhe parece ser coisa de “mulher”). Por outro lado, muitas
mulheres de características bastante infantis representam o papel de “gueixa”, para se
adaptar aos anseios de que seus companheiros assumam o papel de funcionarem como
sendo o pai (ou mãe). Nesses casos, um tipo de colusão muito comum é a de o com-
panheiro servir como uma espécie de “ornato-jóia” para a companheira que tem os
moldes descritos. A recíproca é verdadeira, embora muito menos frequente, em nossa
cultura.
7. Essa forma de configuração vincular é típica das personalidades histéricas de
modo que, nos casos mais intensos, costuma se estabelecer um “equilíbrio destrutivo”
do casal, que se caracteriza por recorrentes manifestações de choro, deboche com
acusações, abandonos temporários da casa, silêncio obstinado, mártir ou santa, sintomas
somáticos, ameaça ou intento suicida, embriaguês, recusa a trabalhar, greve de sexo,
10. forçar a intervenção de terceiros, etc. Quanto mais cenas desse tipo emergirem durante a
terapia do casal, maiores são as possibilidades de o terapeuta poder trabalhar
incisivamente nessa patologia, com melhores perspectivas de obter sucesso.
8. Assim, cabe ao terapeuta de casal desenvolver em cada cônjuge a capacidade
de reconhecimento e de respeito pelas inevitáveis diferenças de pontos de vista, valores,
posições, etc., que cada um deles tem em relação ao outro, sem que isso signifique que
um esteja certo e o outro errado, que um é o sadio enquanto o outro é que está doente,
etc. 9. Tanto quanto possível, deve ficar bem claro no contrato analítico que o paciente é
o casal, de sorte que não haverá atendimento individual sistemático se o outro não
estiver presente. 10. A transferência da dupla, em relação ao terapeuta do casal, pode
recriar uma “cena primária triangular”, na qual alguém se sinta ou, mesmo, fique
excluído. O analista deve ficar atento para que isso não aconteça, tendo em vista a
possibilidade de que ele se identifique com um dos cônjuges, contra o outro, o que seria
um sério erro técnico. As reações transferenciais podem ficar em um nível de abstração
simbólica ou é possível manifestar-se direta e concretamente, fato que, não raramente,
pode induzir o terapeuta a cometer actings contratransferenciais e, às vezes, deixá-lo
como que paralisado. 11. Quando se trata de um casal com fortes características
perversas, há possibilidade que a transferência adquira a forma de ataques ao analista,
por meio de mentiras, ocultamento, manipulações do setting em relação a horários,
pagamentos, etc. 12. A compreensão analítica da dinâmica do casal ajuda muito,
contudo as interpretações não devem ficar centradas nos indivíduos separadamente,
mas, sim, na inter-relação, especialmente do que um provoca no outro e, sobretudo, nos
problemas do “mal-entendido” da comunicação. 13. O problema dos filhos, ante o
descasamento dos pais, possivelmente é o tema que surge com maior predominância nas
sessões de terapia do casal. Cabe ao terapeuta trabalhar com os cônjuges o quanto é
fundamental a forma de comunicar aos filhos que essa decisão deles, de separação, já
está consumada. Essa forma de comunicar vai depender de uma autêntica tomada de
posição, de modo natural, sem um clima de tragédia e, a um mesmo tempo, transmitir
aos filhos um reassegura-mento de um respeito que persistirá entre o casal, além de uma
garantia afetiva de cada genitor para todos os seus filhos.
14. É especialmente importante que o analista propicie que o casal dê-se conta
que os filhos devem ficar isentos da responsabilidade e culpas, além de lhes passarem a
convicção de que nenhum dos pais restou destruído. Da mesma forma, uma abordagem
imprescindível do terapeuta do casal refere-se ao reiterado assinalamento de que se
11. constitui um sério problema para os filhos, quando os pais em processo de separação
utilizam os filhos como “objetos”, com a finalidade de funcionarem como pombos-cor-
reio de mensagens recíprocas, ou quando os forçam a se envolverem direta ou
indiretamente nas brigas do casal, de modo a tomarem partido a favor de um contra o
outro.
15. É igualmente útil que o analista esteja atento para a possibilidade, bastante
comum, de que um casal que ainda não elaborou adequadamente o luto da separação
pode adiar infinitamente o divórcio legal e, para tanto, utilizam o argumento do
problema econômico, ou a “consideração” pelos filhos, ou, ainda, o recurso bastante
frequente de uma nunca acabada disputa pela divisão de bens (o “meu bem” dos
primeiros tempos do amor fica substituído pelo amor aos “meus bens”), inclusive em
acirradas brigas por quinquilharias, alegadamente de valor afetivo, na decisão da
partilha.
16. Muitos terapeutas de casal recomendam a eventual utilização do recurso da
dramatização, principalmente aquela que propõe a inversão, na representação dos
respectivos papéis. Da mesma forma, eles propõem ao casal que façam um “tema para
casa” (por exemplo, listarem separadamente o que gostam ou detestam no outro), o que
depois será trabalhado na sessão.
17.Varia bastante o manejo de determinadas particularidades como, por
exemplo, se o atendimento do casal será de curto prazo (o suficiente para a resolução de
uma crise mais aguda), ou se pode ser de duração longa (com a pretensão de um
aprofundamento analítico). Da mesma maneira, o atendimento de um casal pode dar
num outro contexto que não aquele da habitual terapia de casal: ser resultante de uma
necessidade que a análise individual de um deles demanda (ou a problemática de um
filho que angustia ambos, por exemplo) e ficar limitada a uma ou duas sessões (neste
caso, costumamos dar o nome de intervenção vincular).
18. Na atualidade, está entrando em voga, diante de ações de divórcio que se
encaminham para um enfrentamento litigioso, a figura do mediador.
19.De alguma forma, em alguns casais mais e em outros menos, os respectivos
pais e sogros exercem um papel importante. Cabe ao terapeuta do casal trabalhar com o
par a necessidade de fazer com que aqueles pais e sogros conheçam os seus papéis e
seus limites. Igualmente é útil deixar que reflitam sobre o fato de que, nas brigas mais
sérias do casal devidas a mal-entendidos com os sogros, cada um deles deva ficar ao
lado do consorte, e não dos respectivos pais. Já na hipótese de uma separação iminente
12. do casal, também é útil que cada um do casal saiba que, independentemente dos afetos
que mantenham com os sogros, ou das razões que determinaram a separação, os pais,
praticamente sempre, ficarão solidários com o seu filho.
20. Uma visão caleidoscópica, sempre presente, em qualquer casal. Não
obstante seja altamente reduzido o esquema que a seguir vou propor, creio que ele seja
bastante útil na prática clínica com casais. Trata-se do entendimento de quatro aspectos
que sempre estão presentes em todo e qualquer casal e que determinam as alternâncias
entre os encontros e desencontros, os bons e os maus momentos, os criativos e os
destrutivos.
Os referidos quatro elementos são: a parte sadia de um dos cônjuges; a parte
doente dele; a parte sadia do outro cônjuge; a parte doente desse. Parto da noção de que
todos somos portadores de uma geografia do psiquismo, isto é, nenhum ser humano tem
um psiquismo unívoco, qual um bloco maciço e uniforme. Pelo contrário, da mesma
forma como o mapa do mundo tem zonas glaciais (em que tudo nos polos norte e sul é
branco, frio, gelo e solidão), assim como também existe a zona do equador (com a
respectiva temperatura tórrida, senegalesca), sendo que, entre ambas, existem zonas
temperadas (lagos mansos convivendo com mares agitados, superfícies planas e férteis
ao lado de áreas íngremes e rochosas, etc.), também a mente humana é composta de
várias zonas, que, respectivamente, correspondem à nossa parte glacial (depressiva),
coabitando com nossa parte tórrida (temperamental), a parte adulta com a infantil, a
sadia com a neurótica, etc, etc.
A figura do “caleidoscópio”, por sua vez, alude àquele brinquedo no qual umas
mesmas pedrinhas coloridas colocadas em uma caixinha apropriada, com as faces
poliédricas de vidro, conforme for o giro que dermos, visualizar-se-ão configurações de
desenhos e cores totalmente distintas entre si. Assim, as “pedrinhas” do psiquismo do
casal são as mesmas, porém pela lei das combinações, são possíveis as seguintes quatro
possibilidades:
a) Predomina o encontro da parte sadia de um dos cônjuges com a sadia do outro, em
cujo caso é alta a probabilidade de comporem um casal feliz e construtivo.
b) A parte sadia de um, em colusão com a parte doente do outro, e vice-versa.
c) Nessas duas hipóteses citadas, costuma acontecer que o vínculo do casal seja
instável, na base de uma previsão do tipo metereológica de “tempo bom, sujeito a
chuvas e trovoadas”, ou seja, como se costuma dizer popularmente: o casal vai “entre
tapas e beijos”.
13. d)Prevalece uma colusão entre as partes doentes de ambos, de modo que os aspectos
mutuamente destrutivos desse tipo de casais estão permanentemente presentes, com
recíprocas cobranças, acusações, ataques e ameaças, configurando um vínculo de
natureza sadomasoquista.